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Milei's victory and 40 years of democracy in Argentina

What can Milei's victory mean for the future of democracy?
The newly elected Argentine president, Javier Milei. Image: Shutterstock

No ano em que comemora quatro décadas ininterruptas de democracia, a Argentina elege Javier Milei, um outsider de extrema direita cujo programa combina elementos ultraliberais na economia e conservadores no campo dos costumes. Na campanha, Milei prometeu fechar o Banco Central, dolarizar a economia e reduzir o gabinete ministerial a apenas oito pastas. Disse, ainda, que a “justiça social” era uma “aberração” e que, portanto, era necessário encerrar os programas sociais, na esteira de um amplo plano de redução do tamanho do Estado, que inclui também a privatização de diversas empresas estatais. No plano internacional, afirmou que cortaria relações com países que considera “comunistas”, incluindo o Brasil e a China, os dois maiores parceiros comerciais da ArgentinaAlém disso, já se posicionou em prol do fim do aborto legal e da proibição do casamento homoafetivo, bem como considera as mudanças climáticas uma “farsa da esquerda”. A sua vice, Victoria Villarruel, que é filha e neta de militares, tem sido uma das principais vozes que reivindicam a revisão das condenações de oficiais das Forças Armadas por crimes cometidos durante a ditadura vigente entre 1976 e 1983. Tanto Milei quanto Villarruel negam as estimativas de que cerca de 30 mil pessoas tenham sido vítimas das políticas de repressão à época, alegando que o número é bastante inferior, e procuram equiparar os crimes cometidos pelos grupos guerrilheiros aos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado. 

O que ocorreu ao longo dessas quatro décadas de democracia que possibilitou a vitória dessa plataforma de governo? E o que a vitória de Milei pode representar para o futuro da democracia?

A “CONFLUÊNCIA PERVERSA” ENTRE DEMOCRATIZAÇÃO E NEOLIBERALISMO 

O primeiro presidente eleito após a ditadura, Raúl Alfonsín, disse uma vez uma frase que ainda ressoa no imaginário social e político argentino e é frequentemente rememorada: “com a democracia, se come, se cura e se educa”. Aquelas palavras condensavam um horizonte de expectativas de que o fim do período autoritário representaria não somente a garantia de liberdades fundamentais, mas que a democracia pudesse lhes assegurar uma vida mais digna do ponto de vista socioeconômico. 

Até a década de 1970, a sociedade argentina era reconhecida por seus altos níveis de inclusão, muito próximos aos dos países desenvolvidos. Contudo, a ditadura militar adotou uma política econômica neoliberal, que privilegiava setores do capital produtivo e financeiro, com altos custos sociais (Vannucchi 2012). Para conter a reação da sociedade civil organizada, fortemente afetada pelo aumento da pobreza e das desigualdades, a utilização de métodos repressivos tornou-se corriqueira. 

Nos primeiros anos após a ditadura, prevaleceu, no debate político hegemônico, uma concepção minimalista da democracia, segundo a qual era preciso concentrar-se esforços para construir uma nova cultura política em um país com longo histórico de instituições escassamente democráticas, pluralistas e tolerantes. O movimento em favor dos direitos humanos teve um papel central para convencer a sociedade civil de que, para que a história não se repetisse, era necessário punir os crimes cometidos ao longo dos anos nefastos que os precederam. 

 Nesse contexto, se constitui um arcabouço democrático no qual colocou-se muita ênfase nas liberdades negativas (ou seja, aquelas que protegem os indivíduos da intromissão do Estado) e na representação, com menor ênfase nas liberdades positivas, vinculadas à participação direta do cidadão no jogo político. Enquanto isso, os direitos sociais, voltados para reduzir as desigualdades e promover o bem-estar, ocupavam espaço marginal no debate público (Rinesi 2023) Em outras palavras, na luta contra a ditadura a prioridade foi desmantelar o seu perverso aparelho repressivo, porém a perversidade da política econômica herdada continuou a causar danos cada vez mais profundos. 

