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Seção Especial

O Oriente Médio é aqui: o Brasil entre o sionismo cristão e a solidariedade Sul-Sul

Transnacionalidades ideológicas e o paradigma doméstico da polarização

Resumo

Enquanto a direita brasileira solidificou sua aproximação ao sionismo cristão nas últimas décadas, a esquerda reforçou sua histórica associação à solidariedade Sul-Sul e à causa palestina. No espectro, ambas se capitalizam politicamente vis-à-vis o conflito israelo-palestino. Mas teria o 7 de outubro afetado essa dinâmica? Este ensaio caracteriza essas transnacionalidades ideológicas em paralelo e identifica o que a guerra aporta de inédito ao paradigma doméstico da polarização, discutindo suas implicações para a política externa brasileira.

Palavras-chave:

guerra contra Gaza; autocratização; transnacionalismo; palestinização; política externa.
Imagem: Shutterstock.

Desde a mais recente guerra israelense sobre Gaza, iniciada em retaliação ao ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023, dois importantes eventos podem ser identificados como reflexo do impacto do conflito e sua dimensão sobre a política doméstica e externa brasileira. O primeiro evento reflete o alinhamento próximo do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e membros da oposição à classe política e representantes diplomáticos de Israel e, de forma mais ampla, ao seu chamado direito de defesa. O segundo conjunto de eventos gira em torno do posicionamento do governo brasileiro alinhado à autodeterminação palestina e à condenação das violações dos direitos humanos pelas lideranças israelenses, resultando em desgastes diplomáticos entre Brasil e Israel. Os eventos podem ser compreendidos como continuum, como crescente ou, ainda, na condição de constelação ou eixo conjuntural. 

O primeiro deles foi o polêmico encontro entre o embaixador israelense no Brasil Daniel Zonshine e Bolsonaro com parlamentares da oposição, em novembro de 2023. Condenando o ataque do Hamas, Bolsonaro associou o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao grupo. A iniciativa na Câmara dos Deputados para exibição de imagens do 7 de outubro causou desconforto no meio diplomático, tendo sido vista como evento de cunho político, quebra de protocolo e intromissão nos assuntos domésticos. 

A proximidade do embaixador com a oposição, como por meio do Grupo Parlamentar de Amizade Brasil-Israel, é amplamente reconhecida, refletindo-se no empenho cooperativo entre os países nas áreas de segurança pública e combate ao crime organizado (PDL 554/21) e na apresentação pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL/SP) do PDL 349/2023, visando encerrar um acordo técnico-cooperativo entre Brasil e Autoridade Nacional Palestina (Decreto 11.695/2023).

Após o incidente diplomático, a morosidade para liberação dos brasileiros na Faixa de Gaza somou-se ao descontentamento do governo, que tentava inabilmente equilibrar a demanda pelo cessar-fogo e as críticas ao Hamas. A oposição capitalizou a liberação dos 32 brasileiros ao êxito de Bolsonaro e Zonshine. A indisposição política estava patente desde a publicação da Resolução do Partido dos Trabalhadores (PT) fazendo referência ao genocídio, quando a embaixada israelense e a legenda se ressentiram mutuamente. Durante a Operação Trapiche, Ministério da Justiça e Polícia Federal expressaram sua insatisfação com a instrumentalização política pelo governo israelense no combate ao Hezbollah.

As associações da oposição aos interesses israelenses remetiam a iniciativas anteriores. Ainda em campanha, Bolsonaro solidarizou-se com as preocupações norte-americanas em estender regionalmente sua cooperação contraterrorista – enfrentando resistência do Ministério da Defesa, Agência Brasileira de Inteligência e Polícia Federal. Eduardo Bolsonaro encaminhou moções de repúdio, classificando Hezbollah, Hamas e Jihad Islâmica como terroristas (Bolsonaro 2021a, 2021b). Arquivadas, as moções foram reapresentadas após os ataques de outubro (Bolsonaro 2021c). A ala olavista prometia o fechamento da embaixada palestina em Brasília e a transferência da representação brasileira para Jerusalém. Por fim, recentemente, estados e capitais brasileiras adotaram a controversa definição maximalista de antissemitismo proposta pela International Holocaust Remembrance Alliance, que inclui como crime de antissemitismo diferentes formas de crítica ao Estado de Israel.

Durante 2023, as indisposições internas e diplomáticas correspondiam a um cenário tampouco harmônico em organismos internacionais. A representação brasileira, liderada pelo chanceler Mauro Vieira, tentou viabilizar uma resolução que previa um cessar-fogo durante a presidência rotativa do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas em outubro. Sem sucesso, o Conselho foi criticado por sua paralisia, ineficiência do sistema de governança e representatividade (Vieira 2023a).

O segundo evento, igualmente polêmico, com a sequência de acontecimentos que se seguiram, foi a declaração de Lula durante a 37ª Cúpula da União Africana na Etiópia, quando associou a resposta israelense ao extermínio nazista. A Confederação Israelita do Brasil acusou o governo brasileiro de abandonar a tradição de equilíbrio e de busca do diálogo. Netanyahu também repudiou a fala por “cruzar uma linha vermelha”. Foi mais uma oportunidade política para o premier forjar consenso nacional e apaziguar vozes domésticas dissonantes. 

