We review the Brazilian foreign policy (BFP) of the new Lula government, which faces two challenges in recovering its traditions: the reconstruction of its insertion in the international system, after the process of isolation during the Bolsonaro Presidency, and changes in the global geopolitical order. We discuss the government's actions at regional level, its pretensions of systemic protagonism, climate agenda, and Lula's intensity as a key-actor in his diplomacy. We highlight the alternatives in terms of alignment and balance in the new international scenario.
O objetivo deste artigo é analisar a política externa brasileira (PEB) no primeiro ano do terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva em termos da recuperação das tradições do cânone da política, de uma postura de maior protagonismo internacional e da busca de um posicionamento, equilibrando-se diante das pressões sistêmicas. Após um período turbulento ao longo do governo Jair Bolsonaro de rompimento com os princípios mais consolidados da PEB, havia, para o atual governo, uma expectativa de retomada dos padrões normais da inserção internacional e regional brasileira[1].
A política externa durante os primeiros anos da administração Bolsonaro se distinguiu por promover mudanças em termos de alianças e escolhas de parceiros, exemplificada pelo alinhamento com os Estados Unidos sob a liderança de Donald Trump. Essa fase também foi marcada por uma retórica contra o denominado “globalismo” e a integração regional (Lopes 2021). Contudo, esta retomada ocorre em ambiente internacional conturbado e instável. A inserção qualificada do Brasil no ambiente internacional tornou-se mais complexa do que a agenda de cooperação promovida nas administrações anteriores do atual presidente (Carvalho 2023). Vivemos período marcado pela contestação forte do script liberal e da liderança ocidental na política internacional e pelo aumento das zonas de conflito entre as potências mundiais (Fernandes 2023). Se o conflito nunca deixou de existir, mesmo durante o auge da Pax Americana, as tensões eram assimétricas ou em regiões periféricas do sistema. Hoje as preocupações de segurança pautam a agenda externa das potências, colocando pressão nas outras esferas de cooperação.
Essa tensificação na agenda internacional, explorada por John Mearsheimer (2018) e Graham Allison (2017), coloca como prioridade a temática de segurança e modifica a lógica do sistema ao mudar as sensibilidades da dinâmica da cooperação internacional em decorrência da desconfiança geopolítica (Powell 1991; Grieco et al. 1993). O exemplo mais forte é a substituição do offshoring, que estimulou o florescimento da globalização e a ascensão econômica do Leste Asiático, em especial da China, pelo nearshoring ou friendshoring. Esse fenômeno é consequência dos atritos comerciais entre as potências, escancarados na guerra comercial entre Estados Unidos e China durante o governo Trump, das interrupções causadas pela pandemia de Covid-19 e da crescente fragilidade das cadeias globais de valor. A mudança retórica dos EUA para uma versão neoprotecionista do sistema econômico e os recentes projetos de retomada da política industrial no Norte Global aprofundam esse processo (Yglesias & Esquivel 2022).
O ano de 2023, em especial, foi marcado por diversos desafios que ilustram a complexidade do cenário internacional contemporâneo. Em primeiro lugar, o governo americano, liderado por Joe Biden, desempenhou um papel crucial para fortalecer o governo Lula, afastando a possibilidade de golpe no Brasil (Stuenkel 2024). Por outro lado, o novo governo brasileiro, ainda que grato ao apoio norte-americano, adotou um posicionamento menos vinculado à agenda ocidental nos conflitos ucraniano e árabe-israelense, buscando demonstrar autonomia, ou mesmo uma disposição em conversar com os contestadores do script liberal.
No caso ucraniano, houve a defesa de um diálogo para um cessar fogo que fosse sensível às demandas de ambas as partes, sem uma vigorosa denúncia à invasão russa (Hirst 2023). As tensões entre o Brasil e o mundo ocidental, em especial os EUA, tornaram-se mais tensionadas com a eclosão do conflito Israel x Palestina em outubro, pois a postura crítica do governo brasileiro à resposta israelense e a demora em declarar o Hamas como um grupo terrorista geraram incômodos nos países da zona da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ainda que as portas continuem abertas para o diálogo.
O Brasil continuou um ativo ator dentro do BRICS. O governo indicou Dilma Rousseff para ser a presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, retratando a importância da organização, e tomou parte no processo de ampliação da aliança, incluindo países que contestam o script liberal, como o Irã e outros atores do Sul Global (Carvalho 2023). A sua indicação da Argentina acabou sendo malsucedida, uma vez que o novo presidente eleito do vizinho platino rejeitou a inserção do país na coalizão. Dessa forma, a expansão do BRICS acabou acontecendo para parceiros mais distantes da confluência de interesses e valores brasileiros, além de ampliar o déficit democrático da coalizão.
A agenda de segurança tornou-se o problema mais proeminente na atual conjuntura internacional. No entanto, outras questões ainda permeiam a ação externa brasileira, como a retomada do protagonismo no debate ambiental e também a recuperação da cooperação regional, prejudicada nos anos bolsonaristas.
