O atentado terrorista do Hamas a Israel, no dia 07 de outubro de 2023, chocou o mundo e o Brasil. Por quase um ano, assistimos a uma guerra brutal que parece não ter fim. A cada par de anos o conflito explode com mais ou menos violência. E, mais uma vez, o sentimento de exaustão entre palestinos e israelenses é dominante. Parece ser um conflito que durará mais de cem anos, cujo estoque de ira e rancor deixa qualquer analista incrédulo. De um lado, centenas de mortos a sangue frio pelo simples fato de serem israelenses. De outro, se intensifica uma ocupação militar ilegal dos territórios e do povo palestino. Palavras como terrorismo, antissemitismo, islamofobia e genocídio voltaram pela enésima vez ao debate da questão palestina, confundindo mais que explicando. De longe se vislumbra um ciclo infindável de ódio, que deixa os brasileiros estupefatos e dominados pelo sentimento de incapacidade. Parece que nada podemos fazer.
Nesse contexto, como organizar uma edição de uma revista de Relações Internacionais com foco no Brasil e na América Latina? Diariamente se escreve sobre as razões e consequências do conflito. Todas as revistas científicas ou de policy trazem diversos artigos sobre a guerra. Não podíamos trilhar o mesmo caminho. Assim, nesta edição, decidimos ter como foco não o conflito em si, mas sim os efeitos dele no Brasil, em sua sociedade e, sobretudo, em sua política externa. O objetivo foi privilegiar autores que discorrem e analisam as consequências da guerra de Gaza sobre o Brasil e os brasileiros e como eles reagem à instabilidade derivada dessa guerra no Oriente Médio.
[N]esta edição, decidimos ter como foco não o conflito [em Gaza] em si, mas sim os efeitos dele no Brasil, em sua sociedade e, sobretudo, em sua política externa. O objetivo foi privilegiar autores que discorrem e analisam as consequências da guerra de Gaza sobre o Brasil e os brasileiros e como eles reagem à instabilidade derivada dessa guerra no Oriente Médio.
Quando se evoca no Brasil a questão palestina, geralmente se argumenta que judeus e árabes vivem em harmonia por aqui. Trata-se de um argumento recorrente que, em certa medida, pode até ser correto. Contudo, o elevado ciclo de violência e imprevisibilidade da existência concreta do Estado Palestino, pode converter esse argumento em uma fábula ou em delírio meramente ilusório. É praticamente impossível transportar esse equilíbrio harmonioso à Terra Santa, pois, afinal, o Rio de Janeiro não é Jerusalém. Mas é perfeitamente possível observar que, passado um ano, a guerra tem efeitos muito fortes nessas comunidades e na própria política externa brasileira. Como os textos desta edição demonstram, judeus e árabes do Brasil não são mais os mesmos de um ano atrás – o olhar para a região do Levante é de desesperança e medo. Esta guerra mudou muita coisa. A harmonia tem sido dominada, em alguma medida, pelo afastamento e pela tensão.
E a política externa brasileira? Como muitos analistas internacionais argumentam, a guerra de Gaza é uma das três principais fraturas da ordem internacional – as outras duas são Ucrânia e Taiwan. Os destinos do mundo serão decididos nessas três áreas. Qualquer internacionalista precisa, por dever de ofício, ler e estudar os três cenários, principalmente aqueles que entendem que o papel do Brasil no futuro da ordem também está diretamente ligado a como vamos nos posicionar nessas três fraturas. A política externa do governo Lula III mudou com o conflito em Gaza. O país não poderia se furtar, obviamente, do problema. A forma como abordamos a questão não só importa para o papel do Brasil na ordem internacional, mas também para a avaliação geral da própria política externa de Lula III. Para estudiosos, analistas e estrategistas, Gaza é um marco central do sucesso ou fracasso da política externa deste governo.
Como muitos analistas internacionais argumentam, a guerra de Gaza é uma das três principais fraturas da ordem internacional – as outras duas são Ucrânia e Taiwan. Qualquer internacionalista precisa, por dever de ofício, ler e estudar os três cenários, principalmente aqueles que entendem que o papel do Brasil no futuro da ordem também está diretamente ligado a como vamos nos posicionar nessas três fraturas.