Em reprimenda, o governo israelense advertiu o embaixador brasileiro, Frederico Meyer, declarando Lula “persona non grata” no país, refletindo seu incômodo com a postura brasileira dentro e fora das Nações Unidas. Desconfortável com o tratamento entendido como hostil e constrangedor, Brasília convocou seu diplomata de volta, retirando-o oficialmente três meses depois.

O desgaste representou a pior crise diplomática entre Brasil e Israel depois da atribulação do “anão diplomático” em 2014 – quando Dilma Rousseff condenou o uso desproporcional de força em Gaza e convocou o então embaixador para consultas – e dos ruídos em 2015, quando rejeitou a nomeação de Dany Dayan. Embora não signifique o rompimento das relações diplomáticas bilaterais, a retirada do embaixador foi o ato diplomático mais forte tomado por Lula até o momento.

Menos do que dizer que as elites políticas brasileiras importam o conflito israelo-palestino para suas próprias disputas domésticas, intrometendo-se em assuntos alheios, a análise do arcabouço que sustenta tais alinhamentos demonstrará que essas lideranças ressignificam e se alavancam politicamente a partir desses eventos. Nesse sentido, a instrumentalização da guerra em Gaza serve não somente como campo de desgastes, ofensivas e contraofensivas entre governo e oposição, como também de reforço e atualização das próprias agendas e normativas internas a cada grande polo político-ideológico.

Menos do que dizer que as elites políticas brasileiras importam o conflito israelo-palestino para suas próprias disputas domésticas, (...) essas lideranças ressignificam e se alavancam politicamente a partir desses eventos. Nesse sentido, a instrumentalização da guerra em Gaza serve não somente como campo de desgastes, ofensivas e contraofensivas entre governo e oposição, como também de reforço e atualização das próprias agendas e normativas internas a cada grande polo político-ideológico.

Este policy paper investigará, nas duas seções a seguir, tanto a solidificação da direita brasileira em sua aproximação ao sionismo cristão, pautado sobre a ideologia do domínio e representado politicamente pela ascensão do bolsonarismo, quanto a histórica associação da esquerda à solidariedade Sul-Sul, ao anti-imperialismo e à causa palestina. Aqui nos propomos a identificar o que caracteriza essas transnacionalidades ideológicas postas em paralelo e como essa projeção narrativa e suas alianças ideológico-internacionais se estruturaram ao longo do tempo. Como veremos, ambas as agendas são continuamente capitalizadas vis-à-vis o conflito israelo-palestino. 

Sem desconsiderar que inúmeros conteúdos não são alcançados pelo paradigma da polarização ideológica, a questão que permanece é se o ataque de 7 de outubro afetou a dinâmica brasileira de apropriação do debate. Haveria algo de inédito no impacto doméstico do pós-guerra sobre Gaza? O texto termina discutindo quais as implicações desse cenário para a política externa brasileira, tanto no que diz respeito ao seu protagonismo como mediadora multilateral, quanto como reflexo da identidade nacional e política doméstica.

O SIONISMO CRISTÃO E A TEOLOGIA DO DOMÍNIO

Para nós, o Deus de Israel é o nosso Deus. Não tem nenhuma, absolutíssima diferença.

– Pastor Silas Malafaia, entrevista à Federação Israelita do Rio de Janeiro, 2014

Desde cedo em sua campanha eleitoral, Bolsonaro flertou com Israel e com símbolos judaicos, que passaram a ser cada vez mais frequentes em comícios e manifestações. Ainda candidato, se sustentou na nova direita evangélica na condição de principal nicho eleitoral, respaldando suas demandas moralistas e conservadoras. O resultado foi significativo: em 2023 Bolsonaro figurou em 2º lugar entre os 50 principais aliados cristãos de Israel em todo o mundo, segundo a Israel Allies Foundation.

…o sionismo cristão, em sua visão messiânica, entende que a restauração completa de Israel como nação escolhida por Deus e o retorno dos judeus à Terra Santa antecipam o segundo retorno de Jesus Cristo. A conquista e expansão de Israel, entendidas como reencarnação histórica do Reino de Deus (Israel bíblico), são um sinal profético do cumprimento da promessa divina aos judeus – que exercem papel fundamental na salvação cristã. Reafirmando a ordem providencial divina, a defesa de Israel é não somente um sinal divino como também um dever moral.

A aproximação com Israel se fundamenta na medida em que o sionismo cristão, em sua visão messiânica, entende que a restauração completa de Israel como nação escolhida por Deus e o retorno dos judeus à Terra Santa antecipam o segundo retorno de Jesus Cristo. A conquista e expansão de Israel, entendidas como reencarnação histórica do Reino de Deus (Israel bíblico), são um sinal profético do cumprimento da promessa divina aos judeus – que exercem papel fundamental na salvação cristã. Reafirmando a ordem providencial divina, a defesa de Israel é não somente um sinal divino como também um dever moral.

No caso da percepção de uma ameaça existencial, o empenho desse apoio refletiria a intensidade da própria fidelidade do crente ao povo de Deus, de modo que a associação estreita com Israel em torno da ideia de valores e de comunidade é feita a partir de um sionismo bíblico, não um sionismo propriamente político (Amstutz 2023; Miller 2014).

No Brasil, o crescimento demográfico dos evangélicos mudou a correlação de forças no meio cristão, criando um novo campo de disputas políticas e ressignificações teológicas, com semelhanças e diferenças em relação ao sionismo cristão norte-americano. Domesticamente, desde os anos 1990, igrejas como a Batista, Assembleia de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus passaram a representar um caminho também para a inclusão social, representação e influência sobre políticas públicas (Machado, Mariz & Carranza 2022).

