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Editorial

Os caminhos da rivalidade e da cooperação entre Estados Unidos e China

Um panorama transversal sobre a questão
Imagem: Estúdio Marijaguar

O sistema internacional passa por um momento de redefinição geopolítica. O fim da Guerra Fria parecia significar o triunfo da unipolaridade americana, mas os trinta anos subsequentes foram marcados, dentre inúmeros eventos, por uma das maiores revoluções sociais e políticas da história contemporânea: o vertiginoso ressurgimento chinês. As mudanças pelas quais a China passou e passará incidirão sobre a reacomodação de forças na ordem global. Os vencedores incontestáveis da Guerra Fria estão diante de um adversário formidável que se vê como único e predestinado. 

De fato, muitas sociedades tendem a se perceber como singulares, e isto não seria diferente no caso da China. Porém, como disse Henry Kissinger (2011, 5), a fábula chinesa não trata apenas de mostrar sua originalidade, mas de se colocar como eterna. Enquanto todas as nações têm origens quase míticas, sendo este o caso dos EUA, a China parece não ter início. Sempre existiu e sempre existirá, como centro do mundo. Neste ambiente em que duas nações superpoderosas se veem como predestinadas, Kissinger sustenta que o relacionamento bilateral deve seguir uma linha menos de parceria e mais de coevolução. Isto é, ambos os países devem buscar seus imperativos domésticos, cooperando sempre que possível e ajustando suas relações para minimizar o conflito. Nenhum dos lados deve endossar todos os objetivos do outro ou pressupor uma identidade total de interesses, mas ambos devem identificar e desenvolver interesses complementares. Isto poderia assegurar uma convivência mais pacífica (2011, 719).

Nesse contexto, um dos grandes enigmas atuais é saber se os EUA já atingiram o ponto de superesticamento e como seus líderes reagirão a isto. Em seu clássico sobre a ascensão e queda das grandes potências, Paul Kennedy (1987, 515) argumenta que o declínio de uma potência ocorre quando seus líderes sustentam obrigações securitárias e econômicas que superam sua capacidade doméstica de mantê-las. Este é o ponto atual em que se encontra a sociedade americana com suas profundas e paralisantes polarizações internas? Ou os EUA ainda possuem tamanha superioridade militar e tecnológica que mesmo o grande avanço econômico chinês está longe de superá-los? Mais importante, como reagirão seus líderes ao perceberem o declínio relativo de seu país? Serão mais agressivos ou cooperativos?

O mais influente internacionalista chinês contemporâneo, Yan Xuetong (2019), argumenta que a configuração deste potencial conflito reside na qualidade e nos tipos de lideranças políticas existentes nos dois países. Diferentes tipos de líderes resultarão em diferentes usos das capacidades nacionais para a guerra ou paz. A teoria de Xuetong indica que, quando a liderança política de um Estado em ascensão supera a do Estado dominante em qualidade, a disparidade de poder entre os dois se inverte, tornando o Estado em ascensão o novo ator dominante do sistema. Em outras palavras, quando a liderança do Estado em ascensão é mais capaz e eficiente do que a do Estado dominante, a influência internacional é redistribuída de uma forma que permite o Estado ascendente eclipsar o Estado dominante. Para Xuetong, a qualidade dos líderes políticos importa (Xuetong, 193-194).     

Nesse sentido, qualquer tomador de decisão ou acadêmico contemporâneo se depara com o desafio de entender os caminhos da rivalidade ou cooperação entre China e EUA. Esta segunda edição da CEBRI-Revista pretende dar uma contribuição a este debate em curso e suas implicações para o Brasil.