Antes mesmo da inauguração de seu mandato, no período entre as eleições e a posse, Lula foi aclamado e participou da Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima de 2022 (COP 27), realizada no Egito, em novembro de 2022. Nessa conferência, o presidente eleito corroborou seu discurso de retomada da agenda ambiental, colocando a preservação da Amazônia como parte central de sua estratégia política, anunciou o Brasil como o país anfitrião da COP 30, que será realizada na própria região amazônica em 2025, e também sustentou a promessa de zerar o desmatamento até 2030.
Logo após a posse, o Brasil também resgatou o Fundo Amazônia para a retomada das contribuições dos parceiros internacionais interessados na preservação da floresta e houve a reconfiguração das competências das instituições ambientais governamentais, debilitadas durante o governo Bolsonaro. Esses movimentos, acompanhados por uma queda na desflorestação da Amazônia, simbolizaram um retorno do Brasil à política ambiental "tradicional" e a sua reintegração na arena internacional.
O relatório de transição de governo já previra uma retomada dos processos de integração política, comercial e de infraestrutura, incluindo a retomada da União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a reentrada na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC). Foi realizada em maio, em Brasília, a Cúpula Sul-Americana, quando o BNDES voltou a ser colocado como um eixo de promoção dos investimentos em obras públicas. A cúpula, que contou com a presença de líderes de quase todos os países sul-americanos, com exceção apenas do Peru, foi um passo na agenda de refortalecimento dos laços regionais (Mendes 2023).
A interação com a Venezuela marcou um capítulo especial nas relações da região, com a reativação dos laços diplomáticos e a defesa do regime de Maduro. No entanto, a atmosfera de cooperação foi desafiada pela ameaça de conflito em Essequibo, uma área contestada com a Guiana. A Venezuela promoveu um referendo para a anexação dessa região. Esse ato provocou uma resposta do Brasil, que reforçou sua presença militar na fronteira Norte, diante do risco de uma intervenção venezuelana que pudesse invocar a participação de potências extrarregionais no conflito, o que poderia comprometer a aspiração brasileira de retomar sua liderança na América do Sul. Em resposta à escalada, o Brasil defendeu uma solução pacífica para o conflito, reafirmando a tradição de defesa de meios pacíficos institucionais de solução de controvérsias, destacando, além disso, a importância estratégica do corredor rodoviário que liga Venezuela e Guiana através de território brasileiro, cujo uso em qualquer ação militar seria inaceitável para o país.
Posto isso, a retomada dos padrões mais tradicionais de condução da política externa está sendo realizada pari passu à adaptação aos novos desafios do sistema internacional. Carvalho (2023) aponta a necessidade de uma ação internacional mais estratégica, que misture legados das tradições democráticas da PEB durante os governos democráticos de Fernando Henrique Cardoso e das gestões petistas anteriores.
A recuperação das tradições internacionais brasileiras inclui uma difícil retomada da escolha entre uma maior aproximação do Brasil com as potências ocidentais, (...) ou uma opção de maior alinhamento com os contestadores do sistema (...). Uma terceira opção possível é o uso de uma estratégia de barganha implícita entre os dois centros nevrálgicos do sistema internacional, aproveitando-se do fato de o Brasil ser, ao mesmo tempo, um expoente da sociedade ocidental e uma vibrante sociedade do Sul Global (...).
A recuperação das tradições internacionais brasileiras inclui uma difícil retomada da escolha entre uma maior aproximação do Brasil com as potências ocidentais, repetindo os elementos centrais da estratégia de Rio Branco, ou uma opção de maior alinhamento com os contestadores do sistema, retomando elementos caros da Política Externa Independente e também a tradição estabelecida na Política Externa Altiva e Ativa dos primeiros governos Lula. Uma terceira opção possível é o uso de uma estratégia de barganha implícita entre os dois centros nevrálgicos do sistema internacional, aproveitando-se do fato de o Brasil ser, ao mesmo tempo, um expoente da sociedade ocidental e uma vibrante sociedade do Sul Global, retomando as práticas orquestradas durante o auge da política externa getulista na década de 1930 (Fernandes 2023).
O texto está dividido em cinco partes, incluindo esta introdução. Na próxima seção apresentamos o estado da política externa encontrado após o período bolsonarista. Em seguida, analisamos de maneira breve os desafios impostos pelo sistema internacional. Na quarta seção discutimos as mudanças e tendências apresentadas no primeiro ano da política externa de Lula. Finalmente, na quinta e última seção, concluímos discutindo as perspectivas futuras para a inserção internacional do Brasil.