Nas últimas décadas, iconografia, rituais e vestimentas judaicas vêm sendo incorporados nos cultos evangélicos e liturgias neopentecostais brasileiras. De acordo com Marta Francisca Topel (2011), esse uso é feito através do dispensacionalismo, sistema teológico milenarista segundo o qual as promessas divinas a Israel por salvação, terra e descendentes serão cumpridas através da segunda vinda de Cristo. Quando da dispensação do Apocalipse, o reino messiânico se instalará em Jerusalém – quando todos os judeus se converterão ao cristianismo. Assim, Topel argumenta que os usos do sincretismo religioso, da bricolagem e de hibridizações são ferramentas de diálogo com o global e de reelaboração do cristianismo contemporâneo.

De um lado da teologia dispensacionalista, estava o missionarismo global, empreendido através de viagens à Terra Santa e do turismo de massa (Paganelli 2019), apoiando-se em redes transnacionais de informações e pessoas. De outro, a teologia do domínio empenhou-se em legitimar a inserção de líderes evangélicos na esfera pública doméstica, necessária para implementação do “Governo dos Justos” (Machado, Mariz & Carranza 2022). Sob Donald Trump e Bolsonaro, o sionismo evangélico insere-se localmente bem como exporta seu expansionismo, consolidando e catalisando a representação política cristã.

Nesse sentido, a própria identidade das igrejas é forjada, simbólica e escatologicamente, marcando sua legitimidade a partir do distanciamento do Novo Testamento. Conforme escreve Manoela Carpenedo (2022), é através do judaísmo que o cristianismo pode ser purificado, restaurando a autenticidade da igreja – passando pela reconstrução da identidade religiosa do crente como “parte do povo escolhido”.

Os elementos individuais, coletivos e transnacionais somente se associaram a partir dos anos 1990, quando a vinculação do imaginário a Israel – e aos judeus ortodoxos, de forma seletiva (Carpenedo 2022) – passa a ser particularmente relevante. Isso ocorre por meio da incorporação da batalha espiritual-individual (presente já décadas antes) à noção dos chamados “demônios territoriais”, alvos do trabalho missionário (Machado, Mariz & Carranza 2022). É a noção de territorialidade do Velho Testamento que fundamenta o desejo pela ação política e de governo – um “evangelistão”, nas palavras do teólogo Sérgio Dusilek (Dusilek apud Mori 2024). 

Assim, o filossemitismo favorece a judaicização, embora haja líderes pentecostais – minoritários – que, em razão do belicismo israelense, não são ativistas do sionismo cristão (Carpenedo 2022, 74-76; Machado, Mariz & Carranza 2022). A sobreposição entre o Israel moderno e o bíblico faz com que judeus ortodoxos e evangélicos sionistas compartilhem uma agenda antidemocrática e expansionista – embora por diferentes razões e na expectativa de consequências irreconciliáveis (Nemer 2020).

Não somente o materialismo, a teologia da prosperidade e o emocionalismo sobrenatural caracterizam essa restauração neopentecostal, como também o anti-intelectualismo (Carpenedo 2022). A isso também são somados o maior senso de coletividade proporcionado, as pautas dos costumes, benefícios e inclusão social, aproveitando-se do desgaste do petismo nessas comunidades. 

A guerra cultural entre esquerda e direita difundida por Olavo de Carvalho é elemento central, atrelando a defesa de Israel à promoção dos valores da sociedade ocidental judaico-cristã (Gonçalves 2024 apud Mori 2024). A dicotomia postula um combate ao declínio moral e à ameaça do cosmopolitismo globalizante, associados às conspirações comunistas e muçulmanas na promoção do antiamericanismo (Rocha 2021).

Porque percebidos enquanto civilizacionalmente ameaçados, a exceção democrática é autorizada. Segundo Fábio Nobre, André Pini e Maria Eduarda de Menezes (2023), o chamado “cidadão de bem”, enquanto insider, precisa ter sua ordem hierarquizante resguardada do marxismo desestruturante. Assim, na guerra espiritual e cultural entre bem e mal, o discurso bélico-religioso é adicionado à agenda política do pentecostalismo sionista, naturalizando a militarização e a violência (Teixeira 2024 apud Mori 2024; Rocha 2021) – no Brasil ou na Palestina.  

Característica marcante do populismo bolsonarista reacionário, o anti-intelectualismo o associa ao progressismo e à esquerda identitarista. Enquanto elitistas, seriam alheios à vida real. Para além do solapamento das instituições democráticas, a extrema-direita brasileira disputa a própria episteme da democracia, postulando-se como verdadeira representante popular – no discurso e na estética. Sua característica personalista e messiânica, além de capitalizar sobre demandas econômicas e sociais, explora a sensação de insegurança pública e moral. O bolsonarismo alavancou-se a partir desse arcabouço religioso pela inserção institucional e pública, legitimando-se e tecendo alianças transnacionais.

O embaçamento intencional da linha entre judaísmo e Israel também atende bem aos interesses de Netanyahu, que pouco se incomoda com o mimetismo da estética judaicizante. O alinhamento da nova direita brasileira com Israel e outros governos ultradireitistas faz parte de uma agenda transnacional mais ampla, anti-establishment e antiliberal, que desconfia das próprias instituições representativas. 

