Copiado!

Seção Especial

A política externa brasileira a partir de 2023

A necessidade de uma frente ampla nacional, regional e internacional

Resumo

Analisam-se três discursos de Lula para identificar as principais diretrizes que pretende conferir à política externa no seu terceiro governo. Destaca-se a intenção de construir uma frente ampla contra a extrema-direita nos âmbitos nacional, regional e global, mobilizando o Brasil na defesa de normas ambientais e climáticas acordadas internacionalmente e no desenvolvimento de uma proposta consensuada de regulação da comunicação virtual. 

Palavras-chave:

política externa brasileira; governo Lula; frente ampla; extrema-direita; ecologia política.
Discurso de posse. Foto: Roque de Sá/Agência Senado

“Uma verdadeira frente ampla contra o autoritarismo” –  foi assim que Luiz Inácio Lula da Silva (2022b, s.p.) classificou a coalizão de forças políticas que o ajudou a conquistar, in extremis, um terceiro mandato de presidente da República, durante seu discurso de diplomação no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em 12 de dezembro de 2022. À época, na qualidade de presidente eleito, Lula especificou que 12 partidos o haviam apoiado no 1º turno da eleição presidencial, aos quais mais dois se somaram no 2º turno e outros, ainda, durante o governo de transição. Além de partidos, Lula frisou que a frente ampla foi composta por “trabalhadores, empresários, artistas, intelectuais, cientistas e lideranças dos mais diversos e combativos movimentos populares” (Ibid.).

Após muitas negociações, no final de dezembro de 2022, Lula nomeou seu ministério, procurando traduzir a ideia de frente ampla na inclusão de atores políticos de diferentes pontos do espectro ideológico e de representantes progressistas e nacionalmente reconhecidos da sociedade civil. Lula decidiu aumentar drasticamente o número de ministérios. Entre 37 pastas (eram 23 no governo anterior), o PT ficou com apenas dez, enquanto outros partidos de esquerda e centro-esquerda somaram sete (PCdoB, PDT, PSB, PSOL e Rede). Além disso, nove ministérios foram dados a partidos que não apoiaram Lula na eleição (MDB, PSD e União Brasil), mas que obtiveram bancadas importantes no Congresso. Por fim, os 11 ministérios restantes ficaram com pessoas sem filiação partidária, inclusive o Itamaraty, a cargo do embaixador Mauro Vieira. Entre critérios técnicos e políticos, Lula também teve de considerar aspectos relacionados à governabilidade (G1 2022).

Símbolos políticos dessa frente ampla incluem Geraldo Alckmin, vice-presidente, ministro de Desenvolvimento, Indústria e Comércio e um dos principais adversários políticos do passado de Lula, quando integrava o PSDB; Simone Tebet, ministra do Planejamento e concorrente na eleição presidencial de 2022 por uma coligação que reunia PSDB, MDB e Cidadania; Marina Silva, ministra do Meio Ambiente e integrante do PT desde a sua origem, mas que havia rompido com Lula e o partido após perder espaço em um de seus governos anteriores; e Sônia Guajajara, ministra dos Povos Originários, liderança indígena e filiada ao PSOL, partido que se recusava a participar de administrações federais do PT por ser uma dissidência deste. O fato de os três primeiros nomes terem um perfil presidencial, por já terem disputado pleitos desse tipo no passado e terminarem relativamente bem colocados, ressalta a disposição de Lula em construir um governo que tenha peso político contra um adversário comum. Ainda nessa lógica, “União e Reconstrução” foi anunciado, em janeiro, como o lema do governo federal para os próximos quatro anos.

Todos esses gestos foram justificados continuamente por Lula como um esforço de combater uma extrema-direita ultraconservadora, ultranacionalista e antidemocrática, que chegou ao comando do Estado brasileiro pela primeira vez, desde o início do processo de redemocratização do país, em 2019, com a liderança de Jair Bolsonaro. Seu projeto de país guiou-se, continuamente, por um desmonte do Estado, da harmonia entre seus três poderes e de políticas públicas de bem-estar social e reconhecimento de minorias, além da adoção de negacionismo climático em meio ao aumento do desmatamento da Amazônia e de desastres ecológicos em outros biomas (Cerrado e Pantanal, por exemplo). Na política externa, o comportamento do Brasil oscilou entre um alinhamento automático ao governo Trump, nos Estados Unidos, durante a primeira metade do mandato, e uma ausência de estratégia clara na segunda metade, após Donald Trump ser substituído por Joe Biden no comando da Casa Branca. Os ataques frequentes a Pequim, às Nações Unidas e seu “globalismo” ou ainda “marxismo cultural”, o abandono de qualquer projeto de liderança regional na América do Sul e nas relações Sul-Sul, entre outros aspectos, foram as marcas do governo Bolsonaro nessa matéria. 

A intenção declarada de Lula de construir um governo que funcione como uma frente ampla contra o autoritarismo bolsonarista exige compreender como isso ocorrerá de fato, no dia a dia. Portanto, cabe a analistas construir hipóteses sobre algo em movimento, desenhar cenários e apontar riscos associados a determinadas trajetórias possíveis.

A intenção declarada de Lula de construir um governo que funcione como uma frente ampla contra o autoritarismo bolsonarista exige compreender como isso ocorrerá de fato, no dia a dia. Portanto, cabe a analistas construir hipóteses sobre algo em movimento, desenhar cenários e apontar riscos associados a determinadas trajetórias possíveis. Abrucio (2022a), por exemplo, sugere que três pactos devem ser estabelecidos e respeitados pelas forças políticas democráticas de diferentes matizes pelos próximos quatro anos: um primeiro pacto para estabelecer canais de diálogo com movimentos sociais de setores diversos, dos progressistas aos conservadores; um segundo pacto para construir uma governabilidade partidária em torno de temas, em vez de bases fixas; e um terceiro pacto para respeitar a autonomia e fomentar acordos tanto entre os três poderes da República, quanto entre União, estados e municípios. Além disso, Abrucio (2022b) entende que, dentro do Executivo federal, a elaboração de políticas públicas requererá maior articulação entre ministérios diferentes, observando lógicas de transversalidade (quando um tema está presente em ações de vários órgãos, como direitos humanos, meio ambiente e clima), imbricamento (quando um tema exige aportes de diferentes órgãos para a elaboração de uma mesma política pública, como o ensino de educação física em escolas) e intersetorialidade (quando um tema requer mais de uma política pública para ser tratado por parte de órgãos distintos, como atenção à primeira infância).