O LEGADO DA POLÍTICA EXTERNA BOLSONARISTA
A política externa bolsonarista foi marcada por um rompimento secular dos princípios da PEB. Alguns elementos demarcam suas implicações. Destacamos o alinhamento ideológico ao trumpismo norte-americano, a rejeição e completa inação na agenda climática, ceticismo contra as tradições multilaterais e o papel do Brasil como articulador nas organizações internacionais. Essa estratégia teve impacto na imagem e respeitabilidade do Brasil no cenário internacional, redefinindo o papel e a percepção do país no cenário mundial, trazendo desafios para a diplomacia brasileira no futuro, especialmente na reconstrução de sua imagem e na retomada de um papel de liderança em questões globais cruciais (Douro 2023).
Um dos traços marcantes da política externa sob Bolsonaro foi o alinhamento ideológico à direita radical norte-americana, especialmente ao governo de Donald Trump nos Estados Unidos. Essa aproximação se traduziu em: um alinhamento em questões como mudanças climáticas, nas quais o Brasil se mostrou reticente em assumir compromissos mais robustos; uma rejeição populista às instituições internacionais, denunciadas como agentes do globalismo; e uma postura mais agressiva em relação a regimes de esquerda na América Latina, especialmente à Venezuela (Casarões 2022).
O país, que fora visto como líder em negociações climáticas internacionais, adotou uma postura mais defensiva, minimizando compromissos anteriores relacionados ao Acordo de Paris e à preservação da Amazônia. Essa posição afetou a imagem do Brasil como um ator responsável e comprometido com a sustentabilidade global. A resistência em aderir a compromissos mais ambiciosos em relação ao clima refletiu-se na diminuição da influência do Brasil em fóruns internacionais, além de complicar relações com países e blocos preocupados com a agenda ambiental, como a União Europeia. Essa postura resultou em dificuldades adicionais nas negociações do acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, com questões ambientais sendo um dos entraves (Hecht 2021).
Houve também uma aversão a mecanismos multilaterais, com críticas frequentes às organizações como as Nações Unidas (ONU) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), especialmente em relação à gestão da pandemia de Covid-19. O mesmo aconteceu em outras temáticas, como direitos humanos em sentido lato e os debates sobre os direitos da mulher. Essa postura de ceticismo em relação ao multilateralismo e a instituições internacionais reflete uma tendência mais ampla de questionamento da globalização e das estruturas de cooperação internacional, alinhando-se a uma visão da direita radical populista, que entende a globalização como um mecanismo de solapamento do Estado e das tradições locais. De maneira geral, a política implicou isolamento e distanciamento de princípios como o diálogo, a cooperação e a busca por equilíbrio nas relações internacionais (Motta & Milani 2023).
AS MUDANÇAS NO SISTEMA INTERNACIONAL[2]
Atualmente, observam-se tensões no cenário internacional devido à potencial diminuição da hegemonia norte-americana e ao surgimento de novos centros de poder e riqueza, levantando questionamentos sobre a estabilidade econômica e financeira que sustenta a superioridade dos EUA. Não se pode afirmar com certeza que essa mudança será definitiva. Em situações anteriores, os EUA foram capazes de se renovar e buscar novos caminhos, reassumindo sua posição de liderança global, como visto durante a crise capitalista dos anos 1970 em resposta ao crescimento econômico do Japão.
Atualmente, observam-se tensões no cenário internacional devido à potencial diminuição da hegemonia norte-americana e ao surgimento de novos centros de poder e riqueza (...). Não se pode afirmar com certeza que essa mudança será definitiva. Em situações anteriores, os EUA foram capazes de se renovar e buscar novos caminhos, reassumindo sua posição de liderança global (...). Ao contrário do confronto da Guerra Fria, o panorama da política internacional de hoje aponta para uma competição de natureza distinta.
Ao contrário do confronto da Guerra Fria, o panorama da política internacional de hoje aponta para uma competição de natureza distinta. A rivalidade sino-americana não se limita à esfera militar, mas inclui capacidades tecnológicas e competitivas que se encontram em um nível similar (Kaska, Minárik & Beckvard 2019). Os EUA já não ocupam o papel de força motriz industrial do sistema capitalista. A China figura como o principal parceiro comercial da maioria dos países, incluindo nações da América Latina, historicamente vista como uma área de influência dos Estados Unidos (Gallagher 2016).
A Rússia reassumiu parte de um protagonismo internacional, reconquistando parcela de sua antiga influência, em razão do seu poder bélico e sua influência energética, apesar de sua posição ser instável e com limitada capacidade de projeção além de suas fronteiras imediatas. Embora não ocupe mais um papel central no sistema, a Rússia tem formulado sua política externa com o objetivo de oferecer uma alternativa ideológica ao modelo democrático-liberal (Dugin 2012). Adicionalmente, existem evidências da sua capacidade de influenciar de maneira subterrânea os processos democráticos dos países do Ocidente, por meio da chamada cyberwar, impactando as eleições por meio de uma presença intensa em campanhas digitais e uso de fake news (Snyder 2019).