O embaçamento intencional da linha entre judaísmo e Israel também atende bem aos interesses de Netanyahu, que pouco se incomoda com o mimetismo da estética judaicizante. O alinhamento da nova direita brasileira com Israel e outros governos ultradireitistas faz parte de uma agenda transnacional mais ampla, anti-establishment e antiliberal, que desconfia das próprias instituições representativas. O alinhamento entre Bolsonaro, Trump e Netanyahu tem paralelos, da Argentina de Milei à Hungria de Orbán e a Índia de Modi. 

Esse movimento insere-se na chamada 3ª onda de autocratização (Lührmann & Lindberg 2019), de desgaste gradual das instituições democráticas por meio de uma fachada legalista. Segundo Erica Frantz, Andrea Kendall-Taylor, Carisa Nietsche e Joseph Wright (2021), o personalismo se associa ao populismo autoritário e à polarização política, facilitados por novas tecnologias e ferramentas digitais. Para Somer, McCoy e Luke (2021), o discurso anti-establishment é presente em atores populistas de extrema-direita que forjam identidades narrativas mediante o resgate e a reelaboração do passado e de diferentes imaginários tradicionais vis-à-vis a realidade política doméstica e regional, incluindo ameaças étnico-religiosas ou endossando uma agenda cristã conservadora e reacionária (Wodak 2021, 175). 

Na medida em que a imagem israelense vai sendo associada ao bastião democrático e à exceção regional em meio a um Oriente Médio belicoso, forja-se uma identidade israelense essencialmente branca e colada à imagem liberal e ocidental. Paradoxalmente, esse Israel imaginado despe-se inclusive de seu caráter judaico, dando espaço a posturas mais excludentes e segregacionistas. 

A apropriação simbólica dos signos não é recebida sem críticas pela comunidade no Brasil. A organização Judeus pela Democracia, por exemplo, por inúmeras vezes repudiou o uso da bandeira israelense como legitimadora do antipetismo em atos pró-Bolsonaro. Michel Gherman (2022) fala em infiltração e isolamento dos judeus de esquerda e antissionistas no Brasil, além do fomento de um imaginário do judaísmo brasileiro colado à manutenção de privilégios socioeconômicos e à branquitude.

Da mesma forma que a polarização não é capaz de alcançar a multiplicidade de identificações e o amplo pluralismo dentro de cada grande eixo do espectro, também a análise mais detida das características do bolsonarismo, do likudismo (Likud é o partido político de Netanyahu, que lidera o governo de coalizão reunindo centro-direita e extrema-direita) e das alianças globais da extrema-direita torna patentes contradições internas e até antinomias – tais como o embranquecimento e a ocidentalização de Israel, sua associação ao imaginário nazista (inclusive sob Bolsonaro), ou a escamoteação do auto-antissemitismo. Por fim, a Questão Palestina também escancara a crise da democracia e das instituições representativas no Ocidente – na medida em que, no mundo não ocidental e em Gaza, a exceção ao direito internacional sempre foi regra.

SOLIDARIEDADE SUL-SUL E A QUESTÃO PALESTINA

Mas sabemos muito bem que nossa liberdade é incompleta sem a liberdade dos palestinos, sem a resolução dos conflitos no Timor Leste, no Sudão e em outras partes do mundo.

– Nelson Mandela, Dia Internacional de Solidariedade com o Povo Palestino, 4 de dezembro de 1997

Superando o modelo colonial, diferentes experiências emancipatórias de autogoverno e resistência emergiram no pós-Segunda Guerra. Enfrentando dilemas do subdesenvolvimento e da descolonização, o emergente Terceiro Mundo elaborou diferentes modelos de desenvolvimento – mais ou menos autônomos. Em razão de a esquerda ser anti-imperialista por excelência, a ideologia informou tanto as comunas agrícolas kibutzim das primeiras décadas do século XX, sob um idealismo coletivista, secular e socialista, quanto o apoio à autodeterminação do Estado palestino.

Atualmente referido como Sul Global, o Terceiro Mundo – conjunto de países do Oriente Médio, Ásia, América Latina e África – se definia pela desassociação dos conflitos bipolares da Guerra Fria, assumindo uma postura diplomática e geopolítica de equidistância estratégica. A coordenação em torno da proposta de neutralismo e do desenvolvimentismo teve, na Conferência de Bandung de 1955, as bases para os avanços das relações Sul-Sul. Inspiração para o posterior Movimento dos Não Alinhados em 1961, o neutralismo era acompanhado por demandas anti-imperialistas e emancipatórias, combate à pobreza e ao subdesenvolvimento. 

A Conferência era balizada pelo fomento à cooperação política, econômica e técnica entre países em desenvolvimento. Entre seus princípios orientadores estavam a resolução de conflitos através de meios pacíficos e arbitrados multilateralmente, respeito à soberania e não ingerência, à justiça, igualdade e aos compromissos internacionais.

Segundo Sally Morphet (2004), o Movimento dos Não Alinhados continuou a propor práticas pacíficas de cooperação multilateral e mutuamente benéficas, cujos acordos e padrões colaborativos, contudo, foram frequentemente tidos como irrelevantes pela literatura ocidental. Embora tenha registrado sucesso moderado, foi fundamental a coordenação do movimento no combate ao regime segregacionista da África do Sul e ao sionismo expansionista na Palestina.

