A presente edição da CEBRI-Revista traz uma Seção Especial sobre um tema que tem ganhado cada vez mais destaque na mídia e na academia – corroborado pela recente eleição do Donald Trump à presidência dos Estados Unidos – e que reflete dinâmicas políticas e sociais que marcam as últimas duas décadas: a ascensão da extrema-direita e seus reflexos na ordem internacional.
Muito embora a ascensão da extrema-direita no mundo não seja um tema novo, o que parece surpreender nos últimos anos é a retomada desse fenômeno em um contexto no qual, muitos acreditavam, a democracia liberal seria a chave para a estabilidade e paz mundial (Fukuyama 1992).
A crise financeira de 2007-2008 é geralmente apresentada como ponto central para compreender esse fenômeno. O argumento é que a crise levou a uma intensificação de reformas pautadas na austeridade econômica, a fim de “preservar” o neoliberalismo. Essas reformas, por sua vez, levaram a inúmeros movimentos sociais que passaram a contestar o sistema, a exemplo do “Occupy Wall Street” nos Estados Unidos e os “Indignados” na Espanha, ambos em 2011. Entretanto, apesar de esses movimentos serem orientados por uma perspectiva de esquerda, o que se seguiu não foi o fortalecimento político da esquerda. Ao contrário, quem capitalizou em cima dos efeitos da crise foi a direita, em especial em suas vertentes mais radicais.
[…] a lógica discursiva da direita não foi norteada pela rechaça ao neoliberalismo, mas sim no recurso a pautas de naturezas distintas, em especial identitárias, que, no extremo, colocariam em cheque as próprias bases da democracia.
Um elemento importante nessa análise é que a lógica discursiva da direita não foi norteada pela rechaça ao neoliberalismo, mas sim no recurso a pautas de naturezas distintas, em especial identitárias, que, no extremo, colocariam em cheque as próprias bases da democracia. Nas palavras de Owen Worth (2019, 5), “processos como a globalização, o multiculturalismo, a imigração e a erosão da cultura nacional têm sido os seus principais alvos de ressentimento”. Ao sentir os efeitos da crise, nos Estados Unidos e na Europa essa “raiva” foi direcionada a imigrantes e associada a uma percepção de “superpovoamento” dessas regiões. Depois do 11 de setembro, adiciona-se a esse cenário o crescimento exponencial da islamofobia.
Apesar dessa tendência global de propagação da extrema-direita, é importante reforçar a heterogeneidade dos movimentos aqui incluídos e pluralidade de agendas, muitas vezes contraditórias, que embasam essas diferentes lideranças.
Apesar dessa tendência global de propagação da extrema-direita, é importante reforçar a heterogeneidade dos movimentos aqui incluídos e pluralidade de agendas, muitas vezes contraditórias, que embasam essas diferentes lideranças. De um lado, a própria discussão acerca das terminologias para pensar essa onda é crucial. Termos como ultradireita, direita radical, extrema-direita e sua relação com o populismo precisam ser explicitados, pois há diferenças significativas no que concerne às posturas desses grupos perante as instituições democráticas (Mudde 2022). Ao mesmo tempo, há diferenças entre as agendas de muitos líderes no que toca às especificidades de determinadas pautas, inclusive na pauta econômica.
No momento presente, entretanto, uma das grandes preocupações em relação à parte desses movimentos é precisamente sua tendência antidemocrática. O tema tem levado a amplas discussões, popularizadas, por exemplo, no best-seller de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt Como as democracias morrem, de 2018, em que os autores discutem vários exemplos de como regimes democráticos escorregaram para o autoritarismo. Eventos recentes, como a invasão no Capitólio nos Estados Unidos em janeiro de 2021 e a invasão da Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 no Brasil, mostram como até democracias consolidadas não estão imunes a retrocessos e ameaças sólidas das suas instituições.
Ainda que nesses dois casos a democracia tenha prevalecido, a fragmentação social resultante desses movimentos permanece. Ao mesmo tempo, eleições recentes em várias partes do mundo mostram que o crescimento da extrema-direita segue firme e forte, contando com o apoio de uma ampla rede transnacional e colocando enormes desafios para os mecanismos de governança global.
Os seis artigos que compõem a Seção Especial mostram a complexidade desse tema, lançando luz sobre alguns dos pontos centrais desse debate, em especial no que concerne às implicações da ascensão da extrema-direita para a ordem internacional.
Em Las variaciones en la geopolítica de la ultraderecha neopatriota y la contestación al orden internacional, inspirados por uma perspectiva crítica neogramsciana, José Antonio Sanahuja, professor da Universidade Complutense de Madrid e da Escola Diplomática de Espanha e conselheiro especial para a América Latina e o Caribe do Alto Representante para Política Externa e de Segurança da União Europeia, Josep Borrell; e o coautor Camilo López Burian, professor da Universidade da República (Uruguai), analisam a ascensão da nova extrema-direita como consequência da crise da ordem internacional. Integrando os conceitos de contestação e politização, os autores reforçam a lógica de constituição mútua e de interação entre agência e fatores estruturais que explicam a crise da globalização e da ordem internacional liberal, ao mesmo tempo que reforçam as especificidades nacionais e históricas de cada expressão desse fenômeno. Como exemplo, discutem três casos específicos, nomeadamente o Projeto 2025 da Heritage Foundation nos Estados Unidos; o discurso de Viktor Orbán na 33ª Universidade de Verão de Bálványos, em julho de 2024; e a conferência de Javier Milei no Fórum Econômico Mundial em Davos, em janeiro deste mesmo ano.