O objetivo de nosso texto é deter-se sobre como o perfil da frente ampla construída pode afetar uma política pública em especial, a política externa, a fim de compreender que conteúdo ela tende a assumir. Na seção a seguir, fazemos uma breve análise comparada de três discursos que Lula enunciou após vencer as eleições de 2022, nos quais elencou prioridades que pretende conferir ao tema: o discurso de vitória em um hotel de São Paulo, em 30 de outubro de 2022; o discurso de diplomação no Tribunal Superior Eleitoral, em 12 de dezembro de 2022; e o discurso de posse no Congresso Nacional, em 1o de janeiro de 2023. A partir desses resultados, na seção posterior, sugerimos uma interpretação teórico-política sobre os rumos da inserção internacional brasileira inicialmente traçados por Lula, em diálogo com debates da ecologia política, posto que chaves analíticas mais tradicionais da política externa, orientadas pelas dicotomias Norte/Sul e Ocidente/resto, mostram-se limitadas, dado que o fenômeno do autoritarismo está presente em todos esses polos atualmente. Por último, as considerações finais expõem reflexões sobre a forma com que a política externa poderia ser conduzida para consolidar-se enquanto produto de um amplo movimento de defesa da democracia. 

AS PRIMEIRAS INTENÇÕES

Quando Lula (2022a, s.p.) fez seu discurso de vitória, na mesma noite do resultado da eleição presidencial, dirigia-se ao vivo e em horário nobre a toda a população brasileira, por meio de rádio, televisão e internet. Após enfatizar, em diversos momentos, que a democracia saía vencedora do pleito, dedicou a parte da sua fala sobre política externa à defesa de um retorno a estratégias do passado, que desfizessem o “triste papel de pária do mundo” que teria predominado durante o governo Bolsonaro. Nessa toada, destacou que “o mundo sente saudades do Brasil”, em especial da postura de “falar de igual para igual com os países mais ricos” e de contribuir “para o desenvolvimento dos países mais pobres”. Em seguida, Lula listou, muito brevemente, as ações a serem reeditadas: cooperação econômica com países africanos, integração regional, retomada da confiança de investimentos estrangeiros, parcerias com Estados Unidos e União Europeia nos termos de um comércio mais justo, reivindicação de reforma do Conselho de Segurança da ONU com fim do direito de veto e combate à fome e à desigualdade no mundo.

Por sua vez, a metade final da seção sobre política externa de seu discurso foi dedicada integralmente a um único tema: a intenção de fazer o Brasil “retomar o seu protagonismo na luta contra a crise climática, protegendo todos os nossos biomas, sobretudo a Floresta Amazônica”. Nesse momento, o então presidente eleito detalhou compromissos: desmatamento zero da Amazônia, maior vigilância sobre crimes ambientais praticados nela (“seja garimpo, mineração, extração de madeira ou ocupação agropecuária indevida”), desenvolvimento sustentável das comunidades que a integram, relação de respeito com povos indígenas, maior proteção da biodiversidade e abertura à cooperação internacional em projetos, investimentos e pesquisas científicas.

Pouco mais de um mês depois, ocorreu a cerimônia de diplomação de Lula e de seu vice-presidente, Geraldo Alckmin, no Tribunal Superior Eleitoral, sem a mesma cobertura midiática do evento anterior. Embora Lula também se dirigisse oficialmente a toda a população brasileira, a ocasião, daquela vez, distinguia-se por ser marcada pela presença, na plateia, das principais autoridades dos três poderes da República. Nesse contexto de maior peso de representantes das instituições do Estado, o discurso de Lula também foi pautado por uma forte defesa da democracia, porém foi menor, em tamanho, e menos abrangente no anúncio das ações de governo que pretendia empreender. Quando abordou a política externa, nenhum dos assuntos aludidos no discurso de vitória foi mencionado, nem mesmo meio ambiente e crise climática. 

Em vez disso, Lula (2022b, s.p.) deu amplo destaque a outro tema: a existência de uma “máquina de ataques à democracia [que] não tem pátria, nem fronteiras”. Destacou que “na América Latina, na Europa e nos Estados Unidos, os inimigos da democracia [...] usam e abusam dos mecanismos de manipulações e mentiras, disponibilizados por plataformas digitais que atuam de maneira gananciosa e absolutamente irresponsável”. No Brasil, essa “indústria de mentiras e calúnias” teria sido responsável por lançar dúvidas sobre as urnas eletrônicas e, como nos outros lugares mencionados, disseminar ataques sistemáticos a instituições e incitar violência política por meio de redes sociais. Posto que transnacional, o combate a esse perigo antidemocrático precisaria “se dar nas trincheiras da governança global, por meio de tecnologias avançadas e de uma legislação internacional mais dura e eficiente”. E concluiu: “Nossa missão é fortalecer a democracia – entre nós, no Brasil, e em nossas relações multilaterais. A importância do Brasil neste cenário global é inegável”.

Finalmente, em seu discurso de posse, em 1º de janeiro de 2023, no plenário da Câmara dos Deputados, Lula dirigia-se a um público que combinava tanto a população brasileira, que assistia à cerimônia por diferentes meios de comunicação, quanto autoridades políticas (nacionais e estrangeiras) presentes no recinto. Nesse contexto, o presidente fez uma síntese entre os dois temas que haviam tido maior destaque nos discursos anteriores. A seção da fala dedicada à política externa começou pontuando que “o mundo espera que o Brasil volte a ser um líder no enfrentamento à crise climática” (Lula da Silva 2023, s.p.). Em seguida, o presidente listou brevemente, mais uma vez, diversas agendas que pretende retomar em relação a seus governos passados – integração sul-americana, diálogo altivo e ativo com atores globais, BRICS, cooperação com os países da África – e voltou a frisar novamente a dimensão ambiental:  

Somos responsáveis pela maior parte da Amazônia e por vastos biomas, grandes aquíferos, jazidas de minérios, petróleo e fontes de energia limpa. Com soberania e responsabilidade, seremos respeitados para compartilhar essa grandeza com a humanidade – solidariamente, jamais com subordinação (Lula da Silva 2023, s.p.). 

