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Special Section

The Brazilian Role

New scenario demands correction and updating from the Brazilian diplomatic tradition

Abstract

This essay argues that, due to Brazilian diplomatic tradition, historically cautious and not likely to incorporate abrupt changes in course, the new Brazilian government will not employ “a new foreign policy” but rather an urgent and necessary correction and updating of discourses and positions that have become out of pace with transformations in the international scene, or have proved to be inadequate in light of our recent errors in judgment and action. It concluded that the Brazilian diplomacy is based on an essential trade-off: by seeking greater access to multiple instances of global power, Brazil must, for its part, offer guarantees of international behavior that inspires broad trust. Some areas that have not been a priority for the country and in which Brazil has comparative advantages and great potential are highlighted, such as water availability, appreciation of our culture, and relations with Africa.

Keywords

Brazilian foreign policy; diplomacy; international relations.
The United Nations Security Council Chamber in New York. Source: Wikimedia Commons.

Confesso que não me sinto confortável ao escrever sobre uma “nova” política externa brasileira. Não tanto por fidelidade ao passado, em qualquer de suas configurações, mas por acreditar que as nossas relações com o mundo têm quase sempre seguido – e diria que isso já se prenunciava antes mesmo da nossa independência – um caminho cauteloso e pouco suscetível a incorporar mudanças abruptas de rumo. 

É em parte pelo peso dessa longa prática que não acredito que iremos desenhar e executar nos próximos anos nada que possa ser rotulado como “uma nova política externa”. Suponho que vamos apenas assistir a uma urgente e necessária correção e atualização de discurso e de prioridades – vale dizer, um aggiornamento de posições que foram simplesmente ultrapassadas pelas incessantes mudanças do cenário mundial, ou que se revelaram inadequadas por recentes erros nossos de julgamento e ação.

É evidente que não preciso nem posso procurar resumir aqui o que o século XX e este primeiro quarto do século XXI presenciaram como modificação dos ordenamentos preexistentes. Não é necessário também acentuar que estamos assistindo, de uns anos para cá, ao que parece ser o fim de um longo ciclo da vida internacional, definida hoje, entre outros fatores, pela vertiginosa aceleração da ciência e das tecnologias e pela emergência da Ásia e do Pacífico como um novo grande polo de poder. É imperativo que o Brasil possa, agora, encontrar urgentes e melhores respostas aos muitos desafios, sobretudo humanitários, ambientais e climáticos, com os quais se vê, hoje, confrontado e cobrado, e possa definir, com naturalidade, o espaço ampliado que desejaria ocupar daqui para a frente na vida internacional. Uma nova ordem, provavelmente multipolar, começa a se desenhar, e nela devemos procurar presença ativa e maior influência. É disso que vou me ocupar neste texto. 

É imperativo que o Brasil possa, agora, encontrar urgentes e melhores respostas aos muitos desafios, sobretudo humanitários, ambientais e climáticos, com os quais se vê, hoje, confrontado e cobrado, e possa definir, com naturalidade, o espaço ampliado que desejaria ocupar daqui para a frente na vida internacional. Uma nova ordem, provavelmente multipolar, começa a se desenhar, e nela devemos procurar presença ativa e maior influência.

Acredito que nossa trajetória como país soberano, em vários e sucessivos momentos de um caminho que já não é mais tão curto assim –, comemoramos, no ano passado, 200 anos de vida independente – tem sido, no essencial, previsível e confiável. Começo meu olhar lá atrás, quando Portugal dividia com a Espanha, como acontece até agora, a Península Ibérica. Aqui, na América do Sul, os dois grandes atores eram, essencialmente, os mesmos. Em terra firme, a então poderosa Espanha era sempre uma ameaça para seu pequeno vizinho. Nos mares e além deles, Portugal e seus interesses sofriam também os desafios das duas principais potências navais da época, Holanda e Inglaterra, enquanto que nós fomos invadidos e ocupados pelos holandeses e longamente pressionados e desafiados pelo poder britânico e pelos interesses e ambições da Espanha em nosso entorno. Para Portugal, uma boa diplomacia foi, simplesmente e desde sempre, condição indispensável de sobrevivência. De alguma maneira, somos herdeiros dessa tradição e, até certo ponto, do estilo de atuar que a acompanha.

