This article discusses the democratization process in Mozambique, considering its advances and setbacks and, in particular, the permanence of the dominant party (Frelimo) in power, notwithstanding the regular occurrence of multiparty elections. Starting with the debate on democracy in Africa, it then rescues the historical process of state formation in Mozambique, considering the elements that help explain the country’s current democratic state: the legacies of the liberation struggle and the 16-year war, the dynamics related to the gatekeeper state and the patterns of clientelism and patronage.
Falar sobre democracia em Moçambique requer contextualização[1]. De acordo com o relatório de 2022 sobre o Index da Democracia produzido pela Unidade de Inteligência do The Economist (EIU 2022), a democracia no mundo está em estado de estagnação. Após um declínio significativo durante a pandemia, o reavivamento democrático não tem ocorrido da forma esperada. Dos 167 países contemplados no Index, apenas 72 são considerados democracias plenas, em contraste com 24 democracias falhas, 36 regimes híbridos e 59 autoritários.
Na África, apenas a República das Ilhas Maurícias é considerada democrática. Botswana, África do Sul, Lesoto, Namíbia (na África Austral), Cabo Verde e Gana (na África Ocidental) aparecem como democracias falhas. Os demais países compõem a lista dos regimes híbridos ou autoritários, Moçambique ocupando esta última classificação desde 2020, em um processo de declínio a partir de 2006.
De maneira similar, o último relatório da Freedom House (2023) revela preocupação com os 17 anos consecutivos de deterioração da democracia no mundo. Na África, 46% dos países são classificados como “não livres”, 37% “parcialmente livres” (inclusive Moçambique) e apenas oito países (17%) “livres” (dos quais quatro estão na África Austral).
Esses indicadores nos ajudam a situar o caso de Moçambique. Primeiramente, revelam que os revezes da democracia nos últimos anos não têm poupado sequer países considerados desenvolvidos e democracias consolidadas (haja vista, por exemplo, a invasão do Capitólio nos Estados Unidos). Em segundo lugar, ao olhar para o contexto africano, o caso de Moçambique se sobressai não por seu déficit democrático, mas pela sua resiliência em um contexto desfavorável e não obstante os problemas que a permeiam.
A análise que se segue é pautada por essa dimensão contextual. Parte-se do pressuposto de que a democracia é um processo em construção, não linear, que segue com avanços e retrocessos. Assim, o objetivo é menos avaliar a qualidade da democracia em si, mas sim identificar o seu caminhar ao longo da história moçambicana, tendo em conta os elementos que se sobressaem nesse processo.
O artigo está estruturado em quatro seções além da introdução e da conclusão. A próxima seção apresenta uma breve revisão da discussão sobre democracia na África, indicando quais seus principais traços e desafios. Com base nesse aporte teórico, as seções seguintes trabalham, respectivamente: 1) os legados da luta de libertação e da guerra dos 16 anos na construção da democracia; 2) as dinâmicas que têm contribuído para a perpetuação do poder do partido Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) desde 1992; e 3) as implicações do último conflito (2013-2019) e do último acordo de paz para a democracia em Moçambique.
DEMOCRACIA NA ÁFRICA: DEBATES
Em 1992 o cientista político nigeriano Claude Ake publicou um texto intitulado The Feasibility of Democracy in Africa (Ake 1992). Refutando o otimismo associado à chamada terceira onda de democratização, Ake afirmava que a democracia, na verdade, estava em crise. Ao pensar no caso africano e referindo-se à propagação da democracia liberal no mundo (focada no multipartidarismo e em eleições), ele destacava que esta estava atrelada a certas condições históricas associadas a um sistema desenvolvido de produção capitalista, o que não se aplicava ao caso dos países africanos. Consequentemente, a implementação da democracia liberal no continente levaria a instituições “distorcidas” e “culturalmente alienadas”. A isto, acrescia a ausência da compreensão do próprio significado de democracia para aqueles que na África vinham lutando pela democracia e que, em sua análise, atrelavam uma estreita relação da liberdade política com o desejo por melhores condições de vida.
Ao pensar no caso africano e referindo-se à propagação da democracia liberal no mundo (focada no multipartidarismo e em eleições), [Claude Ake] destacava que esta estava atrelada a certas condições históricas associadas a um sistema desenvolvido de produção capitalista, o que não se aplicava ao caso dos países africanos.
Trinta e um anos depois, as considerações de Ake continuam pertinentes: não é possível compreender o desenvolvimento da democracia no mundo, e na África em particular, sem associar as dimensões política, social e econômica (Cheeseman 2015; Bakarr Bah 2020; Lynch & Vondoepp 2019). No caso africano, isso significa, dentre outros fatores, considerar o histórico colonial e as implicações políticas, sociais e econômicas derivadas da presença europeia, inclusive no que concerne à própria constituição do Estado. Ademais, ainda que o estudo da democracia na África carregue grande preocupação com os processos eleitorais e suas implicações em termos de distribuição de poder, nos últimos anos este se tornou apenas um dos inúmeros pontos de discussão.
