A longa e lenta construção de uma política externa autônoma sob o regime militar
De todas as políticas públicas definidas e implementadas durante o regime militar de 1964 a 1985, a política externa foi, possivelmente, a que menos rupturas sofreu na transição da ditadura para a democracia naquele último ano. Tal se deveu por uma série de razões, não todas de ordem política, ou ideológica, uma vez que já havia uma longa tradição de trabalho conjunto entre o ministério das Relações Exteriores e as Forças Armadas desde o período da guerra do Paraguai, cooperação bastante reforçada durante a era do Barão e em períodos especiais, como nos dois conflitos globais da primeira metade do século XX e durante a bipolaridade do pós-Segunda Guerra. A diplomacia profissional incorporou naturalmente a visão tecnocrática e nacionalista do estamento militar, e até reforçou os fundamentos de uma diplomacia do desenvolvimento que foi quase a “ideologia oficial” do Itamaraty a partir do Estado Novo até praticamente a atualidade.
Não obstante a paranoia anticomunista e as obsessões típicas da Guerra Fria, nos anos 1950 e início dos 1960, os diplomatas se tornaram bem mais progressistas e alternativos do que os militares, ao flertar com o não-alinhamento e ao receberem entusiasticamente os conceitos introduzidos pela Política Externa Independente (PEI), ainda antes que ela fosse conhecida sob essa designação, já na proposta da Operação Pan-Americana feita na segunda metade do governo Juscelino Kubitschek. A descolonização, as promessas da détente e até a defesa de uma posição juridicamente sólida por ocasião da conferência de Punta del Este (1962; quando os americanos pressionaram pela expulsão de Cuba da OEA - Organização dos Estados Americanos) foram muito bem acolhidas pelos jovens diplomatas, que logo se viram frustrados com o golpe e o início de um regime que declarou pertencer à “civilização ocidental e cristã”, como mote para alinhar o Brasil às posições americanas durante uma primeira (e curta) fase.
A primeira grande ruptura com os padrões normalmente pouco ideológicos, e basicamente desenvolvimentistas, da política externa dos anos 1951-1964 foi justamente a “diplomacia dos círculos concêntricos” anunciada pelo general Castelo Branco, o primeiro presidente da ditadura, aos formandos do Instituto Rio Branco em 1964. Pouco a pouco, porém, esse “desvio” de posturas mais independentes foi sendo corrigido e restaurado já no segundo general-presidente, quando voltam, praticamente, os fundamentos básicos da PEI, ainda que obviamente sem o nome: não aceitação do Tratado de Não Proliferação Nuclear, postura reivindicatória nas conferências da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e em outras reuniões negociadoras da ONU, quanto começou o alegado (pelos americanos) “terceiro-mundismo” do Itamaraty na defesa de teses que não coincidiam em quase nada com a visão do mundo de Washington.
Já no quarto presidente do ciclo ditatorial – não obstante uma espécie de “diplomacia blindada” em direção de regimes esquerdistas na América do Sul, a exemplo do apoio dado em 1973 ao golpe do general Pinochet no Chile e os entendimentos com militares linha dura na Argentina, Uruguai e Bolívia –, a “continuidade” com a linha de autonomia na política externa se completa, com o estabelecimento de relações diplomáticas com a China comunista e o reconhecimento do novos regimes saídos das independências das ex-colônias lusófonas africanas. A convergência de militares e diplomatas se fundava na confiança mútua, tanto que três diplomatas se sucederam à frente do Itamaraty, a partir do terceiro presidente militar, sem mencionar algumas “missões” menos prestigiosas, como a vigilância dos militantes exilados de esquerda no exterior. Para o resto, a política externa era praticamente aquela determinada pelo Itamaraty, com as poucas exceções dos temas-tabu da era militar (Cuba, ameaças de cooperação externa com as guerrilhas no país, enfim, o comunismo mundial).
