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Book Reviews

A Certain Idea of Diplomacy

Book Review of Rubens Ricupero's "A Diplomacia na Construção do Brasil: 1750-2016" (Versal Editores, 2017)

Em 1994, Rubens Ricupero ocupava o cargo de Ministro da Fazenda e era o responsável pelo lançamento do Plano Real, que viria a debelar a hiperinflação brasileira, esse flagelo que corroía o poder de compra e impedia que os atores econômicos e as famílias conseguissem planejar minimamente seu futuro. Por onde quer que passasse, Ricupero era perseguido noite e dia por repórteres e curiosos de toda sorte. Naquele período, apesar de ter as pesadas responsabilidades de Ministro da Fazenda sobre os ombros, Rubens Ricupero não deixou de dar suas aulas de História Diplomática no Instituto Rio Branco. Quando entrava na sala de aula, despia-se do manto de Ministro da Fazenda e encarnava o Professor dos jovens diplomatas, que tinham a oportunidade única de mergulhar na história e de lá emergir extasiados quando a aula terminava. Os alunos davam-se conta do inusitado da situação no momento em que a porta se abria para desvelar assessores esbaforidos e jornalistas exasperados, todos no encalço do Ministro, como se a pausa relativamente curta de 50 minutos em sala de aula tivesse deixado órfão todo um país.

Nós que assistíamos àquelas aulas éramos privilegiados. As exposições de Ricupero provocavam uma espécie de encantamento. O professor falava sem se apoiar em notas e muito menos no famigerado powerpoint, que sequer existia naquele tempo (ainda que o retroprojetor tivesse livre curso entre alguns mestres). O professor Ricupero contava a história diplomática como parte indissociável da história do Brasil e mundial, buscando suas conexões e inter-relações, tudo isso entremeado de parênteses em que, com bom humor, comentava curiosidades sobre personagens específicos, sem jamais perder o fio da meada. Se dispusesse de um teleprompter diante de si, o discurso não sairia mais claro e consistente. Com uma memória prodigiosa, invejável capacidade de síntese e erudição própria de polímato, Ricupero proferia a aula como se estivesse lendo trechos do livro “A Diplomacia na Construção do Brasil”, que certamente já estava sendo tecido em sua mente. A concisão, objetividade e clareza de ideias que marcavam suas aulas para poucos felizardos estão agora disponíveis para o grande público na forma de livro.

Desde seu lançamento, em 2017, a obra foi objeto de inúmeras resenhas que ressaltaram a contribuição fundamental de Ricupero para a historiografia e o fato de o livro já ter nascido um clássico. Do ponto de vista da contribuição à história diplomática do Brasil, o autor logrou a proeza de produzir uma verdadeira Aufhebung, a síntese hegeliana que consiste em superação com conservação. Como vários outros resenhistas já observaram, o livro é uma contribuição original à História do Brasil e não apenas à história diplomática. Como revela o autor, sua intenção foi a de escrever um livro que ele próprio não encontrou em bibliotecas e livrarias, mas que, a seu ver, poderia fornecer um quadro mais amplo da inter-relação entre a diplomacia e o contexto histórico. De fato, a originalidade do livro se deve, em grande medida, à análise da diplomacia integrada ao contexto mais amplo dos acontecimentos internos e internacionais, nas esferas econômica, política, social e cultural. Desde o lançamento, portanto, essas e outras características do livro foram sobejamente ressaltadas em resenhas e entrevistas concedidas pelo autor, angariando o aplauso praticamente unânime de historiadores, especialistas em relações internacionais, estudiosos, diplomatas e do público em geral.

Sua intenção foi a de escrever um livro que ele próprio não encontrou em bibliotecas e livrarias, mas que a seu ver poderia fornecer um quadro mais  amplo da interrelação entre a diplomacia e o contexto histórico.

