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Editorial

O Brasil está de volta

Perspectivas no cenário internacional se reabrem para o Brasil no novo governo
Detalhe da capa, por Mariana Jaguaribe Lara Resende. Ilustração: Bicho Coletivo.

Em seu discurso de vitória, após sagrar-se o candidato vitorioso nas eleições de outubro de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva delineou as prioridades de seu terceiro mandato como presidente da República. Entre compromissos com o combate à fome, com a retomada do diálogo interpartidário e com o respeito à Constituição Federal, Lula dedicou grande parte de sua fala às relações internacionais do Brasil. O ponto de partida de sua narrativa foi que “o mundo sente saudade do Brasil”. E o mundo realmente sentiu.

Em seu discurso de vitória (...), Lula dedicou grande parte de sua fala às relações internacionais do Brasil. O ponto de partida de sua narrativa foi que “o mundo sente saudade do Brasil”. E o mundo realmente sentiu.

Nos últimos quatros anos, o desmonte da política externa brasileira afastou o Brasil dos espaços em que sabemos trafegar melhor. Desde a independência, nosso caminho não foi o do enfrentamento militar. Optamos pelo diálogo, sobretudo pelo conduzido em espaços multilaterais, nos quais temos a habilidade e o prestígio em formar e liderar alianças de interesses comuns. Como lembrado pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, presidente de honra do CEBRI, “Ninguém cresce no isolamento” (Cardoso 2022). Estar integrado, e não isolado, foi, historicamente, a estratégia que governos de espectros políticos altamente divergentes mantiveram em curso, apesar de importantes variações de ênfase e de prioridades. O motivo é simples: participar ativamente da dinâmica do sistema internacional é a melhor forma de atingir os interesses nacionais do país (Soares de Lima & Albuquerque 2022). A ruptura provocada no último ciclo presidencial afastou o Brasil do modelo de nação que queremos e que devemos ser. 

A lista de retrocessos é significativa. Na Organização das Nações Unidas, perdemos espaço e trânsito em órgãos como o Conselho de Direitos Humanos, no qual a política retrógrada antigênero reverteu posicionamentos históricos do Brasil e nos colocou no papel de aliado a países cuja política externa é pautada em valores religiosos e autoritários. Nas negociações climáticas, compromissos vazios e “pedaladas climáticas” foram acompanhadas de altíssimas taxas de desmatamento e aumento da permissibilidade para atividades ilegais e danosas aos nossos ecossistemas e biomas (Teixeira & Toni 2022). Nas organizações regionais, o país manteve a política de afastamento iniciada nos governos anteriores e consolidou a posição de ausência da Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e da UNASUL, dois dos principais fóruns de diálogo entre os países latino-americanos (Almeida & Fernandes 2022). O distanciamento dos vizinhos também se refletiu na virtual paralisia de espaços coletivos como a Cúpula CELAC-União Europeia, a Cúpula América do Sul-Países Árabes e a Cúpula América do Sul-África (Soares de Lima et al. 2022).

Para além da perda de trânsito, o Brasil também perdeu crédito. O país, que antes era sinônimo de busca pelo consenso, passou a ser visto como um obstáculo para soluções negociadas. Deixamos de ser convidados para fóruns de alto nível, simplesmente porque ter o Brasil na mesa, em muitos casos, não tinha mais o caráter construtivo de antes. Danos de tal porte não são revertidos imediatamente. O desafio do novo governo já estava posto antes mesmo do dia 1º de janeiro de 2023. Era necessário fazer o mundo voltar a olhar o Brasil com os olhos da boa vontade. 

Foi durante esse período conturbado, penoso e marcado pela desesperança que a CEBRI-Revista foi lançada. É sintomático que a publicação, que foi concebida para ser a principal referência dos periódicos de Relações Internacionais do Brasil, tenha passado quatro edições com conteúdos que, majoritariamente, ou falavam com saudosismo do passado, ou teciam recomendações sobre o “dever ser”, apontando caminhos para a retomada. Tenho certeza de que os editores e autores gostariam de poder discorrer mais sobre o presente, mas a realidade era, por muitas vezes, tão errática, inconstante e pouco pragmática, que até mesmo os grandes nomes da área tinham dificuldade de encontrar palavras para descrever – diplomaticamente, como é da natureza do nosso país – para onde estava indo a política externa brasileira. Com esta edição, finalmente podemos falar do que o Brasil é e será, e não apenas do que ele foi, ou do que ele gostaria de ser. 