Primeiramente, ficou claro que, em muitos casos, a manipulação de eleições acabou por legitimar e prorrogar a permanência de líderes autocratas no poder. No que concerne às eleições, a discussão já não foca apenas nas eleições presidenciais ou parlamentares, mas inclui as eleições nos demais subescalões do governo, como municípios e províncias, o que, em alguns casos, facilita a alternância de poder no nível local, não obstante a perpetuação do poder nos escalões superiores[2]. Isto se liga a outros elementos que também afetam a qualidade da democracia, como o processo de descentralização, a independência do Judiciário e das entidades que fiscalizam as eleições, até mesmo o papel dos militares e sua relação com as elites políticas (Lynch & Vondoepp 2019). Subjacente a esses elementos, e o que parece permanecer central na discussão sobre democracia no continente, é em que medida esses fatores influenciam as elites a abraçar ou resistir ao processo de democratização e sua consolidação.
Em seu amplo estudo sobre democracia na África e retomando discussões clássicas sobre democracia, Cheeseman destaca que “os líderes são mais propensos a buscar a liberalização política quando consideram os custos da reforma mais aceitáveis do que os custos da repressão” (Cheeseman 2015, 15). Custos da repressão incluem, dentre outros fatores, a força e capacidade da oposição e se os líderes do partido no poder têm fundos e autoridade para sustentar seus regimes por meio da coerção. Além disso, o receio de penalização devido a abusos e violações no passado, bem como as vantagens econômicas associadas à posição de poder, afetam a decisão por investir na repressão ou na reforma. Nesse sentido, um dos fatores que ajudam a transição é a percepção do líder de que ele vai conseguir ter algum controle sobre o processo de abertura do sistema político.
Não obstante a enorme variação que existe na África entre países e regiões, Cheeseman (2015) destaca os seguintes fatores como barreiras à democratização e que afetam o cálculo dos custos associados à transição/repressão no continente: a presença do neopatrimonialismo, o “Estado guardião” (gatekeeper state) e o legado misto da luta nacionalista. O debate sobre neopatrimonialismo tem sido recorrente na literatura sobre democracia na África e fruto de muita discordância e falta de clareza (Chabal & Daloz 1999; Pitcher et al. 2009; Sigman & Lindberg 2019). Em linhas gerais, os termos patrimonialismo e neopatrimonialismo têm sido utilizados em referência a sistemas nos quais as relações políticas são mediadas e mantidas por conexões pessoais entre líderes e súditos, ou patrões e clientes, e não por meio da impessoalidade (a autoridade legal-racional), como supostamente deveria ocorrer no Estado moderno (Pitcher et al. 2009). O prefixo neo viria a denotar a mudança nos padrões de autoridade a partir da introdução do Estado moderno, que levaria a uma mistura entre fontes tradicionais de autoridade e a lógica burocrática moderna (Chabal & Daloz 1999).
As críticas a esse debate são muitas e incluem: a imprecisão dos termos, a simplificação de situações complexas, a estereotipagem da África (como se o neopatrimonialismo não existisse em outros locais) e o pessimismo gerado a partir das análises com relação ao futuro da democracia no continente (Chabal & Daloz 1999; Pitcher et al. 2009; Sigman & Lindberg 2020). Ironicamente, estudos mais recentes indicam que nem sempre o neopatrimonialismo obstrui a democracia, pelo contrário, às vezes convive com ela (Sigman & Lindberg 2019). Assim, como o próprio Cheeseman (2015) reconhece, há que se pensar o neopatrimonialismo em conjunto com outros fatores.
No caso de Moçambique, é mais comum a referência a dinâmicas de patronagem e clientelismo do que neopatrimonialismo per se, e essa vai ser a opção neste artigo. Ainda que esses sejam conceitos correlatos, uma discussão aprofundada sobre neopatrimonialismo exigiria o tratamento de questões de autoridade que adentram o debate sobre práticas consideradas tradicionais e como se relacionam com a burocracia do Estado, o que foge ao escopo deste artigo.
O segundo elemento apontado por Cheeseman como obstáculo à democracia na África é o “Estado guardião” (gatekeeper state), conceito elaborado pelo historiador Frederick Cooper (2002), que se refere à forma de gestão do Estado que tem por base o controle dos fluxos que entram e saem do país. Segundo Cooper, essa forma de governo advém do colonialismo, uma vez que a própria gestão colonial era pautada no controle da intersecção entre o território colonial e o mundo exterior, já que sua capacidade de penetração social e cultural no interior era fraca. A partir dos processos de independência, observa-se uma disputa pela posição de “guardião das portas do Estado”, uma vez que quem controla as “portas” controla os recursos advindos de exportações e taxas de importação. Com o tempo, isso criou uma situação em que, ao invés de o governo depender dos impostos da população para financiar a burocracia e os serviços públicos, ele passou a ser o principal provedor de bens (e emprego) para a população (Cheeseman 2015). Essa circunstância, por sua vez, aumentou o potencial de utilização de mecanismos de clientelismo e patronagem.
Por fim, Cheeseman refere-se aos tipos de legado da luta nacionalista como terceiro fator que influencia a democracia na África, focando na ambivalência da ideia de unidade nacional gerada a partir desses movimentos. De um lado a luta anticolonial teria criado um senso de unidade e identidade. De outro, entretanto, o discurso de unidade teria sido utilizado politicamente para mascarar profundas divisões sobre agendas políticas e visões de mundo no pós-independência.
No caso de Moçambique, esses três elementos são importantes para entender o caminho da democracia e estão interligados. Entretanto, para além desses fatores, há que se incluir um outro aspecto que também influencia o processo democrático em muitos países na África: a ocorrência de conflitos armados prolongados no pós-independência e seus efeitos no processo de constituição do Estado. Ainda que isto esteja em alguma medida relacionado aos fatores acima, trata-se de um elemento que carrega complicadores adicionais, desde um histórico de ampla polarização e desconfiança entre as elites políticas, à destruição física de infraestrutura e do funcionamento do Estado, além de traumas sociais coletivos. Além disso, especialmente a partir da década de 1990, grande parte desses conflitos armados foram seguidos de intervenções internacionais que levaram a um processo de construção da paz (peacebuilding), com variados graus de sucesso.