Ironicamente, foi em um governo peronista que o neoliberalismo avançou de modo ainda mais vigoroso. Carlos Menem, entre 1989 e 1999, promoveu uma série de reformas do Estado, acelerando bruscamente um processo que desmantelava o modelo econômico construído nos anos 1940, voltado ao mercado interno, e o substituía por um modelo exportador de alimentos (Rinesi 2023, 72). 

A promessa de que o encolhimento do Estado resultaria em melhores indicadores econômicos não se concretizou. Ao final de 2001, o índice de Gini registrava sua pior medição na história (0,54) e cerca de 50% da população estava abaixo da linha da pobreza (Trujillo 2017). Tudo isso ocorrendo em meio a escândalos de corrupção, que contribuíram para o descrédito da política tradicional. O ano de 2001 foi o ápice da crise política, quando diversos protestos ganharam as ruas de todo o país, nos quais jovens bradavam: “Que se vayan todos!” Tal consigna foi apropriada pela campanha de Javier Milei este ano, de forma a tirar proveito eleitoral desse sentimento coletivo de rechaço aos partidos mainstream, mas revestindo-a com sentidos muitos distintos daqueles atribuídos em 2001. 

A ARGENTINA PÓS-2001

Em consonância com as reivindicações que vinham das ruas, os governos de Néstor Kirchner (2003-2007) e de Cristina Kirchner (2008-2015) promoveram medidas que freavam o avanço do neoliberalismo, como a reestatização de empresas privatizadas e a implementação de políticas voltadas à redistribuição de renda e à inclusão de minorias, que reduziram as desigualdades sociais (Trujillo 2017). 

 Contudo, o modelo de desenvolvimento aplicado não foi capaz de superar a lógica econômica vigente. A aposta no “neoextrativistivismo”, uma das suas principais contradições do kirchnerismo, como aponta Svampa (2019), mostrou-se extremamente vulnerável à demanda chinesa, que sofreu forte retração. Ademais, o modelo afeta fortemente os direitos das comunidades que vivem nos territórios onde esses megaprojetos de extração mineral são implementados e é extremamente deletério ao meio ambiente. 

Somado a isso, houve uma série de acusações de corrupção, cotidianamente noticiadas pela mídia, que contribuíram para manchar a reputação de Cristina Kirchner e seus aliados, salientando a polarização, que até hoje impacta as disputas políticas. Na eleição deste ano, por exemplo, Milei soube explorar a dicotomia “kirchneristas versus anti kirchneristas” em seu favor ao longo da campanha, sobretudo no segundo turno. 

Nas eleições de 2015, venceu Maurício Macri, representante da direita tradicional. A implementação de uma agenda declaradamente neoliberal provocou a reversão de boa parte das políticas adotadas ao longo do ciclo kirchnerista, bem como o retorno de algumas medidas que pautaram a gestão econômica durante a década de 1990 (Machado 2021). Mais uma vez, a receita não deu certo: o poder aquisitivo do salário-mínimo caiu 20%, a inflação ultrapassou os 50% e a mais de ⅓ da população voltou a viver abaixo da linha da pobreza. O aumento exorbitante da dívida levou o presidente a recorrer ao FMI, contraindo um empréstimo bilionário.

Nas eleições seguintes, o peronismo conseguiu se rearticular e apresentou dados convincentes de que o passado recente sob as administrações kirchneristas tinha sido mais próspero para a maior parte da população do que os quatro anos sob a administração macrista. A chapa peronista foi encabeçada por Alberto Fernandéz, tendo Cristina Kirchner como vice. Passadas as eleições, ficou evidente que as diferenças entre os dois eram irreconciliáveis e a vice-presidenta começou a tecer duras críticas às decisões tomadas por Fernández. 

Além das disputas internas, Fernandéz teve que lidar com os efeitos econômicos e sociais da pandemia e enfrentou uma das piores secas da história. O resultado dessas contingências somadas à incapacidade de conter o avanço da crise econômica foi desastroso. A inflação disparou, ultrapassando os 140% ao ano; a pobreza chegou ao nível de 40%; e estima-se que o PIB pode cair 2,3% este ano (Pereira, Brasesco, Trenchi & Mihm 2023). 

