A analogia histórica é recorrente[1]. Para descrever um mundo em que um enxuto diretório de líderes decide o rumo dos acontecimentos, recorre-se à memória da paradigmática conferência reunida na Crimeia soviética em fevereiro de 1945. Na ocasião, Franklin Roosevelt, Josef Stalin e Winston Churchill sentaram-se às margens do Mar Negro para, na base do oligopólio mais do que da representatividade, definir os contornos da ordem internacional do pós-guerra.
A Conferência de Ialta é conhecida por ter loteado a Europa em zonas de influência. Algo, paradoxalmente, também plantou as sementes para a formação de ordem internacional montada sobre as promessas do multilateralismo, da limitação do uso da força entre Estados e da aplicação universal do Direito Internacional. Com a criação das Nações Unidas, consagrava-se a ideia de igualdade jurídica entre os Estados, ainda que imperfeita, já que conservava resíduos de hierarquização: afinal, ungiu cinco potências aliadas à condição de membros permanentes do Conselho de Segurança – e com direito a veto nos assuntos afetos à manutenção da paz e da segurança internacionais.
Ora, a evolução recente da ordem internacional – a partir de meados da década de 2010, e, de forma mais pronunciada, desde 2022 – aponta para a acelerada desmontagem do ideário do pós-guerra: violações sistemáticas contra o Direito Internacional; banalização do uso da força militar; recrudescimento da competição entre grandes potências e retorno da "realpolitik"; crise permanente do multilateralismo; consagração de arranjos plurilaterais e, pior, triunfo do unilateralismo; redução dos incentivos para cooperação entre os Estados; preterição da diplomacia em favor da bravata e do enfrentamento; desmonte de alianças tradicionais; desprezo por agendas transnacionais, como a proteção do meio ambiente e o combate às mudanças climáticas; surtos protecionistas; e “desglobalização” são alguns dos fenômenos entrelaçados que desafiam as bases da arquitetura da governança global como a conhecíamos até recentemente.
O mais recente desses fenômenos seria a "re-hieraquização" das relações internacionais em torno de um pequeno oligopólio de grandes potências. Em outras palavras, trata-se da presunção de superioridade – que se supunha superada – e da reivindicação de “status especial” em relação ao conjunto da comunidade internacional, por força das dimensões territorial, demográfica e econômica e também da musculatura militar. De acordo com essa interpretação, alguns poucos grandes países nuclearmente armados se arrogariam as prerrogativas de tomar decisões autointeressadas, em nome da coletividade, frequentemente ao arrepio do Direito Internacional e em prejuízo da convivência pacífica entre as nações.
Em uma ordem internacional “re-hierarquizada”, seriam designadas zonas de influências arbitrárias, estabelecendo relações de soberania e vassalagem entre as grandes potências e países menores. Tende a fomentar, além disso, a lógica do intervencionismo, segundo a qual as potências que compõem o autoproclamado diretório dirigente sentem-se à vontade para intervir na soberania nacional alheia.
Em recente artigo para a Foreign Policy, Sarang Shidore (2025) recorda que: "esferas de influência são um tipo de arranjo de grandes potências para ordenar o mundo. Tradicionalmente, envolvem uma repartição territorial implícita entre grandes potências combinada com um entendimento compartilhado sobre como manter o arranjo e resolver as diferenças (tradução própria)". O autor admite que a aplicação do conceito à realidade internacional contemporânea poderá esbarrar em limites importantes, inclusive a existência de "potências intermediárias" indispostas a acatar docilmente a ideia de obediência e subordinação a capitais estrangeiras. Adicionalmente, o grau de "entendimento comum" entre as auto imputadas grandes potências poderá esbarrar na extensão da competição travada entre as próprias.
A emergência de uma ordem internacional multipolar competitiva e anti-isonômica tenderá a estimular a busca pelo equilíbrio de poder com base na medição de forças, ao invés de encorajar uma convivência internacional plural e ciosa das especificidades dos países menores e menos desenvolvidos. Nesse ambiente competitivo, costuma, via de regra, prevalecer a dinâmica de soma-zero nas relações entre os atores internacionais; ou seja: em que os ganhos de um dado campo é interpretado como perda pelos outros.