Com esta edição, finalmente podemos falar do que o Brasil é e será, e não apenas do que ele foi, ou do que ele gostaria de ser. 

Para falar do que o Brasil é agora, é necessário levar em consideração que Lula já foi presidente do país antes, em um contexto internacional e doméstico altamente divergente do que encontrou em 2023 (Kalout & Guimarães 2023). Muito se questionou, portanto, sobre se a política externa de Lula seria uma nova política externa, ou se seria uma retomada da tradição brasileira após o ponto fora da curva do último governo. 

Os textos da seção especial desta edição da revista trazem esse debate. No ensaio O lugar do Brasil, o embaixador Marcos Azambuja argumenta que o novo governo não implementará uma nova política externa, mas sim uma correção de rumos após recentes erros de julgamento e ação. O embaixador aponta, ainda, áreas que considera centrais para que a diplomacia brasileira adapte suas prioridades ao nosso contexto global, a exemplo das relações com a África e das vantagens comparativas da disponibilidade hídrica do Brasil. Já Maria Regina Soares de Lima, no texto A dialética da política externa de Lula 3.0, argumenta que estamos diante de uma nova política externa, que não pode ser resumida a um retorno ao passado porque, agora, precisa responder diretamente a uma variável que não estava dada antes: a antítese bolsonarista. 

O embaixador Paulo Roberto de Almeida, no texto Perspectivas da diplomacia no terceiro governo Lula, 2023-2026, aponta que há pontos de resgate não só da tradição diplomática brasileira, mas também dos mandatos anteriores do Partido dos Trabalhadores. Entretanto, o embaixador aponta que o afastamento da “diplomacia normal” do Brasil em prol da perspectiva “bolsolavista diplomática” não pode ser descartada das estratégias de retomada. Transferindo o foco do interno para o externo, o texto Mudaria o Natal ou mudei eu?” A volta de Lula em cenário de policrise global, de autoria do embaixador Rubens Ricupero, enfatiza o fato de que presidentes que voltam ao poder após um hiato de afastamento enfrentam desafios grandiosos no processo de entender que condições inéditas exigem adaptações, e que nem todos os remédios do passado podem medicar novas mazelas.

Nessa linha, outros três artigos da seção especial enfatizam áreas que exigem um olhar renovado e apurado. Partindo de um argumento semelhante ao de Maria Regina Soares de Lima sobre a necessidade de ter a ruptura bolsonarista como referencial para a reconstrução, Carlos Milani & Diogo Ives, no texto A política externa brasileira a partir de 2023: a necessidade de uma frente ampla nacional, regional e internacional, analisam discursos proferidos por Lula e identificam a intenção do presidente em construir frente ampla contra a extrema-direita nos âmbitos nacional, regional e global, além de retomar as credenciais do país em uma área no qual os impactos dos últimos anos foram severos: a agenda ambiental-climática.  

No artigo Potencialidades e desafios do novo governo Lula à democratização da política externa brasileira, Marta Fernández & Jéser Abílio exploram os caminhos de outro tema do qual o novo governo não poderá se esquivar: a participação social na construção da política externa brasileira. O tema esteve presente no supracitado discurso de vitória de Lula. Ao falar sobre a retomada do diálogo entre o povo e o governo por meio da reativação de conselhos participativos, o presidente afirmou que “as grandes decisões políticas que impactem as vidas de 215 milhões de brasileiros não serão tomadas em sigilo, na calada da noite, mas após um amplo diálogo com a sociedade” (Lula da Silva 2022). Partindo do argumento de que a política externa é uma política pública, Fernandéz & Abílio apresentam como o debate da participação evoluiu nos últimos governos do Partido dos Trabalhadores e defendem que o processo de democratização deve considerar dinâmicas transversais e transescalares. Como estudo de caso, os autores se debruçam sobre a questão racial e as políticas de combate ao racismo.

Martin Maitino & Kaiutan Silveira mergulham na ideia de que, para a política externa se renovar, o Itamaraty também precisa olhar para dentro. No texto A tradição de se renovar: propostas de reforma do Itamaraty sob Bolsonaro, os autores exploram as propostas de alteração institucional encaminhadas pelo ex-presidente, a reação de ex-ministros e a articulação interna no Ministério das Relações Exteriores para antecipar alternativas para um período pós-Bolsonaro. Como conclusão, os autores apontam a permanência da narrativa de que os diplomatas são os “formuladores naturais” da política externa. Em diálogo com o texto de Fernandéz & Abílio, esse é o principal argumento que costuma ser mobilizado para limitar a participação social na produção da ação internacional do país.