Mesmo a nossa independência mudou bem menos o Brasil do que costuma acontecer. Sete dos nossos vizinhos imediatos são fragmentos do velho império espanhol. São novas entidades, de algum modo, criadas pela própria gesta das lutas pela independência. As nações de língua espanhola que nos rodeiam existem, desde então, como Repúblicas, com outros nomes e dentro de novas fronteiras. O Suriname, a Guiana e a Guiana Francesa têm outras matrizes e seguiram um outro cronograma. O Brasil, inicialmente como Império, depois de ter sido Reino Unido a Portugal e Algarves, teve uma emancipação de certo modo sui generis e continuou territorialmente onde estava, sem mudar de nome, de endereço e, em certas e importantes dimensões, manteve a maneira de ser governado.[1]

Não busco nem posso simplificar demais longos processos históricos, naturalmente dinâmicos e de grande complexidade. Ainda que as condições incessantemente mudem e seja normal que as filas andem e se possa sempre afirmar que nunca mergulhamos duas vezes no mesmo rio, sugiro simplesmente que, nas relações do Brasil com o mundo, a velocidade e a curva das mudanças que nos atingem ou que provocamos têm sido mais moderadas do que acontece em nosso entorno e, se posso me permitir uma imensa generalização, mesmo mundo afora. Aceita essa incessante mobilidade, o Brasil aparece como um espaço com ampla margem de previsibilidade no seu comportamento doméstico e internacional. Inovações surpreendentes e abruptas de nossos valores, prioridades e de nossa retórica, como aconteceu sobretudo nos dois primeiros anos da gestão Bolsonaro, não tiveram vida longa, apesar de alguns de seus efeitos ainda perdurarem. Os dois anos imediatamente seguintes assistiram a um esforço relativamente bem-sucedido da diplomacia brasileira, com imenso apoio da opinião pública interna e internacional, para controlar as avarias causadas, naquele breve intervalo, aos nossos interesses e projeções externas e à retomada da nossa vocação para o diálogo e para a moderação.

Tenho procurado, ao longo de muitos anos, ao escrever ou falar sobre o Brasil, encontrar alguma formulação que me permita identificar, de maneira sintética, o que me parecem ser os parâmetros essenciais que definem nossa atuação internacional. Acho que, talvez, possa resumir minha reflexão da seguinte forma: o Brasil busca, de maneira consistente, ter maior acesso às múltiplas instâncias do poder mundial e entende que, para que isso aconteça, deve, por seu lado, oferecer garantias de um comportamento internacional que inspire ampla confiança. Emprego aqui a palavra “acesso” em seu sentido mais abrangente. Penso no acesso a mercados e tecnologias protegidas, aos diretórios do poder mundial, e acesso, enfim, a todos os sistemas e foros que permitem a um país ampliar, de forma sustentável, sua presença e sua influência. Por seu lado, o Brasil, e esse me parece ser o trade off essencial, precisa oferecer garantias de que seu comportamento será, como norma, responsável e construtivo, e que não representaremos para o nosso entorno imediato, ou para espaços mais amplos e distantes, qualquer tipo de ameaça significativa. A persistente ambição brasileira de ter um assento permanente, primeiramente no Conselho da Liga das Nações, o que se manifestou há quase um século e se renovou no pleito ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, é emblemática dessa busca.

O Brasil busca, de maneira consistente, ter maior acesso às múltiplas instâncias do poder mundial e entende que, para que isso aconteça, deve, por seu lado, oferecer garantias de um comportamento internacional que inspire ampla confiança.

Caberia aqui um comentário sobre essa expectativa. Não vejo condições para que possa ocorrer, no futuro previsível, qualquer ampliação do Conselho de Segurança. Penso, assim, que devemos deixar o claro registro de nossas qualificações e esperanças, mas não dedicar ao assunto mais tempo e esforço do que ele agora parece merecer. Creio que já gastamos nessa empreitada mais do que precisávamos e devíamos. Vamos apenas continuar a somar pontos e a juntar cada vez mais títulos e méritos para chegar lá.  

O Brasil se sente naturalmente inclinado a cooperar para a construção de um mundo multipolar e encontra, também no exercício da diplomacia parlamentar, uma zona de conforto que atende a várias de suas preocupações. O fato de o país ter sido sempre apenas um observador do Movimento dos Não Alinhados ilustra essa preferência brasileira por vinculações tênues, que não inibam demais sua liberdade de ação.     

