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Special Section

Rise of the Far-Right and Scientific (and Climate) Denialism

Repercussions on the International Order

Abstract

The expansions of science denial and climate change denial are reflective of the far-right rise globally. This article explores the main reasons behind the correlation between far-right’s principles and science/climate change denialism, and implications of the ideology for the international order. The article starts by defining science denial, then explains the link between the far-right and science/climate change denialism and finishes with implications of this phenomenon to the international system.

Keywords

far-right; science denial; climate change denial; climate change
Image: Shutterstock

Nas últimas décadas, partidos e forças da extrema-direita têm crescido de forma inegável. Diferentemente da direita “tradicional”, ancorada na democracia liberal, a extrema-direita pode ser definida como um movimento que se apresenta como antissistema, abertamente hostil a elementos tradicionais da democracia liberal e, em certos casos, hostil até mesmo à própria democracia (Bobbio 1994; Mudde 2019; Pirro 2021). Movimentos antidemocráticos, independentemente de uma associação política à direita ou à esquerda não são novos e nem desapareceram após os horrores da Segunda Guerra Mundial (Saull et al. 2015). Entretanto, com o fim da Guerra Fria, o “fim da História” foi anunciado por Francis Fukuyama (1989; 1992): um mundo marcado pelo fim das batalhas ideológicas e pela vitória do sistema de democracia liberal ocidental. O entendimento à época era que partidos de extrema-direita, expressando opiniões abertamente antissemitas e racistas, não conseguiam chegar ao poder (Ignazi 1992). Porém, menos de três décadas mais tarde, a extrema-direita emergiu como a grande força de contestação. Adaptando a famosa frase do escritor Mark Twain, as notícias da morte de ideologias contrárias à democracia liberal parecem ter sido exageradas. 

 Este artigo foca em um reflexo específico do crescimento da extrema-direita com repercussão internacional sistêmica: a expansão do negacionismo científico, de forma geral, e o negacionismo climático, em particular. Pela lógica do negacionismo, no caso de choque entre uma ideologia ou visão de mundo preexistente e fatos científicos, estes últimos saem perdendo. Negacionismo científico não é um fenômeno exclusivo da extrema-direita e pode ser encontrado em indivíduos e grupos de qualquer posição ideológica (Washburn & Skitka 2017)[1]. Mas um elemento-chave que diferencia o negacionismo científico ligado à ascensão da extrema-direita (em relação ao advindo de outras ideologias) é sua atual visibilidade e capacidade de influência em larga escala. Nas últimas décadas, a extrema-direita passou da marginalidade política para uma posição proeminente e “normalizada”, e trouxe consigo visões específicas de mundo e uma “identidade” atrelada a elas. Ou seja, o negacionismo científico conectado aos valores da extrema-direita tem sido cada vez mais visível e influente no sistema internacional, justificando a necessidade de entender a relação entre esses elementos. 

Visando entender melhor esse fenômeno, este artigo está dividido em quatro seções analíticas: 1) definição do negacionismo científico; 2) ligação entre a extrema-direita e o negacionismo científico de forma geral; 3) caso específico da conexão entre a extrema-direita e o negacionismo climático; e 4) implicações da ascensão da extrema-direita e seu negacionismo científico para a ordem mundial.

O QUE É O NEGACIONISMO CIENTÍFICO

O negacionismo científico não é novo e nem limitado a poucos assuntos. Esse fenômeno já se fez presente em relação a vários temas, como a negação da relação do câncer com o cigarro e da causalidade entre o vírus do HIV e a AIDS; a falsa crença de que certas vacinas causariam o autismo, sem contar com o terraplanismo, que em pleno século XXI ainda atrai seguidores.

Questionar o que é apresentado como fato científico é, de forma geral, normal e positivo, e não implica, necessariamente, em negacionismo científico. Dito isso, são as ressalvas dessa frase que separam o questionamento científico “normal” do negacionismo científico. 

É necessário ressaltar que o questionamento de fatos ditos científicos não é, por si só, uma coisa negativa. Pelo contrário, questionar premissas ontológicas e epistemológicas, métodos, resultados, evidências e relações de causalidade é parte de um processo inerente ao método científico. A evolução do conhecimento humano depende desse tipo de perguntas e desafios. Afinal, várias certezas ditas científicas já foram utilizadas para justificar a pretensa inferioridade “natural” de negros e mulheres, e novas evidências rechaçadas por egos feridos ou risco de perdas financeiras. Na visão crítica de Robert Cox (1981, 128), “teoria é sempre para alguém e para um propósito”. Questionar o que é apresentado como fato científico é, de forma geral, normal e positivo, e não implica, necessariamente, em negacionismo científico. Dito isso, são as ressalvas dessa frase que separam o questionamento científico “normal” do negacionismo científico. 

