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Special Section

“Has Christmas Changed, or Have I?”

Lula’s Return in a Scenario of Global Policrisis

Abstract

What could Lula’s third term represent in his return to the presidency? For comparison, this text presents other similar occurrences of the return of heads of governments to their posts, particularly the only other Brazilian case, that of Getúlio Vargas, who also returned to power in a scenario quite different from the first. The new Brazilian and international political context in which Lula’s return takes place is presented, considering which adaptations will be necessary, possible, or viable, concluding that unprecedented conditions require adaptations that experience helps to inform.

Keywords

Lula administration; return to power; Brazilian foreign policy; diplomacy; international relations.
Brazilian presidential sash. Source: Presidential Office.

Mudaria o Natal ou mudei eu?

– Machado de Assis, Soneto de Natal 

Entre o governo que tomou posse em Brasília no dia 1º de janeiro de 2023 e os anteriores há uma diferença só registrada uma vez na história do Brasil, há mais de setenta anos: seu chefe volta ao posto que tinha deixado doze anos antes. É preciso recuar até 1951, com Getúlio, para encontrar o único precedente similar. Não é, portanto, ocorrência corriqueira ou irrelevante em nossa história ou na história dos outros. São relativamente pouco numerosos os exemplos desde 1945: Getúlio, o general Ibañez no Chile, Perón na Argentina, Carlos Andrés Pérez e Rafael Caldera na Venezuela, Manuel Prado e Fernando Belaunde Terry no Peru, Churchill no Reino Unido; já no século XXI, Michelle Bachelet e Sebastián Piñera no Chile e Alan García no Peru[1]. Não vale o exemplo de Rodrigues Alves, que não chegou a tomar posse e morreu em janeiro de 1919, antes de poder governar pela segunda vez. A exclusão aplica-se de forma mais discutível ao general de Gaulle, cuja fugaz passagem inicial pelo governo (um ano e sete meses) deu-se como chefe do governo provisório iniciado ainda com a guerra em andamento. Somente ao voltar, em junho de 1958, é que de Gaulle vai governar efetivamente durante quase onze anos e marcar de forma perene as instituições e o destino da França.   

Há inúmeras diferenças entre esses retornos, a começar pelos intervalos entre uma e outra fase, de aproximadamente 20 anos (Ibañez, Perón, Caldera e García), dez (Pérez, Prado e Belaúnde Terry) e cinco (Getúlio e Churchill). Obviamente, todos voltaram envelhecidos, muitos com mais de 70 anos (Perón, Ibañez, Churchill e Caldera), outros entre 60 e 70 (Getúlio, Pérez, Prado e Belaunde Terry). Em alguns dos regressos, a maioria, o primeiro governo se havia efetuado sob condições ditatoriais ou excepcionais devido à guerra (Ibañez, Perón, Getúlio, Churchill e de Gaulle), ao passo que o segundo se desenrolou em situação mais “normal” de jogo político democrático com imprensa livre e oposição parlamentar.

O exemplo que mais nos diz respeito é o de Getúlio Vargas. Derrubado pelos militares em outubro de 1945, reconquista a presidência em eleições livres passados cinco anos, toma posse em 31 de janeiro de 1951 para suicidar-se em 24 de agosto de 1954, com três anos e quase sete meses de governo. Todas essas experiências chamam a atenção para o contraste entre o êxito maior ou menor do primeiro governo comparado ao insucesso da sequência, às vezes simplesmente medíocre, como nos casos de Ibañez, Churchill e Caldera; em outras, desastrosa ou trágica, como em Getúlio, Perón e Pérez.    

Assinalo esses precedentes sem querer sugerir que a história se repete e que alguma lei histórica inelutável leve sempre ao fracasso da reprise. Ao contrário, acredito que nada está predeterminado na história e que ela é feita aqui e agora pelos seres humanos, inexistindo determinismos de qualquer natureza. Os exemplos citados são heterogêneos, e cada um apresenta peculiaridades próprias derivadas de circunstâncias distintas. Dito isso, tampouco seria razoável afirmar que repetir o governo não tem nenhuma importância. Basta passar os olhos pelos jornais para ver como, na falta de fatos concretos, quase todos os comentaristas se esforçam em adivinhar se, em matéria de política econômica, Lula 3 vai ser reprise de Lula 1 ou Lula 2 ou, de maneira mais abusiva, se vai copiar o modelo de Dilma. 

Esse é o primeiro elemento que torna o regresso diferente de uma experiência fresca e inédita. Quem governou por oito anos deixa, para o bem ou para o mal, a memória de uma herança que será, naturalmente, evocada na eventualidade de volta ao poder.

Esse é o primeiro elemento que torna o regresso diferente de uma experiência fresca e inédita. Quem governou por oito anos deixa, para o bem ou para o mal, a memória de uma herança que será, naturalmente, evocada na eventualidade de volta ao poder. Não é à toa que boa parte da plataforma eleitoral de Lula candidato tenha sido a constante referência a tudo de bom que Lula presidente havia feito entre 2003 e 2010. Outra vantagem reside na experiência de quem já governou e enfrenta os novos desafios armado do aprendizado na escola da vida.

Mas, como tudo tem seu avesso, quem volta, em especial depois de longo intervalo, chega mais velho, mais cansado, marcado às vezes pelas cicatrizes de doenças, perdas, prisões. Alguns, como Mandela, saem das provações mais magnânimos e sábios, outros nem tanto. No segundo governo, lembram os contemporâneos, Getúlio parecia sombra do que havia sido. Como no soneto de Machado de Assis, não muda apenas aquele que revive a vivência passada, mudam igualmente as circunstâncias, o país e o mundo. As mudanças podem ser para melhor ou para pior, exceto no caso do envelhecimento pessoal e declínio das faculdades dos líderes, não obstante a vantagem teórica da maior experiência. A questão central do retorno ao poder depois de muitos anos não reside tanto em reconhecer conscientemente, ou dizer que reconhece, as mudanças em si e nas coisas. O problema é agir de fato, do ponto de vista psicológico, de maneira distinta à que se teria feito no passado, a evitar repetir de modo automático o que deu certo antes.

É mais difícil do que parece. Tome-se como exemplo o que sucedeu na expectativa estratégica externa do país no segundo governo Vargas. Horácio Lafer, o ministro da Fazenda e, mais ainda, João Neves da Fontoura, o ministro das Relações Exteriores, cultivavam ilusões sobre a perspectiva de ajuda econômica substancial dos Estados Unidos, em parte devido a uma leitura equivocada da situação internacional inspirada pela experiência do Estado Novo. Seis meses antes da posse de Vargas, tinha começado a guerra da Coreia (1950-1953). A tensão internacional atingia o auge. Não só no Brasil, muita gente achava que os problemas em Berlim e na Alemanha, em seguida à guerra na Ásia, eram uma reprise da escalada que, no fim dos anos 1930, conduzira à Segunda Guerra Mundial. 

Neves da Fontoura sonhava negociar com os americanos uma “grande barganha”, talvez mais vantajosa do que a celebrada por Oswaldo Aranha e Getúlio em 1942: a troca de apoio militar por assistência econômica. Só que as semelhanças com o passado recente eram superficiais. Não haveria guerra mundial, entre outras razões, devido ao surgimento da bomba atômica. Os adversários na Coreia preferiram um desfecho indeciso do que escalar o conflito. O jogo geoestratégico situava-se agora em nossas antípodas geográficas, não tínhamos bases bem localizadas nem matérias-primas indispensáveis para oferecer na barganha. Os ventos gelados da Guerra Fria tinham varrido os resquícios da política de boa vizinhança com a América Latina, rebaixada a zona de interesse estratégico periférico. 

Não é que o equívoco tenha desempenhado papel fundamental no que veio a ocorrer mais tarde. Outros fatores pesaram de forma mais decisiva no destino do segundo governo Vargas. A evocação do antecedente serve aqui apenas de ilustração de um ponto que quero destacar: a repetição da experiência de governo tende a complicar a tarefa já em si desafiadora de captar intelectualmente a realidade interna e externa como condição para definir política de êxito em qualquer domínio. Mais que isso, dificulta adotar percepção psicológica de maneira a agir de acordo com as circunstâncias novas. 