Devo incluir nessa abrangente relação a importância crescente de nossa projeção cultural. Começamos a usar a língua portuguesa como um valioso instrumento de aproximação e entendimento com os outros oito países que, além de nós, usam o mesmo idioma na Europa, na África e também na Ásia. A nossa é a nona língua mais falada no mundo. A Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), criada em 1996, é uma ferramenta importante de aproximação e permite que, também nesse campo, usemos de forma construtiva a nossa presença e nossa massa crítica intelectual e demográfica, e façamos de nossa língua um instrumento com significativa presença e visibilidade, sobretudo agora em todos os novos e grandes sistemas digitais de comunicação e de difusão de conhecimento (Azambuja & Seiler 2023).

O Brasil tem também procurado utilizar as oportunidades e lições que sua formação racial e multicultural oferece para apresentar-se nos principais foros e instâncias como um país que, sem pretender de forma alguma ser exemplar nem recorrer a mitos já desacreditados, viveu e vive uma experiência nacional que pode ser relevante para outros, sobretudo em tempos em que grandes movimentos migratórios têm criado novos desafios para o convívio, quase sempre difícil, entre comunidades longamente estabelecidas e correntes de incorporação recente. Quando viajo pelo Brasil sírio e libanês, judaico e polonês, coreano, germânico e japonês, afrodescendente e indígena, reconheço que nossa latinidade não basta para nos identificar.   

Quero confessar também que tenho um certo desconforto com a expressão América Latina que, sempre que posso, prefiro não usar por desconfiar de seu alcance e de sua origem, por algumas conotações de seu emprego nos Estados Unidos, e também por achar que ela não nos define de forma abrangente e rigorosa. Por outro lado, sinto-me inteiramente confortável e satisfeito com nossa clara e plena inserção na geografia da América do Sul. Continua a ser verdadeira, para mim, a afirmação de que as nações devem procurar fazer sempre a política de sua geografia.

Devo voltar ainda a insistir um pouco mais nessa ampla avaliação. Enquanto, em décadas passadas e não muito distantes, o Brasil adotava políticas macroeconômicas inadequadas e sofria as consequências de uma inflação crônica, enquanto nosso ordenamento democrático se mostrava recorrentemente frágil e incerto, enquanto se temia que procurávamos uma capacitação nuclear ambígua, enquanto as relações com o nosso principal vizinho eram antes de rivalidade do que de cooperação e sociedade, enquanto nossas políticas ambientais eram vistas com desconfiança e julgadas  inadequadas e enquanto determinados direitos humanos aqui pareciam negligenciados, não parecíamos reunir todas as qualificações para a tão ambicionada promoção na hierarquia do poder mundial. Hoje, os termos da equação me parecem outros, e nossa influência e credibilidade – quaisquer que sejam os parâmetros escolhidos, e mesmo considerando os desafios dos últimos anos – são significativamente maiores. 

Para procurar um equilíbrio entre o que nos fez falta fazer e o que soubemos fazer bem, reconheço que tenho dificuldade em identificar momentos em que o Brasil, no plano internacional, tenha sido causa determinante de alguma crise que reclamasse intervenção externa, militar ou não, para o restabelecimento da paz, seja no interior de nosso país, seja por grave desavença com atores externos. Ao contrário, contingentes nossos têm tido presença frequente em operações de paz em âmbito mundial ou regional, e somos chamados, muitas vezes, para ajudar na busca de formas aceitáveis de acomodação entre adversários. Acredito que costumamos ser membros construtivos da sociedade internacional de nações, e não preciso fazer um registro extenso do que tem sido essa trajetória virtuosa e da qual, ao que tudo indica, não iremos nos afastar. Temos bons antecedentes.