O negacionismo científico é marcado, acima de tudo, pela rejeição de fatos que não se encaixam com uma visão de mundo preexistente. Ao invés de a falta de aceitação de algo ser baseada em elementos propriamente científicos, como os métodos escolhidos ou a interpretação dos dados, o “não” vem a priori e baseado em valores individuais. O negacionismo é, antes de qualquer coisa, movido pela proteção de uma identidade e, portanto, não pode ser compreendido sem a consideração de um contexto social e político (Lewandosky & Oberauer 2016). 

Paradoxalmente, negacionismo científico não é sinônimo de anticiência. Esta envolve a rejeição do método científico por completo, como, por exemplo, advogam os criacionistas, que acreditam que somente a Bíblia explica literalmente a existência do ser humano e de toda a vida na Terra. Já os negacionistas, esses rejeitam os resultados científicos contrários à sua visão de mundo e contra-argumentam usando outros dados supostamente científicos (Diethelm & McKee 2009; Rosenau 2012; Sinatra & Hofer 2021). Como resultado, o negacionismo científico traz consigo o verniz de um embate científico. Esse ponto é importante porque ajuda a separar o negacionismo da simples ignorância científica, em que um indivíduo reconhece que não sabe o que a ciência diz sobre um tema, ou quando acredita erroneamente em algo por conta da falta de conhecimento sobre um assunto. Nesse caso, a aceitação de novas ideias não está condicionada a ideologia ou valores individuais preexistentes, cuja solução envolve alfabetização científica (scientific literacy) (Miller 1983; Laugksch 2000; Chassot 2003; Sasseron & Carvalho 2011).

No caso do negacionismo, quaisquer informações que reforcem sua visão de mundo são aceitas imediatamente, enquanto aquelas que refutam são automaticamente colocadas sob o mais rígido escrutínio.

O negacionismo científico possui quatro características epistemológicas (Hansson 2017, 40-43; Diethelm & McKee 2009; Cook 2020). A primeira é cherry-picking, uma expressão que se refere a uma escolha seletiva de fatos convenientes, como que à la carte, quando se levam em consideração apenas os dados que (re)afirmam a crença preexistente. A segunda, a negligência em refutar informações comprovadamente ultrapassadas, como alguém que continuasse a acreditar na sangria como forma de cura de doenças por “limpar” o sangue de impurezas. A fabricação de controvérsias falsas é a terceira característica: o objetivo é criar a ilusão de que existe uma controvérsia científica real e que a comunidade científica “séria” estaria tratando uma questão como ainda em aberto, sem consenso formado. O elemento final levantado é: critérios distorcidos do que é necessário para tornar uma nova teoria ou descoberta aceita pela comunidade científica. Na ciência “normal”, aceitar de forma apressada pode ser perigoso, assim como exigir certeza absoluta é uma barreira praticamente impossível para qualquer descoberta. No caso do negacionismo, quaisquer informações que reforcem sua visão de mundo são aceitas imediatamente, enquanto aquelas que refutam são automaticamente colocadas sob o mais rígido escrutínio.

EXTREMA-DIREITA E O NEGACIONISMO CIENTÍFICO

Antes de discutir a relação entre a extrema-direita e o negacionismo científico, é necessário estabelecer o que é extrema-direita[2]. Não existe uma definição precisa do que seriam os valores da extrema-direita. Como já mencionado na introdução, de forma geral, a extrema-direita é marcada pela rejeição da democracia liberal – e defesa da democracia iliberal – e, em alguns casos, a rejeição à democracia como um todo – ou seja, a defesa da antidemocracia. Porém, é necessário começar por detalhar esse fenômeno com mais especificidade. Existe um forte vínculo entre a extrema-direita e valores socialmente conservadores (Pelinka 2013; Saull et al. 2015). Ser socialmente conservador não significa ser ou apoiar a extrema-direita. A diferença está no fato de a extrema-direita abraçar o conservadorismo de uma posição radical, fundamentalista e intransigente. Na base dos valores da extrema-direita está a primazia da defesa das bases tradicionais da sociedade, como família e religião, vistas de forma exclusionária e hierárquica. Ou seja, apenas um tipo de família e uma religião são (ou deveriam ser) válidos. Mesmo que outras configurações ou crenças sejam “toleradas”, existe um desenho familiar específico (patriarcal) e uma religião superiores. Em vários casos, a xenofobia e o racismo também são abertamente defendidos dentro da mesma lógica: existe um grupo socialmente “superior” e que, consequentemente e naturalmente, deveria ter mais voz e poder político do que os outros. O apelo ao passado também faz parte do discurso da extrema-direita, retratado como um tempo em que os valores do grupo “superior” eram os que guiavam a nação e que teria sido perdido/roubado/abandonado com a degeneração da sociedade, resumido por Zygmunt Bauman (2017) com o conceito “retrotopia”. 