O objetivo deste artigo não é fazer uma resenha tradicional sintetizando o conteúdo da obra e nem muito menos repetir o que outros já disseram, mas chamar a atenção para a contribuição de Ricupero ao expor a quintessência do fazer diplomático no Brasil, a partir do papel da diplomacia na consolidação de uma identidade própria, que, por sua vez, se plasma pari passu com a ideia de diplomacia que veio a prevalecer entre nós, num movimento circular de reforço mútuo e influências cruzadas. O livro, além de grande contribuição à História, é análise cum defesa de “uma certa ideia de diplomacia” (a expressão é minha e não do autor) inseparável de “uma certa ideia de país”, termo que Ricupero empresta do General Charles de Gaulle. Essa certa ideia de diplomacia que, a meu ver, emerge do livro estava presente, hoje parece claro, nas aulas que o autor ministrava no Instituto Rio Branco e na sua notável carreira como diplomata e homem de Estado. Mais do que professor de história e servidor do Estado, Ricupero tornou-se ao longo de sua trajetória uma verdadeira escola de diplomacia.

A “ideia de país” aludida por Ricupero se consolida concomitantemente ao processo de construção institucional e discursiva da imagem do Brasil como nação dotada de certas características e predicados. Trata-se também da formação de uma identidade específica, que aqui tem um sentido convergente à definição de Celso Lafer, para quem a identidade internacional do Brasil pode ser descrita como “(...) o conjunto de circunstâncias e predicados que diferenciam a sua visão e os seus interesses, como ator no sistema mundial, dos que caracterizam os demais países” (2004, 20).

A diplomacia, conforme mostra Ricupero, teve papel fundamental em moldar essa identidade por ter sido instrumento de formação do território e ter contribuído, ao longo do tempo, para a definição de uma ideia de país pacífico, satisfeito territorialmente, moderado, apegado ao direito e à negociação como forma de defender seus interesses. E isso não por força de qualquer desígnio sobrenatural, mas por interesse e pragmatismo, já que “a arma dos fracos é a diplomacia e o direito”, para usar as palavras do autor. Sabemos que interesses e valores conformam duas faces de uma mesma moeda, de modo que as regras do sistema internacional vistas como favoráveis aos interesses brasileiros tendem a ser encaradas como desejáveis também por refletirem uma visão do mundo ou um ideal de bem comum a ser perseguido.

Outros países, como aponta Ricupero, fizeram-se com base no expansionismo, no intervencionismo e no uso da força para adquirir território e para projetar-se no mundo. O Brasil, contudo, possuiria essa marca de origem de ter usado o conhecimento empregado em negociações diplomáticas com o objetivo de consolidar e manter seu território – uma diplomacia do conhecimento que se debruçava literalmente sobre livros e sobre mapas antigos (Ricupero, aliás, conta a saborosa história do médico que encontrou o Barão do Rio Branco com a roupa amarfanhada depois de ter adormecido sobre um antigo mapa). Em vez do poder duro da força militar como principal instrumento da ação internacional, tivemos o poder brando do conhecimento aplicado à diplomacia como nossa pedra angular. E isso desde a atuação de Alexandre de Gusmão na negociação do Tratado de Madri, em 1750, e seu impacto no desenho de nossas fronteiras, obra completada pelo Barão no início do século XX. Esse processo teve impacto na própria ideia de diplomacia como indissociável de país apegado ao direito e inclinado ao uso de formas brandas de poder para defender seus interesses e valores. Por essa razão, a “uma certa ideia de país” corresponde de maneira indissociável, segundo se depreende da leitura da obra, “uma certa ideia de diplomacia”, não apenas com o significado fraco de “método”, mas no sentido forte de visão de mundo estratégica. Em outras palavras, uma diplomacia que tem por substrato a identidade internacional e seus predicados que ela própria ajudou a criar e que, ao mesmo tempo, lhe emprestam legitimidade. Esse círculo é o que torna difícil separar diplomacia do próprio conceito de política externa, apesar do que normalmente aconselham estudos acadêmicos e o ramo da análise de política externa.

Entre acadêmicos e estudiosos de relações internacionais, é moeda corrente a diferenciação entre diplomacia e política externa. Enquanto a primeira seria um método ou aparato burocrático e institucional, a segunda diria respeito ao conjunto de ações, iniciativas e posições adotadas pelo país no cenário internacional. A diplomacia seria um meio de que se serve a política externa para alcançar seus fins. Diplomacia seria instrumento para execução da política externa, que, por seu turno, conteria idealmente uma estratégia composta de posições, iniciativas e ações mais ou menos coerentes de inserção internacional do país. No caso do Brasil, contudo, diplomacia e política externa são usadas muitas vezes como noções intercambiáveis. De certa forma, o livro de Ricupero evidencia esse amálgama e o explica, ao demonstrar como a formulação da política externa se confundiu, na prática, com a atuação da Chancelaria. Nesse sentido, a obra, ao narrar a história da perspectiva de uma diplomacia feita pelo Itamaraty e mergulhada na realidade econômica, política e social, confirma a dificuldade empírica de separar o método da substância, já que ambos se casam no binômio formulação/execução.

