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Seção Especial

Perspectivas da diplomacia no terceiro governo Lula, 2023-2026

Os grandes temas para a política externa do país

Resumo

Considerações sobre os desenvolvimentos prováveis em alguns dos grandes temas da política externa do governo Lula no período 2023-2026, com base nos precedentes da diplomacia presidencial do período 2003-2010, levando em consideração o difícil legado do governo anterior, que conduziu o Brasil a grande isolamento internacional. Atenção especial é devotada aos desafios da paz e segurança mundiais (guerra da Ucrânia), ao multilateralismo econômico e à integração regional, além da recuperação de terreno na agenda ambiental.

Palavras-chave:

política externa brasileira; governo Lula 2023-2026; diplomacia presidencial; cenário internacional divisivo.
Hall de entrada do interior do Palácio Itamaraty. Brasília, Distrito Federal, Brasil. Fonte: Shutterstock.

 

Existem conhecimentos conhecidos. Estas são aquelas coisas que sabemos que sabemos. Existem desconhecimentos conhecidos. Isto quer dizer, existem coisas que sabemos que não sabemos. Mas também existem os desconhecimentos desconhecidos. Estas são coisas que nós não sabemos que não sabemos. 

– Donald Rumsfeld, secretário da Defesa do governo de George Bush, em fevereiro de 2002, antes da invasão do Iraque.

 

O ponto de partida da diplomacia do terceiro governo Lula não poderia ser menos auspicioso: o país acaba de dar por encerrado, pelo menos no calendário e no capital humano encarregado do setor, à mais formidável e bizarra ruptura de padrões diplomáticos e de política externa de toda a história nacional. Com efeito, nunca antes na história do Brasil, como gostaria de dizer o próprio presidente eleito pela terceira vez em outubro de 2022 – e empossado em um dos mais conturbados processos de transição presidencial de todo o período republicano –, se tinha assistido a tal fenômeno disruptivo da diplomacia brasileira ao longo de um itinerário de dois séculos. 

O fenômeno tristemente chamado de “bolsolavismo diplomático” constituiu, em primeiro lugar, um experimento inusitado de destruição das próprias bases conceituais das relações exteriores nacionais por um pequeno grupo de amadores motivados, mas sem qualquer conhecimento de relações internacionais ou da diplomacia brasileira. Ele foi estimulado e animado por teorias conspiratórias da direita americana, adaptadas ao contexto brasileiro por um polemista expatriado nos Estados Unidos, Olavo de Carvalho (Guimarães et al 2023). Esse polemista se encarregou de disseminar entre civis e militares a paranoia do comunismo, tendo como principal foco o Foro de São Paulo, o pequeno Cominform cubano inaugurado em 1990 pelo PT na capital paulista, congregando partidos de esquerda da América Latina.

Mas o “bolsolavismo diplomático” também representou uma espécie de desvio padrão nas bases operacionais da diplomacia profissional, reduzida a mero apêndice dessa pequena tribo de aloprados em matéria de política internacional, que também foi chamada, pelo embaixador Rubens Ricupero, de “franja lunática”. A clara recusa, por exemplo, da ferramenta multilateral, identificada a um nefando “globalismo”, estava situada a anos-luz de distância dos padrões normais de trabalho da diplomacia profissional. É certo que a demolição das bases conceituais e operacionais da diplomacia brasileira foi parcialmente minimizada a meio do caminho, a partir de abril de 2021, com a substituição do primeiro chanceler designado – um mero serviçal daquela tribo de amadores –, mas o trabalho de desmantelamento deixou marcas profundas na imagem internacional do Brasil, no relacionamento bilateral com os principais parceiros do país, no trabalho dos diplomatas profissionais junto às organizações multilaterais e no trato com os vizinhos regionais.

Para se ter uma ideia textual da distância entre a “diplomacia normal” do Brasil, ao longo das últimas três gerações, e a diplomacia bizarra do governo Bolsonaro, entre 2019 e 2022, seria útil conferir todos os discursos pronunciados pelos representantes do Brasil – chanceleres, delegados em Nova York, eventualmente os próprios presidentes – a cada sessão de abertura dos debates na Assembleia Geral das Nações Unidas a partir de 1946, e confrontar não só o estilo, mas sobretudo o conteúdo de cada um desses pronunciamentos com aqueles que foram feitos no último quadriênio. Em face da avaliação ponderada da agenda internacional, tal como refletida no espelho da diplomacia profissional naquele longo período, as intervenções de Bolsonaro soam como uma espécie de “patinho feio”, ou até um ornitorrinco, no ninho de uma política externa conhecida por seu profissionalismo e sentido dos interesses nacionais, a cada momento, ou conjuntura, do cenário internacional. Novamente, a sensação parece ser a de “anos-luz” de distância entre as dezenas de discursos anteriores a 2019 e o amontoado de ideias confusas entre 2019 e o “ano horrível” de 2022: na linguagem popular, a diferença vai do vinho para a água, não potável no segundo caso.

Em que pesem, igualmente, pequenas rupturas e diferenças de ênfase na política externa do Brasil ao longo período que se estende de 1946 em diante – evolução brevemente retraçada em Almeida (2022a) para o período posterior à redemocratização –, esses discursos ofereciam uma síntese do pensamento oficial do Brasil sobre o estado das relações internacionais na conjuntura em questão e alguma perspectiva futura segundo as aspirações de sua diplomacia, em uma notável continuidade de temas, agendas e prioridades das relações exteriores do Brasil. Tais discursos, com breves notas introdutórias a cada um deles, podem ser lidos na coletânea em três edições organizada pelo embaixador Luiz Felipe de Seixas Corrêa (2011), disponível na Biblioteca Digital da FUNAG. Já os “discursos” de Bolsonaro, tratando essencialmente da política interna do Brasil e sua prioridade na luta contra o “comunismo”, podem ser encontrados, não mais no site da Presidência da República ou no do Itamaraty, mas na página oficial da Empresa Brasileira de Comunicações e outros veículos de mídia (v. Agência Brasil 2020; UOL 2022; Verdélio 2019; 2021). O contraste é realmente gritante e se supõe que uma nova edição daquela coletânea organizada pelo embaixador Seixas Corrêa teria imensas dificuldades para concatenar ideias e linhas básicas da política externa para esse período do bolsonarismo ativo; se por acaso a FUNAG for encomendar uma nova edição, caberia talvez abrir uma seção distinta das demais, uma espécie de parêntese conceitual, tentando explicar da melhor forma como foi possível ter discursos tão bizarros dentro da série histórica mais representativa da diplomacia brasileira.