Outro importante aspecto a destacar é como o Brasil, quase sempre retardatário na identificação e na adesão a novas tendências da vida internacional, percebe algumas dessas mudanças como desafiadoras das políticas que naquele momento perseguia. Assim, as grandes inquietações com a proteção do meio ambiente e os limites do crescimento surgem na agenda internacional como preocupação prioritária e como causa capaz de mobilizar vontades e recursos, no mesmo momento em que o Brasil estava apaixonadamente engajado na aceleração de seu próprio desenvolvimento econômico e procurava recuperar o tempo perdido ao longo da sua história como ator independente. Isso aconteceu, sobretudo, no curso da administração do presidente Juscelino Kubitschek entre 1956 e 1961, e também em vários momentos do ciclo autoritário que atravessamos entre 1964 e 1989. O desencontro entre nosso então entusiasmado patrocínio de políticas que perseguiam um crescimento acelerado e o relativo, mas crescente, desencanto dos países já industrializados com certos aspectos dessas políticas não podia ter sido mais eloquente e, no curto prazo, irremediável. Encontramos depois caminhos para uma indispensável acomodação. Processo semelhante aconteceu em relação a políticas relacionadas ao aproveitamento pacífico da energia nuclear e à exploração espacial, em importantes dimensões da agenda de propriedade intelectual e definição de regras para o comércio de bens e serviços, na luta contra certas manifestações do colonialismo e no nosso posicionamento sobre alguns dos então chamados “conflitos regionais”, eufemismo que servia para encobrir o que eram, na verdade, disputas periféricas dos interesses não vitais das duas superpotências da época da Guerra Fria e das ideologias que defendiam e promoviam.

O Brasil resistiu também, e por bastante tempo, a que a problemática dos direitos humanos encontrasse um espaço claramente definido em foros e debates internacionais. Isso se dava não só porque éramos vulneráveis a acusações de algumas práticas infringentes de valores que formalmente subscrevíamos, como por temer uma ingerência externa, de boa ou má fé, em questões que então víamos como devendo ser tratadas dentro da alçada exclusiva da jurisdição e práticas de autoridades nacionais. A relação do que foram os desentendimentos e suspeitas recíprocas desse ciclo é bem mais extensa do que sugere a síntese que acabo de procurar fazer.

Acredito que o novo momento da vida internacional que agora se anuncia encontra o Brasil mais bem equipado e preparado para nele se posicionar, se compararmos essas novas condições com aquelas que prevaleciam nos momentos vestibulares iniciais de qualquer dos grandes ciclos ocorridos nos últimos cem anos. Por qualquer medida, o Brasil pesa e conta, hoje, muito mais do que acontecia antes. Sempre tivemos a âncora do nosso tamanho. Nessa dimensão, o Brasil sempre foi um grande país. Hoje, também, a expressão demográfica, os nossos avanços industriais e científicos e as extraordinárias conquistas de nossa agricultura, pecuária e mineração nos fazem um protagonista de muito mais peso do que acontecia antes. Nossas reservas financeiras e nossa presença no comércio internacional mudaram dramaticamente de patamar. A nossa presença como a primeira letra dos BRICS, nossa atuação no G20, a credibilidade que cerca nossa pretensão de ter um assento permanente no Conselho de Segurança, nossos entendimentos e cautelosa aproximação com a União Europeia e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e nossa atuação nos organismos internacionais, em escala global ou regional, não são exercícios pouco relevantes ou apenas marginais. Temos um peso específico incontornável. Somos metade do território da América do Sul, representamos metade de sua população e, também, um pouco mais da metade do PIB da nossa região. Não é pouca coisa. Essas são as credenciais que nos definem e nos qualificam.  

Em vários momentos dos últimos cem anos em que a ordem internacional foi redesenhada, o Brasil contava pouco. Isso, simplesmente, hoje não é mais verdade, e acredito que o será cada vez menos.

Em vários momentos dos últimos cem anos em que a ordem internacional foi redesenhada, o Brasil contava pouco. Isso, simplesmente, hoje não é mais verdade, e acredito que o será cada vez menos. Agora, quando é aparente que a ordem internacional está sendo redefinida e que o Brasil, por méritos próprios, conseguiu sobreviver como estado democrático à ameaça de impulsos autoritários e populistas de extrema-direita que ameaçaram suas instituições democráticas em dias muito recentes, o país tem amplas condições para se engajar em um novo exercício de acomodação de interesses e prioridades. Em escala global, tem a capacidade também de, nesse novo quadro, reclamar, com firmeza e sentido de medida, mais voz e mais voto.