Essa reflexão inspira o ponto de partida desta análise: o que nos acontece neste momento no Brasil e no mundo? Tudo, a política de defesa, a externa e, a rigor, qualquer política – econômica, social, cultural, de reforma das instituições – tudo parte da resposta a essa pergunta. Isto é, a definição da política nasce da maneira certa ou errada com que formos capazes de apreender e interpretar objetivamente a realidade interna e externa, bem como de alterar a disposição psicológica subjetiva, a fim de atuar de forma adaptada à transformação. Para acertar em política, é preciso contar com diagnóstico correto dos problemas e da situação. O acerto ou erro da definição da política vai depender da capacidade do novo governo brasileiro de realizar corretamente a interpretação dos sinais dos tempos e de retirar desse exercício as consequências práticas mediante a execução efetiva das políticas necessárias.

Acabamos de ter a prova de que não é fácil no âmbito interno, com o choque despertado pelo assalto às sedes dos poderes em Brasília pelo equivalente bolsonarista ao que Eça de Queiroz descrevia como a “plebe beata, suja e feroz” que ia assistir regaladamente em Lisboa aos autos de fé da Santa Inquisição. Não faltaram avisos sobre o que se tramava, alguns distantes, outros próximos, com luxo de detalhes, número de ônibus fretados, de participantes, palavras de ordem, mensagens crípticas simples de traduzir. Tudo em vão: no dia marcado com antecedência, na hora prevista, derramaram-se as turbas enfurecidas pela Esplanada dos Ministérios para estupor e espanto das novas e descuidadas autoridades. 

Não faltam atenuantes para desculpar essas últimas: uma semana antes, a posse presidencial tinha ocorrido sem novidades; várias vezes o bolsonarismo havia anunciado o juízo final em dois sete de setembros consecutivos sem que nada acontecesse; o país jamais conhecera precedente igual. Resta, ainda assim, inexplicável, depois de todos os alertas sobre as manifestações, que o presidente da República tenha decidido viajar a São Paulo e Araraquara na véspera do apocalipse. Ou que o ministro da Justiça e Segurança Pública, tomando conhecimento na noite do sábado, dia 7 de janeiro, de que as autoridades de Brasília haviam unilateralmente modificado o protocolo de segurança a fim de permitir o ingresso de manifestantes na Praça dos Três Poderes, tenha esperado até a manhã do dia marcado para só então limitar-se a pedir esclarecimentos, sem providências mais decididas.

Não se trata de censurar as novas autoridades. Provavelmente, qualquer um teria feito o mesmo, pois ainda não existiam condições psicológicas subjetivas para despertar a desconfiança que, a partir de então, passamos a ter. É esse justamente o ponto que se quer provar: por mais que se alerte que as condições mudaram, é preciso antes passar pela experiência real da mudança para alterar a reação psicológica diante de situação a que não se está acostumado. Que outra surpresa reservará ao governo a realidade inédita no Brasil de uma extrema-direita aguerrida, agressiva, de apreciável capacidade de mobilização e controle de ruas e praças públicas?      

POLICRISE E AS TRANSFORMAÇÕES NA ORDEM INTERNACIONAL     

Não é essa aqui nossa preocupação, que se volta a outra questão, a de decifrar os sinais que anunciam (talvez) para onde caminha o mundo. O grau de complexidade tem aumentado tanto ultimamente, que se foi buscar no pensador da complexidade, o centenário Edgar Morin, o conceito de policrise de que ele falava nos anos 1990. Adam Tooze (2021a), professor da Universidade de Columbia, popularizou a expressão “policrise global” em Shutdown: How Covid Shook the World’s Economy e outros escritos. Em um de seus artigos no New York Times, Tooze aponta para 2008 como o início de uma “nova era de disrupções sucessivas e interconectadas, tais como a crise financeira global, a eleição de Trump e a guerra comercial e tecnológica com a China”, às quais se acrescenta agora a invasão russa da Ucrânia. Todos esses acontecimentos foram chocantes, mas tinham numerosos precedentes nos séculos XIX e XX: não existe nada de inédito em crises financeiras, rivalidade de grandes potências ou nacionalismo agressivo. 

Com a pandemia de Covid-19 e a exacerbação do aquecimento global, começamos a nos dar conta de algo possivelmente novo: “crises causadas por choques naturais em escala global que se intersectam com as velhas tensões da política, das finanças e da geopolítica”. Dessa forma, nos defrontamos subitamente com a superposição de crises dos séculos XIX e XX sobre crises do século XXI, produzindo efeito maior que a soma das partes (Tooze 2021b). É discutível quão novas são essas coisas. Qohélet, O-que-Sabe, na tradução de Haroldo de Campos, daria de ombros: “Não há nada de novo sob o sol”. Admita-se, contudo, que a expressão é útil e breve.

No interior dessa galáxia de crises de distintas modalidades, destaca-se para nosso propósito a crise do sistema internacional, o conjunto de instituições e normas que reorganizaram as relações políticas e econômicas entre os Estados, destruídas pela Segunda Guerra Mundial. Em depoimento que fez à Comissão das Forças Armadas do Senado norte-americano, dizia Henry Kissinger (2018): 

O que está ocorrendo é mais do que uma coincidência de crises individuais em várias geografias. É uma falência sistêmica da ordem mundial, que, após ganhar força por quase duas décadas, está se inclinando em direção à erosão, não à consolidação do sistema internacional.       

Os sintomas da erosão se multiplicam: desrespeito à soberania e integridade dos Estados, conquista de território pela força, obstáculos a avanços em direitos humanos e meio ambiente, uso e abuso de sanções comerciais unilaterais, volta do protecionismo e paralisia de mecanismos multilaterais. Os padrões tradicionais de rivalidade entre os grandes de antes da Primeira Guerra Mundial vêm retornando na ausência de um conceito compartilhado entre as maiores potências para acomodar perspectivas divergentes dos respectivos interesses nacionais. Ainda segundo Kissinger (2018): 

Complicando essa dinâmica, o ritmo de desenvolvimento tecnológico vem produzindo avanços extraordinários que ameaçam ultrapassar nossas imaginações estratégicas e morais e, no campo da inteligência artificial, podem chegar a redefinir até nossa consciência. Tudo isso cria o potencial para confrontações verdadeiramente catastróficas entre as nações. 

É difícil ser mais claro ou persuasivo. Outros, como o professor G. John Ikenberry, declaram basicamente a mesma coisa ao lamentar o declínio do que chamam de “ordem liberal internacional” – ver, por exemplo, seu artigo The end of liberal international order? (2018). Essas declarações datam de 2018, antes, portanto, do expressivo agravamento da situação, por efeito da perigosa evolução do relacionamento Estados Unidos-China e da ameaça mais imediata decorrente da agressão premeditada da Rússia contra a Ucrânia, sem mencionar outros fatos na mesma direção. 

Uma análise bem mais recente, que vai na mesma direção, provém da Nova Estratégia de Segurança Nacional 2022 dos Estados Unidos (Casa Branca 2022referida a seguir como NNSS 2022 e citada em tradução própria). O documento de 48 páginas deveria ter sido publicado meses depois da posse do governo Biden em janeiro de 2021. A demora de sua elaboração foi atribuída à dificuldade de definir o pensamento oficial sobre uma situação geoestratégica de fluidez e complexidade extremas. A perspectiva derivada dos interesses nacionais norte-americanos plasma, logicamente, muito do conteúdo. Não obstante, a descrição dos problemas e crises que afetam a comunidade internacional, assim como boa parte das conclusões sobre a natureza dos desafios, apresentam validade universal e podem ser úteis para o diagnóstico da situação contemporânea.

Após constatar, na primeira linha, que o mundo se encontra “em um significativo ponto de inflexão”, a análise identifica dois desafios estratégicos: o primeiro é que, tendo ficado para trás a era pós-Guerra Fria do domínio “unipolar” norte-americano, está em curso entre as maiores potências uma competição para moldar o que virá pela frente; o segundo tem a ver com os problemas que cruzam as fronteiras nacionais de um lado ao outro e afetam igualmente a todos: mudança climática e pandemias, entre muitos. Como se vê, a dicotomia repercute de modo imperfeito a superposição de dois tipos de crises internacionais de caráter diferente assinaladas por Tooze e outros autores. A estratégia anunciada pelo governo americano reconhece significativamente que: 

esses desafios (globais) comuns não são questões marginais secundárias para a geopolítica. Eles se situam no próprio núcleo central da segurança nacional e internacional e devem ser tratados como tais. Pela sua natureza mesma, esses desafios exigem cooperação entre os governos como condição para resolvê-los. É preciso, porém, ter a lucidez de compreender que teremos de lidar com tais desafios dentro de um contexto internacional competitivo, no qual o agravamento da competição geopolítica, o nacionalismo e o populismo tornam essa cooperação ainda mais árdua e nos obrigarão a pensar e agir de formas novas (NNSS 2022, 6). 