Desde as suas origens, a agenda internacional de peacebuilding esteve fundamentalmente pautada na promoção da democracia – ainda que entendida de forma minimalista —, com foco em procedimentos institucionais, como a realização de eleições (Maschietto & Cavalcante 2022). Ao mesmo tempo, houve pouca discussão sobre o desenho institucional desse sistema e sua adequação para a consolidação da paz nos países que saíam da guerra. Partiu-se do pressuposto de que as regras associadas à democracia multipartidária seriam suficientes para impulsionar a consolidação democrática e, com isso, promover a estabilidade e a paz, o que não se comprovou (Bakarr Bah 2020). Ao contrário, a implementação da democracia muitas vezes polarizou sociedades e reacendeu conflitos logo após o processo eleitoral (Manning 2002). Enquanto isso, a agenda econômica e de desenvolvimento que acompanhou essas reformas não apresentou nenhuma preocupação com potenciais conflitos sociais, e a ênfase permaneceu na agenda (neo)liberal, acompanhada de problemáticos processos de privatização que também afetaram a distribuição de poder e, assim, a democracia. Em suma, tanto quanto as guerras, a paz e o processo de reconstrução dirigido por atores internacionais também influenciam diretamente os custos e incentivos para a transição política (Zürcher et al. 2013).
As seções seguintes analisam o desenvolvimento da democracia em Moçambique levando em consideração esses quatro elementos e o processo histórico de construção do Estado.
O LEGADO DA LUTA DE LIBERTAÇÃO E DA GUERRA DOS 16 ANOS EM MOÇAMBIQUE: A CONSOLIDAÇÃO DA FRELIMO
Moçambique tornou-se independente de Portugal em 1975, após uma longa luta por libertação. Diferentemente de outros países africanos, em que os grupos de libertação se mantiveram divididos, no caso moçambicano, já nos anos 1960, os diferentes movimentos pela resistência se coadunaram sob a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo).
Moçambique tornou-se independente de Portugal em 1975, após uma longa luta por libertação. Diferentemente de outros países africanos, em que os grupos de libertação se mantiveram divididos, no caso moçambicano, já nos anos 1960, os diferentes movimentos pela resistência se coadunaram sob a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Esse fato não eximiu a existência de diferenças significativas dentro do movimento. De um lado, havia aqueles que viam os colonizadores brancos como inimigos; de outro, a vertente revolucionária via o sistema colonial como o inimigo e a luta como uma possibilidade da transição para a modernidade e uma sociedade pautada no “homem novo”, transcendendo diferenças étnicas e hierarquias pautadas na tradição e na ancestralidade (Isaacman & Isaacman 1984; Denny 1984; Cabaço 2009). Essa diferença atingiu seu ápice no final dos anos 1960, quando houve um embate entre lideranças que resultou na consolidação da ala revolucionária dentro do movimento e na ascensão de Samora Machel como presidente, após o assassinato de Eduardo Mondlane, primeiro líder do movimento.
Na época da independência, Portugal assinou um protocolo secreto reconhecendo a Frelimo como o representante legítimo da população (Hall & Young 1997). Esse ato gerou forte oposição não apenas entre os colonos brancos, mas também entre muitos moçambicanos negros e grupos de oposição, levando a confrontos antes e depois do início do governo de transição, mas que foram rapidamente reprimidos pela Frelimo (Hall & Young 1997; Manning 2002).
Esse processo de transição ajuda a compreender alguns dos acontecimentos que se seguiram e que marcaram a construção do Estado e da democracia em Moçambique. Primeiramente, Moçambique nasceu enquanto Estado independente com apenas um partido reconhecido, e isso perdurou até o final da guerra dos 16 anos, quando, em 1990, foi aprovada uma nova constituição instituindo o multipartidarismo.
Segundo, a divisão ideológica existente no país não foi superada, mas sim suprimida. Consequentemente, muitos daqueles que rejeitaram a Frelimo como legítima representante do país se juntaram, posteriormente, à Resistência Nacional de Moçambique (Renamo), o que contribuiu para o prolongamento da guerra que se seguiu. Atrelado a essa situação, esse contexto permitiu a consolidação de uma narrativa histórica, que ainda perdura, em que a Frelimo tem o papel protagônico como libertadora da pátria, tendo alguma primazia no que concerne à representatividade do povo moçambicano (Bueno 2019). Essa narrativa foi utilizada de forma intensa durante a guerra dos 16 anos, quando a Renamo foi representada como um grupo de “bandidos” que visava destruir o estado.
Terceiro, ainda que não tivesse sido reconhecida por todos como representante legítima do povo moçambicano, devido às dinâmicas da luta de libertação e seu trabalho nas zonas libertadas, a Frelimo possuía enorme vantagem em relação a outros contendentes ao poder, uma vez que já tinha criado uma base social em várias partes do território (Hanlon 1984; Hall & Young 1997).
Por fim, observa-se desde este momento a primazia do partido da Frelimo sobre as lideranças pessoais. Nesse sentido, Moçambique diferencia-se de outros países africanos, em que os chamados big men permaneceram no poder, às vezes por décadas, consolidando seu poder pessoal.