Ser socialmente conservador não significa ser ou apoiar a extrema-direita. A diferença está no fato de a extrema-direita abraçar o conservadorismo de uma posição radical, fundamentalista e intransigente. Na base dos valores da extrema-direita está a primazia da defesa das bases tradicionais da sociedade, como família e religião, vistas de forma exclusionária e hierárquica.

Um outro fenômeno frequente da extrema-direita – e com forte conexão com o negacionismo – é a tendência a abraçar teorias conspiratórias (frequentemente apocalípticas) com implicações para o cenário internacional, objeto de discussão mais à frente. As pessoas que acreditam em teorias conspiratórias procuram explicar grandes eventos políticos ou sociais como decorrentes de planos secretos, organizados por um pequeno grupo de indivíduos e/ou organizações (Keeley 1999; Sunstein & Vermeule 2009; Douglas et al. 2017; 2019). Uma das principais características da “lógica” conspiratória é ser imune à falsificação. Ou seja, qualquer evidência contrária à certeza conspiratória é racionalizada como mais um exemplo da força e do alcance da conspiração, em uma visão paranoica do mundo (Lewandowsky et al. 2013; 2015). Três princípios guiam a visão de mundo conspiracionista: nada acontece por acidente, nada é o que parece ser e tudo está interligado (Barkun 2013). Segundo Douglas et al. (2017, 538), indivíduos são atraídos por teorias conspiratórias (comparadas com explicações não conspiracionistas) motivados pela promessa de satisfação psicológica epistêmica (desejo de entender, busca de certeza), existencial (desejo por controle e segurança) ou social (desejo de manter uma imagem positiva de si mesmo ou do grupo). A ideia de uma elite global controlando o mundo é uma narrativa frequente entre aqueles que abraçam teorias conspiratórias (Campion-Vincent 2017; Castanho Silva et al. 2017; Douglas et al. 2019). A princípio, essa posição não parece ser tão destoante da visão de acadêmicos realistas ou marxistas no campo das relações internacionais, focados nas grandes potências ou na elite capitalista. A grande diferença é que, na visão conspiratória, a elite costuma ser bem mais seleta, secreta e estaria “acima” do Estado e dos interesses capitalistas. Ou seja, esses atores seriam controlados por essa dita “elite”. Em narrativas mais extremas, adicionam-se acusações de antissemitismo, satanismo e até mesmo a presença de alienígenas como parte desse grupo misterioso. 

Como já dito, o negacionismo científico é baseado não em questões científicas, mas sim em questões identitárias. Consequentemente, é grande a probabilidade de rejeição (backlash) a fatos/descobertas científicas tidos como contrários aos “valores” defendidos pela extrema-direita. Um exemplo óbvio: a concepção de gênero binária e absolutista não aceita a complexidade biológica – muito menos a social – do conceito de gênero ou orientação sexual. O binário homem/mulher, a heteronormatividade e a identificação cisgênero não são vistos como comuns, mas, sim, “normais”. Portanto, qualquer possível variação é “anormal”. Divergências do padrão são tidas como aberrações à ordem “natural” das coisas, não importa o que especialistas digam. Uma tática comum para desacreditar expertise em casos como esse é apelar para o dito “bom senso popular” – uma reinterpretação do espírito vox populi, vox Dei – em que este teria mais valor e falaria mais alto do que a ciência (“todo mundo sabe o que é certo”). Um outro caminho usado para deslegitimar cientistas, usado principalmente pelo populismo de extrema-direita, é o anti-intelectualismo. Esse movimento classifica experts como membros da elite e, portanto, seguidores de uma agenda política contrária aos valores do povo “verdadeiro” (Mudde 2004; Ylä-Anttila 2018; Mede & Schäfer 2020), e frequentemente acusados de fazerem parte de movimentos conspiratórios de uma suposta “elite global”.