Na perspectiva norte-americana, o desafio mais premente procede de “potências que combinam uma governança autoritária com uma política exterior revisionista. É o comportamento dessas potências que cria desafios à paz e estabilidade internacionais...” Logo adiante, essas potências são identificadas como a Rússia e a China, que apresentariam desafios de ordem distinta e, em nível menor, o Irã e a Coreia do Norte. O da Rússia significaria ameaça imediata ao sistema internacional, mediante a violação às leis básicas da ordem internacional como demonstrado por sua brutal guerra de agressão à Ucrânia. A República Popular da China, em contraste, seria o único competidor (dos Estados Unidos) dotado, ao mesmo tempo, da intenção de reconfigurar a ordem internacional e em condições de acumular, cada vez mais, o poder econômico, diplomático, militar e tecnológico para avançar nesse objetivo (idem, p. 8)[2].

Apesar do crescente alinhamento entre essas duas potências, a diferença no grau da ameaça respectiva recomendaria tratamento diverso a cada uma: “Vamos dar prioridade a manter margem competitiva perdurável em relação à China, constrangendo uma Rússia ainda profundamente perigosa”. O subtítulo da Parte III do NNSS 2022 descreve a dualidade como “Out-Competing China and Constraining Russia” ou “Superando a China na competição e constrangendo a Rússia”, o primeiro termo sugerindo quase uma linguagem esportiva, enquanto o segundo opta, nitidamente, por nomenclatura da Guerra Fria evocativa do “containment” ou doutrina da contenção (NNSS 2022, 23). Em um parágrafo significativo, os redatores reconhecem: 

Algumas partes do mundo estão preocupadas com a competição entre os Estados Unidos e as maiores autocracias do mundo. Compreendemos essas preocupações. Nós também queremos evitar que a escalada da competição conduza a um mundo de blocos rígidos. Não buscamos conflitos ou uma nova Guerra Fria. Ao contrário, estamos tentando apoiar qualquer país, independente de tamanho ou força, a exercer a liberdade de fazer as escolhas que sirvam a seus interesses. Essa é uma diferença crítica entre nossa visão, que busca preservar a autonomia e os direitos dos Estados menos poderosos, e a de nossos rivais, que não faz o mesmo (NNSS 2022, 9).  

Quase como desdobramento desse parágrafo, afirma-se, no chamado “quarto pilar” da abordagem estratégica norte-americana, que “evitaremos a tentação de enxergar o mundo somente através do prisma da competição estratégica e continuaremos a nos engajar com os países em seus próprios termos” (NNSS 2022, 12). 

Segundo essa estratégia de Biden, China e Rússia constituiriam os principais desafios à ordem internacional não tanto por serem autocracias, mas porque desenvolveriam “políticas externas revisionistas”. O revisionismo se manifestaria por meio de alguns tipos de comportamento: “em especial, desencadeando ou preparando guerras de agressão, subvertendo ativamente processos políticos democráticos de outros países, utilizando a tecnologia e as cadeias de suprimento como alavancas de coação e repressão e exportando um modelo de ordem internacional iliberal” (NNSS 2022, 8). 

O que se deve entender por revisionismo em relação ao sistema internacional? O documento não entra nessa matéria, deixando o conceito vago e indeterminado. Em princípio, não existe nada de criminoso ou sinistro em buscar revisão, correção ou atualização das regras internacionais, em ser uma potência revisionista no sentido próprio do termo, ao contrário do que possa parecer do uso da expressão pelos americanos, inclusive no NNSS 2022. Melhorar o status quo tem sido a essência da ação dos países em desenvolvimento nos fóruns multilaterais; a UNCTAD nasceu como uma tentativa de revisar o sistema comercial mundial. A Cúpula da ONU de Kofi Annan, em setembro de 2005, foi o esforço mais ambicioso até aquela data para rever e atualizar o sistema das Nações Unidas.

O problema, portanto, não é o revisionismo, é indagar se esse desejo de revisão assume forma reformista e negociada aceitável para outras partes interessadas, ou se adota perspectiva revolucionária que só pode ser atendida com a destruição do sistema internacional. Para entender o que está em jogo nessa alternativa, é preciso mostrar as diferenças nas consequências de uma abordagem ou da outra. Em seu A World Restored: Metternich, Castlereagh and the Problems of Peace, 1812-1822,  Henry Kissinger (1973, 1-3, citado em tradução própria) descreve o que ele chama de "uma política externa revolucionária" nos seguintes termos: “Sempre que existir um poder que considere a ordem internacional (…) opressiva, as relações entre ele e outros poderes serão revolucionárias. Nesses casos, o que estará em jogo não é o ajuste das diferenças dentro de um determinado sistema, mas o próprio sistema”. 

Continua com palavras que se encaixam estranhamente na atual postura russa – é incrível pensar que o livro foi escrito em 1954 como dissertação de doutorado de Kissinger na Universidade de Harvard (1973, 1-3):       

...a motivação do poder revolucionário pode muito bem ser defensiva; ela pode muito bem ser sincera em seus protestos de sentir-se ameaçado. Mas a característica distintiva de um poder revolucionário não é que ele se sinta ameaçado (...), mas [o fato de que] nada pode tranquilizá-lo. Somente a segurança absoluta – a neutralização do oponente – é vista como garantia suficiente; assim, o desejo de segurança absoluta significa insegurança absoluta para todos os outros... a essência de um poder revolucionário (...) [é que] ele está disposto, de fato ansioso, a levar seus princípios até suas últimas consequências (...) porque, como em situações revolucionárias, os adversários estão mais preocupados em subverter lealdades do que ajustar suas diferenças, a diplomacia é substituída ou pela guerra ou por uma corrida armamentista. 

Tendo em mente as observações de Kissinger, é difícil negar que existem nas ações da Rússia fortes elementos de uma política externa revolucionária. Isso é evidente não tanto no desejo declarado de reverter a expansão da OTAN. O problema procede da vontade de Putin de recorrer à força militar para alcançar as reformas que busca na arquitetura de segurança europeia. Não se trata de um ou dois incidentes isolados, mas de um padrão repetido de crescente escalada que começou com a intervenção militar contra a Geórgia em 2008, passou pela anexação da Crimeia e pelo fomento de movimentos secessionistas em duas províncias do Donbass em 2014, culminando agora com a invasão da Ucrânia na maior operação militar desde o fim da Segunda Guerra Mundial. 

Os dois exemplos de política externa revolucionária dados por Kissinger são a política da França durante a Revolução Francesa e na era napoleônica e, mais perto de nós, a política externa da Alemanha após o Tratado de Versalhes. A ofensiva alemã para destruir a arquitetura de segurança de Versalhes também obedeceu a uma sequência de passos crescentes: rearmamento violatório das cláusulas do Tratado, retirada da Liga das Nações, reocupação militar da Renânia, o Anschluss da Áustria, a anexação dos Sudetos após o Pacto de Munique, a ocupação da Tchecoslováquia, a invasão da Polônia e o início da Segunda Guerra Mundial. Naturalmente, não estou comparando a Alemanha nazista com a Rússia de Putin, dois países completamente diferentes em ideologia e orientação. Estou apenas chamando a atenção para a inegável semelhança dos métodos empregados por ambos os regimes.

Na década de 1930, foi somente após uma sucessão de repetidas violações que se tornou evidente que nenhuma concessão específica aplacaria Berlim, cujos objetivos só poderiam ser alcançados através da destruição do sistema internacional vigente. Está longe de ser claro, na minha opinião, que estamos agora enfrentando situação semelhante. A respeito da dúvida se a versão russa do revisionismo pertence à categoria revolucionária, os analistas internacionais se dividem em linhas que refletem outra controvérsia. Refiro-me à vexata quaestio da responsabilidade dos EUA pela ampliação da OTAN como principal fator responsável pela emergência em Moscou de um líder como Putin e para a reorientação agressiva das atitudes russas em relação ao Ocidente. 