Finalmente, para encerrar esta breve menção à “herança” recebida pelo novo governo na área da política externa, seria útil consultar o relatório final do Gabinete de Transição Governamental, apresentado em 23 de dezembro de 2022, que, ademais do exame de cada um dos balanços efetuados nas diferentes esferas da ação governamental, contém uma breve seção dedicada às Relações Exteriores, na qual se pode ler o seguinte:

A combinação entre o desmonte de políticas públicas, em nível interno, e o predomínio de visão isolacionista do mundo, no nível externo, afetou a imagem do país e prejudicou a capacidade brasileiras de influir sobre temas da agenda global.

Ao assumir posturas negacionistas, o Brasil perdeu protagonismo em temas ambientais, desafiou esforços de combate à pandemia e promoveu visão dos direitos humanos inconsistente com sua ordem jurídica. Na América Latina, tornou-se fator de instabilidade. A política africana foi abandonada e pouca atenção foi dada às comunidades brasileiras no exeterior (Gabinete de Transição 2022, 50). 

AS PRINCIPAIS DIRETRIZES DIPLOMÁTICAS DO GOVERNO QUE SE INICIA

Não se poderia esperar, naturalmente, que o discurso de posse do presidente Lula, efetuado em 1º de janeiro de 2023 no Congresso Nacional, fosse abundante em digressões sobre a sua política externa, além das generalidades esperadas. No entanto, ele é revelador do espírito geral que deve presidir às grandes orientações do governo na área internacional. Assim, a despeito de dizer que o Brasil “pode e deve figurar na primeira linha da economia global”, Lula não deixa de recorrer ao velho nacionalismo protecionista do seu partido:

O Brasil é grande demais para renunciar a seu potencial produtivo. Não faz sentido importar combustíveis, fertilizantes, plataformas de petróleo, microprocessadores, aeronaves e satélites. Temos capacidade técnica, capitais e mercado em grau suficiente para retomar a industrialização e a oferta de serviços em nível competitivo (Agência Brasil 2023).

Mais especificamente em relação à política externa, Lula colocou a questão do ponto de vista da imagem do Brasil no mundo, assim como enfatizou suas novas (várias antigas) prioridades na frente diplomática:  

Os olhos do mundo estiveram voltados para o Brasil nestas eleições. O mundo espera que o Brasil volte a ser um líder no enfrentamento à crise climática e um exemplo de país social e ambientalmente responsável, capaz de promover o crescimento econômico com distribuição de renda, combater a fome e a pobreza, dentro do processo democrático.

Nosso protagonismo se concretizará pela retomada da integração sul-americana, a partir do Mercosul, da revitalização da UNASUL e demais instâncias de articulação soberana da região. Sobre esta base poderemos reconstruir o diálogo altivo e ativo com os Estados Unidos, a Comunidade Europeia, a China, os países do Oriente e outros atores globais, fortalecendo os BRICS, a cooperação com os países da África e rompendo o isolamento a que o país foi relegado (Agência Brasil 2023).

Mais extenso e detalhado nessa área foi, obviamente, o discurso de posse do novo (também antigo) chanceler, ainda que muito abrangente na cobertura dos grandes temas da agenda externa e, ao mesmo tempo, generalista demais, por se estender de maneira necessariamente vaga sobre as múltiplas fontes de trabalho da diplomacia. O teor do pronunciamento de Mauro Vieira – que passou completamente ao largo das “realizações” ou “fracassos” da diplomacia imediatamente anterior – pode ser conferido, em texto e em vídeo, no site do Ministério das Relações Exteriores (MRE), mas, para conceder ao menos o benefício de uma defesa da diplomacia conduzida durante dois anos pelo colega que encerrava seu mandato, valeria igualmente conferir o discurso de despedida do ex-chanceler Carlos França (Poder360 2023). Tanto um quanto o outro foram basicamente canônicos em seus respectivos pronunciamentos, apresentando o déjà vu habitual nesse tipo de ocasião cerimoniosa; em outros termos, ambos fizeram uma defesa da política externa ideal do ponto de vista da burocracia corporativa.

QUAL FERRAMENTA DIPLOMÁTICA PARA O NOVO GOVERNO?

O que mudou, ou o que volta, no Itamaraty em fase de reconstrução, para servir ao terceiro mandato de Lula em suas ambiciosas propostas nas diferentes áreas do governo, tais como expostas em seu discurso de posse? Certamente o retorno ao multilateralismo como instrumento fundamental da atuação diplomática, mas também ao regionalismo, como eixo central do espaço de atuação do Itamaraty no imediato entorno geográfico – ao lado de grandes temas da agenda global, como a ênfase na diplomacia ambiental, nos direitos humanos, em especial nas questões relativas a minorias, com foco, basicamente, na luta contra a pobreza, no Brasil e no mundo, como compete a um governo alegadamente progressista de esquerda. À diferença da primeira experiência do PT no poder, o assessor presidencial para assuntos internacionais será um diplomata profissional, não mais um apparatchik do partido – Celso Amorim, chanceler nos dois primeiros mandatos de Lula e que depois serviu ao governo Dilma Rousseff como ministro da Defesa, e que continuou assessorando o partido e Lula, especial e diretamente como conselheiro diplomático, durante todo o período subsequente.