Com seu forte crescimento econômico, a China induz mudanças na estrutura política internacional, mas por meio de adaptações, sem substituir instituições existentes. A abordagem é direcionada em torno de uma adaptação progressiva e gradual, evitando a reformulação das organizações internacionais existentes. Isso acontece porque, no âmbito das instituições de segurança, a potência asiática ocupa uma posição privilegiada no Conselho de Segurança da ONU, com poder de veto. Portanto, ela já era reconhecida como grande potência nas esferas de segurança internacional, mesmo antes de sua meteórica ascensão econômica.
O modelo adotado pela China demonstra seu interesse em seguir as regras estabelecidas, o que a posiciona como uma potência responsável em ascensão. A estratégia de uma ascensão pacífica envolve a aceitação das normas internacionais, o emprego de ferramentas econômicas para ganhar influência e a paciente espera pela readaptação dos regimes ao novo marco de distribuição de poder econômico, sem colocá-los em xeque (Glaser & Medeiros 2007). No entanto, após a crise da Covid-19, as tensões internacionais voltaram a florescer, marcadas pela invasão russa à Ucrânia e o aumento das tensões entre Estados Unidos e China no Estreito de Taiwan e no Mar da China.
Como postulado por Allison (2017), a ascensão chinesa representa o surgimento do maior player geopolítico da história. Com seu peso populacional, é nítido o desequilíbrio entre a China e qualquer outro país do sistema internacional, salvo a potência demográfica indiana. Desta feita, com o aumento do dinamismo econômico chinês e a cada vez menos provável resolução pacífica das tensões no Mar da China entre EUA e China, o sistema internacional entra em um estado de vigilância. O agravamento das tensões é palpável, especialmente com a mudança estratégica da China em querer exercer maior controle sobre o Mar da China e seu empenho em limitar a presença militar norte-americana nas adjacências de seu território.
A POLÍTICA EXTERNA LULISTA E O PÓS-BOLSONARISMO
O terceiro mandato do governo Lula tem se destacado por uma agenda internacional intensa, liderada pelo próprio presidente, e por esforços em restabelecer a posição do Brasil no cenário global, contrapondo-se à retração bolsonarista e também aproveitando-se do capital político como liderança popular e democrática angariado nas duas últimas décadas, em âmbito nacional e internacional.
Entre os eventos e as características da política externa brasileira sob sua liderança, destacam-se: o foco na integração regional; a retomada de uma ação extracontinental do país; um posicionamento em defesa da paz e cessar fogo das hostilidades na Guerra na Ucrânia e no conflito Israel-Palestina; a retomada do protagonismo da agenda ambiental; e um papel fundamental do próprio presidente como ator-chave de sua política externa.
Integração Regional
O governo Lula deu prioridade à integração regional, escolhendo Argentina e Uruguai como destino de suas primeiras viagens internacionais no novo mandato, o que reflete um esforço para fortalecer laços com países vizinhos e blocos como o Mercosul e a retomada da UNASUL. A organização de uma cúpula com presidentes da América do Sul em Brasília antes do final do primeiro semestre do governo também aponta a prioridade dessa vertente, tal como fora feito em suas administrações anteriores (Almeida & Fernandes 2022).
Durante o discurso de abertura da Cúpula Sul-Americana de Nações, Lula propôs diversas iniciativas para fortalecer a integração entre os países do subcontinente, em moldes semelhantes às estratégias anteriores. Entre as propostas, destacou-se a sugestão de criar uma moeda comum para facilitar o comércio e a integração econômica na região. Além disso, mencionou a revitalização do papel do BNDES, enfatizando seu retorno como um facilitador de investimentos em infraestrutura pública nos países da América do Sul, semelhante ao seu papel na Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA), no entanto sem indicar recursos volumosos que possam ter um efeito substantivo de integração física. Lula também propôs reativar a UNASUL, organização que foi descontinuada após a ascensão conservadora na região.
A partir do segundo semestre de 2023, o Brasil assumiu a presidência pro tempore do Mercosul com o objetivo de intensificar a integração regional e facilitar as negociações com parceiros internacionais. No entanto, não parece que a política do governo tenha percebido a necessidade de se atualizar o Mercosul ao fato que o maior parceiro econômico da região não é mais os Estados Unidos, mas sim a China, mantendo repertórios e retóricas já bastante mobilizadas na temática (Munõz 2024).
Não obstante a China seja considerada um parceiro estratégico do Sul Global, líder do BRICS e adversário do script liberal, o intercâmbio comercial repete mais o padrão tradicional do comércio Norte x Sul encontrado na literatura sobre a divisão internacional do trabalho em um sistema de centro x periferia. Os países da América do Sul, incluindo o Brasil, são exportadores de commodities e importadores de produtos industrializados e de maior valor tecnológico. Essa conformação do comércio exterior é distinta do padrão que o Brasil possui de intercâmbio com a potência do Norte. Os Estados Unidos são um dos maiores mercados consumidores dos produtos industriais brasileiros, assim como a América do Sul, em especial os países do Mercosul. Hoje a China se sobressai como uma grande competidora frente às exportações industriais do Brasil no subcontinente sul-americano. Dados recentes demonstram que o Brasil perdeu 11% do seu mercado sul-americano de exportação de manufaturas industriais na última década (Soares 2023).