Dois pontos foram muito importantes para a organização, seleção e editoração dos textos desta edição. A equipe editorial decidiu que duas linhas vermelhas não poderiam ser cruzadas nos textos. Primeiro, não admitiríamos a defesa dos atentados do Hamas. Atentado terrorista a vidas inocentes é atentado terrorista e ponto final, não importando a justificativa ou o contexto político. Segundo, não aceitaríamos a defesa do atual governo de Israel, principalmente em relação à completa desproporcionalidade na resposta militar ao atentado. Esta revista raramente toma posição editorial. Neste tema abrimos exceção e tomamos uma posição: somos a favor do campo da paz e não defendemos os mercadores da morte. Defendemos quem defende a paz. Pode ser inocente da nossa parte, mas são os inocentes que constroem o mundo. Já os violentos, obviamente, o destroem.
Nesse sentido, a sessão especial possui nove textos sobre Gaza e o Brasil, uma das maiores sessões especiais da história da revista. A demanda para escrever sobre o tema foi muito alta e buscamos atender a ela. Um ponto ficou claro. Houve quase um consenso entre os autores: o conflito de Gaza faz parte do debate doméstico e eleitoral brasileiro. Não se trata apenas de um tema de política externa, mas sobretudo de um tema de política doméstica. Ficou patente que, cada vez mais, temas internacionais vão afetar as chances eleitorais de candidatos brasileiros, sejam eles candidatos à presidência ou ao legislativo.
Houve quase um consenso entre os autores: o conflito de Gaza faz parte do debate doméstico e eleitoral brasileiro. Não se trata apenas de um tema de política externa, mas sobretudo de um tema de política doméstica. Ficou patente que, cada vez mais, temas internacionais vão afetar as chances eleitorais de candidatos brasileiros, sejam eles candidatos à presidência ou ao legislativo.
Nesse sentido, abrimos a sessão com o artigo intitulado A crise israelo-palestina e a polarização política no Brasil do professor Guilherme Casarões da FGV-SP. Nesse texto, Casarões argumenta que o posicionamento sobre o conflito se tornou marcador ideológico fundamental, impactando percepções e estratégias de atores políticos e sociais no Brasil. Para o autor, quanto mais calcificadas estiverem as posições políticas na sociedade entre esquerda e direita, petismo e bolsonarismo, mais as visões sobre Israel e Palestina farão parte indissociável da identidade política dos cidadãos desses campos. Quem está mais à esquerda se identifica com o pleito palestino, ao passo que quem estiver à direita se identifica mais com Israel. Na mesma toada, o texto de Natalia Nahas Calfat, pesquisadora do Grupo de Trabalho sobre Oriente Médio e Mundo Muçulmano (LEA-USP), intitulado O Oriente Médio é aqui: o Brasil entre o sionismo cristão e a solidariedade Sul-Sul trata das lutas políticas internas ao redor do conflito. Calfat discorre sobre como a direita brasileira solidificou sua aproximação ao sionismo cristão nas últimas décadas, e a esquerda reforçou sua histórica associação à solidariedade Sul-Sul e à causa palestina. A autora demonstra como ambas as agendas são continuamente capitalizadas vis-à-vis o conflito israelo-palestino.
Em seguida, Karina Stange Calandrin, pós-doutoranda do IRI-USP e assessora acadêmica do Instituto Brasil-Israel, argumenta que a política externa de Lula III mudou neste conflito. Tradicionalmente conhecido por sua abordagem equidistante, o Brasil se alinhou ao lado palestino e marcou uma ruptura com sua posição de longa data. Para ela, essa mudança foi precipitada por intensos debates internacionais e uma crescente pressão doméstica por uma postura mais assertiva, influenciada por movimentos globais de solidariedade à causa palestina. De forma similar, a pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Relações Internacionais (NUPRI-USP) Isabelle Somma de Castro escreve o artigo intitulado Os constrangimentos para uma atuação do Brasil no conflito israelo-palestino. A autora argumenta que o ataque do Hamas demonstrou como a questão palestina é um ponto de disputa entre os dois maiores polos políticos do Brasil. Os conservadores pressionam por um apoio a Tel Aviv, enquanto o governo Lula critica a posição pró-guerra de Netanyahu. Para Castro, há pouco espaço para a diplomacia brasileira desempenhar um papel no conflito.
Nesse contexto, o texto intitulado De Gaza à Avenida Paulista: repercussões e usos do conflito entre Israel e o Hamas na política brasileira (2023-2024), do professor da UFRJ Michel Gherman e da professora de Universidade de Oklahoma Misha Klein, demonstra que as reações no Brasil ao ataque do Hamas e à resposta de Israel estão longe de ser parte de um debate apenas sobre política externa. Os autores analisam três eventos chave: uma palestra na Pontifícia Universidade Católica do Rio, uma manifestação na Avenida Paulista e um evento realizado na cidade de Ra’anana, em Israel. Em todos, a política internacional deixou de ser agenda periférica e pouco importante e virou referência da política doméstica brasileira com certa centralidade nos debates. Em um texto de ângulo diferente, a professora do IDP Monique Sochaczewski e a diplomata Maria Helena Notari abordam as quatro vítimas brasileiras do atentado do Hama e as contextualizam na história da migração brasileira para Israel e no movimento de brasileiros emigrados do país nas últimas décadas.