Diante disso, como convencer uma população empobrecida e desacreditada de que a força política que está no poder há quatro anos e que tem como candidato o ministro da Economia, Sergio Massa, é capaz de resolver problemas de tamanha dimensão? Essa foi a “missão impossível” perseguida pelo peronismo nas eleições presidenciais de 2023.

A VITÓRIA DE MILEI E AS PERSPECTIVAS PARA O NOVO GOVERNO

A vitória de Milei foi relativamente folgada, conquistando 55,7% dos votos contra 43,3% de Massa. Chama atenção o fato de a carreira política do novo presidente ser bastante curta. Começou a ganhar fama em 2014, quando passou a participar de programas de televisão para fazer análises econômicas, haja vista que é economista, e se destacou por seu jeito eloquente e por seu viés ultraliberal. Em 2021, fundou o partido Libertad Avanza e surpreendeu ao ficar em terceiro nas eleições para prefeito de Buenos Aires. 

Em seus discursos, Milei encarna o rechaço da sociedade argentina aos políticos tradicionais, aos quais o novo presidente se refere como “a casta”. As suas propostas, em convergência com as estratégias de lideranças de extrema-direita como Jair Bolsonaro e Donald Trump, põem ênfase no desmantelamento das instituições. Entretanto, em que pese a vitória com uma diferença significativa, é grande a probabilidade de que o projeto niilista proposto por Milei não possa se concretizar, pelo menos não com a intensidade e celeridade que prometeu. 

A Libertad Avanza possui somente 37 dos 257 assentos na Câmara dos Deputados e elegeu apenas oito dos 72 senadores. Diante disso, o apoio de Mauricio Macri e de Patricia Bullrich, que ficou em terceiro lugar nas eleições presidenciais, será essencial para sustentar o mínimo de governabilidade. Os dois são as principais lideranças da coalizão Juntos por El Cambio (JxC), porém a decisão unilateral de Bullrich e de Macri de apoiarem Milei, sem consultar a agremiação, gerou um tremendo racha, que deve resultar na implosão do JxC. Isso fará com que dificilmente o novo presidente consiga atrair uma parcela significativa de parlamentares da coalizão para a sua órbita. 

Entretanto, ao convidar Bullrich para ser a ministra da Segurança e atribuir a Macri um papel estratégico na montagem do governo, Milei sinaliza uma moderação em relação ao que foi proposto na campanha, o que pode assegurar-lhe uma maior confiança dos meios de comunicação tradicionais e do mercado. Isso será essencial para pôr em prática qualquer estratégia de controle da inflação. A influência de Macri fica evidente também na nomeação de Luis Caputo, ex-ministro das Finanças durante o seu governo, para liderar a pasta da Economia. Logo após a indicação, Caputo declarou que a dolarização da economia não deve ocorrer de forma imediata. 

Outra nomeação ministerial que merece destaque é a de Diana Mondino para o cargo de chanceler. Mondino declarou que a Argentina não ingressará nos BRICS (G1 2023), conforme Milei já havia prometido na campanha, mas sinalizou que não deve haver rupturas na relação com o Brasil. Em encontro oficial com o chanceler brasileiro Mauro Vieira, Mondino entregou um convite oficial para que o presidente Lula compareça à posse de Milei (Landim 2023). 

Portanto, há sinais que apontam para uma moderação em relação ao discurso de campanha. O equilíbrio entre a radicalização e a moderação será crucial para que o novo governo alcance determinada estabilidade. Se radicalizar demais, as chances de governabilidade serão mínimas. Em contrapartida, se moderar demais, pode ser acusado de estelionato eleitoral, fazendo com que o índice de confiança popular ao seu governo rapidamente despenque. Isso poderia inclusive ter efeitos drásticos para o próprio sistema político já bastante debilitado. 