[O] novo posicionamento brasileiro na [América do Sul] deve encarar o fato que o arcabouço de integração econômica regional não é mais um espaço para somente fazer frente à competição norte-americana no hemisfério ocidental, mas que [a China é] um novo ator na região, parceiro e competidor, cujos efeitos e desdobramentos econômicos devem ser levados em consideração para definição de uma nova e mais eficaz estratégia de integração regional.
Posto isto, o novo posicionamento brasileiro na região deve encarar o fato que o arcabouço de integração econômica regional não é mais um espaço para somente fazer frente à competição norte-americana no hemisfério ocidental, mas que há um novo ator na região, parceiro e competidor, cujos efeitos e desdobramentos econômicos devem ser levados em consideração para definição de uma nova e mais eficaz estratégia de integração regional.
Venezuela e a Guiana – Essequibo
Além dos aspectos econômicos na integração sul-americana, a estratégia brasileira foca a relação com a Venezuela por três aspectos: primeiro, a crise venezuelana, marcada pelo declínio democrático e por problemas humanitários, gera instabilidade na região e um significativo fluxo migratório, atraindo a atenção de potências de fora da região; além disso, a situação venezuelana é politizada na competição política nacional, influenciando debates políticos sobre governança e políticas públicas; por fim, a questão do Essequibo exige uma ação direta do Brasil para prevenir conflitos e a presença militar estrangeira na região, como uma base militar americana na Guiana.
A crise de 2023 na Guiana Essequibo é uma implicação da descoberta de petróleo na região, cerca de oito bilhões de barris de reservas de petróleo, colocando-a entre os 20 países em reservas comprovadas de petróleo, e do fato que o governo Maduro encontra-se fragilizado para o processo eleitoral previsto para 2024 (Griffith 2021). Posto isto, o presidente venezuelano busca uma mobilização nacionalista em torno de uma crise internacional, uma espécie de efeito unificador em torno da bandeira (rally 'round the flag effect), amplamente verificado na literatura de fortalecimento de uma liderança política em decorrência de um conflito internacional (Oneal et al. 1995).
Diante do aumento das tensões decorrentes da aprovação do referendo de anexação da região em dezembro, o Brasil mobilizou tropas para o estado de Roraima, situado na fronteira comum aos dois países, com o objetivo de prevenir incursões militares através do território brasileiro, que abriga a única via de acesso rodoviário entre as nações.
Em paralelo, as forças armadas dos Estados Unidos, por meio do Comando Sul, e do Reino Unido divulgaram a realização de diversos exercícios e operações militares na área. O crescente envolvimento norte-americano na região representa um desafio para a liderança do Brasil na América do Sul. Ademais, esse cenário representa a mais significativa ameaça à soberania brasileira no último século, especialmente se a Venezuela decidir fazer uso da estrada que liga Roraima à Venezuela e ao território do Essequibo.
Em dezembro, durante um encontro em São Vicente e Granadinas, com a intermediação do assessor especial da Presidência do Brasil, Celso Amorim, Guiana e Venezuela assumiram um compromisso, expresso na Declaração Conjunta de Argyle, datada de 14 de dezembro de 2023, de se absterem do uso ou da ameaça de uso da força na disputa territorial. Ambas as nações concordaram em buscar uma solução para o conflito sob os princípios do Direito Internacional, escolhendo o Brasil, a CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) e o CARICOM (Comunidade do Caribe) como entidades apropriadas para mediar as tensões. Esse acordo resultou em uma diminuição das tensões, evidenciando um sucesso, ainda que inicial, da diplomacia brasileira na mediação do conflito e no exercício de sua liderança na região. Tais pontos foram reafirmados em reunião no início de 2024 entre os presidentes dos dois países, realizada em Brasília (Abreu 2024).
Conflito Russo-Ucraniano
O tema da guerra russo-ucraniana foi objeto da ação externa brasileira em seus primeiros meses de governo. Logo em janeiro, em visita ao chanceler alemão, o presidente brasileiro sinalizou sua posição ambígua, pois, não obstante tenha condenado a invasão russa à Ucrânia, suas críticas foram menos severas do que o esperado pelos países ocidentais, que foram apoiadores de seu retorno ao poder (Gayer 2023).