Na sequência, Lula (2023, s.p.) encerrou a fala sobre a política externa – que também foi o fechamento do discurso – salientando que os olhos do mundo estiveram voltados para o Brasil na eleição, pois a campanha havia emblematicamente exemplificado o tipo de ameaça que o modelo democrático estava enfrentando no mundo. Nas suas palavras: “ao redor do planeta, articula-se uma onda de extremismo autoritário que dissemina o ódio e a mentira por meios tecnológicos que não se submetem a controles transparentes”. Lula afirmou que defenderia a plena liberdade de expressão, o que requereria a criação de “instâncias democráticas de acesso à informação confiável e de responsabilização dos meios pelos quais o veneno do ódio e da mentira são inoculados”. E concluiu que “este é um desafio civilizatório, da mesma forma que a superação das guerras, da crise climática, da fome e da desigualdade no planeta”. 

COMBATE À EXTREMA-DIREITA COMO PRIORIDADE

Apesar de Lula salientar que pretende retomar diretrizes que marcaram a sua política externa ativa e altiva entre 2003 e 2010 – conduzida então por Celso Amorim, que volta ao novo governo na posição de chefe da Assessoria Especial do Presidente da República –, parece-nos que tais orientações ocuparam um segundo plano nos três discursos que marcaram o início do seu terceiro mandato. Apostas, portanto, que preveem uma política externa que será mera reedição do que foi feito no passado, acreditamos, podem estar equivocadas. Os contextos doméstico e internacional da década de 2020 são bastante diferentes do que marcou o período anterior, e Lula o reconhece claramente. Neste novo cenário, duas ações emergem com ênfase no seu discurso presidencial para a política externa: em primeiro lugar, retomar o protagonismo na construção de normas ambientais e climáticas internacionais e, em segundo lugar, atuar no desenvolvimento de um arcabouço institucional internacional em matéria de comunicação virtual.

Apostas que preveem uma política externa que será mera reedição do que foi feito no passado, acreditamos, podem estar equivocadas. Os contextos doméstico e internacional da década de 2020 são bastante diferentes do que marcou o período anterior, e Lula o reconhece claramente.

Essas duas ações podem ser entendidas como estratégias complementares para uma mesma prioridade, a de combater a extrema-direita brasileira, que teria articulações transnacionais com grupos de mesmo matiz, por meio de medidas domésticas, mas sobretudo – o que aqui nos interessa em especial – usando ferramentas de política externa. Um primeiro movimento necessário para esse enfrentamento foi a retomada do controle do Estado brasileiro por forças democráticas, articuladas em uma frente ampla. A partir disso, Lula promete fazer outros movimentos, que visam a atacar duas bases de sustentação do bolsonarismo: a sua economia política (financiadores e apoiadores que se beneficiaram amplamente do processo de desconstrução das políticas públicas ambientais) e a sua infraestrutura comunicacional (financiamento destinado a bloggers e monetização de mídias digitais ultraconservadoras e antidemocráticas).

A associação que Lula faz entre o protagonismo do Brasil no debate climático global e a necessidade de proteger a Amazônia pode ser compreendida enquanto intenção de reconstruir a legitimidade e a imagem nacional no exterior, explorando aquela que é uma vitrine tradicional do país, conectada estreitamente ao imaginário que estrangeiros têm do Brasil e que lhe dá credencial para se colocar como ator diplomático de relevância na agenda ambiental. Também pode ser entendida como uma estratégia econômica de atrair recursos estrangeiros que, cada vez mais, são mobilizados a partir de critérios de investimento sustentável e que são sensíveis a compromissos do governo com a pauta ambiental. Tais recursos são especialmente preciosos em uma conjuntura econômica de turbulência, alimentada pela pandemia de Covid-19 e pela guerra na Ucrânia, em contraste com a bonança do superciclo de commodities que marcou os dois primeiros governos Lula.

Mas o destaque dado à Amazônia, no âmbito do debate climático, pode ser visto, ainda e talvez sobretudo, como uma intenção de construir uma governança sobre o território amazônico que vigie, puna e inviabilize o enriquecimento ilícito que empresários de parte do agronegócio obtêm por meio de crimes ambientais e do qual se valem para financiar o bolsonarismo. Práticas desse tipo incluem desmatamento para extrair madeira, queimadas para abrir pasto à pecuária extensiva e mineração praticada em terras protegidas, especialmente indígenas. Trata-se de uma prática econômica do tipo jogo de soma zero entre economia e natureza, que permite lucros extraordinários por meio da espoliação pura e simples dos recursos naturais, sem sofisticação intelectual ou quaisquer tipos de investimento científico, sem responder à necessidade de pagamento de impostos ou ainda sem respeitar as leis trabalhistas e de combate contra o trabalho análogo ao da escravidão. As bordas da Amazônia (ou “arco do desmatamento”, que vai do Acre ao Maranhão) são zonas de grande importância nessa estratégia de enriquecimento ilícito, de expansão das redes criminosas e de tráficos de todos os tipos, bem como de destruição da diversidade social e ecológica nos territórios, o que se reverteu em farto apoio eleitoral a Bolsonaro na eleição presidencial de 2022. Ao reforçar o controle do Estado brasileiro sobre a floresta, com ajuda de recursos estrangeiros, o novo governo Lula pode fazer uma contraofensiva a um dos motores da economia política bolsonarista.

Recursos oriundos dessas atividades criminosas são canalizados para a promoção da desinformação ambiental e para a difusão de fake news e discursos de ódio contra a democracia nas redes de comunicação virtual. Plataformas como Facebook, Instagram e Twitter têm diretrizes que informam abertamente que publicações são tão mais difundidas às pessoas quanto mais se pague para tanto. Além disso, nessas plataformas e no YouTube, quanto mais curtidas ou comentários uma publicação ou vídeo recebe, mais sua difusão cresce e aumenta seu potencial para fins de monetização, o que leva pessoas mal-intencionadas a criar bots (ou “robôs”, isto é, perfis falsos) para insuflar tais índices (o que também pode ser feito via contratação de serviços especializados, o que requer financiamento). Esses bots também são capazes de aumentar o compartilhamento de mensagens em aplicativos como Whatsapp e Telegram. Desse modo, cria-se um ecossistema amplo e rápido de compartilhamento de ideias de extrema-direita, que transmite continuamente mensagens de mentira e ódio a um público vasto.