Seria ingênuo imaginar que a noção de "hierarquia informal" jamais esteve ausente desde a instauração do moderno sistema de Estados. Importa, contudo, o grau de formalização dessa hierarquia e – pior – do despudor com que é praticada. Se permanece inquestionável a assimetria inscrita no DNA do sistema – ou seja, a existência de países admitidamente com maior ou menor capacidade de influir nas decisões –, o que se constata hoje é um ensaio de regresso à "lei do mais forte".
Alto cardeal da escola realista das Relações Internacionais, Henry Kissinger postulava que, para ser estável, a ordem internacional deveria estar apoiada nos pilares do equilíbrio e da legitimidade. Caso essa nova ordem multipolar intrinsecamente hierárquica crie raízes, pode ser até possível que se pactue algum tipo de equilíbrio; já a legitimidade será mais custosa de alcançar. Não se vislumbra, hoje, por exemplo, a emergência de um "Concerto europeu global"; isto é, uma ordem multipolar entre potências equivalentes, tal como forjada pelo Congresso de Viena de 1815, após as guerras napoleônicas. É igualmente indisfarçável o contraste com o ânimo integracionista – o "liberal-institucionalismo" ou a "globalização", a depender de como se queira enxergar – que prevaleceu da queda do Muro de Berlim e a dissolução da União Soviética até meados dos anos 2010.
Ao contrário, o que poderemos vir a testemunhar é uma anômala combinação entre o modus vivendi de equilíbrio de poder da Guerra Fria e nova modalidade do tipo de imperialismo europeu praticada no século XIX, na forja do Great Game, travado entre Grã Bretanha e Império Otomano na Ásia Central, e da "corrida pela África", no que se refere à reedição de competição por recursos minerais ao redor do mundo.
Não são cenários otimistas.
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O Brasil tem longa tradição de defesa da igualdade soberana entre os Estados, o que significa, na prática, a rejeição cabal à hierarquização extremada. Desde que Ruy Barbosa defendeu o conceito perante a Segunda Conferência da Paz da Haia, em 1907, firmou-se como patrimônio conceitual da diplomacia brasileira.
Para os países, como o Brasil, defensores da estabilidade e da obediência a normas internacionais universalmente pactuadas, será, no mínimo, desafiador navegar nessa “nova velha ordem internacional”, que renuncia aos elevados princípios consagrados no pós-guerra e funde características de eras já há muito sepultadas. O equilíbrio na condução das relações diplomáticas e a firmeza na defesa da soberania nacional são igualmente assets da política externa brasileira, que, tradicionalmente independente e autônoma, sobrevive aos testes do tempo.
De um ponto de vista brasileiro, será sempre preferível uma ordem plural, assentada em governança global estável e previsível, em que a cooperação, o multilateralismo e o Direito Internacional prevaleçam sobre suas alternativas. Na frase que imortalizou na Haia, Barbosa (1907) parece ter vislumbrado a terceira década do século XXI: "Vi todas as nações do mundo reunidas, e aprendi a não me envergonhar da minha. Medindo de perto os grandes e os fortes, achei-os menores e mais fracos do que a justiça e o direito".
Notas
[1] As ideias expressas no texto não necessariamente refletem as posições oficiais do Ministério das Relações Exteriores.
Referências Bibliográficas
Barbosa, Rui. 1907. Discurso na II Conferência Internacional da Paz (Haia). Citado em Fundação Casa de Rui Barbosa, “Rui Barbosa em Haia,” site institucional, 24 de maio de 2021. https://www.gov.br/casaruibarbosa/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/rui-barbosa/rui-barbosa-em-haia.
Shidore, Sarang. 2025. “Spheres of Influence Are Not the Answer.” Foreign Policy, May 28, 2025. https://foreignpolicy.com/2025/05/28/spheres-of-influence-great-powers/.
Recebido: 15 de agosto de 2025
Aceito para publicação: 21 de agosto de 2025
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