Acabamos de atravessar quatro anos em que o Brasil, gratuitamente, ofendeu vizinhos e amigos e deles se distanciou, prejudicou alguns de seus interesses e se afastou de algumas das boas causas que costumava defender. Antes do fim do ciclo Bolsonaro, já havia ocorrido uma desejável, embora incompleta, retificação de rumos da nossa política externa. O problema agora reside em que possamos vir a exagerar o movimento de correção e expressar mais tolerância e buscar maior intimidade do que é preciso com regimes autoritários, vizinhos ou não, que fracassaram em uma ou várias dimensões da construção de uma ordem democrática estável. Como aconteceu nos anos Bolsonaro com seu favorecimento de lideranças autoritárias de direita e abandono de políticas corretas de não ingerência nos assuntos internos de outros países, devemos, agora, evitar a tentação de expressar, desta vez, uma indulgência talvez excessiva com regimes não democráticos e de orientação acentuadamente populista.

Essas palavras de advertência não sugerem acreditar que, de maneira inevitável, o pêndulo de nossas decisões irá oscilar mais do que é preciso e que possamos perder o prumo do que o interesse nacional brasileiro recomenda ser feito. Boa diplomacia, entretanto, se faz com palavras medidas e rigor conceitual. Não me preocupa, hoje, a direção geral em que vai o Brasil, mas tenho muito presente que o período eleitoral já terminou e que precisamos nos afastar dos palanques e ser cuidadosos com as sinalizações e os gestos, para que uma sempre bem-vinda generosidade de impulsos nossos não se transforme em expressões de uma ingenuidade difícil de aceitar em um país que, é sempre bom lembrar, não nasceu ontem.

Tenho acompanhado ao longo de quase vinte anos as negociações que se arrastam entre os países do Mercosul e a União Europeia e, mais recentemente, nossas negociações para uma adesão plena à OCDE. Nos dois casos, não consigo superar algumas dúvidas. Estou convencido de que a União Europeia reluta, estruturalmente, em aceitar uma maior aproximação conosco e que a própria OCDE – ou pelo menos alguns de seus associados – hesita em nos acolher como sócio pleno. O Brasil, por sua escala, expectativas e pela crescente diversificação de seus interesses, representa uma parceria não inteiramente bem-vinda e que causa algum desconforto para os sócios já presentes nos dois sistemas. 

Aceitam, como fato organizador central, a hegemonia que os Estados Unidos exercem sobre esses dois sistemas, de forma cada vez mais rigorosa, e desconfiam de países que, como nós, mostram uma preferência por uma maior autonomia de atuação, definida pela promoção de alguma forma de multipolaridade dos centros mundiais de poder e de decisão. O Brasil reluta em aceitar hipotecas sobre sua futura liberdade de ação e aceitar constrangimentos à expansão de seus interesses, que vão muito além do que contemplam os dois organismos baseados, respectivamente, em Bruxelas e Paris. Penso que o atual nível de cooperação brasileira com a OCDE e com a União Europeia, que já é bastante denso e produtivo, poderia, talvez, ser o limite de onde devemos estar agora e no futuro que consigo enxergar.

Ao privilegiar, como fiz até agora, a adoção de uma política exterior brasileira construída, essencialmente, sobre os valores de nossa história, de nossa geografia e dos nossos interesses permanentes, reconheço que deixei de aceitar o desafio indispensável de procurar ver quais os terrenos em que poderíamos e deveríamos inovar, ser mais criativos e procurar fazer melhor ou apenas de maneira diferente o que fizemos até agora. Olhar antes para trás do que para a frente permite montar uma narrativa mais estruturada e mais segura ao priorizar valores e práticas já provados, mas fica faltando o indispensável olhar sobre todos os novos e incontornáveis desafios que devemos enfrentar.

Alfred North Whitehead (1925) uma vez disse que “o oficio do futuro é ser perigoso”[2] e Karl Marx (1848 [1999]), no Manifesto do Partido Comunista, afirmou que “tudo o que parece sólido se desmancha no ar”. Temo que esses dois eminentes pensadores não se sentiriam confortáveis juntos aqui neste mesmo parágrafo, mas um e outro, brilhantemente, disseram, em outros momentos e contextos, o que pretendo simplesmente reiterar. Isso é especialmente verdadeiro hoje, quando relações e situações que pareciam sólidas se dissolvem e quando inimagináveis avanços da ciência e do conhecimento fazem o futuro parecer muito perigoso e indecifrável.