O entrelaçamento entre setores bolsonaristas do agronegócio e a difusão de mensagens de ataque à democracia liberal se mostrou evidente nos atos golpistas e terroristas de 8 de janeiro de 2023, quando uma multidão de milhares de apoiadores do ex-presidente brasileiro invadiu e depredou o Palácio do Planalto, o Congresso Nacional e o Superior Tribunal Federal. Trata-se do maior ataque à democracia brasileira desde o início da redemocratização, em 1985. Dois dias após o ocorrido, o Ministério da Justiça, com base em informações da Polícia Federal, anunciou que pelo menos dez empresários do agronegócio de Goiás, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul estavam entre os principais financiadores de ônibus fretados e acampamentos organizados para transportar e manter os delinquentes em Brasília (Mazzini 2023). Diante desse contexto de eclosão de uma ameaça que estava latente há quatro anos, por instigação contínua de Bolsonaro, tornou-se ainda mais premente a implementação de políticas públicas que impeçam eventos semelhantes no futuro. 

DEFESA DA CONSTITUIÇÃO E SUPERAÇÃO DA CRISE AMBIENTAL

Ao situar a ameaça autoritária, ultraconservadora e negacionista de extrema-direita como a grande preocupação norteadora do seu governo, Lula vincula a política externa a um problema que é, ao mesmo tempo, doméstico e transnacional. Seriam superficiais, de antemão, possíveis interpretações de que isso significaria uma desqualificação da inserção internacional brasileira, pois motivada apenas por um desejo eleitoral de enfraquecer uma força política que disputa votos com o PT. Mais do que uma mera racionalidade eleitoral, o combate à extrema-direita brasileira se enquadra no dever do presidente da República de defender a Constituição Federal, que, no seu artigo 1º, estabelece um Estado Democrático de Direito ancorado, entre outros princípios, na dignidade da pessoa humana, e, no seu artigo 2º, prevê a independência e harmonia dos poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Ambos os artigos são incompatíveis com uma facção que prega constantemente ódio aos direitos humanos (por meio de uma reinterpretação de seus sentidos políticos), insustentabilidade ambiental e desrespeito a quaisquer instituições que signifiquem um contrapeso à vontade do seu líder.

Ao se guiar por um pacto coletivo, como é a Constituição de 1988, a política externa que se anuncia pode ser entendida como uma antítese à política externa dos últimos quatro anos. Conforme explicam Maria Regina Soares de Lima e Marianna Albuquerque (2022), Bolsonaro também conectava o nível doméstico ao externo ao conduzir a inserção internacional do Brasil, porém se movia exclusivamente por um desejo personalista de permanecer no poder. As autoras partem de uma premissa formulada por Joseph Schumpeter para pensar democracias liberais: nelas, o governante almeja ter sempre a maioria dos votos do eleitorado, porém precisa construir bens coletivos para toda a população e não apenas para seus eleitores. Contudo, Bolsonaro não se importaria com o segundo elemento do dilema, necessário para ser considerado um governante democrático: destruía políticas públicas e se orientava tão somente em fidelizar votos de constituencies grandes o suficiente para mantê-lo com sustentação no Congresso e vencer uma possível reeleição, com destaque para empresários do agronegócio, fiéis neopentecostais e agentes de segurança e defesa. Lima e Albuquerque (2022) argumentam que isso se traduzia, na política externa, em posturas pautadas por negacionismo climático, ultraconservadorismo cristão e anticomunismo, especialmente em fóruns multilaterais.

Como lembra Milani (2022), o negacionismo climático pode ser considerado uma ferramenta política, usada nos âmbitos nacional e transnacional, para deslegitimar a ciência, as políticas de regulação (via legislação ou mercado) e as mudanças de padrões de produção, circulação e consumo de bens e serviços na economia capitalista. Implica, ainda, uma ruptura com a racionalidade moderna de separação entre os temas religiosos e científicos, entre as esferas da fé individual e da vida coletiva. Ora, instituir um governo que se pretenda uma frente ampla demarca um contraste radical com esse tipo de racionalidade (bolsonarista), sempre orientada, ademais, pelo sectarismo e pela exclusão de minorias sociais. Na frente ampla, aglutinam-se personalidades com peso político e civil para fazer com que a maior porção possível da população se sinta representada na esfera federal e para que sejam construídos bens coletivos que consigam contemplar, em alguma medida, os interesses diversos. 

Esse esforço democrático e pluralista, entretanto, apenas pode dar certo hoje, quando se olha para além das constituencies domésticas e se busca construir bens coletivos também no plano internacional, a fim de minar a organização reticular e transnacional de uma extrema-direita em diferentes continentes. Esses bens coletivos incluem normas e arcabouços institucionais internacionais nos campos do meio ambiente, clima e comunicação virtual que rejeitam o fundamentalismo de livre mercado defendido por ultraconservadores e libertários que compõem essa extrema-direita. Uma vez que ela se organiza em redes transnacionais presentes tanto em países desenvolvidos, quanto em países da (semi)periferia do sistema-mundo, a aposta em uma política externa que construa uma ampla frente internacional a favor dos valores democráticos pode render muitos frutos regionais e globais para o Brasil em um contexto geopolítico com um número sensivelmente menor de janelas de oportunidade estratégica.  

Nesse cenário, a lente analítica do conflito Norte-Sul é insuficiente para entender o momento da política externa que se vislumbra, uma vez que o perigo bolsonarista está situado no Sul geopolítico, à semelhança de outros países com lideranças de um autoritarismo similar (embora com nuances), no qual se conjugam valores ultraconservadores para costumes e ultraliberais para economia, tais como Nayib Bukele, em El Salvador; Rodrigo Duterte, nas Filipinas; e Narenda Modi, na Índia. Por sua vez, no Norte geopolítico, exemplos incluem Donald Trump, nos Estados Unidos; Viktor Orbán, na Hungria; Andrej Duda, na Polônia; Giorgia Meloni, na Itália; e Benjamin Netanyahu, em Israel. Esse atravessamento do fenômeno entre Norte e Sul não implica deixar de reconhecer que o Norte tem maior capacidade financeira e técnica para influenciar globalmente os movimentos de extrema-direita, porém significa que a posição de um país na divisão internacional do trabalho não é condição suficiente para classificá-lo em um polo do conflito em questão.