A nova estrutura do Ministério das Relações Exteriores foi anunciada em documento divulgado pela CGU em 23 de janeiro de 2023, cobrindo obviamente toda a nova arquitetura governamental, sendo que a parte relativa ao MRE já tinha sido objeto de decreto do novo governo na própria data de sua assunção. Em síntese, segundo esse documento:  

A organização das secretarias se mantém por regiões (América, Europa, Ásia e Áfricas), o que será indispensável para a retomada das relações do governo com países que perderam contato diplomático no governo anterior. Além disso, a secretaria de Clima, Energia e Meio Ambiente vem como um diferencial doque estava sendo feito pelo último governo. A pauta ambiental será restaurada e, com isso, o país voltará a participar de acordos e discussões sobre o assunto. A estrutura do ministério foi consideravelmente alterada. O órgão agora conta com uma maior organização em pastas, sendo seis delas para atuação dirta ao lado do Chanceler (assessorias especiais, secretaria de controle interno e consultoria jurídica). O Instituto Rio Branco fica classificado como órgão vinculado à Secretaria-Geral. Mais seis secretarias foram criadas para assuntos específicos, e o ministério deve contas com unidades descentralizadas e no exterior (Brasil 2023, 57-59).

Em sua estrutura básica, o MRE atuará com base nas seguintes grandes unidades: Secretaria de Clima, Energia e Meio Ambiente; Secretaria de Assuntos Multilaterais Políticos; Secretaria de Assuntos Econômicos e Financeiros; Secretaria de Promoção Comercial, Ciência, Tecnologia e Inovação e Cultura; Secretaria de Europa e América do Norte; Secretaria de Ásia e Pacífico; Secretaria de África e Oriente Médio; Secretaria de América Latina e Caribe; Secretaria de Gestão Administrativa; Secretaria de Comunidades Brasileiras e Assuntos Consulares e Jurídicos. Além dessas secretarias, dirigidas por embaixadores experientes, uma série de coordenadorias assegurarão a interdisciplinaridade para os assuntos transversais. 

RETORNO À DIPLOMACIA PRESIDENCIAL, COM MAIOR DOMÍNIO DOS TEMAS PELO PRÓPRIO LULA

Como já ficou bastante claro pelo ativismo do próprio primeiro mandatário, mais do que anúncios formais de políticas oficiais, as grandes linhas da nova política externa (várias retomadas das duas gestões anteriores) serão determinadas pelas ações e decisões pessoais do presidente Lula, o que não exclui algum grau de impulsividade não planejada e de eventuais iniciativas intempestivas, como no caso do confuso anúncio de uma “moeda comum” entre Brasil e Argentina, depois estendida ao Mercosul e aos próprios BRICS, o que evidentemente despertou mais calor do que luz na mídia nacional e internacional. Todas as viagens internacionais do presidente – e elas serão muitas, praticamente uma por mês, segundo anunciado pelo próprio – podem ser marcadas por anúncios “surpreendentes”, iniciativas que tendem a atrair a atenção do mundo para o chamado “retorno do Brasil”, ademais de agradar à sua clientela habitual, à comunidade acadêmica e aos meios progressistas da região e do mundo em especial. 

Destaques previsíveis para a agenda imediata serão a organização de reunião do G20 no Brasil (segundo a rotatividade já estabelecida), assim como a possível participação de Lula no próximo encontro do G7, como já se tinha tornado um hábito nas ocasiões anteriores (mas apenas na sessão da “sobremesa”, de contatos com diferentes países convidados). O ativismo do presidente eleito na área externa já tinha ficado claro desde o período de transição, quando, a convite do foro de governadores da região amazônica, Lula participou da COP-27, realizada no Egito, ocasião na qual aventou a realização da futura COP-30 no Brasil, mais especificamente na própria região amazônica. 

Há três frentes de destaque no futuro imediato do presidente: a reforma do Mercosul, que será um dos temas mais difíceis do seu terceiro mandato, dados os desacordos internos sobre a Tarifa Externa Comum e novos acordos comerciais com parceiros demandantes; o término – ou seja, ratificação e entrada em vigor – do acordo Mercosul-EU, paralisado desde a sua assinatura, em função da antipolítica de destruição ambiental do governo Bolsonaro; e a reunião do G20 e a próxima cúpula dos BRICS, desta vez organizada pela África do Sul, cuja agenda, já anunciada, pretende discutir a controversa ideia de uma “moeda comum” ao grupo, o que foi ruidosamente apoiado pelo chanceler da Rússia em viagem ao continente africano. Em síntese, não faltarão oportunidades para o presidente incrementar sua agenda de viagens e de visitas, já iniciadas em contato direto com os líderes da Argentina, da Alemanha, dos Estados Unidos e da França, com muitos outros no pipeline da diplomacia presidencial.

O GRANDE TEMA DA REENTRADA DO BRASIL NO CIRCUITO MULTILATERAL: O MEIO AMBIENTE

Não será difícil retomar as posturas já assumidas nos dois primeiros mandatos, antes do desmantelamento deliberado de toda a política ambiental por Bolsonaro e seus asseclas do setor com o apoio entusiasta de madeireiros, grileiros, garimpeiros e outros partícipes do festim da destruição dos recursos naturais. O desafio maior, contudo, parece ser a assunção de novos desafios nas políticas concretas de sustentabilidade no plano interno, sobretudo a redução imediata dos níveis excepcionais de devastação florestal praticados pelo antecessor, assim como a adoção de novos compromissos de redução dos gases de efeito estufa em um momento de crise energética em nível mundial. Não foi por outro motivo, comprovado por estatísticas estarrecedoras de aumento generalizado dos índices de desmatamento, que o Brasil ficou isolado no plano externo, justificando o epíteto de “pária internacional”.

O trabalho mais urgente parece ser a elaboração dos projetos nacionais de sequestro de carbono, que representam a efetivação dos mecanismos existentes de mercado na área da sustentabilidade. O anúncio, feito no período de transição, da designação de uma espécie de “comissário geral” da sustentabilidade brasileira para contatos e ativismo internacional – a exemplo do papel do ex-secretário de Estado dos EUA John Kerry nessa função – pode ainda ser concretizado na prática, com o que o governo Lula adquirirá maior visibilidade mundial nessa temática crucial, pelo menos em termos de imagem do Brasil em face dos interlocutores multilaterais e bilaterais. Trata-se, provavelmente, da expectativa mais precisa da transição esperada pelo resto do mundo no tocante à ação do novo governo, da qual dependem, entre outros aspectos, a retomada do processo de ratificação do acordo entre o Mercosul e a União Europeia (UE), acessão na Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e a própria agenda ambiental multilateral.