Não farei uma relação de todos aqueles movimentos e iniciativas que o Brasil poderia pôr em prática agora para reforçar sua influência e fazer avançar seus interesses. A lista seria longa, ambiciosa e iria muito além do que me proponho neste ensaio. Vou me concentrar em alguns poucos projetos, talvez um pouco menos analisados, e que me parecem maduros e capazes de produzir, já no curto prazo, efeitos muito significativos sobre nossa inserção na hierarquia do poder internacional. Deixarei de lado numerosas áreas de atuação em que o Brasil já faz, essencialmente, o que pode, e talvez mesmo o que deve, e vou procurar me concentrar em alguns poucos aspectos de questões a respeito das quais acredito ter alguma coisa a contribuir.

Começo pela equação amazônica. O Brasil tem sido cobrado a fazer mais e melhor o que lhe cabe fazer na qualidade de condômino maior desse imenso bioma. Essa observação vale para as três dimensões principais da questão: a preservação do patrimônio ambiental, a proteção das populações indígenas e o progresso e desenvolvimento dos oito países que compartilham a soberania sobre essa imensa, poderosa, mas, em certo sentido, vulnerável região. O que surpreende é que o Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), criados para operar o sistema, já existem, foram ratificados sem reservas por todos os parceiros, têm sede em Brasília, pessoal técnico e administrativo – em pequeno número, mas qualificado – e deveriam ser os instrumentos preferenciais para executar ou supervisionar quaisquer iniciativas que afetassem os interesses de um, vários ou todos os condôminos da região (Teixeira et al. 2022). O fato de que sejam tão pouco utilizados – diria mesmo, quase ignorados – me faz temer que as preocupações estridentes expressas sobre o futuro da região e a avaliação das consequências que isso poderia ter sobre a saúde do planeta têm ainda muito mais de ruído e retórica do que daquele sóbrio realismo e determinação, que são precondições para que coisas importantes e difíceis de realizar aconteçam. Ver o Tratado, que foi concluído em 1978, plenamente utilizado por nós e passando a desempenhar o papel que seus signatários previam ao criá-lo é minha primeira e vigorosa recomendação.

Gostaria de examinar agora as relações do Brasil com seu entorno, a partir da percepção de que o Brasil detém, por imensa margem, as maiores reservas de água doce do planeta. Refiro-me, primariamente, às nossas principais bacias hidrográficas: a Amazônica, a do Prata, a Tocantins-Araguaia e a do Rio São Francisco. Desses imensos sistemas, apenas dois – o do São Francisco e o Tocantins-Araguaia – se inscrevem inteira e exclusivamente dentro dos limites de nossas fronteiras. Costumo recordar que se pode navegar de Belém do Pará até Iquitos, no Peru, ou de Cáceres, no Mato Grosso, até Buenos Aires. Essa malha hidroviária representa um importante conjunto de oportunidades e desafios para nossa política e para as complexas negociações de que participamos com nossos sócios e vizinhos. Cabe observar que somos, no sistema do Prata, o país a montante e, no sistema amazônico, o país a jusante; ou seja, os grandes rios do Prata nascem no Brasil e correm até chegar ao mar em terras alheias, enquanto, no sistema amazônico, os grandes rios nascem nos Andes e terminam por desaguar em nossas costas. Alguns de nossos interesses prioritários são, em cada caso, diferentes. O fato de que para os dois sistemas de dimensão internacional existam acordos que regulam os diferentes aspectos desse complexo e, em algumas ocasiões, contencioso aproveitamento fluvial é prova do ânimo construtivo dos países de nossa região, que importa sempre reforçar e atualizar. 

Existe, ainda, o urgente desafio de desenvolver hidrovias que permitam o escoamento de safras ou de minérios, de pessoas e de apoio ao turismo, por um meio extraordinariamente econômico e suscetível de uma eficaz, e não muito onerosa, proteção ambiental. Identifico, também, o urgente desafio para que o Brasil, embora tardiamente, desenvolva grandes sistemas de transporte multimodais, uma das respostas que a nossa crescente produção de alimentos e minérios reclama e que devemos escoar para o Atlântico e para o Pacifico, ou para o nosso próprio abastecimento.