Por sua vez, leituras de que o mundo se encaminha para uma segunda Guerra Fria, opondo democracias ocidentais e autocracias orientais (especialmente China e Rússia), baseiam-se em uma chave analítica francamente equivocada, conforme explica Walt (2020). Por mais desglobalização que a pandemia de Covid-19 tenha produzido e por mais fundamental que seja a rivalidade Estados Unidos-China, a interdependência econômica entre Pequim, Bruxelas e Washington segue fundamental para o crescimento dessas economias. Ademais, não há uma dicotomia rígida entre esses polos atualmente, dado que a luta entre forças democráticas e autoritárias inclui países considerados símbolos ocidentais da democracia liberal no pós-Guerra Fria, como Alemanha e França, onde, assim como nos Estados Unidos, a extrema-direita vem crescendo nos últimos anos. Ademais, visões monolíticas sobre a cultura política de países e a divisão do mundo em um choque de civilizações são pouco convincentes. Cabe lembrar que o fascismo, do qual se alimenta em parte a extrema-direita contemporânea, nasceu no Ocidente e é uma corrente da sua cultura política que se mostra resistente ao tempo, convivendo com o conservadorismo, o liberalismo e o socialismo. Hoje, ele se reforça enquanto expressão de um reacionarismo de direita, como afirmam Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro (2022).

Diante dessas limitações conceituais para enquadrar o que pode vir a marcar a inserção internacional do Brasil a partir de 2023, acreditamos ser mais adequado assumir que há coalizões sociopolíticas em disputa hoje, nos planos nacional e internacional. Essas coalizões são integradas por agentes do Estado e da sociedade civil, que servem de base social para modelos de desenvolvimento político e econômico (mas também energético e climático) ancorados em concepções de mundo distintas. Essas coalizões disputam a hegemonia de corações e mentes, construída por meios de coerção e consentimento, nos termos gramscianos. Ao longo do século XX, a teoria crítica avançou e hoje assume que concepções de mundo não se restringem a orientações sobre formas de Estado e conflitos de classe, mas também se referem a estruturas de gênero, raça, sexualidade, relações humano-natureza, entre outros marcadores de identidade e lealdade política. As coalizões sociopolíticas, em suma, disputam políticas de redistribuição e reconhecimento, nos termos conhecidos de Nancy Fraser, mas também procuram se situar em novos vetores das relações entre sociedade, economia e natureza, como lembra Bruno Latour (2020). Portanto, no atual cenário, é imperativo ir além das variáveis “clássicas” e incluir o meio ambiente e o clima como outro eixo de distinção entre coalizões de apoio a modelos de desenvolvimento.

Um novo conceito para pensar esse esforço, preliminarmente, foi enunciado por Marina Silva quando reassumiu o Ministério do Meio Ambiente para integrar o terceiro governo Lula, em 4 de janeiro de 2023. A ministra encerrou seu discurso de posse explicando o que entende pelo adjetivo “sustentabilista”:[1]  

A sustentabilidade não é uma maneira só de fazer. É uma maneira de ser, é uma visão de mundo, é um ideal de vida. Estes novos ideais identificatórios estão tomando conta do mundo. Os nossos filhos, os nossos netos já nascerão sustentabilistas. Uns serão conservadores, outros serão progressistas, uns capitalistas, outros socialistas, mas todos serão sustentabilistas. Porque sem a natureza a gente não vive. Só os negacionistas não reconhecem o imperativo ético desta agenda (UOL 2023, s.p.).

Embora sustentabilidade nos pareça um termo já desgastado e o sufixo “ismo” sugira algo pejorativo, o conceito de sustentabilismo proposto por Marina Silva tem o mérito de conectar identidade à economia política, isto é, subjetividades individuais e coletivas a concepções materiais de desenvolvimento. Além disso, é flexível o suficiente para enquadrar uma coalizão sociopolítica abrangente – como pretende ser uma frente ampla – em torno de uma mesma bandeira, que a diferencia radicalmente da extrema-direita contemporânea. Claro está, porém, que o ganho que o conceito tem em aglutinar atores com ideologias diferentes implica uma dificuldade operacional; afinal, conservadores e progressistas, ou capitalistas e socialistas têm projetos bastante diferentes para a relação entre cultura e natureza e entre o ser humano e o meio ambiente no momento de discutir modelos de desenvolvimento e, ponto ainda mais complexo, os pormenores de uma política pública, por exemplo. 

Contudo, entendemos sustentabilismo aqui como um conceito político, sem pretensão de rigor acadêmico, e pensado para mobilizar atores, tal como é o conceito de desenvolvimento sustentável, criado pela International Union for the Conservation of Nature (IUCN), em 1980, e amplamente difundido pelo Relatório Brundtland da ONU, em 1987, para minimizar desavenças entre países e fazê-los concordar ao menos com um ponto de partida básico: comprometer-se com um desenvolvimento que, ao mesmo tempo, respeite critérios de justiça social, prudência ecológica e progresso econômico, de um lado, e atenda às necessidades da geração atual sem comprometer as necessidades das gerações futuras, de outro. O conceito, objeto de muitos debates nas ciências sociais e humanidades, é de muito difícil operacionalização, pois não apagou pontos de dissenso profundos nos debates ambientais subsequentes dentro da ONU. No entanto, conseguiu servir como um horizonte normatizador para estimular encontros regulares, tratados internacionais e transferências de recursos em seu nome, trazendo à mesa de negociações e debates Estados e governos, corporações e representações empresariais, organizações da sociedade civil e mundo acadêmico. Conseguiu, até hoje, um reformismo lento e conservador, mas contínuo, que disputou o perfil do capitalismo internacional contra forças defensoras de um livre mercado predatório, inclusive durante o auge da globalização comercial e financeira.

Encarar as relações internacionais hoje como estando marcadas por um conflito global entre coalizões sociopolíticas sustentabilistas e negacionistas implica entender que as políticas externas dos países contribuem para situá-las, por intenção ou omissão, em um dos lados dessa balança de poder, com consequências diretas para a construção de alianças que beneficiem ou atrasem seus processos de desenvolvimento. 