Em 19 de abril de 2022, a revista Foreign Affairs realizou uma pesquisa solicitando a 61 importantes especialistas em relações internacionais que debatessem a seguinte afirmação: “Prosseguir com a expansão da OTAN após o fim da Guerra Fria foi um erro estratégico”[3]. Com diferentes níveis de confiança, o painel dividiu-se da seguinte forma: 19 discordaram fortemente; 18 discordaram; três foram neutros; sete concordaram; 11 concordaram fortemente. Uma dispersão tão ampla de opiniões entre os melhores especialistas na matéria é indicação segura de que a controvérsia tem um futuro brilhante pela frente, agora e na posteridade. 

É digno de nota que discordam fortemente da declaração os especialistas da Europa Oriental e políticos de países que foram membros forçados do bloco soviético ou anexados pela União Soviética. Desprezar essa posição como decorrente de preconceito antirrusso parece insensível às legítimas preocupações daqueles que estão geograficamente mais próximos da Rússia e, historicamente, foram vítimas do imperialismo russo há algumas décadas apenas.  

Independentemente do que se possa pensar a respeito, a agressão russa criou uma situação totalmente nova no terreno, aparentemente dando razão a posteriori aos que, desde o início, favoreceram a ampliação da OTAN como meio de proporcionar segurança aos países mais expostos. Um sinal nesse sentido é a decisão de países neutros como a Finlândia e a Suécia de aderir à OTAN. 

Os favoráveis à opinião de que a expansão da OTAN foi um erro estratégico tendem também a pensar que o revisionismo russo pertence à tendência reformista, ou pode reverter a ela se fracassar na invasão. Igualmente confiam que concessões adequadas poderiam eventualmente levar a um acordo satisfatório sobre as reivindicações russas. Em contraste, os partidários da ampliação da OTAN receiam que Putin persiga um projeto revolucionário de recuperação, tanto quanto possível, da esfera de influência da União Soviética. Isso implicaria necessariamente a destruição total do sistema que garantiu a independência e a segurança dos países situados nessa área de influência. 

A meu ver, até agora, as realidades da guerra na Ucrânia não validaram plenamente nenhuma das duas explicações, o que talvez sugira que a situação permanece fluida e pode evoluir em qualquer direção. Os objetivos russos na guerra são um tanto confusos, parecem variar de acordo com as chances de batalha, assim como variam as presumíveis condições mínimas de Putin para um acordo negociado razoável. Por outro lado, mesmo que Putin abrigue aspirações maximalistas revolucionárias, já se constatou que ele não dispõe dos meios para alcançá-las. Sejam quais forem as intenções subjetivas atribuídas a Moscou, os russos não possuem, exceto em termos de armas nucleares cujo uso destruiria a própria Rússia, a terrível eficácia da máquina de guerra alemã nas duas guerras mundiais. Não é tanto uma questão de aspirações, mas de capacidades.

Muito, por conseguinte, vai depender da fortuna da guerra. A agressão à Ucrânia é o principal fator que desestabilizou o instável e tenso equilíbrio internacional que prevalecia até 24 de fevereiro de 2022. Quem primeiro recorre à guerra, demonstra por atos que abriu mão de atingir um acordo dentro dos meios admitidos pelo sistema. Engajada a prova de força, ela passa a paralisar praticamente todos os esforços de restabelecer um mínimo de normalidade no relacionamento entre os atores. A forma como, cedo ou tarde, terminar o confronto militar terá peso determinante nas características do sistema mundial que emergirá da guerra.

Prever como isso vai ocorrer se choca com a advertência de von Clausewitz (2017): “A guerra é o reino da incerteza; três quartos dos fatores nos quais se baseia a ação na guerra estão envoltos em uma névoa de maior ou menor incerteza”. Essa profecia se confirmou quase desde os primeiros dias das operações, quando se tornaram evidentes os desastrosos erros de cálculos de Putin tanto em relação ao poderio e determinação do seu lado, quanto à capacidade de resistência e espírito de luta dos adversários.

Conservando em mente o efeito do “fog of war, isto é, da contínua incerteza da guerra, talvez se possa ao menos delinear dois cenários contrastantes. Na ponta mais negativa do espectro de possibilidades, o pior cenário seria o da escalada involuntária, conduzindo ao envolvimento militar direto da OTAN e dos Estados Unidos, possivelmente da China, com o recurso ou não a armas de destruição de massa como as nucleares. Seria o “cenário da terceira guerra mundial”, uma reação exagerada indesejada que todos os lados têm tido o cuidado de evitar até o momento. 

No outro extremo, o cenário antípoda e positivo consistiria em um acordo geral negociado pondo fim à guerra e abrindo caminho a uma era de distensão e normalização das relações. Poderia ser chamado de “cenário da crise de Cuba de 1962”, quando o confronto direto entre União Soviética e Estados Unidos foi evitado no último instante, inaugurando fase relativamente distendida na Guerra Fria. É o mais desejável, pouco plausível, porém, à medida que a guerra se prolonga em duração, intensidade e atrocidades. Não se esqueçam de que a crise dos mísseis durou, no essencial, treze dias que abalaram o mundo, título de um filme sobre o ocorrido, além de não ter envolvido “guerra quente”, em combates, mortes e destruição. 

Entre esses dois tipos esquemáticos opostos, não é difícil imaginar, em relação à guerra na Ucrânia e ao futuro dos vínculos com a Rússia, uma variedade imensa de cenários intermediários com dosagem variável de confronto e cooperação.  

LULA 3: MUDOU O BRASIL, MUDOU O MUNDO OU MUDAMOS TODOS?

Anterior ao conflito russo-ucraniano e em grande parte independente dele, a tendência mais notável da evolução do sistema internacional tem sido a gradual instalação de um padrão de relacionamento de competição e crescente animosidade entre os Estados Unidos e a China, as duas únicas potências globais gigantes. Para descrevê-lo, é tentador evocar o sistema bipolar da Guerra Fria, apesar dos riscos inerentes à comparação. De fato, como se tem observado, as diferenças são grandes: a China é incomparavelmente mais dinâmica do ponto de vista econômico-tecnológico do que a URSS jamais foi, encontra-se integrada de maneira profunda na teia de produção e consumo globais, não se ampara em uma rede internacional de partidos comunistas subordinados a suas diretrizes, além das discrepâncias óbvias de localização geográfica e tradição cultural.

Anterior ao conflito russo-ucraniano e em grande parte independente dele, a tendência mais notável da evolução do sistema internacional tem sido a gradual instalação de um padrão de relacionamento de competição e crescente animosidade entre os Estados Unidos e a China, as duas únicas potências globais gigantes.

Não obstante, há também entre os dois padrões analogias relevantes. A principal reside na tendência à divisão do sistema em dois blocos antagônicos por interesses estratégicos conflitantes. Ademais, os dois países líderes divergem igualmente na adoção de critérios contrastantes de legitimidade política, assim como no modelo de organização interna, no caso, democracia representativa contra regime autoritário. Embora presentes, fatores antigos de clivagem como a ideologia marxista-leninista ou o grau de livre mercado capitalista e estatização da economia aparecem mais enfraquecidos na atual versão. Tampouco surgem de maneira tão avançada outras características da antiga Guerra Fria, em especial a oposição entre duas alianças militares com centralização de comando e operações. 

Um esboço da militarização está em curso, mais perceptível do lado ocidental que preservou a OTAN, além de avançar na Ásia em esquemas de contenção e defesa contra a China, como o Quad (Indo-Pacific Quadrilateral Dialogue, 2007), reunindo EUA, Japão, Austrália e Índia. Esse esquema, menos formal, se superpõe à rede de tratados de aliança bilateral com Japão, Austrália, Coreia do Sul, Tailândia, Filipinas, ou ao pacto trilateral AUKUS (EUA, Reino Unido, Austrália). O movimento é mais incipiente do outro lado, no qual se registra um alinhamento crescente na área estratégico-militar entre China e Rússia, expresso até agora na chamada “amizade sem limites” e na organização periódica de exercícios militares conjuntos, sem ter chegado a uma aliança formal. 