O presidente brasileiro também recebeu críticas por suas declarações sobre a guerra em entrevista coletiva feita nos Emirados Árabes Unidos, sugerindo que tanto a Rússia quanto a Ucrânia deveriam tomar iniciativas para cessar o conflito (Godoy 2023). Segundo o presidente brasileiro, ambos os países teriam responsabilidade pela eclosão do conflito, minimizando a posição da Ucrânia como país invadido, e sustentou que a Europa e os EUA contribuem para a continuação da guerra, tanto pelo apoio dado à Ucrânia quanto pelo histórico de ampliação da OTAN para o Leste Europeu, ignorando a existência de uma autonomia ucraniana na opção de uma reconstrução do país mais voltada ao Ocidente do que às tradições de conexão espiritual com Moscou, repetindo em parte a narrativa proposta por Putin e Lavrov sobre as origens do conflito (Snyder 2022). Essas posições geraram fortes controvérsias que afetaram as relações com os Estados Unidos e mostram uma disposição do Brasil de dialogar com o Ocidente, mas sem perder espaço no Sul Global e entre as potências contestadoras do script liberal (Anater 2023).
A postura do Brasil provocou desconforto, pois sua defesa da paz não encontrou receptividade no Kremlin, não foi plenamente reconhecida por Kiev e ainda menos pelas potências ocidentais. Essa abordagem resultou em tensões com membros da OCDE, levando à suspensão das negociações de adesão do Brasil, iniciativa tomada pelo próprio país. Paralelamente, houve um estreitamento das relações com os parceiros do BRICS, embora sem resultados práticos evidentes dessa estratégia. Contudo, tal postura sinaliza uma tentativa de não alinhamento do Brasil com as potências do modelo liberal internacional, mantendo aberto o canal de diálogo. Isso reflete a expectativa de mudança em relação à política externa anterior, sob a gestão Bolsonaro, e sugere um esforço de reinventar uma diplomacia de equilíbrio, reminiscente de outras fases da PEB.
Conflito Israel-Palestina
Em relação ao grave conflito que toma conta do Oriente Médio, o governo Lula manifestou claramente apoio e solidariedade aos palestinos, mantendo coerência com o reconhecimento dado pelo Brasil à existência do Estado Palestino no ano de 2010, durante a presidência de Lula, já que, no final de seu segundo mandato, o Brasil reconheceu, então, o Estado Palestino com as fronteiras de 4 de junho de 1967, anteriores à guerra dos seis dias entre árabes e israelenses.
Muito embora o posicionamento do Brasil sob a égide de Lula não seja nenhuma novidade, o presidente brasileiro acabou criando uma profunda crise com Israel ao afirmar duramente que as práticas israelenses em Gaza poderiam ser comparadas ao nazismo e ao que Hitler fez na Europa. Lula afirmou, ainda, que Israel praticava crime de genocídio em Gaza (Silva 2024). Essas afirmações provocaram uma reação imediata do governo de Netanyahu, que, numa tentativa de intimidação, chegou até a convocar o embaixador brasileiro para que realizasse uma reunião no Museu do Holocausto, indicando que o brasileiro não teria ideia propriamente do que foi o nazismo e seus resultados.
O governo, por meio do assessor Celso Amorim, se recusou a pedir desculpas a Israel. Acusado de antissemita e negacionista por Israel, o presidente Lula, por meio do Itamaraty, reafirmou sua posição, deixando claro que Lula não se referia ao povo judeu, mas sim ao governo de Israel. Todavia, pessoalmente Lula não chegou, até a escrita deste texto, a se manifestar novamente sobre o assunto.
Aliás, no decorrer do conflito, o Brasil endossou uma ação da África do Sul junto à Corte Internacional de Justiça, principal órgão jurisdicional do sistema internacional, que pediu para que Israel descontinuasse suas práticas genocidas na Faixa de Gaza. O Brasil foi severamente criticado por Israel, pelos EUA e não apoiado pelos países europeus ocidentais. Todavia, como afirmam Casella e Fernandes (2024), em relação ao endosso dado pelo Brasil,
causam realmente uma certa estranheza as críticas apresentadas no sentido de ser um equívoco ou um erro da política externa brasileira. O que o Brasil fez, independentemente de qualquer posicionamento ideológico, foi reafirmar o posicionamento que sempre pautou a conduta do país nas relações internacionais, isto é, apoiar a solução de conflitos por meios pacíficos e de acordo com o direito internacional e sua normativa. Basta tomar o artigo 4° da Constituição de 1988 que determina ao Brasil o dever de se pautar nas suas relações internacionais pela prevalência dos direitos humanos (artigo 4°, II) e pela solução pacífica dos conflitos (artigo 4°, VII). O Brasil apenas cumpriu com a sua missão constitucional.
De qualquer maneira, o posicionamento do Brasil no conflito entre Israel e Palestina pode ser interpretado como uma continuidade das administrações anteriores de Lula. Aliás, apesar da crise diplomática com Israel, o Brasil recebeu um aceno dos EUA no sentido de valorizá-lo como um agente para propulsionar a paz na comunidade internacional. Logo após todo o imbróglio, Lula recebeu o secretário de Estado dos EUA, Antony Blinken, que se manifestou no sentido de que, apesar de discordar do presidente brasileiro em relação à tipificação do crime de genocídio em Gaza e da comparação com o nazismo, o Brasil era um importante parceiro a se contar no processo de paz.