Encarar as relações internacionais hoje como estando marcadas por um conflito global entre coalizões sociopolíticas sustentabilistas e negacionistas implica entender que as políticas externas dos países contribuem para situá-las, por intenção ou omissão, em um dos lados dessa balança de poder, com consequências diretas para a construção de alianças que beneficiem ou atrasem seus processos de desenvolvimento. Meio ambiente não é mais um tema exclusivo de sentimentalismo romântico, privilégio dos mais ricos ou de rebeldia hippie. Trata-se de um eixo estratégico e norteador dos rumos da democracia e do desenvolvimento que, hoje, está sendo deliberadamente vinculado à construção de capacidades nacionais de poder. O governo Xi Jinping, ao anunciar o Livro Branco da civilização ecológica chinesa, tem planos declarados de converter a China no principal centro manufatureiro de automóveis elétricos, disputando o controle de um setor que foi estratégico para a ascensão dos Estados Unidos e para o destino de países exportadores de petróleo do Sul. Por sua vez, o governo Biden pretende reimpulsionar a indústria dentro do território estadunidense por meio de um pacote de centenas de bilhões de dólares justificados pela promoção de tecnologia limpa, afastando-se da estratégia neoliberal de priorizar a transferência de fábricas para a periferia global. A Alemanha não fica atrás da disputa e, desde o governo Merkel, planeja converter-se em destino final de uma série de corredores de hidrogênio verde que atravessarão a União Europeia, a fim de reduzir a dependência da sua indústria em relação ao gás da Rússia. Trata-se de poucos exemplos que já implicariam transformações profundas na geopolítica do mundo e em modelos de desenvolvimento energético, tecnológico e econômico.

Entretanto, análises de relações internacionais ainda dialogam menos do que poderiam com a literatura de ecologia política, que já acumula aportes importantes para se entenderem relações de poder atravessadas por problemáticas ambientais. Por exemplo, Keohane (2015) argumenta que a crise ambiental está sendo agravada por um fracasso de instituições nacionais em incorporar adequadamente demandas do plano subnacional, pois se concentrariam na relação com o sistema ONU. Por sua vez, Chakrabarty (2021) prioriza uma análise estrutural, avalia que há uma crise de legitimidade dos valores hegemônicos modernos sobre progresso e desenvolvimento associados ao uso intenso de combustíveis fósseis, ecoa o entendimento de que estamos vivendo na era geológica do Antropoceno (quando o clima passa a ser alterado pelo ser humano) e sugere que as ciências humanas atentem mais para a relação dos seres humanos com espécies não humanas e elementos naturais ao analisarem a história. Por sua vez, Moore (2015) privilegia a economia política, entende que vivemos no Capitaloceno e argumenta que há uma crise do capitalismo enquanto regime de exploração da natureza, que foi crescente ao longo de sucessivos ciclos hegemônicos e que hoje chegou a um limite, pois não conseguiria dar conta de atender à duplicação do proletariado mundial que aconteceu com a abertura das economias da China e da Rússia no pós-Guerra Fria. Como lembra Milani (2022) em policy paper publicado recentemente pelo CEBRI, outras abordagens argumentam, ainda, que a crise ambiental seria um esgotamento do Plantationceno (priorização de latifúndios monocultores na agricultura) e do Faloceno (dominação patriarcal da natureza). O debate é, em resumo, fértil e permite muitas chaves de análise para pensar política, economia e cultura. 

Por sua vez, as forças negacionistas de extrema-direita generalizam todas as nuances da discussão ambiental como sendo parte de uma mesma conspiração comunista global, destinada a minar a liberdade individual. Esses grupos colocam-se, assim, como obstáculos à participação do seu respectivo país na competição do poder internacional, contribuindo para a manutenção ou o aprofundamento de relações de dependência. Combater as fontes de financiamento dessas coalizões e a sua máquina virtual de difusão de mentiras e ódio, por meio de política externa e de outras políticas públicas, significa, pois, defender, para além da manutenção de Estados Democráticos de Direito, projetos de autonomia nacional. Esses não significam mais desenvolvimentismos nos mesmos moldes do século XX, pois a busca por qualificação tecnológica precisa ser conjugada ao problema das mudanças climáticas e à busca por justiça ambiental, que reconhece que os custos da crise ambiental são desiguais dentro de uma nação (e no sistema-mundo) e devem ser reparados em favor dos grupos mais vulneráveis. 

Conforme propôs Ignacy Sachs (1981), é imperativo que hoje se busque um ecodesenvolvimento, isto é, um desenvolvimento prudente ecologicamente (marcado pela solidariedade intergeracional), viável economicamente (que não renega o uso de técnicas avançadas, escolhidas por meio de planejamento participativo) e desejável socialmente (desejo que apenas pode ser expresso em regimes democráticos, com interação entre Estado e sociedade). Sachs (1981) destaca a necessidade de se pensar esse ecodesenvolvimento de forma endógena, a partir das características e capacidades físico-sociais próprias de um país. Para as relações externas, recomenda a priorização de cooperação com regiões de ecossistemas similares, o que significa, para países do Sul, aprofundar ações no eixo Sul-Sul que permitam pensar soluções para problemas ambientais a partir do contexto similar de países em desenvolvimento, reduzindo a dependência de insumos, técnicas, recursos e condicionalidades do Norte. 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quando Lula ocupou a Presidência da República pela primeira vez, a política externa foi fortemente pautada por uma racionalidade econômica. Conforme expressava na Carta ao Povo Brasileiro, Lula (2002) priorizava a superação da crise econômica por que passava o país por meio da construção de uma ampla coalizão suprapartidária, à qual convidava o capital financeiro, industrial e rural a se somar, a fim de reabilitar o Estado como indutor do crescimento e da autonomia nacionais. Nos anos seguintes, a política externa foi mobilizada para ações como articulação do G-20 comercial na Organização Mundial do Comércio, do G-20 financeiro após a eclosão da crise econômica internacional, do BRIC (à época sem a África do Sul), das Cúpulas América do Sul - África e América do Sul - Países Árabes, além da expansão do Mercosul, o que tinha um mesmo sentido de internacionalizar o capitalismo brasileiro, abrir mercados e discutir uma nova geografia comercial do mundo, com mais espaço para países do Sul. Bastante diferente é a racionalidade de uma política externa de um governo de frente ampla contra o autoritarismo e a extrema-direita transnacional, nos termos anunciados por Lula para o seu terceiro mandato. Significaria um capítulo inédito na história da política externa nacional. Embora haja o anúncio da retomada de orientações de política externa do passado, essas implicarão adaptações a um tempo marcado por uma crise da democracia que está intimamente ligada a uma crise socioambiental, causada, por sua vez, em grande medida, por uma crise econômica do capitalismo de livre mercado, que a extrema-direita contemporânea insiste em radicalizar ainda mais, em direção a menos regulações, planejamento e diálogo, alimentando um ciclo vicioso. Repensar a economia internacional ainda é primordial, com vistas a avançarem modelos de justiça ambiental e climática, bem-estar social e fim das disparidades entre Norte e Sul, mas isso exigirá ir além do foco em comércio e finanças.