O Itamaraty está plenamente capacitado – como já esteve anteriormente ao período sombrio do governo passado no domínio ambiental – para exercer a coordenação prática da atuação do governo nessa área, o que implicará igualmente a incorporação ativa de outras esferas na temática, como agricultura, ciência e tecnologia, povos “originários” – a nova designação oficial para assuntos indígenas – e, principalmente, as ONGs ambientais. As expectativas, sobretudo europeias e americanas, são bastante altas nesse terreno, o que vai exigir mais recursos humanos e capacidade organizadora do ministério nos próximos anos.

A QUESTÃO MAIS DIFÍCIL: O DEBATE SOBRE A PAZ E A SEGURANÇA INTERNACIONAL

A relativa convergência na globalização e o convívio amigável entre as grandes potências, que podiam valer superficialmente quando Lula assumiu pela primeira vez em 2003, já não existem mais, estilhaçados pela guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia – na verdade, desde 2014, com a invasão da Crimeia. Esse primeiro teste de Putin sobre a capacidade de reação do chamado Ocidente ao expansionismo regressista do neoczar já era visivelmente contrário à Carta da ONU e aos acordos que consolidaram a nova cartografia na Europa Central e Oriental, mas a invasão foi desprezada por Dilma como “coisa interna” à Ucrânia, em um primeiro distanciamento da diplomacia brasileira do Direito Internacional.

Esse cenário de deterioração das relações internacionais, no campo da paz e da segurança mundial, foi agravado, sobretudo, pela definição da China como “adversário estratégico” dos EUA, possivelmente o maior equívoco cometido pelo Grande Hegemon no último meio século, ou seja, desde o início dos anos 1970, quando a superpotência ocidental patrocinou a reincorporação da então China maoísta ao convívio internacional (inaugurando uma fase de aliança tácita, ou informal, contra o “inimigo” comum, a União Soviética). Tal situação de ruptura no estado normal de relações usualmente antagônicas entre as grandes potências nucleares foi extraordinariamente dramatizado pelo anúncio de uma “aliança sem limites” entre a Rússia de Putin e a China de Xi, em fevereiro de 2022, pouco antes da invasão à Ucrânia. Agressão que foi repetidamente e publicamente anunciada pelo presidente Joe Biden nas semanas e meses anteriores e que se tratou, provavelmente, do primeiro conflito importante objeto de alertas constantes por parte de um chefe de Estado relevante nas relações internacionais, desvendando dados sensíveis coletados pela inteligência.

A invasão ocorreu, como alertado pelo presidente americano, mas a etapa ulterior foi sensivelmente diferente da relativa indiferença em relação à invasão e anexação ilegal da Crimeia em 2014: o assim chamado “Ocidente” – EUA e seus aliados da OTAN, com destaque para os principais membros da UE, países da Europa Central e Oriental à frente – deu início a uma decisiva e corajosa campanha de sanções econômicas contra a Rússia e passou imediatamente a apoiar militarmente a Ucrânia em ações de defesa. Os impactos imediatos do abalo geopolítico no coração da Europa não atingiram diretamente o Brasil, país relativamente excêntrico – como de resto a maior parte da América Latina – dos cenários de conflitos globais, a não ser por seus inevitáveis efeitos econômicos e comerciais. O mais relevante para o Brasil, assim como para a grande maioria dos países periféricos, são as consequências econômicas, ligadas ou não a maior conflito militar envolvendo uma grande potência desde a Segunda Guerra Mundial: a guerra de agressão da Rússia representou, do ponto de vista da matriz energética mundial, um choque quase tão grande – talvez até mais profundo pelos seus efeitos residuais contínuos – quanto o primeiro choque do petróleo, conduzido pelo cartel da Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP) em dezembro de 1973. Até mais do que isso, pois que a guerra afetou outros mercados igualmente, como o de fertilizantes e o de grãos, em geral, assim como o setor de transportes, prolongando impactos que já vinham desde a pandemia da Covid-19, especialmente nos países em desenvolvimento. 

Sem pretender abordar possíveis cenários geopolíticos em torno desse conflito, caberia afirmar que o acirramento de posições entre os quatro grandes atores envolvidos coloca o Brasil em face de desafios diplomáticos que atingem diretamente sua tradicional postura de plena e irresoluta defesa de sua autonomia na política externa, mas que é, desta vez, afetada por uma decisão tomada entre o primeiro e o segundo mandato de Lula, qual seja, a criação do BRIC, de 2006 a 2009, seguida de sua conformação ampliada com a adjunção da África do Sul – por vontade da China – em 2011, com o novo acrônimo de BRICS. Esse é, possivelmente, o grande dilema da diplomacia lulista no horizonte imediato, uma vez que o presidente não parece avaliar adequadamente a hipoteca representada pelas duas grandes autocracias aliadas em face das relações tradicionais do Brasil com os principais parceiros do “Ocidente” (Almeida 2022b)

A grande questão parece ser a de saber se o acatamento do Direito Internacional, base da política externa desde o início do século XX, continuará sendo o fio condutor da diplomacia, em face de tentações reformistas da “ordem mundial” que tanto o líder brasileiro quanto, sobretudo, aqueles dois gigantes da Eurásia parecem ter estabelecido como objetivo viável (para eles) de mudança no atual sistema de poder (bruto e soft).