Tendo em vista os valores conservadores fundamentalistas abraçados pela extrema-direita, é fácil entender o desafio cognitivo de aceitar variações relativas a gênero e sexualidade. Porém, a agenda negacionista da extrema-direita tem pontos que não teriam por que ser abraçados, muito menos de forma tão contundente. Um dos exemplos foi a reação da extrema-direita (especialmente nos EUA e no Brasil) à pandemia Covid-19, marcada pelo negacionismo – negação do vírus, da eficácia e importância de vacinas, do uso de máscaras, do distanciamento social etc. –, por ataques a especialistas e teorias conspiratórias (Casarões & Magalhães 2021; Kalil et al. 2021; Stecula & Pickup 2021; Morelock & Narita 2022; Recuero et al. 2022; Wondreys & Mudde 2022; Chen et al. 2023). A princípio, não há nada que diretamente predispusesse valores conservadores propriamente ditos à reação ferozmente negacionista. Porém, uma vez que essa posição foi atrelada à identidade e pertencimento de grupo, a lógica da correlação é irrelevante. A próxima seção explora com mais detalhes um outro exemplo de negacionismo que é presente em praticamente todo discurso da extrema-direita mundial e com impacto direto na ordem internacional: o negacionismo climático.

EXTREMA-DIREITA E O NEGACIONISMO CLIMATICO[3]

O negacionismo climático (climate change denial) é, “sem dúvida, a forma mais coordenada e bem financiada de negacionismo científico” (Björnberg et al. 2017, 235). Ele pode ser definido como a não aceitação de que: 1) o fenômeno do aquecimento global existe; e/ou 2) que ele é antrópico, ou seja, decorrente de causas humanas (e não simplesmente “natural”). Estratégias negacionistas – independentemente do tópico discutido – podem ser separadas em três categorias: negacionismo literal, interpretativo e implicatório (Cohen 2001). O literal, como antecipa o próprio nome, representa a negação completa do fenômeno climático: ele simplesmente não existe. Ele seria apenas uma fabricação, uma farsa (hoax)[4]. Com o passar dos anos, tem ficado cada vez mais difícil sustentar essa posição, o que tem levado ao crescimento das outras formas de negacionismo (Fischer 2019; Shue 2022). O negacionismo interpretativo aceita que o aquecimento global está acontecendo e é causado por atividades humanas, porém suas consequências e a urgência em ações para mitigar o fenômeno estariam sendo exageradas. O negacionismo implicatório foca na responsabilidade: se aceita a realidade do aquecimento global antropogênico, mas não há nada que possa ser feito a respeito do problema – ou seja, “não é minha responsabilidade” (Cohen 2001; Wullenkord & Reese 2021). Esses dois últimos tipos de negacionismo são, hoje em dia, os mais prevalentes. Mais do que dizer que os cientistas estão simplesmente errados, o mais comum é ressaltar a existência de (supostas) dúvidas ou controvérsias entre os cientistas, ou seja, uma forma mais “moderada” de negacionismo que tem tido mais “sucesso” do que o negacionismo climático literal (Cann & Raymond 2018).

Assim como o negacionismo científico, o negacionismo climático também não é um fenômeno exclusivo da extrema-direita. Uma pesquisa conduzida por Hornsey et al. (2018) em 24 países encontrou uma série de correlações – e nuances – importantes. Em três-quartos dos casos analisados, não havia relacionamento significativo entre negacionismo climático e o conjunto das cinco variáveis de ideologia analisadas: posição política mais à direita/esquerda, ideologia política liberal/conservadora, crença em teorias conspiratórias, nível de individualismo e valores hierárquicos/igualitários. Mas, em praticamente todos os países, achou-se uma correlação positiva entre ideologia conservadora e negacionismo climático, embora com relativa baixa intensidade na Europa Ocidental. Os Estados Unidos e, de forma um pouco menos contundente, Brasil, Austrália e Canadá se destacaram como os países onde foram registradas as correlações mais fortes entre negacionismo climático e orientação política à direita, valores conservadores, altos níveis de crença em teorias conspiratórias, preferência pelo individualismo e posicionamento contrário à redução de desigualdades sociais. Ou seja, nem todos os negacionistas climáticos são de extrema-direita, e nem todos aqueles que abraçam a extrema-direita são negacionistas climáticos. Porém, existe uma correlação positiva entre esses dois pontos, seja ela mais ou menos forte dependendo do caso específico. Essa pesquisa reafirmou os resultados de uma meta-análise também conduzida por Hornsey et al. (2016), que concluiu que filiação e ideologias políticas eram as duas variáveis mais fortemente relacionadas com negacionismo climático – significativamente mais do que nível educacional ou de renda (ver também Lockwood 2018; McCright & Dunlap 2011a; 2011b). Nessa visão de mundo, cientistas e ativistas ambientais são vistos como sendo “agentes” ideológicos da esquerda – se não, comunistas – e, muitas vezes, como parte de atores fomentadores de uma agenda “globalista” e socialmente “lacradora” (woke).