Por outro lado, críticos, como o ex-chanceler Celso Lafer (2024), apontaram que as falas de Lula trouxeram um prejuízo à política externa brasileira, pois auxiliaram a erodir o papel do Brasil como mediador de conflitos. Além disso, indicaram que, com a comparação com o Holocausto e a indisposição com Israel, o Brasil teve, de certa forma, um pouco de descrédito em seu soft power internacional.
A retomada da agenda ambiental
Houve uma retomada e um redirecionamento em questões ambientais e climáticas, especialmente em negociações com a União Europeia, em que o Brasil busca manifestar seu desconforto com possíveis sanções ligadas ao descumprimento de objetivos climáticos. Esse aspecto tem sido central nas discussões internacionais, refletindo o compromisso e a prioridade do Brasil com a agenda ambiental e movimentos protecionistas de ambas as partes, em especial do Brasil e da França.
Vale ressaltar que o Brasil sediará na cidade de Belém, no Pará, a 30ª Conferência das Partes da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP 30). Esse evento é considerado um grande trunfo para a política externa do governo Lula no sentido de poder ser uma espécie de nova Eco 92, ou seja, um marco de liderança do Brasil na agenda ambiental global. O governo brasileiro buscou sediar o encontro na Amazônia justamente para demonstrar que a política ambiental desastrosa do governo anterior realmente chegou ao seu fim e que o Brasil, dessa forma, retoma sua posição de liderança numa das agendas mais importantes para o futuro.
Aliás, a Amazônia continua sendo um ativo para o governo em sua política externa. O Brasil busca atuar como detentor da quase totalidade do bioma e, portanto, um líder natural na comunidade internacional em relação ao tema. Nesse diapasão, cobra dos países do Norte e das potências que tenham a responsabilidade em também ajudar a proteger o meio ambiente e não só demandar que o Brasil assim o faça. Não foi por motivo diverso que o governo Lula fez questão de retomar o Fundo Amazônia, desprezado pelo governo de Jair Bolsonaro.
A volta da diplomacia presidencial
O presidente retomou a relevância da diplomacia presidencial visitando 25 países no primeiro ano de governo, incluindo várias nações europeias, a China, os Estados Unidos e a Argentina, demonstrando um esforço para diversificar as parcerias e reforçar laços com parceiros comerciais (Hirst 2023).
Nesse sentido, Lula é um dos presidentes que mais realizou viagens na história da democracia brasileira. Se, por um lado, alguns apontam que isso acontece por conta do apreço que o presidente tem em relação à política externa, outros fundamentam que o número alto de viagens se dá por conta de uma demanda reprimida do Brasil no cenário das relações internacionais. Dessa maneira, o governo Lula demonstrou não só interesse em reposicionar o Brasil nas relações internacionais, como também reafirmar e retomar agendas perdidas, como a do meio ambiente. Há na nova estratégia internacional brasileira a busca pela negociação direta com outros líderes, sem o intermédio das estruturas diplomáticas. Exerce a denominada diplomacia presidencial com fervor.
Vale lembrar, nesse diapasão, as cenas marcantes de Jair Bolsonaro em Davos, quando, ao invés de estar na presença dos seus pares, isto é, outros líderes, preferia ficar sozinho com sua equipe em restaurantes ou cafeterias mais simples do que os locais de encontro das lideranças globais. Evidentemente, Bolsonaro procurava muito mais aproveitar esses momentos para sua estratégia de política interna, doméstica, do que realmente exercer a diplomacia presidencial. Bolsonaro buscava produzir a imagem do presidente antissistêmico também em relação às instituições internacionais, ao passo que produzia a imagem de homem simples para o agrado de seu eleitorado. Daí a afirmação de que Bolsonaro produzia era uma política externa de cunho doméstico, voltada para seu eleitorado e não realmente no sentido de inserção dos interesses estatais nas relações internacionais (Schutte et al. 2019).
O governo de Lula muda esse cenário com o engajamento do presidente nas negociações e no posicionamento como chefe de Estado nas instituições e encontros internacionais. Interessante apontar que a postura é de uma posição de líder não somente do Brasil, mas promotora do Direito Internacional e da paz entre as nações.
PERSPECTIVAS PARA O FUTURO
Diante dos elementos e dos fatos analisados, a política externa do novo governo Lula parece seguir o rumo da política altiva e ativa dos seus governos anteriores, mas com a ciência de uma mudança entre os players, principalmente em relação à China, à Rússia e à disputa com a Europa Ocidental e os Estados Unidos. Muito embora o Brasil pareça buscar assumir sua posição como líder do Sul Global, há uma perspectiva de que o país tenha a ambição de se portar além da liderança regional, como um ator global, relevante, diante das agendas e conflitos em andamento.