Assim que, ao ter início a “Nova República” não se pode falar propriamente em ruptura de padrões diplomáticos, ou sequer de política externa, que continuou a seguir os cânones daquele momento: multilateralismo, desenvolvimentismo, unctadianismo, defesa do acesso às tecnologias e aos mercados dos países do Norte, adesão à Nova Ordem Econômica Internacional, enfim, todos os temas reivindicatórios do G77 e do Grupo Latino-Americano (como as teses do Consenso de Cartagena sobre a renegociação da dívida externa da região).
Poucas descontinuidades na política externa e na diplomacia da Nova República
Os princípios básicos e as grandes diretrizes de política externa estabelecidos no governo Sarney, com grande continuidade com o que já vinha sendo feito na última década do regime anterior, permaneceram praticamente intactos nas décadas seguintes, a não ser pelo aprofundamento de tendências já presentes anteriormente – como a integração regional e a prioridade nas relações com os países vizinhos –, a “ideologia desenvolvimentista”, a ativa participação nos foros econômicos negociadores – sobretudo em comércio e finanças internacionais –, a insistência no desarmamento, mas com novas posturas em relação a temas que possuíam “peculiaridades” sob os governos militares: direitos humanos e meio ambiente, sobretudo. O segundo governo da era democrática, o de Fernando Collor, inova em diversos terrenos de importância substantiva, como o grande impulso dado à integração no Cone Sul – com uma visão bem mais aberta do que o tradicional dirigismo econômico seguido até então – e, sobretudo, a atualização da “diplomacia ambiental” brasileira, com o acolhimento da segunda Conferência sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, no Rio de Janeiro em 1992. A questão nuclear também avança, tanto na frente interna – inclusive por dispositivos inscritos na Constituição de 1988 –, quanto na externa, na construção de confiança com os argentinos, na plena entrada em vigor do Tratado de Tlatelolco (de não introdução de armas nucleares na América Latina), na constituição da Abacc (a agência binacional argentino-brasileira de contabilidade e controle de material nuclear) e no tratado quadripartite entre essa agência, os dois países e a Agência Internacional de Energia Atômica.
Em direitos humanos e em temas sociais, livres dos constrangimentos existentes no período ditatorial, os diplomatas puderam expressar plenamente, nos foros multilaterais e nas grandes conferências diplomáticas internacionais, a nova postura de uma política externa totalmente engajada no avanço de problemas e propostas compatíveis com essa visão progressista: racismo e discriminação, direitos das mulheres e das minorias, tortura, direito humanitário, habitação, saúde, etc. Pode-se dizer que há uma continuidade ascendente na participação engajada do Brasil em todas as áreas pertinentes aos objetivos de crescimento econômico e desenvolvimento social em debate nos foros internacionais, o que torna o Brasil um grande protagonista em todas essas discussões, sobretudo comércio internacional, saúde e desarmamento; nas rodadas do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e nas reuniões da Organização Mundial do Comércio, o Brasil se tornou incontornável.
O processo de estabilização macroeconômica obtido, após sucessivos planos frustrados, sob o ministro da Fazenda, depois presidente por dois mandatos, Fernando Henrique Cardoso, projetou uma nova imagem do Brasil, não só na interlocução com os países desenvolvidos, mas também com grandes países emergentes do Sul, sobretudo em direção da América do Sul, que passa a ser o conceito básico da nova diplomacia regional, em substituição ao anterior termo relativamente vago de América Latina. Uma de suas iniciativas, a adesão ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, consagrará a adesão do Brasil a um dos cânones centrais do sistema de segurança internacional, mas em ruptura com a postura anterior da diplomacia – e das Forças Armadas – de não aceitação de tratados discriminatórios, em contradição com uma das bases doutrinais da diplomacia brasileira, a igualdade soberana dos Estados. Na prática, o tema já estava coberto por dispositivo constitucional, e representou uma concessão em troca de maior acesso desimpedido a tecnologias de ponta e cooperação em áreas sensíveis.