Ricupero demonstra que, ao confundir-se com a política externa, que seria naturalmente contingente, posto que determinada pelo governo do momento, a diplomacia encarregou-se de tingi-la com as tintas da permanência. As mudanças, impostas pelas diferentes ênfases governamentais ou pelo ambiente internacional em evolução seriam menos importantes do que a continuidade, no tempo, de linhas mestras da diplomacia/política externa ou, ao menos, de um “fazer diplomático” em que tais linhas mestras oferecem uma moldura a garantir legitimidade à política perseguida. Longe de refletir um conservadorismo atávico, essa continuidade – ou essa moldura – seria expressão de uma identidade, que possui a um só tempo lastro histórico e sociológico, de um lado, e dimensão normativa, de outro. E é o que explica, ao lado da capacidade de personalidades individuais, a influência do Itamaraty na formulação da estratégia de inserção internacional do país. Não é trivial que o Brasil tenha como herói nacional um diplomata, quando o comum, inclusive entre nossos vizinhos, é que esse lugar seja ocupado exclusivamente por líderes militares.

Há uma rica discussão acadêmica sobre o insulamento do Itamaraty como burocracia, inclusive questionamentos sobre seu caráter “oligárquico”, avesso à participação democrática (ver, em particular, Lopes, 2013). Não há dúvida de que esse debate vale a pena ser travado, mas o fato é que a diplomacia brasileira, essa que se confunde como a própria política externa, nunca foi propriedade exclusiva de diplomatas. Mesmo o Barão do Rio Branco, apesar de toda sua gravitas, teve detratores dentro e fora do Itamaraty e foi obrigado a operar como a raposa da política que era para alcançar os objetivos que traçava. Ricupero lembra isso no episódio do Acre e na correção dos limites com o Uruguai, quando o Brasil cedeu o condomínio da Lagoa Mirim e do rio Jaguarão. Não faltaram os que se opunham à linha do Barão, que não hesitou em escrever artigos nos jornais sob pseudônimo, articular-se com políticos e militares, enfim, jogar o jogo da política doméstica, tão fundamental para o êxito da diplomacia quanto o conhecimento técnico de mapas antigos, da geografia e dos postulados jurídicos. A diplomacia, nesse particular, nunca esteve descolada, isolada ou pairando no ar qual outro Barão, o de Münchhausen, mas muito bem assentada na realidade doméstica e com olhar posto na correlação de forças na região e no mundo.

Ricupero é o primeiro a reconhecer que não se faz política externa descolada da política doméstica, sem ter uma visão de país e sem possuir uma leitura objetiva do ambiente internacional.

Ricupero é o primeiro a reconhecer que não se faz política externa descolada da política doméstica, sem ter uma visão de país e, não menos importante, sem possuir uma leitura objetiva do ambiente internacional. Rio Branco, figura carismática e dotada de inteligência privilegiada, tinha essa consciência e a inscreveu no DNA do Itamaraty. Isso obviamente não imunizou a instituição ou o país contra erros monumentais, nem isentou a diplomacia como corpo burocrático de deslizes imperdoáveis. Uma trajetória de contribuição positiva aos interesses nacionais e de construção da soberania do país, mesmo que torne a diplomacia merecedora de reconhecimento e celebração, não apaga as nódoas deixadas por decisões equivocadas, desvios morais e dívidas históricas. Reconhecer os erros, aliás, para usar uma fórmula gasta, porém ainda válida, é o primeiro passo para não os repetir.