Em 1983 foi criado o Comitê dos Nove Países Não Alinhados sobre a Palestina, promovendo apoio à luta palestina pela garantia de autodeterminação e independência. A solidariedade com os sul-africanos e seu combate à discriminação racial e ao apartheid era igualmente afirmada pelo Comitê. Durante a 7ª Conferência dos Chefes de Estado ou Governos dos Países Não Alinhados, o movimento condenou a colaboração de países ocidentais e de Israel com o regime sul-africano por meio de investimentos e assistência econômica, fomentando suas aspirações nucleares. A Conferência também endossava a noção de sionismo como forma de racismo e discriminação racial (A/38/132 S/15675 1983, 9, 19) – a Resolução 3379/1975 foi posteriormente revogada pela ONU em 1991.

A afinidade do Congresso Nacional Africano com a Organização para Libertação da Palestina (OLP) se estabeleceu pela identificação mútua com a libertação e autodeterminação. O alinhamento também foi anti-status quo, visto que Israel e o apartheid haviam estabelecido laços estreitos de cooperação, inclusive anti-insurgente. O ativista e pai da nação sul-africana moderna, Nelson Mandela, reconheceu publicamente o apoio não somente retórico e narrativo de Yasser Arafat e Fidel Castro na luta antiapartheid, como através do aporte direto de recursos. 

O Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), formado em 2005 por uma coalizão de organizações palestinas da sociedade civil, apoia-se fortemente nas premissas sul-africanas de não violência e uso do boicote cultural, econômico e acadêmico às empresas israelenses ou internacionais envolvidas na violação dos direitos humanos palestinos.

O presidente egípcio Gamal Abdel Nasser foi um dos principais expoentes do neutralismo e do terceiro-mundismo. A proposta de nacionalismo árabe unificado, promoção de reformas sociais e oposição à ingerência externa associou-se de forma significativa à Questão Palestina. O tema serviu não somente para captar uma parcela maior da opinião pública regional e internacional, como para conferir legitimidade ao discurso nasserista. Conforme aponta Murilo Meihy (2014), ao lado de outros líderes árabes, como no Líbano, Egito e Líbia, Nasser fez uso conveniente da Questão Palestina como norteadora de sua agenda retórica na busca por liderança regional e visibilidade internacional – ao menos até 1967. 

A solidariedade de Cuba com a Questão Palestina registra percepção semelhante. Segundo Metz (1993), a nova política hostil de Fidel Castro para Israel pós-1967 e de favorecimento à Organização para Libertação da Palestina teria sido oportunista, instalada no intuito de estabelecer sua liderança no Terceiro Mundo. A pressão tanto árabe quanto soviética e o desejo por apreço da URSS também teriam influenciado a posição cubana anti-israelense pós-revolução. 

No Irã, a resistência pré-revolucionária e antimonarquista já se opunha, nos anos 1960 e 1970, à forte inclinação comercial e diplomática do Shah Reza Pahlevi em direção a Israel e aos Estados Unidos. Embora tenha perpassado diferentes fases (Alavi 2019), há, desde 1979, um continuísmo no antissionismo iraniano. Na posição de coordenador do Eixo da Resistência composto por Síria, Hezbollah no Líbano, Ansar Allah no Iêmen, Qauwat Hashd Al-Sha'bi no Iraque e pelo Hamas, o Irã há décadas engaja-se em cooperação técnico-militar para a guerra assimétrica, fornecendo inteligência, apoio logístico, financeiro e treinamento.

A causa também se tornou estrategicamente vantajosa ao Irã, conferindo-lhe poder, influência e protagonismo regional (Alavi 2019). Seu modelo transnacional se propõe representante de um vanguardismo antiocidental, emancipatório e terceiro-mundista – uma espécie de reelaboração do espólio pan-arabista e marxista – potencialmente unificador no mundo islâmico (Abisaab & Abissab 2014).

No Brasil, o Movimento Negro Unificado, fundado em 1978, fez parte da construção das redes internacionais antirracistas e pela libertação dos povos, tendo sido aliado da OLP e contribuído significativamente na luta contra o apartheid nos anos 1980. A aliança com a Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal) permanece até hoje. O movimento de solidariedade transnacional Sul-Sul negro-palestina se cristalizou durante a virada anticolonial e sobretudo após a guerra de 1967. Os elos incluem ativismo político e correntes intelectuais proeminentes (Erakat & Hill 2019, 8), a exemplo do combate à militarização e violência policial, desafios que afetam igualmente negros e palestinos (Borges & Neto 2023).

Egito e Irã, os mais novos membros do BRICS, figuram ao lado do Brasil e África do Sul – todos que historicamente se destacaram no eixo da solidariedade Sul-Sul pró-Palestina. A Índia, embora desde a década de 1920 se alinhasse à Palestina em sua emancipação antibritânica e cuja desobediência civil ressoava a sul-africana, nas últimas décadas engajou-se em cooperação militar e tecnológica com Israel – cujo nacionalismo hoje insere-a no eixo autocrático transnacional. 

Assim, o Terceiro Mundo tradicionalmente dialogou e se alavancou politicamente vis-à-vis o conflito israelo-palestino – ainda que as razões tanto da esquerda quanto dos líderes árabes e muçulmanos possam se relacionar às ambições pessoais e/ou interesses geopolíticos. 