A pequena ruptura da era Lula: o engajamento no combate à fome e à pobreza
Os três governos e meio do Partido dos Trabalhadores, em especial os dois mandatos do presidente Lula, representaram uma “ruptura” mais conceitual do que efetiva, pelo menos em relação à quase totalidade dos temas e métodos de trabalho mobilizados pela diplomacia profissional na defesa dos temas quase permanentes da agenda brasileira em política externa: políticas nacionais de desenvolvimento, combate às desigualdades entre os países, forte apoio ao multilateralismo e à integração regional, diálogo construtivo entre países avançados e em desenvolvimento, políticas sociais progressistas e novo ativismo em direitos humanos e em meio ambiente. Novidades se manifestaram na criação de foros regionais e plurilaterais de interesse desse ativismo diplomático, na busca de parcerias estratégicas para a consecução de um objetivo mais enfatizado nesse período – a “democratização das relações internacionais”, por meio da reforma da Carta da ONU e a ampliação do seu Conselho de Segurança, inclusive na aliança do G4, com Índia, Japão e Alemanha –, na reafirmação prioritária do combate à pobreza e a fome no mundo, o que valeu a conquista da direção da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura.
As parcerias estratégicas se desenvolveram tanto em direção dos países do Norte – em especial com os europeus –, como no estabelecimento de vínculos e novos grupos de consulta e coordenação na direção do chamado Sul Global: Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS), União de Nações Sul-Americanas (Unasul), BRIC-BRICS, Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac), foros organizados pelo Brasil reunindo presidentes da América do Sul e seus contrapartes africanos (Afras) e árabes (Aspa), assim como maior engajamento na cooperação internacional para o desenvolvimento e em missões de paz da ONU (entre elas, enfaticamente, a Minustah, para a estabilização do Haiti). A participação do Brasil aumentou qualitativamente e em volume em todos os foros abertos ao engenho e arte de uma diplomacia de grande sofisticação técnica e de excelente preparação intelectual, mesmo se alguns temas passaram mais pela “diplomacia partidária” do PT – como reconhecido pelo próprio presidente – do que pelos canais oficiais da diplomacia profissional (em especial as relações com Cuba e os países “bolivarianos”).
Uma frente que cresceu enormemente nas duas décadas deste século foi a assistência aos brasileiros no exterior, o que representou um grande esforço da diplomacia profissional no trabalho consular, geralmente menos prestigiado em épocas anteriores, mas que passou a absorver atenção especial do Itamaraty, pois que o Brasil deixou de ser um país de imigração para se tornar um “exportador” de sua própria mão-de-obra, primeiro pouco qualificada, no período recente até envolvendo quadros especializados e pessoal de excelente formação. No conjunto, a chamada diplomacia lulopetista preservou as linhas básicas da política externa tradicional – sobretudo quanto aos métodos centrais do multilateralismo –, mas inovou bastante no estilo da diplomacia, como manifestado no slogan triunfalista da “diplomacia Sul-Sul”. Nessa vertente, as relações com países sul-americanos, africanos, do Oriente Médio e os grandes emergentes integrantes do IBAS e logo em seguida do BRIC-BRICS foram as que receberam as maiores atenções dos governos do PT, o que não pode ser visto exatamente como uma ruptura de padrões anteriores, mas como ênfases reforçadas do antigo “terceiro-mundismo” tantas vezes criticado pelos parceiros americanos. Aliás, os dirigentes à frente da diplomacia lulopetista faziam questão de vincular a política externa do PT à Política Externa Independente do início dos anos 1960.
A caminho da grande ruptura: a desafeição ao PT e a ascensão de uma direita extrema
O terceiro governo do lulopetismo foi um desastre, sobretudo no campo econômico, mas também um retrocesso operacional em relação ao grande protagonismo internacional exercido pela diplomacia presidencial de Lula. Dilma Rousseff não escondia sua desafeição ao Itamaraty, como tampouco seu enfado no diálogo com parceiros estrangeiros, ainda que a diplomacia profissional e a paralela – “partidária” – tenham continuado a defender os grandes temas da política externa do PT: protagonismo sul-americano – uma liderança contestada e, em parte, desafiada por outras lideranças regionais, entre eles Chávez e Néstor Kirchner –, a projeção plurilateral por meio do BRICS – que se dotou de um “banco de desenvolvimento” e de um mecanismo de reservas contingentes, na cúpula de Fortaleza, em 2014 – e uma grande liderança em temas sociais e ambientais. Mas, a grande corrupção revelada pela Operação Lava Jato, a partir de 2014, assim como a maior crise econômica e recessão da história do Brasil em 2015-2016, precipitaram a desafeição popular e o desentendimento entre a presidente e sua base congressual, redundando no impeachment em meados deste ano.