A grande questão parece ser a de saber se o acatamento do Direito Internacional, base da política externa desde o início do século XX (Barão do Rio Branco, Rui Barbosa, Oswaldo Aranha, San Tiago Dantas, entre outros), continuará sendo o fio condutor da diplomacia, em face de tentações reformistas da “ordem mundial” que tanto o líder brasileiro quanto, sobretudo, aqueles dois gigantes da Eurásia parecem ter estabelecido como objetivo viável (para eles) de mudança no atual sistema de poder (bruto e soft). Não se trata tanto de um debate teórico sobre a possibilidade (ou não) de uma nova arquitetura mundial, vagamente identificada com uma “multipolaridade” indefinida, mas de posturas concretas, conectadas ao próprio espírito e à letra da Carta da ONU e às normas mais elementares do Direito Internacional, várias das quais, aliás, inseridas em nossa própria Constituição, nas cláusulas de relações internacionais do Artigo 4.

O LADO MAIS EMBLEMÁTICO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA: O MULTILATERALISMO ECONÔMICO

A economia mundial vive atualmente uma fase de alta de juros e de disseminação da inflação, o que não se via desde os impactos dos dois choques do petróleo dos anos 1970-1980, quando se conheceu um fenômeno inédito até então, a estagflação, a alta de preços com estagnação da produção. As condições econômicas prevalecentes em 2023, com uma recessão perfilando no horizonte, são sensivelmente diferentes daquelas conhecidas pelo presidente Lula em 2003, quando, depois dos ajustes feitos após os choques financeiros da segunda metade dos anos 1990 – que atingiram basicamente países em desenvolvimento na Ásia e na América Latina, ademais da Rússia –, o mundo entrava em um ritmo de crescimento nunca mais conhecido depois dos choques do petróleo. O Brasil, beneficiado pelo aumento significativo de suas principais commodities exportadas – agrícolas e minerais – pôde elevar sua taxa média de crescimento anual durante todo o primeiro mandato de Lula e metade do segundo, tendo sido alcançado por uma minirrecessão em 2009, o que foi compensado por um crescimento quase “chinês” de 7,5% no ano seguinte (aliás, eleitoral).

A despeito do nível ainda relativamente elevado dos preços internacionais das matérias-primas, o decréscimo de crescimento nos principais mercados mundiais – países do G7 e na China – junto com a elevação dos juros básicos pelos bancos centrais representam um fator negativo para a dinâmica econômica brasileira. Esse fator contrasta com a grande bonança trazida pela demanda expressiva, proveniente sobretudo da China, que se tornou, ao final do seu mandato, o principal parceiro comercial do Brasil, suplantando a marca secular exibida pelos Estados Unidos durante mais de um século. Em 2023, o turnover do comércio bilateral Brasil-China é mais do que o dobro do realizado com os dois mais importantes parceiros comerciais seguintes, os Estados Unidos e a União Europeia.

Desde Bretton Woods, o Brasil tem sido um ativo participante da construção da ordem econômica global (embora com poder decisório muito relativo), mas sempre com propostas diferenciadas em direção dos países em desenvolvimento, a bandeira principal de sua diplomacia econômica multilateral, no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), desde 1948, e na Organização Mundial do Comércio (OMC), a partir de 1994. Com o ativismo diplomático do Brasil, foi possível lograr-se o fim parcial do princípio da reciprocidade, o que foi obtido em 1964 com a reforma do GATT e o início da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento e, mais adiante, com a consolidação do princípio do tratamento especial e mais favorável para países em desenvolvimento. O tratamento diferencial (responsabilidades compartilhadas, mas diferenciadas) constitui o eixo central das demandas brasileiras em diferentes foros, inclusive nos temas ambientais.

O egoísmo comercial americano – desde antes do governo Trump, que agravou um processo de desmantelamento do sistema multilateral de comércio já em curso, no que ele se beneficiou da submissão bolsonarista – turvou a necessária reforma desse sistema, o que requer uma nova postura do Brasil naquele que sempre foi o seu principal campo de atuação multilateral. A postura que o Brasil adotará nesse quesito vai afetar inclusive os destinos do Mercosul e sua inserção global, o que precisaria ser esclarecido a partir de agora, quando o bloco do Cone Sul apresenta tensões internas em função de objetivos não exatamente compartilhados por todos os sócios (Florencio 2023). O principal desafio à formulação de uma postura resoluta em favor de reformas no sistema multilateral de comércio parece ser o temor das elites econômicas – confederações empresariais e associações setoriais – em face dos desafios que se colocam no esforço requerido para uma necessária inserção econômica mundial do Brasil e do bloco do Cone Sul, pois é evidente que o país e o Mercosul situam-se, atualmente, amplamente à margem das cadeias globais de valor, a principal característica da economia mundial no século XXI.

A LIDERANÇA DO BRASIL NA CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO ECONÔMICO INTEGRADO NA REGIÃO

A América do Sul é a circunstância incontornável da diplomacia brasileira, e nela o Mercosul – uma derivação ampliada do projeto original de integração bilateral Brasil-Argentina – deveria ser a alavanca principal de formação de um espaço econômico integrado em nível continental, o que, três décadas depois de sua criação, não se confirmou sequer no mais prosaico nível interno aos quatro membros originais. As razões dessa incapacidade de se conformar sequer uma união aduaneira respeitável, aos olhos dos mecanismos da OMC de avaliação dos acordos regionais, não são difíceis de desvendar: a despeito da retórica exibida, as políticas econômicas domésticas do Brasil e da Argentina têm sido consistentemente anti-integracionistas na política comercial, nos modelos de tributação, nas políticas nacionais específicas para a indústria, para os serviços, para a agricultura, em suma, para a famosa convergência de políticas macroeconômicas e setoriais.

A partir da crise de 1999 do regime de conversão argentino, o Mercosul nunca mais concentrou esforços na “limpeza de terreno” no que forma o cerne de seu projeto original e objetivos declarados, que seria o caminho para o mercado comum, adotando, a partir dos anos 2000, uma nítida ênfase política, em lugar da necessária concentração nas metas de abertura econômica e de liberalização comercial (interna e externa). A adesão política da Venezuela ao Mercosul em 2012, por exemplo, foi um erro da maior gravidade, assim como a incorporação “flexível” da Bolívia e do Equador (não acabadas), em detrimento da necessária coesão interna em torno dos requerimentos estatutários do Artigo 1º do Tratado de Assunção. A despeito de um novo clima de entendimentos entre os seus dois membros principais, não parece haver condições de avançar decisivamente na superação dos atuais entraves a uma maior inserção do Mercosul não apenas na economia global, mas na simples coordenação econômica regional, com vistas a fazer avançar o caminho que seria o da sua vocação natural: ser o eixo da integração econômica sul-americana.