No segundo artigo – The Unexpected Impact of Prosperity: How the Manipulation of the Consequences of Globalization by the Far-Right Movements Endanger the International Order? – Sylvie Matelly, diretora do Instituto Jacques Delors em Paris, discute como a extrema-direita utilizou os efeitos negativos da globalização para alavancar sua popularidade. Retomando o amplo debate sobre a globalização, em especial a partir dos anos 1990, Matelly explora os efeitos desse fenômeno e, mais especificamente, da liberalização econômica, em termos de precarização da classe trabalhadora e geração de insegurança econômica. Na Europa e nos Estados Unidos, essa situação foi facilmente associada aos fluxos migratórios, levando ao crescimento da xenofobia e fortalecimento dos discursos identitários, elementos centrais na pauta da extrema-direita. Entretanto, em sua essência, o discurso da extrema-direita não apresenta soluções concretas para fazer face aos efeitos negativos da globalização, uma vez que o problema reside nas contradições mais profundas que permeiam a coexistência da integração econômica (globalização), da soberania nacional e da democracia. Para Matelly, a solução implica encontrar as condições para uma nova forma de governança global que seja mais inclusiva e adaptável aos desafios engendrados pela globalização.
Em Ascensão da extrema-direita e do negacionismo científico (e climático): reflexos na ordem internacional, terceiro artigo da Seção Especial, Déborah Barros Leal Farias, professora da Universidade de New South Wales, em Sydney, Austrália, discute um tema que tem ganhado muito espaço, especialmente a partir da pandemia de Covid-19: o negacionismo científico. Embora haja variações em relação a essa temática no heterogêneo espectro da extrema-direita, é possível observar a premência dessa pauta, em especial no caso do negacionismo climático. Destrinchando o conceito de negacionismo científico, Farias reforça o quanto ele não é puramente sinônimo de anticiência; ao contrário, carrega o “verniz de um embate científico”, uma vez que se baseia na cuidadosa seleção de referências supostamente científicas que corroboram determinado posicionamento. Na prática, entretanto, esses posicionamentos refletem interesses muito específicos de determinados grupos, a exemplo de empresas que apoiam financeiramente organizações como a Heritage Foundation e o American Enterprise Institute, visando manter o status quo que privilegia os setores econômicos assentes na emissão de gases de efeito estufa, por exemplo. Ligado a isso, um dos problemas do negacionismo, segundo Farias, é seu impacto na própria governança global, impedindo avanços na área de cooperação e contribuindo para agravar a desigualdade mundial, uma vez que as partes afetadas pelas mudanças climáticas são grupos já marginalizados.
O quarto artigo da Seção Especial é de autoria de Carolina Salgado, professora da PUC-Rio. Em Liberalismo, nacionalismo e extremismo de direita: percursos político-ideológicos na América Latina, a autora resgata o papel da história para compreendermos a expansão da extrema-direita na América Latina contemporânea. Voltando para o processo de construção do Estado na região, Salgado problematiza a interligação entre liberalismo, nacionalismo e extremismo nesse contexto. Ela argumenta que, diferentemente do caso europeu, no século XIX se observa uma dissociação entre liberalismo e nacionalismo na América Latina, seguida por uma associação entre nacionalismo e extremismo no século XX. Sua análise mostra que o conservadorismo sempre esteve presente na construção do nacionalismo latino-americano, sendo fruto da consolidação do capitalismo agrário-exportador capitaneado pela elite oligárquica. Esse legado histórico pauta a ascensão da extrema-direita no presente, agora reforçada pelo fenômeno das guerras culturais.
A quinta contribuição, Javier Milei and the Global Far-Right: Reshaping Argentina’s Foreign Policy, é de autoria de Frederico Merk e Gisela Doval, respectivamente professor da Universidade de San Andrés e professora da Universidade Nacional de Rosário. Aqui o foco da análise é o presidente argentino e sua retórica, e em que medida esta última se alinha com a expressão global mais ampla da extrema-direita. Reforçando elementos defendidos nos artigos anteriores, os autores concluem que, ainda que a posição de Milei apresente elementos comuns a essa onda global, como o conservadorismo cultural e um profundo ceticismo em relação à governança global, ela também carrega elementos peculiares que só podem ser compreendidos a partir do contexto argentino. À diferença de outros líderes da extrema-direita, por exemplo, Milei apresenta uma postura mais permissiva em relação à imigração. Mas talvez a característica mais peculiar de sua agenda seja a rechaça do modelo tradicional da Vestfália. Como destacam os autores, “Ao denunciar o Estado como ‘o maligno’, Milei rejeita implicitamente a própria base deste sistema. Vê o Estado não como um ator legítimo em uma sociedade de Estados, mas como uma força malévola”. Sendo o primeiro paleolibertário a se tornar chefe de Estado, Milei transformou a Argentina em um laboratório de ideias políticas a serem ainda avaliadas.