Embora as bases da solidariedade Sul-Sul e do engajamento terceiro-mundista tenham marcado um alinhamento enfaticamente pró-palestino, o Brasil manteve, historicamente, uma posição tradicional de neutralidade e equidistância estratégica em relação à Questão Palestina. Essa descontinuidade centrada na figura presidencial (Brun 2016) foi tipicamente pautada na projeção internacional, no bom relacionamento doméstico com as comunidades árabes e judaicas e nos interesses econômicos (Vigevani & Calandrin 2019). Resta saber se o pós-7 de outubro, sob o lulismo, permanecerá mantendo a ambivalência estratégica corporativa ou se estabelecerá um rompimento definitivo.

CONTINUÍSMO, PROJEÇÃO E O 7 DE OUTUBRO

Lula não deu um tiro no pé com o público evangélico, mas um tiro na cabeça. A Bíblia diz que, quem se coloca contra Israel, busca a maldição.

– Pastor Silas Malafaia, em 19 de fevereiro de 2024

A reação desproporcional ao 7 de outubro apresentou-se como nova oportunidade de apelo do Sul Global, que voltou a resgatar suas demandas dos anos 1950. Um dos gestos mais simbólicos e representativos da solidariedade Sul-Sul foi o resgate da associação da libertação sul-africana à palestina. Além de convocar seu embaixador em Israel, a África do Sul entrou com uma queixa junto à Corte Internacional de Justiça em violação à Convenção sobre Genocídio. Palestina, Nicarágua, Colômbia, México e Líbia solicitaram a união formal ao caso. Brasil, Bélgica, Turquia, Egito, Maldivas, Irlanda, Chile e Espanha sinalizaram interesse (UNRIC 2024). 

O primeiro mês do conflito coincidiu com a presidência rotativa do Brasil no Conselho de Segurança da ONU, que buscou ativamente o consenso em torno de uma resolução pelo cessar-fogo. Meses depois, durante a 8ª Cúpula da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, o país continuou os apelos por pausas humanitárias e proteção de civis (Gonçalves & Crespo 2024). 

Em novembro de 2023, a Bolívia foi o primeiro país latino-americano a romper relações diplomáticas com Israel. O Chile, lar da maior diáspora palestina fora do Oriente Médio, convocou seu embaixador para consultas, assim como Honduras e Nicarágua – esta última tradicional aliada palestina (Gonçalves & Crespo 2024). Em maio de 2024, a Colômbia – importante aliado militar e estratégico norte-americano e israelense no combate ao narcotráfico sob o marco da guerra contra o terror – anunciou que encerraria as relações diplomáticas com Israel.

Após cinco meses de guerra, a primeira resolução demandando um cessar-fogo imediato foi aprovada pelo Conselho de Segurança da ONU. A Argélia apresentou o texto dos membros não permanentes, majoritariamente nações do Sul Global (Tant & Larbi 2024). Importante mencionar, a aprovação da UNSCR 2728 (2024) provocou um dos mais significativos desgastes públicos entre Israel e Estados Unidos (Lederer 2024) – a partir do Sul. 

A chamada “intifada estudantil global” foi composta por dezenas de universidades ao redor do mundo, inclusive a Universidade de São Paulo, palco de manifestações convocadas por agremiações estudantis pró-Palestina e pelo BSD, com apoio do coletivo Vozes Judaicas por Libertação. A Rede Universitária de Solidariedade ao Povo Palestino foi criada. Manifestações e passeatas foram registradas em diferentes cidades brasileiras, coordenadas por associações como a Fepal, a Frente Palestina de São Paulo e a Confederação Palestina Latino-Americana e do Caribe, em aliança com o PT, PCdoB e PSOL. Em 2023, o Movimento Negro Unificado e a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direitos (compondo a Coalizão Negra por Direitos) articularam junto à Assembleia Geral da ONU (Borges & Neto 2023).

O Sul Global e os países latino-americanos se postularam como uma voz dissonante e balizadora em termos de solidariedade com a Palestina. O forte amparo Sul-Sul com a Palestina pós-7 de outubro é significativo, na medida em que reivindica para si a governança da ordem internacional – questionando a legitimidade, autoridade e credibilidade do Norte Global (Gonçalves & Crespo 2024). 

A partir do “levante dos subalternos”, atores não tradicionais unificados ofereceram uma plataforma solidária, fruto das experiências compartilhadas. O modelo propôs justiça global e equidade a partir das próprias convenções internacionais (Tant & Larbi 2024). Contudo, é mister não perder de vista que, mesmo que a plataforma solidária Sul-Sul se componha de forma orgânica, ela também serve como palco e instrumento para alavancagem de agendas políticas próprias – inclusive no Brasil. 

Os eventos recentes demonstram que, grosso modo, os alinhamentos entre os movimentos de solidariedade global Sul-Sul e a causa palestina, de um lado, e o sionismo cristão e a extrema-direita pró-israelense, de outro, já estavam previamente estruturados. (...) Domesticamente, a guerra sobre Gaza traz de inédito a projeção e amplitude da equação na polarizada política nacional, promovendo graus sem paralelo de identificação, propagandização e instrumentalização do conflito.

Os eventos recentes demonstram que, grosso modo, os alinhamentos entre os movimentos de solidariedade global Sul-Sul e a causa palestina, de um lado, e o sionismo cristão e a extrema-direita pró-israelense, de outro, já estavam previamente estruturados. Assim, o cenário atual não é qualitativamente diferente do pré-7 de outubro. Contudo, seus efeitos não podem ser ignorados. Eles trouxeram pujança global para a causa palestina como um todo, além de maior diálogo e entrelaçamento entre seus aliados tradicionais – sobretudo da sociedade civil. 