Comparar a Guerra Fria com a situação atual equivale a querer cotejar um fenômeno histórico pronto e acabado com um processo em vias de desenvolvimento, um work in progress de que não se conhece o futuro. O que se pode dizer é que tal processo dá toda a impressão de ser durável, datando ao menos de 2012, com a estratégia do pivot to East Asia, a anunciada intenção do governo Obama de reequilibrar suas prioridades estratégicas do Oriente Médio para o Extremo Oriente. Desde então, a tendência só tem feito crescer e se agravar ao longo já de dez anos, atingindo o auge com as sanções comerciais de Trump. A preservação por Biden do essencial da nova abordagem mostra bem que não se trata de algo passageiro. Em uma sociedade profundamente dividida em quase tudo, como é hoje a sociedade norte-americana, a animosidade anti-China é dos raros temas de consenso bipartidário, com amplo apoio no Congresso, na imprensa e na opinião pública.  

Até o momento, tanto Washington quanto Pequim vêm se esforçando em administrar a competição com senso de responsabilidade. À margem da recente cúpula do G20 em Bali, Indonésia, os presidentes Biden e Xi mantiveram longa reunião bilateral que desanuviou um pouco a atmosfera anterior de tensão. Estamos ainda muito longe dos piores lances da Guerra Fria em termos não só de episódios de confronto, quanto de aprofundamento das divisões. A verdade é que o sistema do pós-guerra nunca chegou a ser realmente bipolar, no sentido de que, desde cedo, países de relevo como  Índia,  Iugoslávia,  Egito e  Indonésia deixaram clara a recusa de optar por qualquer dos lados. Hoje, de certa maneira, tal modalidade de alinhamento seria ainda menos plausível, como se tem visto, pela dificuldade enfrentada pelos Estados Unidos para obter, até de seus mais próximos aliados ocidentais, como a Alemanha, a disposição de renunciar a oportunidades econômicas no mercado chinês para se alinhar a posições mais duras.   

Com efeito, todos sentem e temem, conforme admitem os próprios norte-americanos, que uma divisão rígida em blocos prejudicaria imensamente o livre fluxo de ideias, comunicações, comércio e contatos humanos, como já está danificando o processo econômico de globalização. As relações internacionais se militarizariam, os gastos em armas e exércitos aumentariam em espiral em detrimento do esforço de superar os perigos reais que ameaçam o planeta: aquecimento global, fome, pandemias, migrações, violações dos direitos humanos, conquista da igualdade de gênero, eliminação da pobreza e do subdesenvolvimento. É porque não desejam ser arrastados para esse tipo de inversão de prioridades humanas que alguns países em desenvolvimento vêm adotando na ONU uma atitude refletida de condenar a agressão russa à Ucrânia sem aceitar alinhamentos automáticos com blocos.

Mais factível do que vislumbrar um futuro incerto, é tomar nota das mudanças registradas no contexto internacional em relação ao panorama prevalecente vinte anos atrás, em 2003, quando Lula tomou posse em seu primeiro governo:

1 – O sistema de segurança coletiva estabelecido na Carta da ONU sofreu golpe gravíssimo, agravado por ter sido perpetrado por potência nuclear, integrante permanente do Conselho de Segurança. O repetido uso de vetos pelo país violador da Carta tornou o Conselho inoperante. A segurança coletiva baseada no Direito Internacional deixou de existir, como sucedia na Guerra Fria, sem ter sido substituída, como naquela época, por um modus vivendi prático de equilíbrio de poder entre as potências. A erosão da obediência a normas e padrões de comportamento alimenta graves violações da paz e segurança internacionais até por parte de potências médias, como se vê pela intervenção aberta da Turquia e do Irã na Síria, da Arábia Saudita e dos Emirados no Yemen, pelo aventureirismo temerário da Coreia do Norte, o endurecimento da política de ocupação de Israel.

2 – Na esteira da paralisia do Conselho, o multilateralismo em geral se encontra em crise evidenciada em múltiplos exemplos, tais como o baixo nível de colaboração internacional no combate à pandemia do Covid-19, na busca de solução efetiva contra o aquecimento global, na irrelevância da Organização Mundial de Comércio (OMC), sua impotência diante do retorno do protecionismo, na multiplicação de sanções comerciais unilaterais. O recuo da globalização e do grau de integração e interdependência econômica e comercial se reflete em crescentes exemplos: redução na formação de cadeias globais de valor; tendência a procurar suprimento em fornecedores mais próximos pela geografia ou pela afinidade de políticas; proibições de investimentos chineses em áreas sensíveis; diminuição da anterior sinergia comercial sino-americana; descolagem em setores mais ligados à segurança; favorecimento por leis e subsídios à produção interna; retorno das políticas industriais e de protecionismo do emprego e do mercado domésticos; interdição de exportação e acesso de tecnologia em áreas sensíveis como semicondutores; ameaças de sanções a terceiros países; possibilidade de divisão entre sistemas tecnológicos incompatíveis, um centrado nos Estados Unidos, o segundo na China, que obrigaria as empresas privadas a ter de optar por um deles a fim de sobreviver. Uma amostra é o que ocorreu no Brasil com a Huawei: para evitar atrito com Washington e Pequim, o governo Bolsonaro escolheu não excluir a empresa chinesa do sistema privado de 5G, mas, ao mesmo tempo, decidiu que haveria um sistema separado para a segurança do governo no qual os chineses não seriam admitidos. 

3 – Transformação da agenda internacional à medida que a ameaça comum do aquecimento global assume a posição de prioridade central e premente de todas as questões. A mudança acarreta aspectos problemáticos com dimensão internacional: adoção de legislação, como na União Europeia, para impedir a importação de bens de países de padrões ambientais lenientes; pressões contra desmatamento; perda de valor de ativos de combustíveis fósseis. Por outro lado, abre oportunidades novas de influência internacional e de reconquista de competitividade para países dotados de florestas, de fontes de energia limpa e renovável, de recursos revalorizados: floresta tropical em pé; energia hídrica, eólica, solar, biomassa; possibilidade de produzir hidrogênio líquido a baixo custo. A consequência é, naturalmente, a possibilidade de atrair investimentos verdes, doações, desenvolvimento conjunto de tecnologias, conquista de prestígio devido à contribuição para a solução da ameaça a todos.

4 – O eixo econômico-demográfico continuará a se deslocar do Atlântico Norte para o Pacífico. A população é o primeiro fator a influir nesse deslocamento: com 4,6 bilhões de habitantes, a Ásia representa cerca de 60% da população mundial. Somados, os dois gigantes, China e Índia, correspondem a 37% da população do planeta. Das 30 maiores cidades do mundo, 21 estão na Ásia. O ritmo da expansão das economias acompanha o demográfico. É mudança extraordinária quando se compara com 1950, época em que a Ásia representava menos de 20% do produto mundial, apesar de já ostentar mais de metade da população. Aproximadamente metade da classe média mundial (renda diária per capita entre US$ 10 e US$ 100 em termos de PPP de 2005) reside na Ásia. Em conjunto, a Ásia se aproxima de 40% do consumo global. A Índia e o resto da Ásia possuem o potencial para impulsionar e dar forma à próxima fase da globalização, compensando, em certa medida, a relativa perda de dinamismo do crescimento da China. Para o Brasil, a China é o principal mercado de exportação, com participação de 26,8%, seguida dos Estados Unidos com 11,2% e da Argentina, 4,6% (2022). Em termos de regiões/blocos, a participação da Ásia foi de 42%, seguida pela da União Europeia, 15,2%, e da América do Sul, 13%. Nas importações, a participação da Ásia foi de 35%, sendo a da China de 22,3%. A América do Sul respondeu por 18,8% e a Argentina por 4,8%. A participação dos Estados Unidos foi de 18,8%, inferior à da China, mas superior à da União Europeia.

Existem, é claro, outras mudanças de certo relevo que poderiam ser lembradas. A bem da brevidade, contudo, as enumeradas acima possivelmente cobrem a maioria dos fatores de importância para definir os traços principais a serem levados em conta nas políticas de defesa e externa do novo governo, objeto do presente artigo. Em contraste com o que sucede na Europa, Estados Unidos, Oriente Médio, Ásia, em quase todo o mundo, não há praticamente, no Brasil, consciência de ameaças externas que requeiram prioridade a esforços de defesa. A sensação de segurança externa é generalizada e inconsciente. Nem sempre foi assim. Praticamente todo o nosso primeiro século de vida independente foi dominado por problemas de segurança externa.