O legado da luta de libertação é importante para que se compreenda a guerra que se seguiu. De um lado, o contexto regional foi crucial ao desencadear e sustentar a guerra durante muito tempo. As origens da Renamo, hoje maior partido da oposição em Moçambique, remontam a 1974, quando foi feito um acordo entre a Central de Informações da Rodésia e os portugueses. A Renamo deveria ser uma coluna para espionar os guerrilheiros da União Nacional Africana do Zimbábue (Zanu) baseados em Moçambique (Finnegan 1992). Os primeiros ataques ocorreram em 1976, como retaliação ao fato de Moçambique ter apoiado as sanções das Nações Unidas à Rodésia do Sul, além de oferecer apoio ao Zanu, que combatia o regime segregacionista então vigente. Em 1980, com o fim do regime segregacionista e a criação do Zimbábue, o comando da Renamo foi transferido para a África do Sul, então sob o regime do apartheid e numa cruzada regional contra os inimigos do governo. Com o investimento maciço da África do Sul, a Renamo tornou-se uma verdadeira máquina de desestabilização, ampliando sua inteligência e treinamento em táticas terroristas (Finnegan 1992; Abrahamsson & Nilsson 1995; Hall & Young 1997).
Ao lado desse contexto regional desfavorável, entretanto, com o tempo ficou claro que o crescimento da Renamo foi impulsionado também pela perda de popularidade da Frelimo devido à sua agenda política, social e econômica. Logo após a independência, a Frelimo implementou uma agenda radical de nacionalização de setores estratégicos, como saúde, educação e terra, o que levou a um êxodo maciço de portugueses, pequenos empreendedores e mão de obra especializada, gerando enorme impacto econômico no país (Hall & Young 1997).
Além disso, passada a euforia inicial da independência, cresceu o descontentamento popular frente à agenda modernizadora do governo. Em um país eminentemente agrário, a conclamação por uma modernização que refutava valores tradicionais passou a ser questionada (Cahen 1987; Abrahamsson & Nilsson 1995). A adoção de uma orientação marxista-leninista a partir de 1977 resultou na ulterior radicalização do governo, que passou a perseguir “inimigos internos” que pudessem boicotar a implementação de uma “democracia popular” associada ao desmonte do capitalismo no país (Frelimo 1977). Ou seja, havia uma agenda autoproclamada democrática, mas que se baseava essencialmente na expansão da base popular a partir da criação de movimentos e instituições associados ao partido (Cahen 1987; Maschietto 2016).
Para além do contexto regional e doméstico, na década de 1980 Moçambique foi assolado por calamidades naturais e pela enorme pressão por parte dos doadores para que abandonasse o socialismo, a ponto de negarem ajuda humanitária quando milhares de pessoas estavam presas em meio à guerra e sem comida por causa da seca.
Para além do contexto regional e doméstico, na década de 1980 Moçambique foi assolado por calamidades naturais e pela enorme pressão por parte dos doadores para que abandonasse o socialismo, a ponto de negarem ajuda humanitária quando milhares de pessoas estavam presas em meio à guerra e sem comida por causa da seca (Hanlon 1991). Foi nesse contexto que os custos da reforma passaram a ser vistos como menores do que os custos da manutenção da agenda em vigor. A fim de ter acesso a crédito internacional para importar comida, em 1986 o governo da Frelimo abriu mão do socialismo e iniciou seu primeiro plano de ajuste estrutural.
Esse contexto de desgaste, a mudança do contexto internacional com o fim da Guerra Fria e, ainda, a situação de impasse na guerra foram cruciais para que as negociações de paz pudessem ocorrer a partir de 1989. Ainda assim, o processo de negociação foi árduo, um dos principais motivos sendo o nível de desconfiança entre os líderes da Frelimo e da Renamo. Ademais, havia um problema mútuo de reconhecimento, uma vez que a Frelimo não estava disposta a reconhecer a Renamo em pé de igualdade nas negociações, e a Renamo contestava a legitimidade e a representatividade do governo da Frelimo (Hume 1994).
Tanto quanto havia sido na guerra, o papel dos atores internacionais foi crucial na construção da paz e da democracia. Para além do processo de mediação e da criação de uma missão das Nações Unidas para implementar e monitorar as primeiras eleições multipartidárias em 1994, houve um alto investimento para estruturar a Renamo em sua transição enquanto grupo de guerrilha para partido político, a fim de poder disputar as eleições com algum grau de “igualdade” em relação à Frelimo. Não surpreendentemente, esse “pé de igualdade” não se constituiu, e, segundo Cabaço (1995), esses incentivos financeiros impediram a Renamo de perceber as suas próprias limitações institucionais nas eleições subsequentes, situação da qual a Frelimo se aproveitou.
Além disso, o próprio modelo de governo adotado privilegiou um sistema em que “o vencedor leva tudo”, com um Executivo muito forte e um Legislativo fraco. Considerando as narrativas históricas dominantes da Frelimo como libertadora e fundadora da nação moçambicana, e da Renamo como um inimigo (na sequência do colonialismo português, do racismo rodesiano e do racismo sul-africano), não admira que a primeira tenha sido altamente privilegiada por esse modelo. Com efeito, alguns analistas argumentaram que o acordo de paz só foi possível precisamente porque a Frelimo sabia que, com tal sistema, seria capaz de manter o controle da cena política do país (Carbone 2005; Morier-Genoud 2009).