Exemplos de erros ao longo da história não faltam: da defesa do tráfico de escravos à posição inicialmente tomada na questão do Acre, passando por outros equívocos mais recentes, como o voto na ONU do sionismo como forma de racismo, o envio de tropas para apoiar a intervenção na República Dominicana em 1965, a perseguição de dissidentes no período pós-64 e o apoio a regimes ditatoriais no exterior (ver Simon 2021), entre outros. Alguns erros, porém, foram superados com a volta à moldura da melhor tradição diplomática, como quando o Itamaraty teve papel essencial no afastamento, ainda que tardio, da solidariedade incondicional ao colonialismo português na África. Embora seja traço característico da diplomacia encarnar os interesses vitais do estado e a identidade nacional, nenhuma diplomacia é infalível e, por melhor que seja, não possui autonomia completa e tampouco oferece garantia absoluta contra retrocessos. Ricupero reconhece o papel da diplomacia na construção do Brasil, mas não resvala em nenhum momento para uma visão acrítica ou ufanista na descrição do processo histórico e do papel da diplomacia, de diplomatas individualmente e do Itamaraty como instituição. Ao contrário, critica sem pestanejar o mito da infalibilidade do Itamaraty, deixando entender que erros tanto podem representar, numa perspectiva de longa duração, pontos fora da curva, quanto indicar retrocessos que custarão tempo e esforço para serem superados.

De fato, em sua análise do episódio do Acre, para citar um exemplo que salta aos olhos, Ricupero demonstra que o conhecimento técnico, jurídico e histórico da chancelaria brasileira não bastou para encontrar uma solução duradoura para a questão, sobretudo diante de fatores como a presença de seringueiros brasileiros no território e seu arrendamento ao “Bolivian Syndicate” pelo governo boliviano. A solução, nesse caso, não decorreu automaticamente dos conhecimentos de história, dos mapas ou dos títulos jurídicos, mas, antes, como assinala Ricupero, do “uso judicioso do poder” pelo Barão. Aqui o exemplo do Barão serve justamente para estabelecer um contraste com seus antecessores e com uma diplomacia que seria, sobretudo, técnica e legalista, porém desprovida da consciência de que, ao lidar com a realidade de poder, tanto interna quanto externamente, deve ser capaz de visualizar os interesses estratégicos do país, ou seja, deve cultivar e exercer o discernimento político e um juízo objetivo dos interesses reais em jogo. Nas palavras de Ricupero:

Espanta que, depois de anos de confrontos armados e violências, a postura oficial continuasse cega à gravidade do conflito que se desenrolava nas longínquas florestas e seringais acreanos! O ministro estava pronto a aceitar a hipótese de que o Acre se tornasse peruano, mas não imaginava que pudesse vir a ser brasileiro, única maneira de resolver o dilema. A obstinação de brigar com os fatos, ignorando a vontade local e a opinião pública da nação, deveria servir como lição de humildade e saudável questionamento ao mito da suposta infalibilidade do Itamaraty (2017, 266).

Longe, portanto, de esposar a tese estapafúrdia de que a diplomacia estaria blindada dos erros de avaliação e decisões equivocadas, quase que por mandamento divino, Ricupero enfatiza que as chances de se obterem soluções adequadas aos problemas diplomáticos e de inserção internacional aumentam com o refinamento do discernimento político, que é um dos pressupostos, ao lado do conhecimento profundo dos dossiês, para o “uso judicioso do poder” (tratei dessa questão em Belli, 2018). Uma diplomacia que continue dando contribuição a essa grande obra de construção do Brasil, magistralmente descrita no livro, além de fazer uso intensivo do conhecimento especializado, deve preservar e nutrir ao mesmo tempo a capacidade de pensar e julgar, combinando a memória institucional, a valorização do conhecimento e a busca de soluções negociadas e baseadas no direito com o uso judicioso do poder. Claro que esse atributo não é algo que pode ser deixado nas mãos exclusivas de diplomatas ou mesmo de um ministério. Deve ser um esforço coletivo, participativo, que garanta de alguma forma que decisões eticamente questionáveis ou politicamente insustentáveis sejam corrigidas por mecanismos institucionais e de prestação de contas. Mas uma diplomacia com memória institucional e com ficha corrida de importantes serviços prestados ao país pode, em tese, ser também um anteparo a decisões que se afastem da moldura que empresta legitimidade de longo prazo às decisões em matéria internacional.