Ainda que o termo liderança seja uma espécie de tabu diplomático em um continente sempre cioso das soberanias nacionais, parece inegável que caberia ao Brasil tomar a frente de um processo de convergência gradual em direção a esse objetivo maior. 

Ainda que o termo liderança seja uma espécie de tabu diplomático em um continente sempre cioso das soberanias nacionais, parece inegável que caberia ao Brasil tomar a frente de um processo de convergência gradual em direção a esse objetivo maior. A via dos acordos “minilateralistas” da ALADI parece ser muito modesta para realizar esse projeto ambicioso da integração regional, tanto a física, quanto a econômico-comercial, como vislumbrado anteriormente no projeto da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sulamericana (IIRSA), lançado por FHC em 2000, quanto na natimorta ALCSA – o proposto (pelo Brasil) acordo de livre comércio da América do Sul, estrangulado na origem pelo projeto americano da ALCA, depois implodida pelo próprio Brasil de Lula 1, acompanhado de seus companheiros Néstor Kirchner, da Argentina, e Hugo Chávez, da Venezuela –, ou ainda a retomada dos objetivos da vertente da infraestrutura da antiga União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), cujo renascimento em boas condições ainda parece duvidoso. Projetos diplomáticos brasileiros nessa direção seriam positivos, mas o afastamento voluntário a que o país foi conduzido pela sua própria antidiplomacia presidencial, nos últimos anos, torna mais difícil esse empreendimento, uma vez que, no intervalo, os demais países foram adotando soluções ad hoc, alguns de maneira conjunta – como no caso da Aliança do Pacífico –, outros de forma individual. 

O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) não seria suficiente para a empreitada, nem seria desejável que ele fosse acionado exclusivamente como financiador de obras de grande porte na região, ou tampouco o Fundo para a Convergência Estrutural do Mercosul (FOCEM), no âmbito do Mercosul, uma tentativa de fazer do Brasil uma espécie de Alemanha para a consecução do duvidoso objetivo de “superação de assimetrias” no bloco. Um mínimo de coordenação multilateral entre governos e agências de fomento recomendaria ser melhor, e mais factível e necessário tecnicamente, associar entidades como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e o Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) em um novo redesenho do antigo projeto da IIRSA, ou seja, um novo plano de investimentos físicos, com discussão aberta sobre eventuais mudanças nos marcos regulatórios dos diversos países interessados nesse tipo de grande empreendimento. A China decidiu empreender por si própria a sua nova Rota da Seda, mas ela está mais bem ajustada aos requerimentos de conexões relevantes na Ásia Central e do Sul do que a continentes distantes, a despeito de ofertas tentadoras feitas na própria região da América do Sul.

Por outro lado, a reconstrução da UNASUL e um novo ativismo do Brasil na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) não ajudariam muito, pois que a retórica, nesses grandes organismos de consulta e coordenação, tende a ultrapassar as realizações concretas de projetos bem concebidos com base em um perfeito conhecimento do terreno por órgãos já dotados de ampla experiência na seleção de projetos, nos estudos de factibilidade e no próprio financiamento a longo prazo.

BILATERALISMO ATIVO SIGNIFICA TER “RELAÇÕES ESTRATÉGICAS” COM TODOS?

A progressiva facilitação e intensificação dos contatos diretos entre líderes políticos estimulou certa banalização das “relações estratégicas” entre Estados exibindo entre si certo nível de relações políticas, comerciais e de cooperação em diversos domínios, daí esse upgrade conceitual no plano bilateral. Tal elevação é uma espécie de derivação da conhecida ironia orwelliana, segundo a qual “todas as nações são iguais, mas algumas são mais iguais do que outras”. O Brasil não ficou imune a essa tendência nos últimos anos, e as iniciativas não são exclusivamente decorrentes de um desejo exclusivo de sua diplomacia, mas também podem incorporar a vontade de alguns grandes parceiros de consolidar laços comerciais, ou atender às suas considerações próprias, de natureza política global.

Tais “amizades” bilaterais – que também se manifestam em determinados grupos ou associações de países “like-minded”, como os BRICS – precisariam, contudo, guardar certa coerência entre si. Por exemplo, a preeminência bilateral da China na balança comercial não deveria tolher a importância dos bons laços que o Brasil sempre manteve com os países da Europa ocidental e com os EUA, inclusive e principalmente no terreno dos valores e princípios, tal como defendidos por sua diplomacia ao longo das mais diversas orientações de política externa que buscaram preservar a autonomia da nação na definição dessas “relações estratégicas” – como tem sido o caso desde a era do Barão. A única grande ruptura com tal postura foi justamente representada pela diplomacia bolsonarista recém-encerrada, cuja diretiva principal, ainda antes de seu início, foi uma estreita aliança com os Estados Unidos, na verdade, uma vergonhosa submissão do presidente Bolsonaro ao então presidente Donald (“I love you”) Trump. 

O atual governo de Lula 3 já afirmou, claramente, desejar a volta da “diplomacia ativa e altiva” dos primeiros mandatos, ou seja, manter laços de cooperação, de estreita amizade e, por coincidência, “relações estratégicas” com diversos grandes parceiros, não apenas aqueles tradicionais em nossa história das relações exteriores, mas também alguns mais recentemente adquiridos. Na perspectiva, justamente, dos princípios e valores da sua diplomacia tradicional, de defesa da Carta da ONU, das normas mais elementares do Direito Internacional, assim como da promoção da democracia e dos direitos humanos, surgem dúvidas quanto à orientação de “tratar com carinho” ditaduras reconhecidas como Cuba e Venezuela (incluindo talvez a Nicarágua), assim como compreendem-se mal as hesitações no caso da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, um caso típico de violência de grande potência contra um vizinho mais fraco. Mesmo o Estado Novo não reconheceu as usurpações nazistas contra vizinhos invadidos, sem qualquer provocação, ou a violenta incorporação stalinista dos três Estados bálticos à União Soviética (com os quais relações diplomáticas foram mantidas até o início dos anos 1960).