Em suma, ainda que o Acordo Geral de Paz (AGP) de 1992 tenham ocorrido em um contexto de impasse entre Frelimo e Renamo, a opção da Frelimo em ceder deve ser compreendida a partir do seu posicionamento ainda privilegiado, o que permitiu que a transição ocorresse com algum grau de controle e vantagem do partido. O legado de sua atuação na luta de libertação e na consolidação do Estado independente, ainda que sofrendo com a guerra, a construção de uma base social forte e sua alta capacidade de penetração no território colocaram a Frelimo numa posição privilegiada. Na seção seguinte, serão discutidos alguns fatores que contribuíram para a manutenção dessa posição privilegiada nos anos que se seguiram.
O ESTADO GUARDIÃO E AS DINÂMICAS DE CLIENTELISMO E PATRONAGEM COMO INSTRUMENTOS DE MANUTENÇÃO DO PODER
Desde o AGP, Moçambique passou por seis eleições gerais (1994, 1999, 2004, 2009, 2014 e 2019) e cinco rodadas de eleições autárquicas (1998, 2003, 2008, 2013 e 2018)[3]. Nas eleições gerais, invariavelmente a vitória presidencial foi dada ao candidato da Frelimo. Na Assembleia Nacional, enquanto em 1994 e 1999 a Renamo conseguiu obter pouco menos da metade dos assentos (respectivamente 112 e 117 dos 250), essa tendência mudou significativamente a partir de 2004, quando obteve apenas 90 assentos, chegando a ter apenas 51 em 2009, passando para 89 em 2014 e 60 em 2019. No caso das eleições autárquicas, apesar de ainda haver um predomínio da Frelimo, houve ganhos importantes tanto para a Renamo quanto para o Movimento Democrático de Moçambique (MDM), que chegou a ganhar na segunda cidade mais populosa do país, Beira.
Apesar do aceite final dos resultados, todas as eleições foram contestadas em algum grau. Dentre as irregularidades dos processos eleitorais destacam-se: problemas com o processo de recenseamento, limitações da liberdade de reunião e movimento, enchimento de urnas e problemas na contagem de votos, entre outros detalhados nas várias edições do Boletim do Processo Político de Moçambique, editado por Joseph Hanlon e o Centro de Integridade Pública desde 1993[4], bem como pela mídia. Soma-se a isso o carácter politizado da Comissão Nacional Eleitoral (além das constantes alterações da lei eleitoral) e a sua capacidade e eficácia para fiscalizar o processo eleitoral, bem como o campo de jogo altamente desigual entre os partidos, refletido no acesso discrepante aos recursos para a campanha política que favorece a Frelimo (Manning 2010; Azevedo-Harman 2015).
As eleições, entretanto, refletem apenas uma das dinâmicas que nos ajudam a compreender o estado da democracia em Moçambique. Na prática, a posição de domínio da Frelimo é potencializada por uma série de elementos conjunturais e mecanismos que ajudam a consolidar o poder do partido na máquina do Estado e que são potencializados pelo controle dos recursos econômicos e por dinâmicas de clientelismo e patronagem.
As eleições, entretanto, refletem apenas uma das dinâmicas que nos ajudam a compreender o estado da democracia em Moçambique. Na prática, a posição de domínio da Frelimo é potencializada por uma série de elementos conjunturais e mecanismos que ajudam a consolidar o poder do partido na máquina do Estado e que são potencializados pelo controle dos recursos econômicos e por dinâmicas de clientelismo e patronagem.
Primeiramente, observa-se uma diferença fundamental entre a estrutura e forma de funcionamento da Frelimo e da Renamo, que permanece o segundo maior partido no país. Enquanto dentro da Frelimo prevalece a primazia do partido sobre lideranças pessoais (ainda que haja importantes divisões internas), a Renamo manteve o mesmo líder — Afonso Dhlakama — desde 1979 até a sua morte em 2018. Ainda que carismático, o estilo personalista de Dhlakama gerou fragmentação interna, levando à expulsão de importantes quadros do partido que, por sua vez, criaram ou aderiram a novos partidos, ou foram cooptados pela Frelimo. Um dos partidos resultantes dessa cisão foi o MDM que, apesar de ter ganho espaço nos últimos anos, não possui capital econômico ou político para competir com a Frelimo.
A essa dimensão mais conjuntural somam-se dois elementos estruturantes que advêm do papel ativo da Frelimo e que favorecem a sua manutenção no poder. Pensando pela ótica do Estado guardião, destaca-se o controle que a Frelimo possui sobre os recursos do país e que se reflete na sua habilidade de controlar o Estado e suas instituições, a ponto de muitos autores falarem na fusão entre Estado e partido (Weimer et al. 2012; BTI 2020; Pitcher 2020).
Esse controle tem contornos históricos que devem ser compreendidos desde a luta de libertação, mas que também incluem processos posteriores, um dos mais importantes sendo o processo de privatização, que foi impulsionado ainda durante a guerra a partir da pressão das instituições financeiras internacionais. No contexto socialista e na ausência de uma classe média, o processo de privatização ofereceu a oportunidade para uma pequena elite burocrática (da Frelimo) se tornar repentinamente a nova classe empresarial, o que também favoreceu a corrupção tanto na máquina estatal quanto no setor privado (Pitcher 2002; Hanlon 2004; de Renzio & Hanlon 2007).
