Leio há algum tempo as críticas de Samuel Pessoa às posições recentes de André Lara Resende sobre dívida pública, juros e política fiscal. O que me impressiona não é a discordância – saudável e necessária –, mas a insistência de Samuel em defender um modelo de mundo que já não cabe na realidade que temos diante dos olhos.
Em tese, ele se apresenta como economista “empírico”, guiado por evidências, defensor da responsabilidade fiscal e da prudência. Na prática, o que vemos é alguém preso a um conjunto de dogmas – fundos emprestáveis, metáfora da família, r>g como lei da natureza – que o impedem de enxergar o óbvio: a arquitetura monetária contemporânea não funciona como o manual dos anos 80 dizia. E o Brasil de juros estratosféricos, baixo crescimento e desemprego crônico é a prova viva disso.
A metáfora da dona de casa – e o país tratado como condomínio - O primeiro pilar do discurso de Samuel é a velha metáfora da boa dona de casa: governo responsável é o que não gasta mais do que arrecada, ou, no máximo, “um pouco mais” em tempos difíceis, para depois compensar com superávits. É a ideia de que o Estado deve se portar como uma família prudente.
André Lara Resende faz exatamente o movimento contrário: lembra algo que qualquer aluno de macroeconomia aprende no primeiro capítulo – o Estado não é uma família. Famílias e empresas são usuárias da moeda; o governo federal é emissor da moeda. Uma família pode quebrar em reais; o Tesouro Nacional, não. O limite do Estado não é “acabar o dinheiro”, é bater na parede dos recursos reais (capacidade produtiva, trabalho, tecnologia) e da restrição externa.
Samuel sabe disso no plano teórico – não é ignorância. Mesmo assim, insiste na metáfora moralizante do “não se pode viver de fiado”, como se o Tesouro fosse inquilino e não proprietário da moeda. A contradição é óbvia: ele se reivindica realista, mas parte de uma analogia que só funciona justamente se abstrairmos a realidade da emissão de moeda.
Dívida pública: passivo de um, ativo de outro - Outra cegueira útil é tratar a dívida pública como se fosse um monstro externo pairando sobre “as futuras gerações”. É a narrativa do “peso insuportável” para os jovens, do “abacaxi” que estamos passando adiante.
Lara Resende, apoiado em uma tradição que vai de Keynes a Abba Lerner e hoje aparece de forma organizada na MMT, lembra o óbvio matemático: a dívida pública é passivo do governo, mas é ativo do setor privado. Cada título emitido é riqueza financeira para algum banco, fundo, família, empresa. Quando o governo faz superávit e reduz dívida, está retirando esses ativos líquidos das mãos do setor privado.
Samuel salta por cima dessa simetria como se não existisse. Ele fala do “peso da dívida” sem se perguntar: peso para quem? Para o contribuinte futuro ou para o rentista que hoje recebe juros reais de dois dígitos? Ele fala em “justiça intergeracional”, mas não discute a brutal injustiça intrageracional de um regime que transfere renda, ano após ano, dos que vivem do trabalho para os que vivem da renda financeira alimentada por juros altos.
Na prática, sua “neutralidade técnica” escolhe um lado da distribuição – e finge que é apenas matemática.
Fundos emprestáveis: o modelo que ignora o sistema bancário - No fundo da crítica de Samuel à postura de André está a velha teoria dos fundos emprestáveis: existe um estoque de poupança “dado”; quando o governo se endivida, disputa essa poupança com o setor privado; o preço de equilíbrio dessa disputa é a taxa de juros; logo, déficits pressionam juros para cima, “expulsam” o investimento privado e derrubam o crescimento.
É uma historinha elegante, facilmente desenhável em quadro de sala de aula – e profundamente incompatível com o funcionamento de um sistema de moeda-crédito moderno.
Bancos não são cofres que emprestam uma poupança pré-existente; são criadores de moeda bancária. Quando concedem um empréstimo, criam simultaneamente um ativo (crédito) e um passivo (depósito). O banco central, por sua vez, acomoda as reservas necessárias para manter a taxa de juros na meta que ele próprio define. A taxa básica, longe de ser “apenas” o preço que resolve um equilíbrio de mercado, é uma decisão de política.
Ao ignorar essa realidade monetária – que não é polêmica, está na própria literatura do BIS e em documentos de bancos centrais –, Samuel se agarra ao dogma dos fundos emprestáveis para concluir que déficit → juros altos → menos crescimento. Se a realidade não confirma essa sequência de forma robusta, pior para a realidade.
r > g: quando uma identidade contábil vira religião - A mesma operação se repete com a famosa condição r>g. Samuel a trata como uma espécie de lei de gravidade: se a taxa de juros real for maior que o crescimento, a dívida/PIB “explodirá” a menos que o governo obtenha superávits primários por longos períodos. É a fórmula para justificar, a priori, qualquer política de austeridade.