O novo governo liderado pelo até então vice-presidente Michel Temer representou uma pequena ruptura com a política externa imediatamente anterior, mas simplesmente por um retorno a padrões mais tradicionais seguidos pela diplomacia profissional dos anos anteriores ao lulopetismo, sem os apelos ribombantes a um pouco definido “Sul Global”, e em especial no terreno da política externa regional, na qual desapareceu a diplomacia paralela de alianças com os países “bolivarianos” e com Cuba. A Venezuela chavista, que tinha sido incorporada de maneira oportunista ao Mercosul (e até de forma ilegal, uma vez que ela não cumpria nenhum dos requisitos formais do bloco, entre elas a adesão à Tarifa Externa Comum) acabou sendo suspensa do esquema de integração, assim como o Brasil de Temer e a Argentina de Macri decidiram se afastar da Unasul, que tinha sido praticamente controlada pelos “bolivarianos”.
A “grande ruptura” ocorreu mesmo na campanha presidencial de 2018, quando, pela primeira vez na história republicana, um governo declaradamente alinhado com uma extrema direita que já fazia progressos no plano internacional conseguiu capturar apoios suficientes no eleitorado para dar início a um governo e uma política externa jamais vistos nos anais do Estado independente. Pela primeira vez em quase duzentos anos de história, um governo rompia com padrões normalmente aceitos por todas as administrações anteriores, no sentido de atuar pragmaticamente com vizinhos e com a comunidade internacional, a despeito de qualquer orientação política que pudessem ter países com os quais se mantinham relações diplomáticas formais. O programa de governo do candidato Bolsonaro já anunciava, de maneira oficial, em agosto de 2018, que ele faria uma pequena revolução na política externa e na diplomacia, ainda que o seu enunciado fosse o mais esquizofrênico possível. A anunciada ruptura com todos os padrões e diretrizes das políticas externas e das diplomacias anteriores foi tão explícita que suas linhas básicas contidas no documento entregue ao Tribunal Superior Eleitoral (2018, 79) – feitas provavelmente por completos amadores em temas internacionais – merecem ser transcritas na íntegra (e isso foi tudo):
O “programa” de política externa para o “novo Itamaraty” pode parecer bizarro, e até mesmo ridículo, mas por incrível que pareça ele foi seguido na íntegra, senão na letra, pelo menos no espírito de suas recomendações estapafúrdias, pelo primeiro chanceler designado pelo governo que tomou posse em 1º de janeiro de 2019, já tendo anunciado nas semanas seguintes à vitória de outubro de 2018 que afastaria o Brasil do Acordo de Paris de 2015, sobre mudanças climáticas, que desassociaria o país do Pacto Global sobre as Migrações, que mudaria a embaixada do Brasil em Israel de Tel Aviv a Jerusalém, que promoveria uma revisão nas relações bilaterais com a China – denunciada por querer “comprar o Brasil”, pelo próprio candidato, depois de visitar Taiwan – e, sobretudo e especialmente, que comporia uma estreita aliança com o governo americano (na verdade uma política de quase submissão a tudo que desejasse o presidente Trump, com ênfase na derrubada do governo chavista da Venezuela). De fato, a política externa ordenada pelo presidente – assistido por um bando de amadores e por um chanceler visivelmente submisso a essa “franja lunática” – foi muito pior do que a que figurava no “programa” registrado no Tribunal Superior Eleitoral, feita de hostilidade com governos progressistas da América Latina e até de desavenças pessoais com líderes europeus cuja única postura tinha sido a de manifestar uma legítima preocupação com a antipolítica ambiental verdadeiramente desastrosa que passou a ser a marca internacional negativa do Brasil desde os primeiros dias do novo governo.