Contrapor-se ao conjunto de crises atuais exige uma composição de forças democráticas que, hoje, podem ser entendidas como uma coalizão necessariamente sustentabilista. Reconhecemos que o campo sustentabilista brasileiro é caracterizado por uma espécie de bifurcação na agenda climática: uma vertente se inclina a uma abordagem mais pragmática, focada na redução de emissões de gases de efeito estufa por meio de eficiência energética e inovações tecnológicas, enquanto outra vertente defende a necessidade de se repensarem os modelos de desenvolvimento integrando centralmente a dimensão socioambiental e climática. Somos ambos analistas que abraçamos a segunda corrente, por acreditarmos que há uma crise ambiental que tem a ver, sobretudo, com modos de produção, relações de poder, injustiça socioambiental, economia fóssil e padrões energéticos, bem como economia política internacional.

Mas a conjuntura atual não permite sectarismos. É fundamental que a direita conservadora tenha espaço de diálogo à esquerda, para que não se radicalize em direção ao fascismo, como costuma acontecer no Brasil (e em outros lugares) quando sente que o capitalismo está sob ameaça, mesmo que de modo ilusório. O mesmo desafio se aplica à esquerda, que precisa, em alguns aspectos, recentrar suas estratégias de desenvolvimento com o objetivo de construir essa frente ampla, nacional e transnacionalmente. Essa é a importância maior de se manter e se desenvolver uma frente ampla pelos próximos quatro anos, quando deve aumentar, presumivelmente, a difusão virtual de mensagens fantasiosas de que o país vive um regime comunista, a fim de converter conservadores em reacionários. 

Além da máquina de mentiras, haverá atores relevantes tentando minar o projeto de frente ampla. O Congresso Nacional seguirá tendo uma maioria conservadora no novo mandato de Lula, com parcelas importantes de deputados e senadores bolsonaristas, além de amplo espaço para parte da banca ruralista dificultar respostas ao negacionismo climático. Além disso, ainda não está clara a posição que militares assumirão diante do novo governo, posto que tiveram uma presença sem precedentes na administração federal durante o governo Bolsonaro, mostraram-se ainda guiados por doutrinas anticomunistas ultrapassadas da Guerra Fria e não contiveram o avanço do enriquecimento ilícito na Amazônia, mesmo com a decretação de Operações de Garantia da Lei e da Ordem para, oficialmente, conter o desmatamento da floresta entre 2019 e 2021.

Por enquanto, o novo governo já soma gestos importantes na política externa, para confrontar interesses econômicos do bolsonarismo a partir da perspectiva ambiental. Na qualidade de presidente eleito, Lula compareceu à COP-27, no Egito, em novembro de 2022, quando ressaltou o apoio do Brasil ao regime climático internacional e anunciou a intenção de realizar a COP-30 no país. Uma vez empossado o novo governo, Marina Silva e Fernando Haddad, ministro da Fazenda, compareceram ao Fórum Econômico de Davos, em janeiro de 2023, para atrair financiamentos e investimentos estrangeiros ao Brasil, inclusive com vistas a recapitalizar o Fundo Amazônia, paralisado durante o governo Bolsonaro.

Outras medidas que o governo poderia avançar incluem: articular a ratificação, no Congresso, do Acordo de Escazú, formulado no âmbito da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) e assinado pelo Brasil em 2018, que prevê acesso à informação, participação pública e acesso à Justiça em assuntos ambientais na América Latina e no Caribe; revitalizar a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA) e avançar uma governança pan-amazônica de múltiplas escalas, envolvendo diferentes níveis do Estado, sociedade civil e parceiros globais; reconstruir a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e dotá-la de uma comissão especialmente voltada para a dimensão ambiental, além de aumentar o espaço dessa agenda no Mercosul e na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC), nos quais estratégias coletivas sobre petróleo, lítio e outras fontes de energia podem ser debatidas; buscar compromissos com Estados Unidos e China para usar as fábricas de automóveis instaladas no Brasil para produzir veículos elétricos e avançar a cooperação em energia solar, eólica e de hidrogênio verde, com atenção para locais de produção no Nordeste (Pecém/CE, Suape/PE e Camaçari/BA); ampliar financiamentos de projetos ambientais para países pobres por meio do Banco dos BRICS; e renegociar o acordo comercial entre Mercosul e União Europeia, a fim de dificultar o comércio de produtos de origem ilícita e reivindicar acesso a tecnologias verdes que impulsionem uma industrialização sustentável no Brasil (Abdenur et al. 2022).

No que se refere ao combate da desinformação, uma possibilidade para o futuro governo brasileiro é olhar para a União Europeia, que atualmente avança a regulação de empresas transnacionais de comunicação virtual (Digital Markets Act e Digital Services Act), tentando se afastar do fundamentalismo de mercado dos Estados Unidos, mas sem incorrer em censuras da internet pelo Estado, como na China e na Rússia. Além disso, buscar a cooperação dos Estados Unidos será fundamental, já que se trata da sede das big techs que operam os principais sistemas por onde circulam as mensagens de mentira e ódio. Regionalizar uma estratégia por meio da Organização dos Estados Americanos (OEA), valendo-se da Corte e da Comissão de Direitos Humanos, é um caminho possível.

Complementarmente a esses esforços, para além de uma lógica transversal entre ministérios, o fortalecimento da dimensão participativa na construção da política externa brasileira se faz mais necessário do que nunca. A política participativa é prevista pela Constituição de 1988, combinada à dimensão representativa. Em 2014, o governo Dilma propôs a criação de uma Política Nacional de Participação Social e de um Sistema Nacional de Participação Social, porém as propostas foram derrotadas no Congresso, em um momento no qual a crise política que culminaria no controverso impeachment de 2016 já se anunciava. Retomar esse debate, especificamente para a política externa, implicaria voltarmos a debater a abertura do Itamaraty a uma maior participação social. Em 2014, pesquisadoras e pesquisadores de Relações Internacionais propuseram a criação de um Conselho de Política Externa Brasileira (CONPEB), que serviria de espaço para se debater a inserção internacional do país e ajudar a consolidar um Livro Branco de Política Externa. Hoje, um órgão desse tipo poderia servir, também, como fonte de pressão para dificultar a volta de forças políticas autoritárias ao comando do Estado brasileiro. 