A experiência recente apagou da memória a lembrança dessa era de sobressaltos. Ninguém mais tem consciência do custo humano e econômico da manutenção da unidade e da estabilidade interna, nas primeiras décadas da independência, e da segurança das fronteiras platinas, depois. A partir da década de 1880, a sensação de vulnerabilidade externa foi esmaecendo até quase desaparecer por completo. Nada disso aconteceu por milagre. A consolidação da independência e a superação dos riscos à segurança resultaram da construção gradual de política exterior eficaz que resolveu, um após outro, todos os desafios dos primeiros 60 anos.

É claro que contribuíram muito para isso o esforço de dotar o país de defesa militar efetiva em relação aos vizinhos e, de maneira gradual, a própria evolução política que fez da América do Sul a zona do mundo com menor incidência de guerras entre países, situação que se estabilizou ao longo do tempo e não sofreu mudança de monta mesmo agora. Com o tempo, o Brasil se transformou em país comparável aos Estados Unidos em relação à situação confortável de segurança externa. Dizia no século XIX um embaixador francês que os norte-americanos eram afortunados, porque tinham um vizinho muito mais fraco ao Sul, outro igualmente fraco ao Norte, peixe a Leste e peixe a Oeste. A força relativa aos vizinhos e os dois oceanos garantiam a segurança.

Continuamos com os mesmos vizinhos e eles nunca mais representaram problemas. Tanto assim que contabilizamos 152 anos de paz ininterrupta com nossos dez vizinhos, que já foram onze até o início do século XX, quando chegamos a firmar o tratado de limites Tovar-Rio Branco com o Equador. Nossa última guerra realmente nacional, a da Tríplice Aliança contra o Paraguai, terminou em 1º de março de 1870. Depois dessa data, o único envolvimento que tivemos em conflitos militares nas duas guerras mundiais decorreu mais de escolha livre que de necessidade, e de todo modo nossa participação foi periférica. 

Em que medida o que hoje ocorre no sistema internacional modifica de maneira fundamental essa situação? Nada muda no que tange aos vizinhos ao longo de nossas fronteiras terrestres, nem em relação ao Atlântico Sul e aos países africanos do outro lado do mar. Embora a intensidade de nossas relações comerciais e de outra natureza com nações distantes da Ásia e com a Rússia seja muito maior que no passado, o Brasil continua distante, separado por milhares de quilômetros, das principais zonas conflitivas mundiais: Europa Central e Oriental, Médio Oriente, Ásia do Leste. 

Tampouco somos membros de alianças militares que exigiriam nosso engajamento, a não ser que se volte à fantasia do começo do governo Bolsonaro. Por ocasião da visita que o presidente fez a Washington em março de 2019, o governo brasileiro pleiteou, e o governo norte-americano acedeu, que o país passasse a ser considerado como um dos “principais aliados dos Estados Unidos fora da OTAN”. A categoria inclui aliados para valer, com tradição e capacidade militar, tais como Israel, Austrália, Japão, Coreia do Sul e uma espécie de “segunda divisão” formada pela Argentina das “relações carnais” dos tempos de Menem, Colômbia, Tunísia, entre outros. A iniciativa não foi levada a sério nem pelo governo Bolsonaro, como se pode ver na ambiguidade da posição adotada em relação à Rússia na agressão à Ucrânia. Nem foi cobrada pelos americanos. 

De todas as transformações em curso no mundo, as que já [afetam o Brasil] e vão se fazer sentir de modo mais acentuado no futuro têm a ver com a nova categoria de ameaças de caráter global desencadeadas por forças da natureza, apesar da presença de digitais humanas, tais como as pandemias e o aquecimento global. Ao lado delas, o país começa a sentir pressões para escolher um dos lados em questões como as sanções econômicas à Rússia e a condenação de decisões russas (anexação de território ucraniano, por exemplo).

De todas as transformações em curso no mundo, as que já nos afetam e vão se fazer sentir de modo mais acentuado no futuro têm a ver com a nova categoria de ameaças de caráter global desencadeadas por forças da natureza, apesar da presença de digitais humanas, tais como as pandemias e o aquecimento global. Ao lado delas, o país começa a sentir pressões para escolher um dos lados em questões como as sanções econômicas à Rússia e a condenação de decisões russas (anexação de território ucraniano, por exemplo). Antes da guerra, a questão da tecnologia 5G e da empresa chinesa Huawei antecipou as pressões que, provavelmente, irão se multiplicar no que concerne à escolha dos provedores de tecnologias de uso dual civil e militar. Se a competição tecnológica entre Estados Unidos e China se acentuar, como está acontecendo, empresas brasileiras que atuam ou dependem desse tipo de tecnologia vão enfrentar dilemas inevitáveis. 

A deterioração do nível geral de segurança internacional obrigará o Brasil a reatualizar suas doutrinas e capacidade de autodefesa. Para isso, deveria haver um debate amplo com a participação de setores da sociedade civil normalmente indiferentes às questões de defesa ou excluídos deliberadamente da discussão da temática. A tendência natural dos militares de carreira, no Brasil e em praticamente todos os países, é tentar manter esses assuntos sob controle corporativo, desencorajando o debate público, tolerado somente na medida em que é necessário para a obtenção de recursos orçamentários para a defesa. Não se pode continuar a limitar a discussão da defesa somente ao financiamento de equipamentos como o submarino nuclear ou a nova geração de aviões de caça, sem entrar na análise da doutrina que justificou a escolha de uma ou outra opção no interior de cada corporação. 

A necessidade para o Brasil de dispor de forças de defesa efetivas não deve prescindir da reflexão sobre questão estrutural e de longo prazo: o próprio modelo de recrutamento universal adotado em tese no Brasil e, na prática, cada vez mais afastado da realidade. É possível a um país de recursos escassos e de problemas sociais prementes manter esse modelo baseado na quantidade em vez de qualidade, adotado por ocasião das guerras napoleônicas e hoje abandonado pela maioria das nações avançadas? É racional destinar a parcela mais substancial do gasto de defesa a despesas de pessoal em razão dessa estrutura volumosa? Não faria mais sentido optar pelo modelo de forças de contingente menor, tecnologicamente profissionalizadas e sofisticadas, dotadas de armamento moderno e de capacidade de deslocamento e intervenção rápida? 

A modernização profissionalizante progrediu mais na Marinha e na Força Aérea devido às características do equipamento que utilizam. Fazer avançar a profissionalização na força terrestre traria a vantagem adicional de concorrer para a despolitização desejável dos militares. Não foi por acaso que a “questão militar” dos últimos anos do Império tenha aparecido depois do fim da Guerra do Paraguai, justamente quando o Exército perdeu, em boa parte, sua função anterior de defesa nos conflitos do Prata e passou a ficar disponível para interferências na vida política interna. Apesar da modernização realizada na primeira metade do século XX por iniciativas como a Missão Francesa, mais tarde fortemente impulsionada com a Força Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial, essa função regrediu no longo período da Guerra Fria. Nessa época, a influência norte-americana no sentido de reservar os militares latino-americanos a papel de auxiliares na luta antissubversiva favoreceu a doutrina de “segurança nacional” voltada prioritariamente a questões internas. 

Cedo ou tarde, terá de ser enfrentado o problema estrutural espinhoso do modelo de recrutamento universal; não será fácil superar hábitos e tradições arraigados, sem mencionar as dificuldades corporativas de ajustar a carreira do oficialato a uma redução substancial no tamanho e, em consequência, no número de postos superiores de comando, bem como nas oportunidades de promoção. Adiar a questão garante somente sua perpetuação e agravamento. A abordagem equivocada é a que o novo governo Lula esboçou na esteira dos atentados do 8 de janeiro: jogar mais dinheiro em cima dos militares ou, na falta de verbas, apelar a empresários da indústria de defesa. Essa ilusão, aparentemente sem sequência, esquece que o agravamento da radicalização e politização dos militares coincidiu com o governo Bolsonaro, o qual, muito mais que o regime de 1964 a 1985, derramou rios de dinheiro nos orçamentos das Forças Armadas e isentou seus dispendiosos projetos de armamento de qualquer limitação orçamentária.