O texto de Mabel Bustelo, fellow do BRICS Policy Center, e Mariano Aguirre Ernst, fellow do International Security Program do Chatham House Institute, explora a situação atual, as mudanças na prática da mediação internacional e a ascensão das potências emergentes, para indagar sobre as perspectivas de uma solução mediada para esse conflito e o possível papel do Brasil. Para os autores, o Brasil poderia desempenhar um papel nos processos de paz e segurança, tanto na tomada de decisões (por exemplo, ao ocupar um assento não permanente no CSNU), fazendo parte de operações de manutenção da paz e ligando cooperação Sul-Sul para o desenvolvimento (triangulada com os países do Norte), como no estímulo às negociações de paz e aos projetos de reconstrução do Estado.
A professora do El Colegio de México (COLMEX) Élodie Brun argumenta em seu texto que a posição oficial brasileira sobre a guerra de Gaza era previsível, devido às posições dos governos anteriores de Lula. No entanto, tanto o contexto internacional quanto o doméstico são diferentes daqueles de seus primeiros mandatos. A polarização está crescendo em todos os níveis, como ilustram as reações ao discurso de Lula na União Africana em fevereiro de 2024 e o papel da extrema-direita em detrimento da harmonia tradicional entre as comunidades brasileiras. Por fim, o texto do professor Salem Nasser da FGV-SP intitulado O fim de uma ficção sustenta que chegou a hora de a política externa brasileira abandonar a histórica preferência pela solução de dois Estados. Para o autor, dada a impossibilidade de sucesso de tal projeto, cabe às autoridades brasileiras reavaliar sua posição em meio à reconfiguração de poder internacional que o conflito enseja.
Dentro do mesmo tema geral, entrevistamos duas pessoas importantes das comunidades judaica e palestina no Brasil. Primeiro, Fernando Lottenberg, comissário da Organização dos Estados Americanos (OEA) para o Monitoramento e o Combate ao Antissemitismo e ex-presidente da Confederação Israelita do Brasil (CONIB), discute o aumento do antissemitismo no Brasil pós-atentados. Segundo, o presidente da Federação Árabe-Palestina do Brasil (FEPAL), Ualid Rabah, discute como as comunidades árabe e palestina têm sido afetadas e reagido ao conflito. Ambas as entrevistas mostram muito bem o drama que o conflito gera nas comunidades no Brasil.
Por fim, a seção Resenha de Livro também trata do conflito entre Israel e Palestina. Vinícius Armele, doutor em Relações Internacionais pela PUC-Rio, resenha o livro The Impact of Protracted Peace Processes on Identities in Conflict: The Case of Israel and Palestine, de Joana Ricarte, pesquisadora da Universidade de Coimbra.
Como sabemos, todas as edições trazem artigos de temas gerais. Nesse sentido, mais três artigos foram publicados. O primeiro, intitulado Brasil e os recursos do mar, foi escrito pelo advogado Bolívar Moura Rocha e pelo ex-ministro da Fazenda e conselheiro do CEBRI, Pedro Malan. Nesse texto os autores propõem iniciativas aptas a reforçar os interesses do Brasil com relação aos recursos do mar: o fortalecimento da proposta de extensão de sua plataforma continental, a adoção de marco legal para o aproveitamento econômico sustentável da Amazônia Azul e o retorno do país à Área – o espaço marítimo além da jurisdição de Estados costeiros. O segundo texto, do embaixador Fernando de Mello Barreto, intitulado A experiência brasileira em medições diplomáticas e perspectivas de atuações futuras, examina instâncias históricas de mediação diplomática do Brasil – conflito Peru-Equador, na década de 1990; e a mediação turco-brasileira entre o Irã e outras nações, em 2010 – que se tornaram um componente-chave da política externa brasileira. Finalmente, o texto escrito por Paulo Magalhães, pesquisador da Faculdade de Direito da Universidade do Porto e diretor-executivo da Casa Comum da Humanidade, sustenta que a convenção do Rio 1992 avançou e definiu o sistema climático, e hoje é possível definir o seu estatuto de res communis para evitar a tragédia dos comuns.
Como se pode notar, é uma edição extensa e que busca dar uma contribuição relevante para os debates sobre os efeitos da guerra em Gaza no Brasil. Boa leitura!
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