É verdade que esse rumo parece também ter um presidente Lula mais incisivo, mais protagonista nas relações e nas negociações, o que pode revelar também desejos pessoais de se contrapor frontalmente ao seu antecessor, uma vez que no âmbito doméstico a polarização entre ele e o ex-presidente continua intensa. Além disso, o Lula atual parece ser um ator mais proativo no sentido de que não precisa mais, como nos seus governos anteriores, dizer para o mundo quem ele é ou qual a sua direção. Lula parece ter uma espécie de consciência de que é um líder já respeitado e por muitos festejado internacionalmente.
O endosso que recebeu dos países europeus, como a França, a Alemanha, por exemplo, e dos Estados Unidos durante o pleito presidencial de 2022 parece ter surtido o efeito de que Lula percebeu seu peso e sua importância para as democracias liberais ocidentais. Ao mesmo tempo, mantém também uma aproximação com as lideranças contestadoras do ideário liberal democrático, como a China e a Rússia, o que torna o exercício da diplomacia brasileira em relação às potências bastante desafiador.
Nesse sentido, mesmo assumindo naturalmente o objetivo de exercer uma liderança no chamado Sul Global, o terceiro governo de Lula ainda não deixou claro se buscará o coprotagonismo global, equilibrando-se em meio ao desequilíbrio da ordem internacional, ou se tomará algum lado diante do embate entre uma China contestadora, mas que joga o jogo institucional internacional, uma Rússia mais agressiva e contestadora, que joga, subterraneamente, com a cyberwar e os Estados Unidos e a sua busca por recobrar a singularidade de potência e líder das nações democráticas ocidentais, fortemente militarizado e influente nas instituições internacionais.
[M]esmo assumindo naturalmente o objetivo de exercer uma liderança no chamado Sul Global, o terceiro governo de Lula ainda não deixou claro se buscará o coprotagonismo global, equilibrando-se em meio ao desequilíbrio da ordem internacional, ou se tomará algum lado diante do embate entre [China, Rússia e Estados Unidos].
Enquanto seu governo começou com uma aproximação com os países ocidentais, fundamentais para que a transição de poder no Brasil transcorresse sem maiores contratempos, diante de investidas contrárias à democracia sem precedentes na Nova República, o seu posicionamento em relação à Guerra da Ucrânia demonstrou um esperado distanciamento. No entanto, as outras ações ao longo do ano, sobretudo o processo de ampliação do BRICS e o posicionamento contundente frente ao conflito Israel-Palestina, apontam um Brasil mais afinado com os contestadores do script liberal do que com a agenda ocidental liberal-democrática. A desaceleração do processo de adesão à OCDE também indica essa indisposição.
Poucas ações, no entanto, trouxeram consequências positivas palpáveis para o Brasil, com exceção da indicação de Belém para sediar a COP 30. Ainda não é tempo de avaliar os resultados efetivos da nova estratégia diplomática, mas sim diagnosticar o que vem sendo feito e como as ações encontram respaldo ou rechaço interna e externamente. As ações em um mundo mais conturbado exigem uma readequação conceitual, e ao Brasil é colocada a possibilidade de se aproximar, distanciar ou mesmo se equilibrar entre as potências que divergem em diversas searas, de forma a maximizar o benefício para a liderança do país, a manutenção da paz em sua região e, quiçá, a redução possível das tensões mais profundas do sistema.
As ações em um mundo mais conturbado exigem uma readequação conceitual, e ao Brasil é colocada a possibilidade de se aproximar, distanciar ou mesmo se equilibrar entre as potências que divergem em diversas searas, de forma a maximizar o benefício para a liderança do país, a manutenção da paz em sua região e, quiçá, a redução possível das tensões mais profundas do sistema.
De qualquer maneira, é importante também anotar uma potencial tendência de que, no decorrer de seu governo, Lula arrefeça seu ímpeto. Afinal, é possível que, após uma retomada da política externa no primeiro ano, passe a dosar um pouco mais sua inserção nos temas globais para se dedicar aos assuntos e à articulação política interna diante de um cenário doméstico ainda polarizado.
Finalmente, resta ainda ao Brasil superar os entraves nas negociações do Mercosul-União Europeia, paradas pelos excessos de protecionismo do governo brasileiro e de seu par francês. Esse acordo é uma grande oportunidade de aprofundamento das relações brasileiras com a coalizão ocidental, que poderá apontar à disposição do Brasil de se equilibrar no desequilíbrio internacional, sendo um espaço de friendshoring para ambas as coalizões. De tal forma, o país pode buscar a manutenção de sua autonomia por meio da capacidade de dialogar de maneira legítima como par da coalizão ocidental e como parte dos contestadores da ordem liberal.
Notas
[1]Este artigo traz resultados parciais dos Projetos Temáticos Fapesp 2010/06356 -3, 2013/00445 -4 e 2018/.00646 -1.
[2]Seção baseada em Fernandes (2023).
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Recebido: 26 de fevereiro de 2024
Aceito para publicação: DIA de MÊS de 2024
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