Nesse sentido, qualquer tomador de decisão ou acadêmico contemporâneo se depara com o desafio de entender os caminhos da rivalidade ou cooperação entre China e EUA. Esta segunda edição da CEBRI-Revista pretende dar uma contribuição a este debate em curso e suas implicações para o Brasil. A seção especial intitulada EUA-China: rivalidade e competição na ordem global traz três textos sobre a temática. O texto de Marcos Caramuru, ex-embaixador do Brasil em Pequim, discorre sobre a rivalidade à luz de sua experiência de anos lidando com a China. O diplomata trata dos ativos e fragilidades da ascensão chinesa e sobre a importância do Pacífico, palco maior da disputa pela hegemonia entre as duas potências. O texto escrito por Hussein Kalout, pesquisador de Harvard, e por Hugo Bras Martins da Costa, pesquisador na Science Po Paris, trata diretamente das implicações desta rivalidade para o Brasil e sua política externa. Para os autores, o Brasil não pode escolher um dos lados da disputa, porque isso representará perdas domésticas muito severas, além de imobilizar os interesses estratégicos do Brasil nos múltiplos tabuleiros internacionais. Por fim, o texto de Kishore Mahbubani, Distinguished Fellow do Centro de Estudos da Ásia da Universidade Nacional de Singapura (NUS) e autor do livro Has China Won?, aborda como os países da ASEAN e o Brasil devem agir perante a rivalidade e a inexorável centralidade da China na Ásia. 

Dentro da mesma temática, esta edição traz ainda a resenha do livro de Graham Allison A Caminho da Guerra. Estados Unidos e China conseguirão escapar da armadilha de Tucídides?, produzida pelo embaixador Gelson Fonseca. Trata-se de um livro recentemente publicado, mas que já se tornou um clássico sobre a rivalidade EUA-China, principalmente entre as lideranças chinesas.

Já na seção de entrevistas, o primeiro entrevistado é o ex-ministro da Defesa do Brasil Raul Jungmann, que trata da rivalidade entre os dois países e de suas implicações internacionais e regionais, especialmente para o Estado brasileiro, na periferia do sistema e longe da Ásia, o principal palco da disputa. Para ele, o Brasil deve manter relações equilibradas entre as duas potências. O segundo entrevistado é Félix E. Martín, professor titular do Departamento de Política e Relações Internacionais da Universidade Internacional da Flórida, que oferece uma perspectiva sobre o assunto a partir da academia americana.

A seção de artigos acadêmicos desta segunda edição traz ainda três textos. O pesquisador Lunting Wu, da Universidade Livre de Berlim, faz uma análise da política externa de duas potências em ascensão – China e Brasil – e como elas interagem em diversos mecanismos de governança global. Já o artigo da professora da Fundação Getúlio Vargas Daniela Campello e do professor da Pontifícia Universidade Católica do Chile Francisco Urdinez examina de que forma os choques de renda associados ao comércio internacional com a China influenciam as preferências dos brasileiros sobre os laços econômicos com aquele país. O artigo de Esteban Actis, professor da Universidade Nacional de Rosário, discute a era da globalização de riscos que caracteriza o período atual. Para o autor, dentre outros aspectos, a globalização de riscos é muito afetada pela rivalidade entre EUA e China. 

A seção de policy papers traz ainda o artigo do embaixador da União Europeia (UE) no Brasil, Ignácio Ybáñez. O artigo discute o papel da União Europeia perante a agressão da Rússia na Ucrânia, além de analisar como o Brasil e a UE podem cooperar para construir uma ordem internacional mais pacífica.      

Por fim, publicamos um texto de autoria da professora de Direito Internacional da Fundação Getúlio Vargas, Paula W. Almeida, sobre o legado do grande jurista brasileiro Antônio Augusto Cançado Trindade, falecido recentemente. A professora resgata parte de suas inúmeras obras acadêmicas e dezenas de decisões emblemáticas tanto na Corte Interamericana de Direitos Humanos como na Corte Internacional de Justiça.

Como argumentamos no início deste editorial, entender os caminhos da rivalidade e cooperação entre China e EUA é um dos grandes desafios da nossa Era. Para os interessados no campo das Relações Internacionais e, principalmente, os tomadores de decisão no Brasil e na América Latina, esse desafio se multiplica, uma vez que essa competição pode gerar consequências reais e diretas sobre o sistema produtivo, o arcabouço securitário e o desenvolvimento tecnológico de todos os países. Como alguns artigos discutem nesta edição, o Brasil cumpre um papel, ainda que menor, neste relacionamento entre superpotências. Qual será este papel ainda está em aberto e em constante disputa interna.       

Referências bibliográficas

Kissinger, Henry. 2011. On China. New York: The Penguin Press.

Kennedy, Paul. (1987). The Rise and Fall of the Great Powers: Economic Change and Military Conflict from 1500 to 2000. New York: Random House.

Xuetong, Yan. (2019). Leadership and the Rise of Great Powers. Princeton: Princeton University Press.

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