O enorme fluxo de ajuda externa que se seguiu em forma de apoio direto ao orçamento a partir de 1992 aumentou ainda mais os recursos disponíveis na máquina estatal, por sua vez alimentando essas dinâmicas. A esse processo, soma-se a entrada de recursos ligados aos investimentos nos chamados megaprojetos, concentrados majoritariamente no setor mineral, a partir da segunda metade da década de 1990. Como observa Pitcher (2020, 7), “os atuais e antigos políticos da Frelimo e as suas famílias estão presentes na maioria dos setores econômicos, desde o comércio aos bancos e à energia”.
Nesse contexto, não surpreende que Moçambique esteja na lista de países com alto índice de corrupção (Hanlon 2004; BTI 2022). Nos anos recentes, o epítome do problema da corrupção se manifestou a partir do escândalo das dívidas ocultas. Em 2016, a imprensa revelou que entidades de economia mista do país, criadas entre 2013 e 2014 por um grupo de funcionários do governo próximos ao presidente, tinham contraído dívidas com garantias do Estado sem a aprovação da Assembleia Nacional. O empréstimo ultrapassava US$ 2 bilhões, equivalente à época a cerca de 12% do PIB do país, mas desse valor mais da metade havia sido ocultada (Cortez et al. 2021).
Oficialmente, o empréstimo foi feito para apoiar o estabelecimento da pesca do atum e negócios de segurança marítima, mas houve inúmeras falhas no processo e vários esquemas de corrupção. A descoberta do caso levou à suspensão de todo o apoio ao orçamento do Estado pelos doadores do G14, seguida de uma auditoria e investigação internacional envolvendo os bancos que concederam o empréstimo. Isso, por sua vez, causou uma enorme recessão no país, repercutindo no já alto índice de pobreza. O episódio expôs as fragilidades de governança do país, ao mesmo tempo que deixou clara a extensão da influência político-partidária na sua gestão econômica.
Esse controle dos recursos do Estado também impacta a condição do estado de direito. Não obstante a constituição moçambicana seja clara em relação à separação de poderes, na prática tanto o Executivo quanto o Legislativo e o Judiciário são capturados pela política partidária em algum grau. A independência do Judiciário tem sido criticada recorrentemente, inclusive devido à sua dependência financeira do Executivo (Fael & Cortez 2013; BTI 2022).
Uma outra esfera em que as dinâmicas do Estado guardião se apresentam e se misturam com dinâmicas de clientelismo e patronagem é no âmbito da descentralização. A agenda de descentralização foi introduzida em Moçambique junto às reformas institucionais que se seguiram ao AGP, sendo uma resposta à necessidade de estabilização, que exigia a criação de espaço político para a Renamo, e à necessidade de recuperação econômica que acompanhava a transição gradual para uma economia de mercado (Reaud & Weimer 2010). Estrategicamente, a discussão sobre a descentralização ocorreu concomitantemente com a primeira tentativa nacional de trazer as autoridades tradicionais de volta à agenda política, e que resultou no reconhecimento legal das chamadas autoridades comunitárias, que desempenham o duplo papel de representantes das comunidades rurais e auxiliares do Estado (Buur & Kyed 2006). Essas autoridades foram depois incorporadas aos conselhos consultivos, órgãos criados em 2003 e que viriam a ter um papel importante no âmbito distrital.
Uma característica peculiar do processo de descentralização em Moçambique é o seu gradualismo. Até 2018, quando da alteração da legislação, coexistiam municípios urbanos, com prefeitos e Assembleias Municipais eleitos a cada cinco anos e com sistema tributário próprio; e os chamados órgãos locais do Estado (províncias e distritos), cujos representantes políticos eram nomeados por um escalão superior administrativo. Isso levou a uma situação em que as províncias e os distritos tinham representantes nomeados diretamente pelo partido no poder (ou seja, a Frelimo), respondendo ao governo central, enquanto os municípios tinham poderes, competências e recursos autônomos (Reaud & Weimer 2010). Ao mesmo tempo, os municípios também estavam parcialmente subordinados às províncias, o que gerou choque de competências e conflitos de gestão.
Na prática, esse sistema permitiu que a Frelimo retivesse sua autoridade política e forte presença em todo o território do país, afetando em especial as dinâmicas de poder nos distritos, uma vez que, nesse nível, a cadeia de autoridades filiadas ao partido é ampla e extremamente hierárquica. Para além do administrador do distrito, existem mais dois níveis de autoridades locais em cada subescalão do território — chefes dos postos administrativos e chefes das localidades —, todos eles até então representando a Frelimo. A esses se adicionam outras autoridades locais, como os régulos, que não são formalmente vinculados à estrutura oficial do distrito, mas cuja autoridade muitas vezes se mistura com a dos demais chefes. É nessa cadeia hierárquica e de múltiplas autoridades que dinâmicas de clientelismo e patronagem atingem o cotidiano das pessoas. A exemplo, durante o governo Guebuza (2005-2015), uma das iniciativas mais importantes voltadas para os distritos foi um fundo que deveria ser alocado no investimento de projetos locais. Conforme descrito em detalhes em vários estudos, todo o processo ligado à alocação desse recurso, inclusive o engajamento dos conselhos locais, não ficou imune a questões partidárias (Forquilha 2010; Sande 2011; Orre & Forquilha 2012; Maschietto 2016). Ao mesmo tempo, essa iniciativa ajudou a popularizar o governo Guebuza. Não surpreende que a agenda de descentralização tenha sido um ponto crucial relacionado ao ressurgimento do conflito no país a partir de 2013.