No plano mais conceitual, de definição das grandes orientações da nova política externa, que recolhe quase todas as opções da antiga, não se pode deixar de reconhecer que a própria noção de um “Sul Global” nega o universalismo e o ecumenismo sempre exibidos pela política externa desde muitas décadas e tende a eternizar uma divisão classista que não condiz com a pretensão do Brasil a ser uma potência regional com interesses globais. Tal incongruência não deixa de ser um anacronismo em tempos de globalização e parte da noção equivocada de que esse tal de Sul Global – cujos contornos são diáfanos, a menos de englobar todos aqueles que não ingressaram na OCDE (mas vários já o fizeram) – teria objetivos semelhantes ou similares em suas respectivas agendas, em um confronto imaginado com um “Norte” pretensamente hegemônico, mas também indefinido quanto aos seus objetivos globais. 

O mesmo se poderia aplicar ao conceito de “multipolaridade”, tão frequentemente citado como objetivo da antiga e da nova política externa, começando pelo fato de que essa expressão, em sua dimensão concreta, não parte dos desejos expressos de quaisquer grandes e médias potências, mas depende de itinerários desiguais de desenvolvimento econômico, cuja expressão material mais evidente é a capacitação primária em “projeção de poder”, ou seja, dotação em fatores concretos de poderio bélico, financeiro, tecnológico e comercial, que não podem ser alterados no simples jogo da diplomacia. Associada a essa noção vem a aspiração, ainda mais difusa, quanto à construção de uma “nova ordem mundial”, tanto política quanto econômica, que seria uma das consequências da tal de “multipolaridade”, aplicada, por exemplo, à reforma da Carta da ONU e à inclusão de novos membros em seu Conselho de Segurança. A justificativa é normalmente apresentada como sendo a necessária “democratização das relações internacionais”, passando por cima do fato de que ela representaria, tão somente, a ampliação parcial – e limitada, ou seja, sem direito de veto – da “oligarquia” que hoje preside à formulação e implementação da agenda global. 

Em que medida “relações estratégicas” com “gregos e troianos” (...) servem da maneira mais adequada aos interesses nacionais do Brasil, pela via de uma “neutralidade” que é, ao que parece, partilhada pelo “resto do mundo”, inclusive dois parceiros dos BRICS?

Em que medida “relações estratégicas” com “gregos e troianos” – no momento em que se aprofunda uma aparente fissura entre, de um lado, o bloco que alguns chamam depreciativamente de “Ocidente” e, de outro, os contestadores de sua hegemonia sobre os assuntos do mundo, isto é, as duas grandes autocracias da Eurásia – servem da maneira mais adequada aos interesses nacionais do Brasil, pela via de uma “neutralidade” que é, ao que parece, partilhada pelo “resto do mundo”, inclusive dois parceiros dos BRICS? A diplomacia brasileira tem se esmerado, desde o início da guerra de agressão da Rússia contra a Ucrânia, em fevereiro de 2022, em manter uma alegada postura de “equilíbrio” na votação de decisões dos principais órgãos da ONU, o Conselho de Segurança, a própria Assembleia Geral e o Conselho de Direitos Humanos, condenando a invasão, apelando a uma solução pacífica do conflito – como se ele fosse recíproco e proclamado segundo as leis da guerra –, mas se negando a aplicar sanções contra a Rússia (como feito pelo “Ocidente”) ou fornecer armas ou outros equipamentos de defesa à Ucrânia. 

As “relações estratégicas” no âmbito dos BRICS, não apenas no tocante à Rússia – grande fornecedora de fertilizantes ao Brasil –, mas especialmente em relação à China, bem mais “solidária” à Rússia do que tinha proclamado, de maneira inconsequente, o presidente Bolsonaro em sua inoportuna visita a Putin pouco antes da “operação militar especial”, têm um grande peso, no momento atual, na postura de neutralidade do Brasil em face de um dos mais graves conflitos desde o final da Segunda Guerra, embora por motivos diferentes daqueles do governo anterior. Os próximos meses, com o provável aprofundamento da guerra, testarão a postura da diplomacia lulopetista, inclusive na medida em que os crimes de guerra das forças russas na Ucrânia entrarem com maior ênfase na agenda das principais organizações onusianas, sem esquecer que o próprio Putin pode ser acusado de crime contra a paz. Que tipo de relação poderia Lula manter com o dirigente russo no caso do previsto agravamento da situação humanitária geral na Ucrânia, país com o qual o Brasil mantém relações diplomáticas normais, mas para o qual o atual governo já se recusou a vender equipamentos bélicos defensivos? Essa questão permanece em aberto e constituirá, junto com a reforma do Mercosul, um dos temas mais sensíveis e complexos não só para a política externa do governo, mas para a própria diplomacia do presidente Lula.

ONDE FOI PARAR O “LIVRO BRANCO” DA POLÍTICA EXTERNA? QUE TAL RESGATÁ-LO? 

No início de 2014, ou seja, ainda no curso do primeiro mandato de Dilma Rousseff, o Itamaraty, por iniciativa do então chanceler Mauro Vieira, tomou a iniciativa de efetuar um exercício de reflexão a propósito de diversos temas de relações exteriores, selecionados e realizados no quadro de uma série de encontros, os Diálogos de Política Externa, congregando diplomatas, funcionários públicos, acadêmicos, representantes do mundo empresarial e da chamada sociedade civil. As reflexões e sugestões registradas nesses encontros foram transcritas e serviram de elementos constitutivos para um Livro Branco da Política Externa, que chegou a ser composto em meados de 2014, mas, por decisão nunca devidamente explicada, foi colocado na gaveta e nunca liberado publicamente. Dentre os vários temas de política externa examinados exaustivamente figuravam, entre outros: o Brasil, a América do Sul e a integração regional; as relações do Brasil com países desenvolvidos; a diplomacia Sul-Sul; o Oriente Médio; bem como, um tema caro à diplomacia do PT, as perspectivas da nova governança mundial e os desafios que daí decorreriam para o Brasil. 