A sucessão de enfrentamentos, na região e no mundo todo, protagonizados pelo próprio presidente, assim como pelos integrantes da “franja lunática”, foi construindo um isolamento internacional do Brasil nunca antes visto nos anais da nossa diplomacia, sequer durante a ditadura militar, quando notícias sobre a repressão política, a censura, a eliminação ou “desaparecimento” de opositores políticos frequentavam as páginas dos principais jornais internacionais. Alguns episódios realmente constrangedores, até surrealistas, do ponto de vista da diplomacia profissional, se tornaram frequentes no noticiário brasileiro e do exterior, como as diatribes do presidente e do chanceler acidental contra a ditadura chavista, contra o novo presidente peronista da Argentina, contra líderes europeus e contra a “ditadura comunista” da China, como feito em diversas ocasiões pelo próprio filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro, chefe virtual (e real) do chanceler apenas formal. Ao lado e em oposição a esses enfrentamentos, as únicas relações desejadas e buscadas pelo governo assumidamente de direita no Brasil eram aquelas com dirigentes dos países do pequeno arco iliberal e antimultilateralista, nomeadamente o presidente Trump (objeto de uma declaração virtualmente servil: “I love you Trump”), o líder de extrema direita da Itália Mateo Salvini (depois retirado de um novo governo de coalização), o primeiro ministro da Hungria Viktor Orban e poucos outros representantes dessa direita orgulhosa de sê-lo.
O isolamento internacional do Brasil foi sendo construído pelo próprio presidente e por seu governo, inclusive pelo chanceler, que chegou a reconhecer que o país tinha virado um “pária” na comunidade mundial, num dos episódios mais constrangedores para os diplomatas do corpo profissional, pois que feito num “Dia do Diplomata”, em 2020. Os crescentes desentendimentos do chanceler com líderes congressuais acabaram causando sua demissão, em março de 2021, o que se trouxe algum alívio do ponto de vista dos diplomatas não mudou grande coisa na postura e nas declarações do presidente, que continuou a provocar desavenças no plano interno e no cenário externo por uma postura completamente anti diplomática e por uma política externa que seguiu na mesma linha ideológica anterior, ainda que mitigada por um virtual afastamento do chefe de Estado de reuniões internacionais, a não ser para discursos formais preparados pelo Itamaraty e sua assessoria mais responsável.
Nas primeiras semanas de 2022 – já em meio ao acirramento de desavenças com ministros do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral, a propósito do sistema de votação eletrônico, provavelmente motivado pela intenção de conflagrar o processo eleitoral –, instalou-se uma outra desavença entre o Itamaraty, secundado por assessores presidenciais, e o próprio presidente, com respeito a uma planejada visita ao presidente russo Vladimir Putin, comprovadamente preparando uma invasão militar à Ucrânia vizinha, que Bolsonaro insistiu em fazer, mesmo depois de diversos alertas emitidos por dirigentes americanos. A viagem consagrou mais uma das desastradas iniciativas do presidente, pois suscitou uma declaração de “solidariedade” com os russos que causou outros constrangimentos à diplomacia profissional, pouco tempo antes da guerra de agressão deslanchada pelo dirigente russo contra a Ucrânia. Tratou-se de outra ruptura com a prudente e pragmática diplomacia do Itamaraty, feita tradicionalmente de estrito respeito pelo Direito Internacional e à Carta da ONU, flagrantemente violada pela Rússia, ainda que essa mesma postura indiferente a princípios e valores consagrados da lei internacional já tinha sido registrado na invasão, pela mesma Rússia, da península ucraniana da Crimeia, ato de agressão ignorado na ocasião, em 2014, pela presidente Dilma Rousseff.
Uma nova “ruptura diplomática” em 2023?