Dentro do contexto dos que abraçam o negacionismo climático, também existe uma correlação positiva com gênero: várias pesquisas mostram que o negacionismo é, em geral, um fenômeno mais comum entre homens do que entre mulheres, principalmente visível no contexto de homens que se identificam como conservadores (Jylhä et al. 2020; McCright & Dunlap 2011a; Milfont & Sibley 2016; Nelson 2020; Wullenkord & Reese 2021). Nessa interseção entre negacionismo climático, valores conservadores e misoginia, ser a favor de pautas de defesa do meio ambiente é ser visto como algo afeminado, resumido no conceito de “petromasculinidade” (Daggett 2018; Nelson 2020).

Um dos motivos de os EUA se destacarem na ligação entre conservadorismo e negacionismo climático decorre da força política de think tanks conservadores – integrantes do grupo chamado por Oreskes e Coway (2011) de “comerciantes da dúvida” (merchants of doubt). Esses atores são um dos grupos mais fortes a levantar a bandeira do negacionismo climático, ao criar, disseminar e amplificar informações pró-negacionistas, e “amarrar” o negacionismo climático à identidade conservadora (Brulle et al. 2012; Brulle 2014; 2023; Dunlap 2013; Dunlap & Jacques 2013; Busch & Judick 2021). Organizações como a Heritage Foundation, o Cato Institute e o American Enterprise Institute (AEI) fazem parte da “máquina de negacionismo [climático]” (Dunlap 2013; Dunlap & McCright 2011) e contam com amplo financiamento de empresas e setores cujos interesses econômicos se alinham com o status quo – i.e.,  continuação na alta emissão de gases estufas –, tais como os setores petrolífero, petroquímico e de mineração. Esses setores também são responsáveis por um outro tipo de organização que também trabalha em prol do negacionismo climático, mas de forma mais insidiosa, usando nomes escolhidos para parecerem científicos – ou até mesmo pro-meio ambiente – mas cuja função é propagar o negacionismo climático com um verniz de neutralidade (Cho et al. 2011; Byrne 2020). Um exemplo: a Global Climate Coalition (Coalização Climática Global), que funcionou de 1989 a 2002, com membros como o American Petroleum Institute (Instituto de Petróleo dos EUA) e a National Association of Manufacturers (Associação Nacional de Fabricantes [de produtos manufaturados]), cujo objetivo principal era obstruir políticas domésticas e negociações internacionais voltadas para frear o aquecimento global (Brulle 2023). 

EXTREMA-DIREITA, NEGACIONISMO CIENTÍFICO E A ORDEM MUNDIAL

[...] o impacto do negacionismo advindo da extrema-direita é (mais) significativo por conta do (maior) poder político atual dessa ideologia em um número cada vez maior de países, comparado com aquele da extrema- esquerda, por exemplo. 

A ascensão da extrema-direita, que trouxe consigo uma forte propensão ao negacionismo científico (e climático), já tem repercutido direta e indiretamente na ordem internacional. Dois casos se destacam nessa repercussão direta. Primeiramente, o caso do aquecimento global, discutido na seção anterior. O outro exemplo é a pandemia do vírus Covid-19, que demonstrou o enorme impacto da ligação entre a extrema-direita e o negacionismo (Ward et al. 2020; Debus & Tosun 2021; Kalil et al. 2021; Sturm & Albrecht 2021; Albrecht 2022; Stoeckel et al. 2022). O negacionismo relativo à Covid-19 não foi – nem continua sendo – um fenômeno exclusivo da extrema-direita. Porém o impacto do negacionismo advindo da extrema-direita é (mais) significativo por conta do (maior) poder político atual dessa ideologia em um número cada vez maior de países, comparado com aquele da extrema-esquerda, por exemplo. 