Cabe lamentar que esse “Livro Branco” da diplomacia brasileira não tenha sido divulgado, pois que ele poderia ter ajudado na formulação e execução da diplomacia do segundo governo Dilma Rousseff, ainda que efêmero (e dominado por questões mais prosaicas de administração financeira). Mas se tratou de um exercício válido, ainda que marcado, naquela época, pela diplomacia partidária que ele deveria sustentar, e que poderia ser retomado pelo mesmo chanceler, mesmo se em novas bases, ou seja, um governo que se apresenta como de coalizão (mas com a política externa estreitamente vigiada pelo PT). Ele serviria, assim como documentos similares da área militar – tratando de defesa e segurança do Brasil –, para efetuar um mapeamento detalhado de todas as áreas de trabalho da diplomacia brasileira e para levantar todas as questões que exigiriam um tratamento especial da diplomacia profissional, em conjunção com outras agências do governo, com instituições públicas, com a academia e ONGs setoriais. Não se trata, exatamente, de definir uma “grande estratégia diplomática” para o Brasil – a exemplo de alguns exercícios feitos em determinados países, seja na área acadêmica, ou mesmo no âmbito oficial. Um subsídio documental dessa qualidade, preparado a partir de contribuições da sociedade e das esferas governamentais, seria muito útil para colocar a política externa em novas bases, efetivamente nacionais, emergindo de um exercício democrático de consulta ampla aos diferentes atores que interagem com o governo no âmbito das relações exteriores.

O presidente, qualquer presidente, não precisa ser um especialista em política externa – salvo se ele sair dessa corporação ou, sendo “paisano”, tiver grande intimidade com a área, como já foi o caso no Brasil – e pode, teoricamente, ser levado a certa impulsividade em iniciativas de grande escopo, em frentes de trabalho ainda não suficientemente identificadas pela diplomacia profissional ou não examinadas detidamente pela tecnocracia de outras áreas do governo.

Um novo ciclo de “diálogos sobre a política externa” e um eventual Livro Branco daí resultante teriam um mérito adicional: o de limitar os perigos do excesso de diplomacia presidencial, que é sempre um problema, como sabem os especialistas. O presidente, qualquer presidente, não precisa ser um especialista em política externa – salvo se ele sair dessa corporação ou, sendo “paisano”, tiver grande intimidade com a área, como já foi o caso no Brasil – e pode, teoricamente, ser levado a certa impulsividade em iniciativas de grande escopo, em frentes de trabalho ainda não suficientemente identificadas pela diplomacia profissional ou não examinadas detidamente pela tecnocracia de outras áreas do governo. O mesmo – ou seja, iniciativas de projetos externos dotados de certa atratividade “popular”, mas carentes de embasamento técnico – pode ocorrer no caso de um chanceler político, mas ele estará estreitamente cercado pelos profissionais da diplomacia, que saberão guiá-lo no formato e no conteúdo apropriados à memória da diplomacia e adequados aos demais compromissos externos do país. Um exercício desse tipo pode servir, igualmente, para lançar projetos de grande escopo que, justamente, podem servir aos objetivos talvez grandiosos da diplomacia presidencial, mas já dotados de um mínimo de consistência analítica, de factibilidade operacional e de coerência com as demais prioridades da nova política externa e da própria política geral do governo.

Uma avaliação preliminar das condições sob as quais se exercerá a nova política externa permitiria constatar que os grandes desafios ao Brasil no plano externo não derivam, finalmente, de um cenário internacional mais ou menos favorável às pretensões brasileiras, mas sobretudo de uma adequada preparação no plano interno e de um enfrentamento realista e corajoso dos principais problemas na frente doméstica. Como no campo da política ambiental, por exemplo, ou ainda em diversos outros temas sensíveis de direitos humanos, de combate às desigualdades e à discriminação – de natureza racial, étnica, de gênero, ou qualquer outra –, o trabalho principal a ser feito é o próprio dever de casa. Mas, mesmo nos temas tipicamente “diplomáticos” – como o Mercosul; a integração regional na América do Sul; a extensa geografia do Itamaraty no campo da emigração e dos expatriados; e também as relações com a China e com os demais parceiros preeminentes na área externa, sejam os BRICS ou a UNASUL e demais esquemas regionais e a eventual acessão na OCDE –, muito do trabalho a ser conduzido pelos diplomatas depende, basicamente, de uma preparação interna nas demais esferas de governo (política aduaneira, tributação, normas técnicas e medidas regulatórias de maneira geral).

Existem ainda muitos imponderáveis quanto ao desenvolvimento efetivo da política externa do Brasil sob Lula 3, que só o tempo poderá desvelar. Ela parece refletir algumas das características da “diplomacia ativa e altiva” do período anterior, mas passou agora a confrontar novos contextos, nos planos regional e mundial, significativamente mudados em relação aos que vigoravam ao início dos anos 2000. A tendência de muitos analistas – tanto jornalistas quanto acadêmicos – pode ser a de utilizar certos paradigmas do período anterior para avaliar a política externa dos próximos anos à luz da diplomacia presidencial conduzida de 2003 a 2010, o que se pode revelar frustrante, não exatamente em função da postura do presidente, mas mais exatamente em virtude de um cenário internacional ainda em mutação. Parafraseando a confusa frase do ex-secretário da Defesa americano em 2002, pode-se estar em um ambiente de “conhecimentos desconhecidos”; surpresas certamente advirão nas novas condições da política internacional nesta terceira década do século XXI. 

Brasília, 8 de fevereiro de 2023.

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Recebido: 9 de fevereiro de 2023

Aceito para publicação: 17 de fevereiro de 2023

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