Nota

[1] A transcrição oficial do discurso não contém este trecho, conforme consta em Brasil (2023). 

Referências Bibliográficas

Abdenur, Adriana; Teixeira, Izabella; Wagner, Jacques; Abramovay, Pedro. 2022. Clima e estratégia internacional: novos rumos para o Brasil. Plataforma Cipó. https://climainternacional.plataformacipo.org/wp-content/uploads/2022/11/Clima-e-estrategia-internacional-COP27.pdf 

Abrucio, Fernando. 2022a. “Frente ampla: da eleição ao governo”. Valor Econômico, 3 de novembro de 2022. https://valor.globo.com/eu-e/coluna/fernando-abrucio-frente-ampla-da-eleicao-ao-governo.ghtml 

Abrucio, Fernando. 2022b. “Como reconstruir as políticas públicas”. Valor Econômico, 2 de dezembro de 2022. https://valor.globo.com/eu-e/coluna/fernando-abrucio-como-reconstruir-as-politicas-publicas.ghtml 

Brasil. 2023. “Discurso da ministra do Meio Ambiente e Mudança do Clima, Marina Silva”. GOV.br, 4 de janeiro de 2023. https://www.gov.br/pt-br/noticias/meio-ambiente-e-clima/2023/01/discurso-da-ministra-do-meio-ambiente-e-mudanca-do-clima-marina-silva 

Chakrabarty, Dipesh. 2021. The Climate of History in a Planetary Age. Chicago: University Press. 

China. 2023. China’s Green Development in the New Era. The State Council Information Office of the People’s Republic of China, Beijing, Xinhua. 

G1. 2022. “Governo Lula terá 9 partidos e 11 ministros sem atuação partidária nos 37 ministérios; veja divisão”. G1, 29 de dezembro de 2022. https://g1.globo.com/politica/noticia/2022/12/29/governo-lula-tera-nove-partidos-em-37-ministerios-veja-distribuicao-por-siglas.ghtml. 

Moore, Jason. 2015. Capitalism in the Web of Life: Ecology and the Accumulation of Capital. Londres: Verso Books. 

Keohane, Robert. 2015. “The Global Politics of Climate Change: Challenge for Political Science”. PS: Political Science & Politics 48 (1): 19–26. https://doi.org/10.1017/S1049096514001541 

Latour, Bruno. 2020. Onde aterrar? Como se orientar politicamente no Antropoceno. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo. 

Lima, Maria Regina Soares de; Albuquerque, Marianna. 2022. “A Foreign Policy Oriented Toward Personal Interests: an Analysis of Bolsonaro’s Approach to Multilateralism”. Latin American Policy 13 (2): 389-404. https://doi.org/10.1111/lamp.12275 

Lula da Silva, Luiz Inácio. 2002. “Carta ao povo brasileiro”. Fundação Perseu Abramo, 22 de junho de 2022. https://fpabramo.org.br/wp-content/uploads/2010/02/cartaaopovobrasileiro.pdf 

Lula da Silva, Luiz Inácio. 2022a. “Discurso de Lula após vitória nas eleições”. G1, 31 de outubro de 2022. https://g1.globo.com/politica/eleicoes/2022/noticia/2022/10/31/leia-e-veja-a-integra-dos-discursos-de-lula-apos-vitoria-nas-eleicoes.ghtml. 

Lula da Silva, Luiz Inácio. 2022b. “Discurso do presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, na diplomação”. Gabinete de Transição, 12 de dezembro de 2022. https://gabinetedatransicao.com.br/noticias/discurso-do-presidente-eleito-luiz-inacio-lula-da-silva-na-diplomacao/. 

Lula da Silva, Luiz Inácio. 2023. “Discurso do presidente Lula no Congresso Nacional”. Gabinete de Transição, 1º de janeiro de 2023. https://gabinetedatransicao.com.br/noticias/discurso-do-presidente-lula-no-congresso-nacional/. 

Lynch, Christian; Cassimiro, Paulo Henrique. 2022. O populismo reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo: Contracorrente. 

Mazzini, Leandro. 2023. “PF identifica fazendeiros como financiadores e grupo contrata advogados a peso de ouro”. Isto É, 11 de janeiro de 2023. https://istoe.com.br/pf-identifica-fazendeiros-como-financiadores-e-grupo-contrata-advogados-a-peso-de-ouro/ 

Milani, Carlos R. S. 2022. “Negacionismo climático”. In Dicionário dos negacionismos no Brasil, organizado por José Szwako & José Luiz Ratton. Recife: CEPE Editora. 

Milani, Carlos R. S. 2022. Antropoceno como conceito e diagnóstico: implicações para o multilateralismo e na perspectiva do Brasil. Coleção Policy Papers 4/4. Rio de Janeiro: CEBRI e KAS. https://cebri.org/media/documentos/arquivos/Papers_KAS2021_PT_CarlosMilani.pdf

Sachs, Ignacy. 1981. “Ecodesarrollo: concepto, aplicación, beneficios y riesgos”. Agricultura y Sociedad 18: 9-32. https://www.mapa.gob.es/ministerio/pags/biblioteca/revistas/pdf_ays/a018_01.pdf

UOL. 2023. “Posse de Marina Silva ao vivo: acompanhe a cerimônia de posse da ministra do Meio Ambiente.” Vídeo do YouTube, 1:14:01. Transmitido ao vivo em 4 de janeiro de 2023. https://www.youtube.com/watch?v=4ozKwl9StkA

Walt, Stephen. 2020. “Everyone Misunderstands the Reason for the U.S.-China Cold War.” Foreign Policy, 30 de junho de 2020. https://foreignpolicy.com/2020/06/30/china-united-states-new-cold-war-foreign-policy/.

Recebido: 25 de janeiro de 2023

Aceito para publicação: 2 de fevereiro de 2023

PUBLICAES RELACIONADAS