Cumpre esclarecer, ainda, que considerável parcela dos votos dados ao presidente eleito foi motivada pelo rechaço à administração anterior e às contradições históricas apresentadas pelo peronismo. Esses eleitores, pouco identificados com a persona de Milei, podem facilmente voltar-se contra o governo, caso as expectativas de mudança não se concretizem. Uma pesquisa com eleitores de Milei feita ainda durante a campanha mostra que a adesão a determinadas propostas do então candidato era baixa. Embora três quartos desses eleitores consideram que o Estado deve ter mínima presença, 60% acreditam que o Estado deve garantir saúde e educação públicas; e 79,5% concordam que é dever do Estado garantir aposentadorias dignas (CIGP 2023). Isso demonstra que, quando a ideia de redução do Estado sai da abstração e ganha concretude em temas específicos, a adesão ao projeto de Milei se reduz significativamente.

A título de conclusão, podemos afirmar que a eleição de Milei resulta do fato de a democracia argentina não ter conseguido avançar em termos “substantivos”, no que tange à expansão de direitos, mantendo em grande medida o seu perfil liberal-minimalista. Ao aplicar a fórmula do Estado mínimo, já experimentada em outras ocasiões, o novo governo deve contribuir para acelerar esse processo no longo prazo. No curto prazo, contudo, se Milei conseguir conter a inflação, será um feito relevante, capaz de lhe render certa legitimidade momentânea, tendo em vista as enormes adversidades que o problema vem causando no dia a dia dos argentinos.

Referências Bibliográficas

CIGP. 2023. “Analysis del votante de Javier Milei”. Consultora de Imagen y Gestión Política, 13 de septiembre , 2023. https://cigp.com.ar/estudio-el-votante-de-javier-milei/.

G1. 2023. “Ministra de Javier Milei afirma que Argentina não vai integrar o grupo dos Brics”. 30 de novembro, 2023. https://g1.globo.com/mundo/noticia/2023/11/30/ministra-de-javier-milei-afirma-que-argentina-nao-vai-integrar-o-grupo-dos-brics.ghtml.  

Landim, Raquel. 2023. “Milei envia carta a Lula e convida para a posse: ‘Construção de laços’”. CNN Brasil, 26 de novembro, 2023. https://www.cnnbrasil.com.br/politica/milei-envia-carta-a-lula-e-convida-para-a-posse/

Machado, Pedro. 2021. “A economia política da dívida externa da Argentina”. In: Boletim OPSA, volume 4, 2021. https://iesp.uerj.br/boletim-opsa-4-out-dez-2021/.

Pereira, Caio, Scott Brasesco, Alejandro Trenchi & Jackson Mihm. 2023. “Analyzing Argentina 's Presidential Elections”. Global Americans, novembro 2023. https://theglobalamericans.org/reports/.

Rinesi, Eduardo. 2023. Democracia : las ideas de una época. Ciudad Autónoma de Buenos Aires : Editorial de la Imprenta del Congreso de la Nación. https://icn.gob.ar/public/publicaciones/democracia/Debates%20actuales%20Democracia.pdf.

Svampa, Maristella. 2019. “Las fronteras del neoextractivismo en América Latina. Conflictos socioambientales y nuevas dependencias”. México: CALAS. https://www.memoria.fahce.unlp.edu.ar/libros/pm.5179/pm.5179.pdf.

Trujillo, Lucía. 2017. “La Argentina kirchnerista: Alcances y límites de una experiencia democrática sobre la distribución del ingreso (2003-2015).” Polis 16 (46). http://dx.doi.org/10.4067/S0718-65682017000100099.

Vannucchi, Edgardo. 2012. “‘Carta Abierta de un Escritor a la Junta Militar’ Rodolfo Walsh, 24 de marzo de 1977.” Série Recursos para el Aula 1. Buenos Aires: Ministerio de Justicia y Derechos Humanos de la Nación. http://conti.derhuman.jus.gov.ar/areas/em/serie_1_walsh.pdf.

 

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