Se um líder ou partido de extrema-direita está no poder e sua base eleitoral tem um perfil negacionista, é racional imaginar que existem vantagens políticas em dobrar a aposta negacionista no contexto interno em detrimento de compromissos internacionais. Consequentemente, um dos principais efeitos do negacionismo em larga escala é o impacto negativo na cooperação mundial, principalmente em relação aos “problemas sem passaportes”, conceito popularizado pelo ex-secretário-geral das Nações Unidas Kofi Annan (2002). Um elemento em comum desses problemas – desafios cujas causas e consequências transcendem as limitações políticas e sociais decorrentes da soberania estatal – é que eles, por sua própria natureza, só podem ser solucionados por meio de ampla cooperação internacional. Ou seja, eles necessitam de uma governança global, uma ideia que, apesar de distinta, transita facilmente no conceito de ordem liberal internacional (Weiss 2015; Zürn 2018). 

Governança global pode ser definida como o exercício de autoridade através de fronteiras nacionais, juntamente com normas e regras consentidas que se estendem além do Estado-Nação, justificadas com referência a bens comuns ou problemas transnacionais (Zürn 2018, 4). De modo geral, a extrema-direita não vê governança global com bons olhos, já que ela pressupõe o relativo “enfraquecimento” da soberania nacional em nome de valores da democracia liberais aos quais a extrema-direita se opõe. A natureza difusa da governança global, sem uma liderança clara e visível, fornece terreno fértil para teorias conspiratórias especularem quem “realmente estaria no comando. Mas esse não é o único desafio. A complexidade envolvida na solução de problemas globais naturalmente gera questionamentos: qual a causa, de quem é a responsabilidade, qual a melhor solução, quem se beneficia do problema (ou da solução) etc. Essas perguntas são, a princípio, naturais e saudáveis. Porém essa complexidade também aumenta o espaço para a criação e difusão de narrativas conspiratórias, ancoradas nos pilares já mencionados (Barkun 2013): nada acontece por acidente, nada é o que parece ser e tudo está interligado. 

No contexto da extrema-direita mundial, o conceito “globalismo”, ou melhor, anti-globalismo, tem tido destaque. Baseado numa visão conspiratória, haveria um conluio entre várias forças – grandes capitalistas, partidos de esquerda, mídias tradicionais, universidades, cientistas, burocratas de organizações internacionais, ONGs etc. – para controlar o mundo. O objetivo desse suposto grupo seria eliminar valores tradicionais e impor valores progressistas (tidos como degenerados), anticristãos e cosmopolitas do dito “marxismo cultural” – assim como argumentado no Brasil pelo ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo (Casarões & Farias 2022). Outra conspiração global propagada pela extrema-direita é a do Great Replacement, ou “Grande Substituição”, baseada na ideia de que populações etnicamente homogêneas (brancas e cristãs) estariam sendo substituídas por estrangeiros (não brancos e não cristãos, geralmente muçulmanos) (Cosentino 2020; Ekman 2022). 

Apesar de a extrema-direita ser essencialmente antiglobal, existem ligações globais conectando indivíduos e grupos. A internet e as mídias sociais têm tido um papel fundamental no adensamento dessa network entre indivíduos com visão de mundo semelhante. Porém, existe um verdadeiro “ecossistema” da extrema-direita mundial que conta com think tanks e mídias conservadoras, (pseudo) intelectuais e jornalistas, celebridades e “influenciadores”, que alimentam e difundem elementos da extrema-direita pelo mundo (Mudde 2019; Stewart 2020), formando o equivalente a uma “comunidade epistêmica” (Haas 1992). Em decorrência de avanços tecnológicos, textos e áudios podem ser rapidamente traduzidos e distribuídos, facilitando ainda mais o alcance de ideias ainda malvistas em ambientes políticos não extremistas. Dessa forma, os mesmos discursos e argumentos negacionistas e conspirações da extrema-direita, apesar de (aparentemente) difusos em sua origem, acabam sendo reproduzidos de forma global (Ramos & Torres 2020).