Quanto aos aspectos mais especificamente “diplomáticos” da política externa em sentido estrito, algumas linhas gerais já são discerníveis nesta fase inicial, apesar de o governo mal ter completado um mês no momento em que escrevo. O primeiro é o que se poderia chamar da “política interna da diplomacia”, isto é, a base partidária-ideológica. Da mesma forma que vem sucedendo com todos os governos desde 1985, o governo se organizou por meio do “presidencialismo de coalizão”, por meio de coligação de partidos para obtenção de base parlamentar, sem preocupação prévia de ajustar um programa comum. O governo é pluripartidário sem ser a expressão real de uma ampla aliança de forças democráticas em torno de um programa debatido e aprovado por consenso. As principais personalidades da frente ampla – Geraldo Alckmin, Simone Tebet, Marina Silva – se viram contempladas com fatias do governo, mas, exceto com a incorporação da prioridade ambiental por Marina, não houve inclusão, ao mesmo tempo, das abordagens distintas que Alckmin e Tebet encarnam em questões econômicas, por exemplo. Tebet chegou a mencionar suas diferenças na posse, não tendo havido tentativa de debater e adotar postura conjunta.

No caso da política externa, a inspiração provém exclusivamente da herança do PT e da “política ativa e altiva” dos primeiros mandatos de Lula, citada várias vezes em discursos. O presidente, o ministro das Relações Exteriores e o assessor especial Celso Amorim são personalidades conhecidas, que repetem, com algumas mudanças, os papéis desempenhados anteriormente (Amorim toma o lugar que foi do finado Marco Aurélio Garcia; Mauro Vieira, que havia sido chanceler de Dilma, ocupa o posto que foi antes de Celso Amorim). O estilo volta a dar ênfase à diplomacia presidencial, à centralidade da figura carismática de Lula, sua biografia, ao seu prestígio internacional, a seus vínculos partidários e ideológicos. 

Anunciou-se que o presidente gostaria de fazer uma viagem por mês ao exterior, retomando aí também a intensa atividade dos dois primeiros mandatos, durante os quais somou cerca de uma centena e meia de viagens internacionais. Um corolário da intensidade reside no engajamento, como diria de Gaulle, tous azimuts, em todas as direções do globo, a “volta do Brasil ao mundo”, as três primeiras viagens simbólicas à Argentina (América Latina), aos Estados Unidos, à China e, em seguida, à África. Tendo presente o relativo desgaste do tema do eixo prioritário Sul-Sul, é curioso que não se tenha tentado sua atualização por meio de política que valorize os contatos com a parte mais dinâmica do Sul. Em vez de se limitar a insistir na já estabelecida prioridade da China, cuja fase de emergência parece ter atingido o pico, o esforço de prospecção e iniciativa deveria voltar-se à Ásia em geral: olhar além da China, ao Sudeste da Ásia, ao Indo-Pacífico, aos atuais habitats do dinamismo econômico e da expansão de mercados para exportações brasileiras (Vietnã, Indonésia, Malásia, Tailândia, Filipinas, Bangladesh).  

A escolha das primeiras viagens obedeceu aos critérios de prioridades naturais pela ordem de importância política e econômica. A ida a Buenos Aires teve também dimensão plurilateral, a do retorno brasileiro à Comunidade de Nações Latino-Americanas e Caribenhas (CELAC), abandonada pelo governo Bolsonaro. Na ocasião, indicou-se que no futuro deverá ser reativada a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL), de destino ainda mais tumultuado. Criadas em torno de 2008-2010, as duas entidades não chegaram a completar vinte anos, sofrendo das tensões oriundas do difícil convívio entre regimes ideologicamente opostos, agravadas pela guinada à direita de fins da década de 2010. Previsivelmente, a política de referência ao passado voltou a valorizar esses espaços regionais, o primeiro com exclusão da América do Norte desenvolvida (EUA e Canadá), o segundo exclusivamente sul-americano. A reativação de ambos teve, junto à opinião pública, efeito mitigado pelo desgaste natural de iniciativas já conhecidas. É presumível que o mesmo ou pior ocorra com outros foros criados na mesma fase, como os BRICS, por exemplo, hoje em dia muito mais problemáticos devido ao papel da Rússia na Ucrânia e à polarização entre China e Estados Unidos.  

A réplica do passado traz de volta não só a lembrança de êxitos, mas o fantasma de problemas mal resolvidos. Essa é a situação da principal controvérsia que há décadas desafia os latino-americanos: como um conjunto de países unidos pela declarada adesão aos valores da democracia representativa e dos direitos humanos deve tratar regimes dissidentes em relação a tais valores, como Cuba, Nicarágua e Venezuela?

A réplica do passado traz de volta não só a lembrança de êxitos, mas o fantasma de problemas mal resolvidos. Essa é a situação da principal controvérsia que há décadas desafia os latino-americanos: como um conjunto de países unidos pela declarada adesão aos valores da democracia representativa e dos direitos humanos deve tratar regimes dissidentes em relação a tais valores, como Cuba, Nicarágua e Venezuela? A crise da CELAC e da UNASUL se deveu justamente à acusação de incapacidade de lidar com o problema, que voltou à superfície nas discussões de Buenos Aires, sobretudo pelas intervenções do presidente do Uruguai, Lacalle Pou, e declarações de Lula.  A piora do clima na Nicarágua ou eventuais retrocessos no processo de normalização política na Venezuela bastarão para reavivar as divergências.  

Esse cenário obriga a encarar de frente a dificuldade subjacente em levar avante qualquer proposta construtiva em um continente muito distante de convergência mínima de ideologias, valores e projetos de integração no contexto global. Em contraste com a relativa homogeneidade da União Europeia ou do pragmatismo operacional em termos de modelo exportador da ASEAN, os latino-americanos continuam a se distinguir por amplo espectro de opções incompatíveis. Há de tudo na América Latina: fósseis ideológicos como Cuba; tiranias de esquerda como a Nicarágua; experiências encruadas de “socialismo do século XXI” como a Venezuela; padrões de instabilidade política com seis presidentes e quinze primeiros-ministros em cinco anos como o Peru; países falidos em estágio terminal como o Haiti; o populismo arrogante de López Obrador no México; fontes inexauríveis de imigrantes ilegais para os EUA; domínio do crime organizado das “maras” como Honduras e El Salvador; sociedades em crise permanente como a Argentina, de inflação de 100% ao ano em véspera de eleições imprevisíveis; e assim por diante, com exemplos melhores sem chegarem a êxitos indiscutíveis.

Os modelos de inserção comercial no sistema global variam da mesma forma. De um lado, estão os que optaram, desde o início dos anos 1990, mais de trinta anos atrás, pela integração básica no mercado norte-americano por meio do NAFTA e outros acordos de livre comércio, como México, muitos caribenhos e centro-americanos, e os maiores ribeirinhos do Pacífico na América do Sul (Chile, Colômbia, Peru). Na outra ponta, o Mercosul, reunindo os voltados para a fachada atlântica. O velho sonho de Lula e do Brasil de ampliar o Mercosul para incorporar as economias do Pacífico e toda a América do Sul não oferece atratividade para países já integrados em acordos com os asiáticos e norte-americanos. Ao contrário, corre o risco de desgarre adicional dos mais liberais como o Uruguai, primeiro tentado pelo livre-comércio com os Estados Unidos, ora inclinado a buscar acordo com a China. Persuadir os uruguaios a dar prioridade à finalização do acordo com a União Europeia é pouco convincente, quando se lembram as resistências argentinas ao acordo com os europeus e o desejo do governo Lula de reabrir a negociação a fim de proteger setores industriais.

Nesse panorama, o discurso de modernização e revitalização do Mercosul soa envelhecido e sem credibilidade, pois data do princípio dos anos 2000 e atravessou todos os governos brasileiros desde então, sem registrar avanços. A paralisia atual reflete obstáculos estruturais, dentre os quais se destacam a permanente crise argentina e as contradições do próprio Brasil. Enquanto não formos capazes de oferecer um modelo de retomada do desenvolvimento interno e de diversificação no comércio internacional além das commodities, dificilmente vamos adquirir o poder de convencimento que só pode provir do êxito concreto. Parcialmente por essas razões, caíram mal junto à opinião pública declarações de Lula na CELAC sem suficiente preparação ou justificativa. Ideias controvertidas, como a de financiamento do combalido BNDES para obras de infraestrutura em países vizinhos ou a da adoção de moeda para facilitar o intercâmbio com a Argentina, se enquadram na fórmula usada pelo economista Luís Eduardo Assis para descrever a moeda comum: “uma solução em busca de um problema”.