A ideia de diplomacia que emana do livro e que reflete uma identidade internacional baseada na visão que os brasileiros têm de si e do país, como aponta Ricupero, é também uma ideologia, porém uma ideologia positiva, entendida como conjunto de valores e padrões. O autor identifica o Barão do Rio Branco como o pai fundador dessa ideia de diplomacia que seguiu sendo cultuada e evoluiu ao longo dos anos sem nunca abandonar seus traços definidores. Há embutida nela uma aspiração, uma espécie de profecia que se autocumpre pela mobilização em torno da ação que tal visão comanda. Nas palavras do autor:

Aceitando, portanto, que a construção intelectual do ideário diplomático do Barão pertence a essa categoria de ideologias, deve-se reconhecer, entretanto, não ser indiferente escolher como conteúdo ideológico a paz, o Direito, a moderação, a transação e não suas alternativas. Não faltam, com efeito, ideologias similares que puseram ênfase na ideia de ‘grandeza’, com fortes conotações militares. Ou no ‘destino manifesto’, na superioridade da raça necessitada de espaço vital, e inúmeras outras expressões agressivas (2017, 670).

Ao descrever o processo histórico em que a diplomacia dá uma contribuição particular à construção do Brasil, Ricupero está também prescrevendo. Há na narrativa uma descrição ancorada na realidade histórica e sociológica, mas também uma dimensão normativa, um dever ser. Trata-se de um “dever ser” aberto às mudanças impostas pela cambiante realidade nacional e internacional, porém ainda assim cristalizada na moldura à qual me referi. Emprego a ideia de descrição com prescrição no sentido de Pierre Bourdieu (1982, 158), para quem até mesmo a descrição científica mais estritamente voltada à constatação está sempre exposta a funcionar como uma prescrição capaz de contribuir à realização daquilo que ela anuncia. No caso do Brasil, a Nova República se encarregou de colocar no artigo 4º da Constituição de 1988 os princípios que explicitam a moldura de legitimidade da política externa, recolhendo boa parte da sabedoria, das tradições, da memória institucional e das linhas mestras de nossa diplomacia em um articulado legal. Temos aí uma síntese perfeita do ideário diplomático tributário do Barão e que se confunde com a identidade internacional do Brasil, cujos traços correspondem, de maneira geral, a uma tradição, mas também à visão que temos do papel que o país deve desempenhar no mundo, ou seja, evoca uma aspiração e um horizonte de futuro – a  diplomacia e a política externa refletindo não apenas o que somos, mas o que queremos ser. Esse conjunto de atributos e princípios, como parece concordar Ricupero, é a um só tempo um construto social, um legado do passado a ser mantido e nutrido e um norte para responder aos novos desafios do presente e seguir construindo um futuro digno e soberano para o país.

Na parte final do livro, porém, o leitor notará um certo tom melancólico derivado da análise dos fatos recentes. Ricupero admite que não pode adotar a técnica das narrativas que garantem um final feliz, já que a realidade é muito mais complexa e os reveses são evidentes. A realidade do nosso tempo é de crescente desfazimento de antigos consensos e questionamento de postulados antes tidos como consensuais. Ricupero nota o afastamento de nossa diplomacia de elementos tradicionais que lhe garantiram boa parte de sua eficácia, ao deixar-se manipular por interesses político-partidários mais comezinhos. A história, parece alertar o autor, não é teleológica. Reveses e retrocessos ocorrem na vida dos países, um patrimônio diplomático pode muito bem ser desperdiçado, e a própria identidade internacional está sujeita a ser remodelada, para o bem ou para o mal.

Aquela “certa ideia de diplomacia” parece ter sofrido abalos nos últimos tempos, mas não foi derrotada, pois a moldura constitucional que sintetiza seus principais traços e linhas mestras continua vigente no mundo jurídico, ainda que erodida na prática, segundo se depreende da leitura dos últimos capítulos do livro. Há na obra um alerta do que podemos perder ao nos afastarmos do ideário fundado pelo Barão e um chamado à ação para que a diplomacia, amparada numa visão de país, possa continuar contribuindo para o desenvolvimento nacional e para a correção dos desequilíbrios que caracterizam nossa atroz realidade social. É uma exortação para revalorizar a moldura que garantiu a legitimidade de nossa diplomacia, de tal forma que a estratégia de inserção internacional, sem deixar de responder às mudanças e novas condições no terreno, siga fortalecendo as credenciais de um país grande, porém capaz de projetar interesses e valores por meios pacíficos, lançando mão das formas brandas de poder, em particular o direito, as instituições multilaterais, a não intervenção, o compromisso com a paz, o desenvolvimento e os direitos humanos. Esse cânone, cujo respeito sempre foi a condição de legitimidade da interlocução entre nós, precisaria ser resgatado e fortalecido.