O CONFLITO DE 2013-2019 E SUAS IMPLICAÇÕES PARA A CONSOLIDAÇÃO DA DEMOCRACIA EM MOÇAMBIQUE
Em 2012, 20 anos após o AGP, uma nova onda de instabilidade afetou Moçambique. Em abril daquele ano, em Nampula, houve confrontos entre ex-combatentes da Renamo que constituíam a “guarda presidencial” (combatentes que nunca foram desarmados) de Afonso Dhlakama e as tropas de choque do governo. Meses depois, Dhlakama mudou-se para Gorongosa, local onde a Renamo manteve a sua base durante a guerra, clamando pela revisão do AGP. Em 2013, reagindo à lei eleitoral aprovada em dezembro de 2012, a Renamo iniciou uma série de atividades que incluíam emboscadas, o bloqueio de uma das principais artérias de transporte do país e o boicote às eleições municipais de 2013. O então presidente Armando Guebuza respondeu com ação militar, ao mesmo tempo que mantinha um discurso pró-negociações.
O conflito escalou, e em outubro de 2013 Dhlakama retirou-se oficialmente do AGP. Após meses de confrontos, a Renamo conseguiu alterar a lei eleitoral fazendo um acordo com a Frelimo (muito criticado pela sociedade civil), que mais tarde foi endossado na Assembleia Nacional. Ainda assim os confrontos continuaram e somente após várias rodadas de negociações um cessar-fogo foi acordado, seguido de um acordo de paz em 4 de setembro, pouco antes das eleições gerais de 2014. Na ocasião, e mais uma vez, o candidato da Frelimo, Filipe Nyusi, obteve vitória, com 57% dos votos. Na Assembleia Nacional, a Frelimo obteve 144 assentos contra 89 da Renamo. Tanto Dhlakama como o terceiro candidato, Daviz Simango, rejeitaram os resultados, e em janeiro de 2015 a Renamo boicotou a abertura da Assembleia Nacional. Adicionalmente, Dhlakama exigiu que fosse dada autonomia provincial às províncias onde a Renamo obteve a maioria dos votos (Nampula, Zambézia, Tete, Manica e Sofala), colocando a descentralização no centro da agenda do conflito. As exigências de Dhlakama foram transformadas em projeto de lei proposto pela Renamo na Assembleia Nacional, mas foram rejeitadas com base na sua suposta inconstitucionalidade (Maschietto 2020).
Esses acontecimentos levaram à escalada do conflito, à retomada da violência e a vários confrontos entre a Renamo e as forças do Estado entre 2015 e 2016. Em 2018 foi finalmente alcançado um acordo entre Nyusi e Dhlakama, incluindo um acordo de descentralização incorporando alterações constitucionais e a assinatura de um memorando de entendimento sobre assuntos militares, permitindo o lançamento de um segundo processo de desmobilização, desarmamento e reintegração. Pouco depois Dhlakama faleceu, e a presidência da Renamo passou para Ossufo Momade. Em agosto de 2018 Momade e Nyusi assinaram um novo acordo de desarmamento, desmobilização e reintegração; e em 6 de agosto de 2019 o Acordo de Paz e Reconciliação de Maputo.
O novo marco da descentralização foi uma grande (e árdua) vitória para a democracia moçambicana. A emenda constitucional de 2018 instituiu que a província e os distritos são agora órgãos descentralizados, e os governadores das províncias serão escolhidos a partir da maioria dos votos nas assembleias provinciais — o que possibilita que sejam de outros partidos que não o do governo central. Apesar dessa importante alteração, a nova legislação também introduziu a Representação do Estado para a Província e para o Distrito, que inclui novos cargos que reforçam a presença do Estado (ou do partido Frelimo?) no âmbito local (Weimer 2021). Esse novo aparato tem gerado críticas enormes, tanto por parte da sociedade civil, quanto por parte de doadores e mesmo por parte de políticos, alguns afirmando que a nova legislação reflete uma tentativa de reverter o consenso de descentralização alcançado no último acordo de paz (CDD 2022; Weimer 2021).
Além disso, o controle e a transparência do processo eleitoral continuam sendo um problema. Em outubro de 2019 ocorreram eleições gerais, inclusive votação para as assembleias provinciais, já conforme a nova legislação. O processo eleitoral foi um dos mais tensos até hoje, marcado por muitas irregularidades, fraudes e violência (Maschietto 2020). Ao final, a Frelimo ganhou a maioria em todas as províncias, mesmo em redutos tradicionais da Renamo, o que levou à escolha de governadores apenas da Frelimo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Moçambique introduziu o multipartidarismo em 1990 e desde então passou por eleições nacionais a cada cinco anos, além de eleições municipais desde 1998. Ao lado desse retrato de estabilidade e institucionalização democrática há inúmeros elementos que afetam a qualidade da democracia e que levam à permanência e consolidação da Frelimo no poder. Ainda que alguns desses elementos pareçam meramente ligados ao desenho do Estado a partir da reconstrução pós-1992, é impossível compreender essas dinâmicas sem considerar o legado histórico que levou à formação da Frelimo, seu papel na luta de libertação e as próprias dinâmicas da guerra dos 16 anos. A consolidação de um Estado guardião (e as práticas de clientelismo e patronagem a ele associadas) foi um processo longo que criou raízes profundas e, portanto, difíceis de erradicar.