Outra pendência a resolver será o processo de adesão à OCDE, desejada pelo mercado financeiro e pelos economistas liberais, promovida ativamente pelos governos Temer e Bolsonaro. A adesão plena encontra resistência de parte do novo governo, temeroso de suas consequências diplomáticas no eixo Sul-Sul e apreensivo pela ameaça de perda de policy space para a adoção de políticas industriais. A curto prazo, o assunto deve perder urgência e entrar em compasso mais lento.

A ambiguidade da posição brasileira diante da guerra na Ucrânia, herdada do governo anterior, segue à espera de definição. Lula revela alguma evolução a respeito, ao classificar a invasão russa de “erro” (apenas) e deixar de lado disparates como o de afirmar que Zelensky era tão responsável quanto Putin. Imediatamente, porém, acrescentou outro despropósito: o de que, se dois não querem, não haverá briga, sugestão extravagante para quem vê sua terra invadida, suas cidades destruídas, seus cidadãos vítimas de atrocidades de parte dos invasores. Nas votações de resoluções no Conselho de Segurança e na Assembleia Geral da ONU, o Brasil ora votou a favor, ora se absteve. Neste caso, explicou que o fazia porque o texto não dava suficiente ênfase à busca de solução negociada. Explicou o voto, em certa ocasião, por outra inconsistência: condena a agressão, mas, contraditoriamente, reprova o fornecimento de armas que permitam ao agredido defender-se da agressão. 

Essas atitudes do governo Bolsonaro continuam presentes nos comentários de Lula, que insiste, por exemplo, na criação de um foro plurilateral para encaminhar negociações, ideia particularmente inviável. Em visível desconforto, o governo evita reconhecer o óbvio: tratando-se de agressão unilateral não provocada ou “erro”, como diz Lula, a solução é simplesmente o agressor retirar as tropas e corrigir o erro. Falar o tempo todo em solução negociada e pacífica, sem examinar as causas da falta de negociações ou a responsabilidade pela guerra, equivale a querer dialogar com o carrasco que se apresta a fazer baixar a lâmina da guilhotina. Pode ser maneira confortável de fugir do problema, mas não indica que o Brasil tenha alguma contribuição a dar para a solução.

Nessa e em outras questões que originaram polêmicas – o financiamento do BNDES, a moeda comum no Mercosul, o “carinho” a adotar ao tratar Cuba ou Venezuela, a manifestação pública em favor do governo peronista em Buenos Aires, o gorado intento de vetar o nome de Ilan Goldfajn à presidência do BID na fase de transição – ressurge a tendência de reincidir em fórmulas e padrões dos governos anteriores de Lula e do PT. A repetição do passado agradará aos partidários convictos. Não será capaz, no entanto, de ampliar a base de apoio, apelando aos favoráveis à ideia da frente ampla ou mesmo a centristas em geral, em uma fase em que o desgaste da Lava Jato, a deriva conservadora do eleitorado e a mudança de correlação de forças eliminaram a possibilidade de que o PT volte a conquistar a posição que ocupava em 2003.  

CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Finalmente, para terminar em nota alentadora, a inovação supera com força a repetição no tema principal, o destinado a dominar a agenda mundial nos próximos anos: o desmatamento da Amazônia e suas implicações para o desafio global do aquecimento. Goste-se ou não, o resto do mundo tende a olhar o Brasil, ainda mais depois de Bolsonaro, sobretudo como ameaça em razão da destruição da floresta. Acima de qualquer outra coisa, o que espera de nós é uma contribuição decisiva para proteger a floresta em pé e aumentar a chance de limitar o aquecimento global. Coincidente com o interesse interno brasileiro, essa expectativa abre condições sem precedentes para a atração de investimentos, doações, financiamentos e cooperação tecnológica. Combinada com as vantagens da matriz energética brasileira, que em 2022 atingiu 92% de fontes limpas e renováveis (hídrica, eólica, solar, biomassa), possibilita ao país, pela primeira vez em várias décadas, sonhar em recuperar a perdida capacidade de crescer e a competitividade em novas bases, as da economia verde. 

Nessa área, tem sido uma agradável surpresa a evolução de ideias de Lula, que, nos seus dois primeiros mandatos, revelava mais sensibilidade ao social do que ao ambiental, não tendo evitado, por isso, o rompimento com Marina Silva em 2008/2009. Um dos maiores equívocos ambientais (e econômicos) brasileiros, a usina de Belo Monte, deve-se muito à obstinação de Dilma Rousseff. Sua insensibilidade ambiental e anacrônica fixação produtivista me levou, na época, a evocar em artigo na Folha de São Paulo a fórmula pela qual os leninistas descreviam seu projeto de desenvolvimento: “os sovietes mais a eletrificação” (Ricupero 2011). Desta vez, entretanto, desde o primeiro momento, já no pronunciamento da noite da vitória eleitoral, Lula demonstrou engajamento na causa ambiental, anunciou a viagem que empreendeu (sua primeira ao exterior) à COP 27 no Egito e ofereceu o país como sede da futura COP 30 em 2025. 

Na montagem do governo e logo depois, os anúncios foram seguidos por realizações, como a volta de Marina ao ministério do Meio Ambiente, a criação do ministério dos Povos Originários com nomeações de indígenas aos postos principais, a intenção de tornar o aquecimento global tema transversal em todos os ministérios, de instituir uma Autoridade Nacional de Segurança Climática, a inédita viagem de Lula com oito ministros à Roraima para socorrer os ianomamis, a decisão de enfrentar o desafio do garimpo ilegal. Tudo isso aumenta naturalmente a credibilidade para que Lula possa transformar a temática ambiental no carro-chefe de uma inovadora política externa, geradora de crescentes rendimentos tanto em prestígio e soft power internacionais, quanto em benefícios materiais tangíveis.

Uma estratégia correta de economia verde pode proporcionar ao Brasil o que até agora lhe falta: um projeto viável de crescimento interno, geração de empregos e competitividade internacional. 

Uma estratégia correta de economia verde pode proporcionar ao Brasil o que até agora lhe falta: um projeto viável de crescimento interno, geração de empregos e competitividade internacional. Superando as discussões estéreis em torno de fórmulas voluntaristas do passado, pode vir a ser o modelo de desenvolvimento econômico com êxito social e ambiental, condição indispensável para oferecer aos demais, a começar pela América Latina, uma inspiração e um exemplo. 

                                                                     São Paulo, em 2 de fevereiro de 2023.

Notas

[1] A tendência à repetição dos mesmos nomes que se revezam no poder – Caldera (1969-1973 e 1994-1998) e Pérez (1974-1978 e 1988-1993) na Venezuela, Bachelet (2006-2009 e de novo 2014-2017) e Piñera (2010-2013 e novamente 2018-2021) no Chile, Prado (1939-1945 e 1956-1962), Belaúnde Terry (1963-1968 e 1980-1985) e García (1985-1990 e 2006-2011) no Peru – parece sugerir que o sistema político atingiu o limite e não é mais capaz de produzir renovação. É sugestivo que o revezamento tenha culminado em crises espetaculares e terminais em alguns casos: a eleição de Chávez e sua perpetuação no poder, a partir de 1999 na Venezuela; as maiores demonstrações populares da história chilena em 2019, seguida do plebiscito e da tentativa abortada de elaborar nova constituição no Chile; e no Peru o suicídio de Alan García, depois que havia terminado o segundo governo.

[2] Como resumiu em fórmula de impacto um comentarista: "Russia is a rogue, not a peer; China is a peer, not a rogue", ou "a Rússia é um bandido, não um par; a China é um par, não um bandido".

[3] Os resultados da pesquisa podem ser consultados, em inglês, em: https://www.foreignaffairs.com/ask-the-experts/2022-04-19/was-nato-enlargement-mistake.

Referências Bibliográficas

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Recebido: 2 de fevereiro de 2023

Aceito para publicação: 10 de março  de 2023

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