Só que r e g não caem do céu. A taxa de juros real é, em grande medida, produto de decisões do Banco Central; o crescimento é sensível ao próprio mix de política fiscal e monetária. Manter juros reais altíssimos por anos – como fizemos – e depois usar o resultado (dívida pressionada, economia anêmica) para dizer que “não há alternativa” ao superávit é transformar uma escolha política em destino inevitável.
André, ao criticar essa lógica, não está propondo matemática alternativa. Está apenas lembrando que não se pode usar uma identidade contábil para legitimar um dogma. A equação da dívida deve ser lida à luz da realidade institucional: quem define r? como as decisões de gasto e tributação impactam g? qual é a composição da dívida? qual é a moeda em que ela está emitida?
Samuel evita essa conversa. Prefere o conforto da fórmula abstrata. É mais seguro defender que “a experiência histórica mostra” sem enfrentar os casos incômodos – Japão, EUA pós-2008, países avançados convivendo com dívidas altas, juros baixos e ausência de crises de solvência.
A realidade brasileira que ele não quer ver - Mais grave, porém, é a incompatibilidade entre o discurso de Samuel e a realidade brasileira recente. Se a equação ortodoxa fosse tão boa quanto ele sugere, o Brasil, campeão mundial de juros reais, deveria ser um caso exemplar de estabilidade, investimento produtivo e crescimento vigoroso.
Não é.
Tivemos anos de juros reais estratosféricos, metas de superávit, teto de gastos. O resultado não foi um ciclo virtuoso de confiança, investimento e produtividade. Foi um país travado: investimento público comprimido, infraestrutura depreciada, desemprego alto, serviços públicos asfixiados, e a dívida/PIB… oscilando ao sabor do ciclo, muitas vezes piorando justamente depois de choques de austeridade em recessão.
Diante desses fatos, seria natural revisar o modelo, perguntar se a dose de juros não é parte do problema, se a meta de primário não estaria mal calibrada, se o teto de gastos não era uma camisa de força pró-cíclica. Mas isso exigiria admitir que Lara Resende – e a tradição pós-keynesiana/MMT que ele ecoa – têm um ponto.
Samuel escolhe outro caminho: preserva o dogma e culpa o “desvio” político, o “populismo”, a “falta de reformas”. A realidade econômica vira sempre um acidente de percurso; o modelo, nunca.
Ideologia sob a máscara da técnica - É aí que fica mais claro o componente ideológico. Ao se recusar a incorporar a crítica de Lara Resende – crítica que aponta a natureza política da taxa de juros, a assimetria entre Estado e família, o caráter ativo da dívida para o setor privado –, Samuel não está apenas defendendo “responsabilidade fiscal”. Ele está defendendo uma hierarquia de prioridades:
Tudo isso pode até ser defendido como programa político, desde que com nome e sobrenome. O problema é vender essa agenda como se fosse a única leitura possível da “boa ciência econômica”, enquanto se demoniza qualquer alternativa – inclusive a de Lara Resende – como “populismo fiscal” ou “economia mágica”.
Quando confrontado com a evidência de que dívidas altas não implicam automaticamente em colapso, de que juros podem ser mantidos baixos por design, de que austeridade em recessão tende a piorar a própria dívida/PIB, Samuel não reexamina as premissas. Ele reforça o catecismo: responsabilidade = superávit; seriedade = austeridade; prudência = aceitar r>g e calar.
Entre o medo e o debate honesto - No fundo, o que está em jogo é o medo de admitir que política econômica é, sim, disputa de projetos, não aplicação neutra de um algoritmo técnico. Ao desmontar a metáfora da família e recolocar o Estado como emissor da moeda, Lara Resende abre espaço para uma discussão incômoda: se o limite não é “acabar o dinheiro”, o que nos impede de investir mais em gente, infraestrutura, transição energética?
A resposta honesta teria de falar de correlação de forças, de interesses, de conflitos distributivos – inclusive o conflito entre quem recebe juros e quem paga imposto, entre quem vive de renda e quem vive de salário. É mais simples, para alguns, esconder isso atrás de equações e palavras como “credibilidade”, “regras duras”, “âncora fiscal”.
Samuel Pessoa escolhe esse caminho. André Lara Resende, com todas as controvérsias que provoca, escolheu o oposto: expor a engrenagem, nomear o dogma, reconectar a macroeconomia à realidade do dinheiro e do poder.
É por isso que, ao observar esse embate, não vejo apenas um conflito entre dois economistas. Vejo o choque entre uma visão que prefere sacrificar a realidade em nome do modelo e outra que, com todos os riscos e incertezas, tenta reconstruir o modelo a partir da realidade.
por Marco Antônio S. C. Castello Branco
26 de novembro de 2025
André Lara Resende – Valor Econômico, 31/10/2025
A fábula da fada da dívida pública
Samuel Pessoa – Folha de S.Paulo, 08/11/2025
Os dois lados da dívida pública
Samuel Pessoa – Folha de S.Paulo, 23/11/2025
A discordância é no juro real, não no crédito