Existe uma avaliação amplamente aceita de que, ao longo deste século, a água, sempre elemento decisivo na criação e no desaparecimento de civilizações, seguramente manterá o seu papel, e que este possa ser, no futuro previsível, ainda mais decisivo do que tem sido. Os termos da equação brasileira me fazem especialmente confiante de que a abundância da nossa disponibilidade de água permitirá que possamos fazer avançar ainda mais nesse terreno as boas causas e a defesa de nossos interesses. Tenho muito presente que, além da água de superfície, o Brasil conta com a imensa vantagem de ter no seu subsolo dois imensos aquíferos: o Guarani, no Sul e Sudoeste do país, e o Amazônico, ou de Alter do Chão, no Norte, que ampliam muito nossas reservas e alongam sua vida por tempo indeterminado. Novamente, a distribuição dos recursos transcende fronteiras e, virtualmente, obriga a que se busque e reforce a cooperação com os vizinhos. A equação brasileira é tão favorável que, onde a água é relativamente escassa (penso no saliente do Nordeste), hoje o desvio de rios e a utilização do regime dos  ventos e da energia solar permitem um aproveitamento decisivo de matrizes de energia até pouco tempo virtualmente inacessíveis. Por preocupação de brevidade, estou aqui simplificando um quadro bem mais complexo do que sugiro e também muito mais importante do que se supõe.

Não se trata aqui de sugerir um programa de ação específico, mas de expressar a convicção de que a água será um bem ainda mais valioso e mais escasso nas próximas décadas, e que o Brasil, como superpotência hídrica, pode e deve desenhar logo projetos com seus vizinhos para que possamos tirar o maior e o mais duradouro proveito da imensa riqueza que recebemos e que, em muitos casos, compartilhamos.

Uma outra clara e urgente convicção minha é que o Brasil precisa repensar sua relação com a África subsaariana – sobretudo com a margem ocidental daquele grande continente, onde estão nossos vizinhos mais próximos logo depois dos países sul-americanos que nos rodeiam. Ficamos de alguma forma cristalizados no nosso passado (que, em não pequena medida, é também o deles) e desatentos ao fato central de que a África avançou muito e tem, hoje, uma expressão econômica e cultural, por todos os títulos, relevante.

Recordo que, faz bastante tempo, tive uma virtual epifania quando me dei conta de que Luanda ficava mais perto do Rio de Janeiro do que Caracas. A Venezuela do meu imaginário estava logo ali, e Angola parecia remota. Não era bem assim. Acresce o fato de que ficamos, em alguma medida, fixados na presença africana no processo de nossa formação como nação e na parcela de culpa que nos cabe por todo o longo ciclo da escravidão. É natural que seja assim, mas é imperativo que o Brasil atualize sua visão da África e dos africanos. Não se trata de esquecer Palmares, mas de incorporar Mandela e tudo o que a nova África representa.

Escolher Angola como parceiro privilegiado e como a nossa principal ponte de aproximação com a África me parece ser a opção mais natural e que se justifica por muitos fatores. Deste lado do Atlântico Sul, o Brasil e a Argentina já são sócios íntimos e condôminos exclusivos da nossa margem. Do lado africano, já temos com a África do Sul outros e importantes interesses e afinidades. Angola é um grande país, controla um extenso litoral em frente ao nosso e é, também,  um importante ator agrícola e um grande produtor de petróleo. Falamos, literalmente, a mesma língua.

Há sempre na seleção de um parceiro privilegiado a necessidade de fazer escolhas que são, sempre e em certa medida, arbitrárias. Contudo, identificar em Angola o nosso parceiro estratégico africano me parece quase inevitável. Devo lembrar que, já na época de nossa independência, tivemos de dar garantias a Portugal de que não iríamos estimular a independência de Angola, quando Lisboa temia que o exemplo brasileiro pudesse ser contagioso. Receava que o importante comércio que então mantínhamos com Angola levasse aquelas terras, ou pelo menos Benguela, a se associar a nós. Resumo de maneira muito esquemática um episódio que sempre considerei como uma antecipação da nossa natural vocação de cooperar com aquela África que está logo ali, do outro lado do mar. 