A edição se completa com textos de temas livres, mas ainda assim conectados com o tema da seção especial. Felipe Antunes de Oliveira & Lucas Pavan Lopes resgatam a origem de uma das relações bilaterais mais estratégicas do país: com a Argentina. No texto A Argentina e a independência do Brasil: o reconhecimento tardio de um reconhecimento pioneiro, os autores questionam a narrativa historiográfica consolidada de que os Estados Unidos foram pioneiros no reconhecimento da independência do Brasil e que esse papel, de fato, pertence a nossos vizinhos. Também olhando para trás, mas igualmente identificando os reflexos no presente, o embaixador Fernando de Mello Barreto nos brindou com a resenha de um dos livros mais canônicos da história diplomática brasileira, Navegantes, bandeirantes, diplomatas: um ensaio sobre a formação das fronteiras do Brasil, de Synesio Sampaio Goes Filho. Já Guadalupe González González, Monica Hirst & Eduardo Morrot analisam a interseção de dois eixos centrais da ação diplomática do país: a participação no Conselho de Segurança da ONU e as relações com os demais países latino-americanos. Esse é o tom do texto O Brasil e o México diante da guerra na Ucrânia: um caso de indiferença recíproca, no qual os autores comparam como os dois países se comportaram em relação à agressão russa durante os debates no órgão. 

Um dos grandes diferenciais da CEBRI-Revista é conectar a produção acadêmica com a visão prática da política. Por isso, para além das análises contidas nos textos, perguntamos sobre os rumos da política externa brasileira para quem estará à frente de sua implementação. O ministro Mauro Vieira, novamente na liderança do Ministério das Relações Exteriores, gentilmente compartilhou com os leitores da revista os eixos centrais de atuação da diplomacia brasileira nos próximos quatro anos. O fato de que muitos convergem com as áreas consideradas prioritárias pelos autores dos textos da edição não é mera coincidência, mas, sim, sinal feliz de que podemos esperar que o pragmatismo volte para onde nunca deveria ter saído. 

 

Referências Bibliográficas 

Almeida, Maria Hermínia Tavares de, & Ivan Filipe Fernandes. 2022. “O Brasil e a América do Sul: notas sobre o passado recente”. CEBRI-Revista 1 (1): 130-147. https://cebri.org/revista/br/artigo/18/o-brasil-e-a-america-do-sul-notas-sobre-o-passado-recente

Cardoso, Fernando Henrique. 2022. “Ninguém cresce no isolamento”. Entrevista à CEBRI-Revista. CEBRI-Revista 1 (1): 203-208. Texto. https://cebri.org/revista/br/artigo/22/ninguem-cresce-no-isolamento.

Kalout, Hussein & Feliciano de Sá Guimarães. 2023. “The Restoration of Brazilian Foreign Policy. How Lula Can Make Up for Lost Time”. Foreign Affairs, 15 de março de 2023. https://www.foreignaffairs.com/south-america/restoration-brazilian-foreign-policy

Lula da Silva, Luiz Inácio. 2022. “@LulaOficial: As grandes decisões políticas…”. Post do Twitter, 30 de outubro de 2022, 9:07 PM. https://twitter.com/LulaOficial/status/1586872454726688768?s=20. 

Soares de Lima, M. R., & M. Albuquerque. 2022. “A Foreign Policy Oriented toward Personal Interests: An Analysis of Bolsonaro's Approach to Multilateralism”. Latin American Policy 13: 389– 404. https://doi.org/10.1111/lamp.12275

Soares de Lima, M.R., M. Albuquerque & D. Ives. 2022. “Uma onda verde contra a extrema-direita”. Boletim OPSA 4 (out/dez): 4-7. http://opsa.com.br/wp-content/uploads/2023/03/Boletim_OPSA_2022_n4.pdf.

Teixeira, Izabella, & Ana Toni. 2022. “A crise ambiental-climática e os desafios da contemporaneidade: o Brasil e sua política ambiental”. CEBRI-Revista 1 (1): 71-93. https://cebri.org/revista/br/artigo/21/a-crise-ambiental-climatica-e-os-desafios-da-contemporaneidade-o-brasil-e-sua-politica-ambiental.

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