Ainda assim, é inegável que houve muitos progressos no âmbito democrático em Moçambique. O próprio processo de descentralização, ainda que com suas limitações, é algo que possibilitou algum grau de revezamento político no âmbito local. No que concerne à sociedade civil, e ainda que encontrem muitos obstáculos no âmbito da liberdade de manifestação, há muitas organizações que têm contribuído com o debate sobre democracia e escrutínio das políticas públicas.
Pensando no contexto africano e no grau de repressão de liberdade que ainda vigora em muitos países, e considerando, ainda, o histórico de guerra que marca o caso moçambicano, esses ganhos são ainda mais relevantes. Mesmo a retomada do conflito em 2013 não chegou a ter as proporções da guerra anterior e, apesar de trazer elementos ainda remanescentes do AGP, não houve contestação da democracia per se. Ao contrário, podemos ver esse conflito mais como uma tentativa de Dhlakama e de parte da Renamo de exercer pressão para alterar as políticas do governo e forçar a criação de mais espaço político, uma vez que isto não estava acontecendo pelas vias institucionais. Aliás, em conversas com membros da sociedade civil e com diversas pessoas em Moçambique, é visível o quanto a morte de Dhlakama gera preocupação justamente porque não há liderança de oposição com o mesmo grau de carisma e mobilização, e isso é visto como um perigo para a democracia, na medida em que pode resultar na ulterior expansão da Frelimo nos espaços de governação. Simbólico dessa preocupação foram as eleições de 2019. As eleições municipais nos próximos meses e as eleições nacionais em 2024 vão trazer um indicativo mais claro sobre as implicações da morte de Dhlakama para a democracia moçambicana, mas, por enquanto, apesar de tudo, a democracia parece continuar resiliente, e os custos da reforma parecem ainda mais vantajosos do que os custos da repressão.
Trazendo o caso de Moçambique para o contexto africano, alguns elementos chamam a atenção ao se pensar a democracia no continente. Primeiramente, ainda que Moçambique esteja no rol dos países considerados autoritários pelo Index da Democracia (com pontuação de 3,51 de zero a dez), está longe dos índices mais baixos como os da República Centro-Africana (1,35), Chade (1,67), Guiné Equatorial (1,92) e Camarões (2,56) (EIU 2022). Esses países, entretanto, têm passado por longos períodos de crise política e instabilidade (quando não guerras, no caso da República Centro-Africana). Aliás, ainda que se observe o declínio do índice moçambicano desde 2010, a mudança mais brusca ocorreu justamente por volta de 2015, quando do conflito mais recente, e foi apenas em 2017 que se cruzou a fronteira dos países considerados “híbridos” para os “autoritários”. Entretanto, sair desse patamar é difícil, o que reforça a necessidade de se refletir mais a fundo sobre como estruturar a democracia em contextos de pós-conflito armado.
Ligado a isto, o caso moçambicano também mostra a importância dos atores internacionais e sua influência no caminho político dos países, tanto no contexto da paz quanto no contexto do conflito armado. Pensando pela ótica do Estado guardião, a entrada e a saída de recursos são elementos cruciais que ajudam a chancelar ou contestar as estruturas vigentes de poder. No passado, a postura internacional de reter recursos a Moçambique, de empréstimos a ajuda humanitária, contribuiu para uma mudança de curso profunda na agenda política do país, levando ao abandono da agenda socialista. A partir dos anos 1990, entretanto, e não obstante as muitas contestações das eleições e relatórios internacionais questionando o processo eleitoral, durante anos a ajuda ao orçamento do Estado continuou fluindo de forma regular, deixando o governo em situação extremamente confortável. Estudos recentes têm apontado para o papel dos atores internacionais em contribuir para o autoritarismo por meio da ajuda externa (e.g., Hagmann & Reyntjens 2016). Ainda assim, ao olharmos a lista de países recebedores de ajuda externa da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico[5], vemos que na África os cinco principais recebedores em 2021 foram, respectivamente: Etiópia, República Democrática do Congo, Nigéria, Quênia e Moçambique. Desses, Nigéria e Quênia são considerados regimes “híbridos”, enquanto Etiópia se junta a Moçambique e República Democrática do Congo na lista dos considerados autoritários. Ainda que a ajuda externa não seja um elemento suficiente para uma mudança de regime nos países africanos, cabe refletir mais a fundo e de forma sistemática sobre seu papel e potencial para aumentar os custos da repressão e os incentivos à transição (ou vice-versa) no continente africano.
Notas
[1] Esta pesquisa resulta de um projeto financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) de Portugal, ref.: SFRH/BPD/124190/2016. A autora agradece os comentários de Natália Bueno na versão preliminar deste artigo.
[2] Esse é o caso de Moçambique, mas há dinâmicas opostas em outros casos. Para uma visão comparativa sobre as estruturas subnacionais na África Austral, ver Hartmann (2004); para uma análise mais geral sobre as dinâmicas eleitorais no continente, inclusive no âmbito municipal, ver recente estudo de Bleck & van de Walle (2019).
[3] A sexta rodada está marcada para outubro de 2023.
[4] Os dados detalhados sobre as eleições estão disponíveis nos vários boletins sobre o processo político em Moçambique: https://www.open.ac.uk/technology/mozambique/political-process-1993-2008.
[5] Ver site da OCDE: https://read.oecd-ilibrary.org/development/geographical-distribution-of-financial-flows-to-developing-countries-2023_12757fab-en-fr#page342.
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Recebido: 7 de junho de 2023
Aceito para publicação: 20 de junho de 2023
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