Um resultado da relutância da extrema-direita em cooperar para a governança global de problemas mundiais é que ela tende a piorar a desigualdade mundial. Por exemplo, os grupos naturalmente mais predispostos a serem afetados pelo aquecimento global de forma mais dura e imediata são justamente grupos sociais marginalizados doméstica e internacionalmente, como pobres, imigrantes e mulheres (Jylhä & Hellmer 2020, 317-8). Ou seja, apesar de o problema ser universal, os custos da inação climática não são/serão distribuídos igualmente. A lógica semelhante se aplica à pandemia do Covid-19: o alcance do negacionismo e das teorias conspiratórias propagadas pela extrema-direita ultrapassaram essa “bolha” ideológica e atingiram pessoas com menor grau de educação formal e renda (Romer & Jamieson 2020; Lazarus et al. 2021). Isso fez com que um número muito maior de pessoas deixasse de se vacinar, usar máscaras, praticar o distanciamento social e/ou demorassem para procurar atendimento médico no início de sintomas mais sérios, com efeitos deletérios ainda mais graves para indivíduos e comunidades dependentes de serviços públicos de saúde já institucionalmente fragilizados antes mesmo da pandemia.

CONCLUSÃO

A pandemia do vírus da Covid-19 e a não aceitação da realidade do aquecimento global têm mostrado, de forma contundente e inegável, a dimensão global do negacionismo científico propagado pela extrema-direita e os efeitos desse fenômeno na ordem mundial. 

O negacionismo científico pode se dar em relação a qualquer tema. Porém, ele tem maior chances de ganhar projeção quando se trata de fenômenos relativamente novos e/ou naturalmente complexos e multifatoriais, já que a incerteza proporciona um terreno fértil para a imaginação. Apesar de o negacionismo não ser exclusivo da extrema-direita, o crescente poder e a “normalização” desse movimento político têm amplificado o alcance e a força de narrativas negacionistas – e frequentemente conspiratórias. A pandemia do vírus da Covid-19 e a não aceitação da realidade do aquecimento global têm mostrado, de forma contundente e inegável, a dimensão global do negacionismo científico propagado pela extrema-direita e os efeitos desse fenômeno na ordem mundial. 

Entretanto, existem alguns grandes cuidados que todos devem ter ao lidar com o tema do negacionismo científico, com dois sendo aqui destacados. Primeiramente, nem todo questionamento à ciência tida como “certa” e amplamente aceita deve ser equiparado a negacionismo. O método científico tem como base fundamental a busca pela verdade com base em novas perguntas, dados, métodos e interpretações. Ou seja, o método científico nunca deve ser subjugado ao dogma das respostas existentes. O que separa a dúvida científica do negacionismo é que, nesse caso, a não aceitação do que diz a ciência decorre de juízos de valor preexistentes – portanto, não importa o que a ciência diz. E como o negacionismo não se entende como anticiência, a rejeição e o preconceito (no sentido original, de conceito preexistente) são racionalizados usando a linguagem científica. Portanto, não se combate o negacionismo científico com simplesmente mais dados ou mais informação científica. Para “abrir a mente” de um negacionista é importante o reconhecimento de que a “dúvida” científica está, na verdade, baseada em algo além da ciência. Em segundo lugar, o negacionismo científico não é exclusivo da ideologia da extrema-direita – o mesmo sendo válido para teorias conspiratórias. Em um universo político diverso, é fundamental: 1) não esquecer que outros grupos ideológicos (latu sensu) também podem cultivar seus próprios negacionismos e conspirações, e que também podem ser problemáticos se tiverem grande alcance; e 2) continuar a barrar a influência do negacionismo na elaboração de políticas públicas. 

Notas

[1]Por exemplo, movimentos considerados “alternativos” e contracultura têm um histórico de abraçarem o negacionismo, principalmente em relação a medicamentos e tratamentos alopáticos.

[2]Neste artigo, os conceitos usados por Mudde (2019) – extreme right, far-right e radical right – serão condensados na expressão “extrema-direita”.

[3]O tópico do negacionismo climático é explorado em mais detalhes no capítulo “Climate Change Denialism”, escrito pela mesma autora deste artigo, a ser publicado em 2025 no livro Oxford Handbook of Climate Action.

[4]No Brasil, um dos primeiros nomes a levantar essa bandeira foi o “filósofo” da extrema-direita nacional, Olavo de Carvalho (Carvalho 2007).

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Recebido: 21 de agosto de 2024

Aceito para publicação: 4 de setembro de 2024

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