Internacionalmente, o Sul Global promoveu um isolamento diplomático de Israel sem precedentes. Domesticamente, a guerra sobre Gaza traz de inédito a projeção e amplitude da equação na polarizada política nacional, promovendo graus sem paralelo de identificação, propagandização e instrumentalização do conflito. Hoje, no debate político, o Brasil conta com repertório e vocabulário muito maiores para acionar.

Dois problemas se postulam: em primeiro lugar, não se trata da mera importação dos conflitos ou de uma projeção pura e automática sobre os debates brasileiros, que retira dos agentes político-sociais seu protagonismo. Na verdade, esses atores mobilizam, reciclam e reinterpretam suas pautas internas, redes e narrativas vis-à-vis o conflito alhures. Em segundo lugar, sem desconsiderar seus impactos, embora a variável da polaridade interna seja algo novo para pensar o mais recente conflito, ela não somente tem raízes mais profundas como inúmeras contradições e ambivalências no cenário brasileiro, que são pouco discutidas.

Global e domesticamente, o binarismo é simplista, pois, enquanto a direita se apressa para se declarar anti-Palestina, porque entende que o projeto decolonial é frequentemente violento e esquerdista, do lado inverso, o sionismo também é visto como colado à direita fascista e ao imperialismo, daí ele ser rechaçado pela esquerda. Os efeitos são diversos: se, por um lado, a esquerda não perdoa àqueles que se dizem contra a ocupação mas ao mesmo tempo sionistas, por outro ela nega o real risco de antissemitismo e antipentecostalismo pelo segmento, factível justamente porque o caráter exclusivamente judeu de Israel foi amplamente propagado. Ademais, o sionismo cristão coaduna com o Israel de Netanyahu através do antipalestinismo, promovendo a equivalência entre antissemitismo e antissionismo e prestidigitando o auto-antissemitismo. Em boa medida, embora os evangélicos brasileiros enfrentem preconceitos, seu forte engajamento político também fomenta a intolerância contra religiões afro-brasileiras e grupos LGBTQIAPN+.

O fenômeno do palestinismo moderno foi atrelado pelo sionismo cristão e judaico não aos valores humanistas de autodeterminação dos palestinos, do progressismo anti-imperialista, interseccional e antiracista, mas à violência, ao desrespeito às liberdades religiosas, às iniciativas antidemocráticas e ao antiamericanismo iraniano. Ademais, parte islamofóbica da esquerda antiárabe também se opõe ao palestinismo, na medida em que não percebe as mulheres como suficientemente libertas, ou por condenar a homofobia ali.

Entre a polarização há outras manifestações não contempladas, como a condenação por parte do movimento negro da comoção seletiva sobre a Questão Palestina, que relativizaria genocídios contra povos negros e indígenas no Brasil; da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, pró-Palestina; da esquerda sionista e anti-Palestina; ou ainda dos judeus brasileiros progressistas, libertários e antissionistas, desvinculados da agenda de extrema-direita. A esquerda também reage ao conflito replicando suas próprias disputas anteriores – tanto na medida em que barganha a imposição de bandeiras e interesses que lhe são alheios (como o apoio ao Hamas pela extrema-esquerda), quanto na medida em que nem todos os membros da comunidade árabe e palestina são, de fato, de esquerda. Por fim, expressões também não contempladas pelo binarismo incluem os membros da comunidade árabe-brasileira que não são pró-Palestina. 

Embora certamente não sejam discussões novas, a reação ao 7 de outubro em um contexto de redes sociais, fake news e polarização doméstica fez com que o uso e a mobilização política da guerra – inclusive pelo cidadão médio – se amplificassem. Exemplos incluem associação do lulismo ao crime organizado e ao tráfico (e automaticamente ao terrorismo do Hamas), e a associação do bolsonarismo à luta do bem contra o mal (a exemplo da intermediação da liberação dos brasileiros em Gaza), além da aproximação entre desenvolvimentismo e militarismo autoritário em Israel, em defesa do “mal menor incontornável”. 

Portanto, além da Questão Palestina ser utilizada como instrumento de alavancagem política e aumento da coesão intragrupo, em ambos os lados do espectro ela é mobilizada para desgastar politicamente adversários na arena doméstica brasileira. No âmbito individual, a associação aos temas e respectivos eixos tem como função o fortalecimento identitário-religioso e o reforço ideológico-político.

UMA NOVA POLÍTICA EXTERNA?

Nas últimas décadas, a direita brasileira solidificou sua aproximação ao sionismo cristão, pautado sobre a ideologia do domínio e representado politicamente pela ascensão do bolsonarismo. Paralelamente, a esquerda brasileira reforçou sua histórica associação à solidariedade Sul-Sul, ao anti-imperialismo e à causa palestina. Democratizante ou autocrático, inclusivo ou reacionário, o populismo em ambos os extremos apela às massas e combate o elitismo no seu afã transformador. Em termos discursivos, ambas as agendas são continuamente capitalizadas vis-à-vis o conflito israelo-palestino, que permanece sendo alvo de disputa e instrumento de diálogo e alavancagem – incluído um continuum plural e ambivalente no amplo espaço existente entre a polarização. 