O sexto e último artigo da Seção Especial é de autoria de Odilon Caldeira Neto, professor da Universidade Federal de Juiz de Fora, e David Magalhães, professor da PUC-SP e da Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP), ambos coordenadores do Observatório da Extrema-Direita. Em As vias de transnacionalização da ultradireita brasileira, os autores pensam o atual cenário brasileiro a partir de uma recapitulação histórica e sistemática da ultradireita brasileira desde o início do século XX aos dias atuais, incluindo a análise do bolsonarismo e da propagação de grupos neofascistas. Salientando a diferença entre direita radical e extrema-direita, argumentam que “a transnacionalização da ultradireita brasileira não obedece a um sentido único de apropriação de um centro irradiador, tampouco está encruzilhada em um só fluxo de movimento”. Ao contrário, demonstram que esse transnacionalismo reflete um processo contínuo de adaptação e propagação ancorado ao respectivo contexto histórico.
Em conjunto, os artigos da Seção Especial mostram a complexidade do debate que marca a ascensão da extrema-direita no mundo. Ainda que seja perceptível um denominador comum marcado pela rechaça ao “globalismo” e defesa do conservadorismo, há diferenças significativas que marcam os discursos das lideranças e que devem ser compreendidos a partir do contexto histórico, político e social de cada caso. Descortinar essas diferenças é importante não apenas para compreender esse fenômeno, como também para pensar maneiras propositivas para revertê-lo.
Além da Seção Especial, esta edição apresenta outras quatro contribuições. Primeiramente, um policy paper do embaixador do Brasil no Reino Unido e membro do Conselho Consultivo Internacional do CEBRI, Antonio de Aguiar Patriota, intitulado Brasil, país do presente: democracia, sustentabilidade e paz. Trata-se da transcrição da palestra proferida pelo embaixador no âmbito da 2ª edição do curso História da Diplomacia Brasileira, oferecido pelo CEBRI em julho deste ano e que versa sobre o papel do Brasil como exemplo de adesão não seletiva ao Direito Internacional, promovendo a paz e rejeitando o unilateralismo, sendo porta-voz da democratização das relações internacionais.
O segundo policy paper – Instrumentos de Avaliação dos Investimentos Externos como resultado da nova geoeconomia: como repensar o Brasil neste contexto? – é de autoria de Michelle Ratton Sanchez-Badin, professora associada na FGV Direito SP, Renato Baumann, economista do Ipea e professor da UnB, e Victor do Prado, conselheiro consultivo internacional do CEBRI e responsável pela cadeira de Diplomacia Econômica do PSIA-SciencesPo. Aqui os autores refletem sobre a retomada de Instrumentos de Avaliação dos Investimentos Externos (IAIE) por economias centrais, suas implicações em termos de segurança nacional e econômica e os desafios que isso apresenta para o Brasil ao lidar com investidores externos.
A terceira contribuição é um artigo acadêmico de Renato Domith Godinho, diplomata. Em Diplomacia em tempo de redes, Godinho problematiza o crescimento das “redes transgovernamentais” e seus efeitos nas relações internacionais, destacando as limitações dos Estados nacionais para lidar de forma efetiva com essas questões. Ao mesmo tempo, apresenta sugestões para fortalecer a diplomacia brasileira na gestão dessa esfera.
Finalizamos a edição com a resenha de um livro que complementa as reflexões da Seção Especial e com a entrevista concedida por Paulo Abrão, diretor-executivo do Washington Brazil Office (WBO), uma coalizão liderada pelo professor James Green, da Brown University. Na resenha, Anna Carolina Raposo de Mello, doutoranda do programa de dupla titulação do IRI-USP e King’s College London, comenta o livro The Rise of the Radical Right in the Global South, organizado por Rosana Pinheiro-Machado e Tatiana Vargas-Maia, publicado em 2023, para o qual ela contribuiu com a autoria de um dos capítulos. O recorte focado no Sul Global reforça a necessidade de pensar com cautela a expansão da ultradireita no mundo e resistir ao ímpeto de universalizar explicações que não condizem com a realidade e história dos países em desenvolvimento.
Desejamos a todas e todos uma excelente leitura!
Fukuyama, Francis. 1992. The End of History and the Last Man. Free Press.
Levitsky, Steven & Daniel Ziblatt. 2018. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Editora Zahar.
Mudde, Cas. 2022. A extrema direita hoje. Rio de Janeiro: EdUERJ.
Worth, Owen. 2019. Morbid Symptoms. The Global Rise of the Far-Right. Londres: Zed Books.
Copyright © 2024 CEBRI-Revista. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença de Atribuição Creative Commons, que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o artigo original seja devidamente citado.