Diplomacia não se faz no vácuo, como lembra Ricupero, pois não é e nunca foi uma espécie de variável independente ou um deus ex machina. A diplomacia angariou força pela inventividade e conhecimento de personagens de destaque, mas se banhou no mar da política nacional, interpretou as condições impostas pelo sistema internacional, ajudou a definir interesses prioritários, acertando e errando ao longo do caminho. A sensação de que sua ação foi legítima e reconhecida, apesar dos tropeços, deu a diplomatas e ao Itamaraty influência decisiva na defesa dos interesses nacionais e na garantia de um espaço de autonomia, seja no eixo de relações simétricas com nossos vizinhos, seja no eixo de relações assimétricas com as grandes potências, primeiro a Inglaterra e mais adiante os Estados Unidos. É essa ideia de diplomacia que Ricupero descreve e defende contra os ataques contemporâneos.

O livro de Ricupero, sem oferecer respostas definitivas, constitui defesa pungente da importância de resgatar aquela ideia de diplomacia tão bem dissecada na obra.

Na atual quadra histórica, e daí deriva boa parte do travo amargo dos capítulos derradeiros do livro, a preocupação é com as consequências de uma eventual ruptura com a moldura que enquadrava a ideia de diplomacia que por aqui prevaleceu desde os tempos do Barão. O que estaria por trás dessa erosão do ideário? Seria uma redefinição mais estrutural da identidade do país com a progressiva adoção de um novo conjunto de aspirações relativas ao nosso papel na região e no mundo? Ou apenas testemunhamos, na última década e meia, um soluço em nossa longa trajetória de afirmação da identidade que nos distinguiu na cena mundial? O livro de Ricupero não responde a essas questões, mas evidencia o que ganhamos ao preservarmos essa certa ideia de diplomacia e alerta para o que podemos perder se um dia a abandonarmos. No momento de grandes dilemas, em que novos conflitos afloram, a ordem internacional sofre abalos sísmicos e os desafios nacionais de desenvolvimento e bem-estar tornam-se mais complexos, o livro de Ricupero, sem oferecer respostas definitivas, constitui defesa pungente da importância de resgatar aquela ideia de diplomacia tão bem dissecada na obra. A alternativa, ao que parece, seria a dissipação do patrimônio diplomático conjugada com crise de identidade sem precedentes. Para um país que não conta com excedentes de poder duro, isso equivaleria a um desarmamento unilateral em meio ao fogo cruzado e a abrir mão da capacidade de moldar um futuro digno para o país e seu povo. Dito de outro modo, seria saltar no precipício da irrelevância. É por isso que ler Ricupero hoje tornou-se um imperativo para quem se importa com o futuro do país e acredita no papel central da política externa e da diplomacia profissional na busca do desenvolvimento nacional.

*Este texto foi escrito a título pessoal e não reflete necessariamente posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores.

Referências Bibliográficas

Belli, Benoni. 2018. “Diplomacia e Discernimento Político: reflexão acerca da natureza da atividade diplomática”. Cadernos de Política Exterior. Brasília: IRPI, IV (7): 13-39.

Bourdieu, Pierre. 1982 Ce que parler veut dire: l’économie des échanges linguistiques. Paris:  Fayard.

Lafer, Celso. 2004. A Identidade Internacional do Brasil e a Política Externa Brasileira. São Paulo: Perspectiva. P. 20.

Lopes, Dawisson Belém. 2013. Política Externa e Democracia no Brasil. São Paulo: Editora UNESP.

Simon, Roberto. 2021. O Brasil contra a Democracia: A ditadura, o golpe no Chile e a Guerra Fria na América Latina. São Paulo: Companhia das Letras.

Ricupero, Rubens. 2017. A diplomacia na construção do Brasil: 1750-2016. Rio de Janeiro: Versal Editores.

Recebido: 24 de outubro de 2021

Aceito para publicação: 13 de dezembro de 2021

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