Esse policy paper identificou o que caracteriza essas transnacionalidades ideológicas em paralelo e discutiu como o ataque do Hamas de 7 de outubro afetou essa dinâmica. Além de sinalizar o que há de anterior – e de inédito – nessa projeção narrativa, elucidamos alguns dos conteúdos não alcançados pelo paradigma da polarização ideológica, que não dá conta da realidade múltipla, nem de como esses indivíduos dão significado à vivência em meio às contradições e ambiguidades. Permanece, assim, uma questão: quais as implicações desse cenário para a política externa brasileira, tanto como mediadora multilateral da guerra em Gaza quanto como reflexo da identidade nacional e das disputas e coalizões domésticas?

Historicamente, o Brasil tem se esforçado para construir uma agenda baseada no pacifismo, no diálogo consensual e na prevalência do direito internacional. Sob uma diplomacia universalista, sua política externa tem sido norteada por neutralidade, respeito à soberania e à autodeterminação dos povos. O país se beneficia de sua vocação integracionista e cooperativa, promovendo a interdependência e o aumento de sua capacidade de barganha multilateral. Uma inserção madura, autônoma e equilibrada entre inclusão internacional e desenvolvimento equitativo acompanha a projeção brasileira no âmbito global. Esse protagonismo é feito em torno de agendas como as de maior democratização e pluralidade desses órgãos, responsabilidade ao proteger, sustentabilidade ambiental e climática.

A apropriação da Questão Palestina como um todo, instrumentalizada por meio de redes transnacionais polarizadas, resulta, contudo, em um convite oportuno para que tanto a direita quanto a esquerda ressignifiquem suas agendas. O papel da religião e o mito do Estado secular, por exemplo, precisam ser enfrentados, assim como o entendimento da sociedade brasileira enquanto majoritariamente progressista. Igualmente, é preciso reagir à percepção da redução de direitos, à crise do modelo representativo, ao temor da desordem valorativa e da insegurança projetada no chamado marxismo cultural globalista. Finalmente, como ignorar que o desencantamento com a precipitada vitória da democracia liberal e do livre-comércio encontrou projetos alternativos que endereçam suas promessas não atendidas – mesmo que essas alternativas sejam deficientes?

Se o interesse nacional é impermanente e se formulação e implementação de política externa resultam das disputas e barganhas entre diferentes arcabouços político-partidários e grupos sociais, a questão que se coloca é como proceder se esse concerto resultar em uma visão conservadora da vontade popular. O Itamaraty estará disposto a sustentar o descolamento entre sua tradição e autonomia burocrática daquele tecido social doméstico que percebe a direita transnacional pró-sionista como mais genuína e autêntica? É fundamental que o debate nacional sobre o que constitui a identidade brasileira pós-democratização discuta as razões de parcela significativa da população se entender alheia à equidistância estratégica e ao multilateralismo.

Nesse espírito, a diplomacia brasileira pós-Bolsonaro deve revisitar sua tradição histórica aferindo seu curso, absorvendo as resultantes das crises, tanto materiais quanto valorativas, instaladas na sociedade brasileira pós-moderna – sem espaço para deslizes ou improvisos. Assim, embora esse talvez fosse o desejo da política externa brasileira, mesmo com a superação das ameaças antidemocráticas e da antidiplomacia (Vieira 2023b), o sectarismo não é página virada – nem no Oriente Médio, nem cá.

Atualmente se equilibrando sob sua posição semiequidistante, na qualidade de expoente do Sul Global e com autoridade para propor reequilíbrios na dinâmica de poder internacional, o Brasil lida também com o esgarçamento da credibilidade ocidental, do estado de direito e da responsividade. Nesse sentido, a política externa brasileira precisa criar meios genuínos de endereçar tanto a crise representativa das instituições multilaterais – sua seletividade e limites – quanto também o descrédito dessas mesmas instituições pela extrema-direita, que as rechaça como ilegítimas. 

A solidariedade subalterna precisa ser capaz de continuar a promover a mediação – mas sem se alavancar politicamente ou retirar o protagonismo palestino. (...) O marco deve promover um engajamento transnacional que seja genuinamente a partir do Sul – mas que evite o paroquialismo geográfico – tendo como baliza soluções igualitárias, inclusivas e autossustentáveis a longo prazo. 

A solidariedade subalterna precisa ser capaz de continuar a promover a mediação – mas sem se alavancar politicamente ou retirar o protagonismo palestino. É fundamental que o empreendimento passe a gerar proposições efetivas por uma solução definitiva, promovendo contribuições intelectuais, conceituais, sociais e políticas a partir da horizontalidade das comunidades globais disruptivas. O marco deve promover um engajamento transnacional que seja genuinamente a partir do Sul – mas que evite o paroquialismo geográfico – tendo como baliza soluções igualitárias, inclusivas e autossustentáveis a longo prazo. 

A guerra israelense sobre Gaza e os impactos renovados do conflito sob um contexto doméstico posterior à ascensão política do sionismo cristão-conservador convida a política externa brasileira a repensar-se. Tal recalibração deve ressignificar a tradição a partir da contradição gerada pelas demandas morais e sociais brasileiras e em concerto com ela. O resultado será um terreno fértil para atualização diplomática autônoma e sustentável, que a partir do Sul enderece a crise democrático-representativa, propondo uma solução que protagonize os agentes autóctones e destituídos de seus direitos mais fundamentais desde muito antes do 7 de outubro.

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Recebido: 21 de junho de 2024

Aceito para publicação: 28 de junho de 2024

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