No início de agosto de 2022, pesquisas eleitorais apontam uma provável vitória, no primeiro ou no segundo turno do pleito presidencial de outubro, do ex-presidente Lula, com declarações “diplomáticas” já registradas pelo próprio e pelo seu ex-chanceler, e possível futuro conselheiro presidencial, Celso Amorim. A ruptura, obviamente, é em primeiro lugar com a diplomacia bolsonarista, um acidente exótico e desastroso em duzentos anos de política externa caracterizada por certos traços básicos que nem as ditaduras ou episódios de exceção ousaram contestar, mas que foram terrivelmente deformados durante quatro anos de amadorismo ignaro e de instintos primitivos próximos a uma extrema direita muito rústica. Mas também poderá representar uma nova ruptura com padrões consagrados de política externa e de diplomacia que foram seguidos invariavelmente durante quase toda a trajetória do Estado independente: o pragmatismo, o equilíbrio nas relações bilaterais, o respeito pelo Direito Internacional, o afastamento de considerações ideológicas ou partidárias na condução da atuação externa do Estado, a ênfase no multilateralismo e o universalismo das relações diplomáticas. Não que um futuro governo petista venha a romper com tais padrões e métodos de trabalho, mas, com base no registro da experiência anterior, é possível um retorno a certo determinismo geográfico – representado por essa miopia do Sul Global – e uma preferência pelo aprofundamento do relacionamento plurilateral no âmbito do BRICS, atualmente um grupo crescentemente manipulado pela China, e agora pela Rússia, para atender seus objetivos e interesses estritamente nacionais, e antiocidentais.
Tanto o ex-presidente Lula quanto seu principal conselheiro em assuntos internacionais já declararam que os Estados Unidos e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), senão o próprio presidente ucraniano, possuem alguma responsabilidade na crise que resultou no que se chama de “conflito” entre a Rússia e a Ucrânia, mas que na verdade é pura e simplesmente uma guerra de agressão do vizinho militarmente poderoso contra um país mais fraco, como tal sancionada pela Carta da ONU e pelos princípios mais elementares do Direito Internacional. Este, aliás, é um ponto de aproximação – prática, não doutrinal – com a diplomacia de Bolsonaro, que também tem manifestado claramente a postura de não censurar a Rússia, de não seguir de nenhuma maneira as sanções introduzidas contra ela por países do “Ocidente”, assim como de opor-se resolutamente ao fornecimento de armas e equipamentos militares para a defesa da Ucrânia contra seu agressor.
Na ausência de perspectivas definidas para a diplomacia regional de um provável governo petista – uma vez que a fragmentação política e ideológica é uma realidade na América do Sul –, assim como para o fantasmagórico “Sul Global”, dilacerado pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, a postura da futura diplomacia do Brasil em relação ao mais grave conflito inopinadamente surgido na agenda internacional deve ser o principal desafio desse governo, ademais da própria política em relação a um BRICS bastante diferente do formato e dos objetivos iniciais.
Na ausência de perspectivas definidas para a diplomacia regional de um provável governo petista – uma vez que a fragmentação política e ideológica é uma realidade na América do Sul –, assim como para o fantasmagórico “Sul Global”, dilacerado pela pandemia e pela guerra na Ucrânia, a postura da futura diplomacia do Brasil em relação ao mais grave conflito inopinadamente surgido na agenda internacional deve ser o principal desafio desse governo, ademais da própria política em relação a um BRICS bastante diferente do formato e dos objetivos iniciais. A ruptura, neste caso, não seria nem em relação ao governo Bolsonaro ou aos padrões tradicionais do Itamaraty, mas com respeito aos próprios princípios do Direito Internacional, gravemente comprometidos pela atual guerra de agressão de um “sócio” do Brasil num dos grupos privilegiados pelo lulopetismo diplomático, em contradição com posturas que sequer o Estado Novo ousou transgredir (ao recusar reconhecer a legitimidade da invasão violenta da Polônia pelas forças nazistas e da invasão e incorporação dos três países bálticos pela União Soviética). Uma ruptura a mais na longa história da diplomacia brasileira...
Tribunal Superior Eleitoral. 2018. O Caminho da Prosperidade - Proposta de Plano de Governo. TSE - Tribunal Superior Eleitoral. https://divulgacandcontas.tse.jus.br/candidaturas/oficial/2018/BR/BR/2022802018/280000614517/proposta_1534284632231.pdf.
Recebido: 7 de agosto de 2022
Aceito para publicação: 26 de setembro de 2022
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