Chego quase ao fim deste exercício e vejo que faltou muita coisa para dizer. Há muito tempo nos atribuímos a condição de global player, ou seja, um país que tem fichas e interesses em todas as mesas. Ao anunciarmos essa pretensão quando primeiro a formulamos, estávamos sendo fiéis àquele otimismo profético que é parte da retórica brasileira e ingrediente essencial de nossas sempre adiadas, mas não abandonadas, esperanças. Acontece que o tempo e os fatos têm legitimado nossa expectativa. Neste ensaio, ao priorizar um punhado de possíveis caminhos, deixei, naturalmente, de destacar muitos outros aos quais não saberia atribuir uma importância menor.

Contudo, era imperativo escolher, e preferi destacar alguns caminhos que considero que devemos trilhar e me parecem um pouco negligenciados, em anos recentes, na identificação atualizada de nossas prioridades.

O novo presidente subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado por pessoas que representavam grupos deserdados na vida e na história brasileiras. Era um resgate simbólico de comunidades inteiras que agora queremos acolher na promessa de uma vida melhor.

Faz poucos dias, nas cerimônias de instalação do nosso novo governo, houve um momento que quero recordar. O novo presidente subiu a rampa do Palácio do Planalto acompanhado por pessoas que representavam grupos deserdados na vida e na história brasileiras. Era um resgate simbólico de comunidades inteiras que agora queremos acolher na promessa de uma vida melhor. Foi um momento emocionante e, talvez, o mais memorável de um dia memorável.

É evidente que precisamos cuidar dos que ficaram para trás, mas tão importante quanto isso é acolher e motivar os bem-dotados e melhor equipados para que não abandonem o Brasil e procurem a promessa de vidas mais produtivas fora daqui. Falei de terra, de água, da Amazônia, mas, como sempre tem acontecido na nossa história, quase não falei da promessa dos nossos melhores talentos e que foram, e serão sempre, aquilo que servirá de alavanca e motor para que o nosso projeto como nação não fracasse. Desde sempre, a perda de cérebros pelo Brasil me inquieta e desanima. Compreendo, perfeitamente, o que leva muitos dos nossos mais talentosos a procurar outros destinos. Não tenho fórmula segura nem para impedir que muitos partam, nem para estimular que não poucos voltem. A criação de um clima intelectual e material favorável à pesquisa científica e ao desenvolvimento de nossas grandes inteligências é imperativa. Não penso, aqui, sequer no desafio que representará, logo, a chegada da inteligência artificial. Estou simplesmente preocupado com a persistente evasão de nossos mais promissores talentos. Não pretendo fazer nenhuma recomendação precisa. Sugiro, apenas, que este afortunado Brasil, sem adversários próximos ou distantes, detentor de imensos recursos naturais e humanos, protegido de traumas históricos, tem hoje como desafio central desenvolver e mobilizar a inteligência e o saber dos seus jovens. Espero que qualquer nova política exterior do Brasil possa servir como instrumento para que esse objetivo não fique esquecido. 

Notas

[1] Para uma análise detalhada do processo de formação do Estado brasileiro, ver a resenha de autoria do embaixador Fernando de Mello Barreto (2023) sobre o livro Navegantes, Bandeirantes e Diplomatas, de Synesio Sampaio Goes Filho, publicada nesta edição da CEBRI-Revista.

[2] No original, “It is the business of the future to be dangerous”.

Referências Bibliográficas 

Azambuja, M. & E. Seiler. 2023. Soft Power e identidade nacional: o papel da cultura na inserção internacional do Brasil. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Relações Internacionais.

Barreto, Fernando de Mello. 2023. “A perenidade de ‘Navegantes, bandeirantes, diplomatas’”. Resenha de Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil (Maringá: Ingá, 2021), de Synesio Sampaio Goes Filho. CEBRI-Revista Ano 2, Número 5 (Jan-Mar): xx-xx. https://doi.org/10.54827/issn2764-7897.cebri2023.05.res.01.xx-xx.pt

Engels, F. & K. Marx. 1999. O manifesto do partido comunista. 5ª ed. São Paulo: Ed. Paz e Terra.

Teixeira, I.,  W. Fritsch, A. Toni, D. Lerda, & F. Gaetani. 2022.  Desenvolvimento e mudança do clima: o papel do Brasil na agenda ambiental-climática. Rio de Janeiro: Centro Brasileiro de Relações Internacionais.

Whitehead, A. N. 1925. Science and the Modern World. United States: The MacMillan Company.   

Recebido: 2 de fevereiro de 2023

Aceito para publicação:  10 de fevereiro de 2023 

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