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Policy papers

Brazil, a Country of the Present: Democracy, Sustainability and Peace

Beyond the promise of being a "country of the future"

Abstract

The subject of the preservation of human civilization has frequently arisen in recent debates about the future of the international order, and Brazil seems to be well-positioned to address these issues. The country has been a relatively rare example of non-selective adherence to International Law, promoting peace and rejecting unilateralism. As a spokesperson for the democratization of international relations, Brazil today embodies humanistic values of universal resonance and should not be seen as a country of the future, but as a country of the present.

Keywords

sustainability; peace; international order; democratization; tipping point
Image: Shutterstock

Vale a pena reler a obra de Stefan Zweig “Brasil, um país do futuro” (Brasilien, ein Land der Zukunft)[1](1998). A introdução já deixa claro o sentido do título. Não se trata de uma observação como aquela que se aplicaria a uma jovem pessoa talentosa, a quem seria possível prever um futuro brilhante. Zweig refere-se a traços da identidade brasileira, já existentes na década de 1940, que a seus olhos adquiririam crescente relevância para a marcha da civilização humana em um eventual pós-II Guerra Mundial. O escritor austríaco, de origem judaica, chegou a ser, no início do século passado, um dos mais lidos e traduzidos intelectuais do mundo. Não era apenas um autor de ficção.  Foi também historiador e biógrafo. Alarmado pelo alastramento do nazismo, passou a residir em Londres em 1934, onde acolheu seu amigo Sigmund Freud. Instalou-se no Brasil, após breve passagem pelos EUA. Seu livro sobre o Brasil foi publicado em 1941, um ano antes do suicídio em Petrópolis – após haver tomado conhecimento da captura de Singapura pelo exército do Japão. A notícia provocou nele um impacto devastador. Deixou de acreditar na possibilidade de vitória aliada. Perdeu esperança no futuro da civilização humana.

Zweig não subestimava os desafios sociais e econômicos enfrentados pelo Brasil. Segundo suas próprias palavras, sua reflexão se situava no campo da “cultura e da civilização”. Em certo trecho, comenta que toda a organização e prosperidade das potências europeias no início do século XX não as impediram de orientar seu poderio no sentido da barbárie (bestialité na tradução francesa). Ideais humanistas haviam sido deixados de lado. Em menos de 25 anos, a suposta civilização europeia sucumbira aos piores instintos destrutivos e à autoflagelação em duas mortíferas guerras mundiais. Caetano Veloso, em uma antológica entrevista ao programa Roda Viva em 1996, talvez se referisse a um sentimento parecido com aquele descrito por Zweig quando afirmou que “tem alguma coisa de entendimento de vida, alguma riqueza no modo de ser, que é perceptível para estrangeiros, quando manifestam respeito pelo que há de interessante, sugestivo, no modo de ser do Brasil e dos brasileiros”. São proclamações que não deixam de reverberar em um contexto de renovado compromisso do Brasil com valores humanistas, conforme expressos na Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), na presidência do G20 e no trato de temas ambientais, como manifesto na intenção de sediar a Conferência da ONU sobre as Mudanças Climáticas, ou Conferência das Partes (COP 30).

Feito esse comentário introdutório, volto a olhar para o cenário internacional contemporâneo. O secretário-geral da ONU, António Guterres, em seu discurso na Conferência de Munique sobre Segurança, em fevereiro último, fez um diagnóstico impiedoso da situação atual (Guterres 2024). Segundo Guterres, o mundo confronta sérias ameaças existenciais, e a comunidade internacional se encontra mais dividida do que em qualquer outro momento dos últimos 75 anos. Três ameaças, em particular, são identificadas – guerra nuclear, aquecimento global e riscos inerentes ao emprego sem controle de novas tecnologias como a inteligência artificial. Seu veredito: our world is in deep trouble – estamos diante de um problema grave. Como se não bastassem essas ameaças, os fatos e a verdade estão sob assédio, em uma era de desinformação. Sociedades estão sendo contaminadas por narrativas extremistas que subvertem valores democráticos e disseminam ódio religioso e racial. Não é a primeira vez que Guterres se refere ao mundo em que vivemos em termos alarmantes, tais como beira do abismo ou limiar do apocalipse. A defesa do diálogo, da diplomacia e do multilateralismo surge como apelo à responsabilidade individual e coletiva em defesa da civilização humana sobre a terra.

A ideia da preservação da civilização humana tem surgido com frequência em debates recentes sobre o futuro do ordenamento internacional. Desde 2018, faço parte de um grupo intitulado Líderes pela Paz (LPP), coordenado pelo ex-primeiro-ministro da França Jean-Pierre Raffarin. Somos cerca de quarenta membros, de todas as partes do mundo. Entre os integrantes dos LPP estão ex-secretários-gerais da ONU e da Liga Árabe, ex-primeiros-ministros da Itália e da Tailândia, personalidades do mundo acadêmico e do setor privado. O representante britânico é Peter Mandelson, membro do Partido Trabalhista (Labour Party) na Câmara dos Lordes e ex-comissário de Comércio na época em que o Reino Unido fazia parte da União Europeia. Nos últimos três anos, assumi o papel de relator dos LPP. O relatório de 2024 conclama a comunidade internacional a reafirmar seu compromisso com a Carta da ONU e a Declaração Universal dos Direitos Humanos – que acaba de cumprir 75 anos – no intuito de engrossar as fileiras de uma marcha pela racionalidade, capaz de contribuir para o “progresso civilizacional” e evitar o pior. O relatório recorre à imagem do ponto de inflexão (tipping point), que entrou para o vocabulário do aquecimento global, ao sugerir que nos aproximamos também de um tipping point sistêmico.

As múltiplas violações do Direito Internacional que se vêm acumulando nas últimas décadas – como vimos no Iraque, na Ucrânia e no conflito em Gaza – acendem um sinal de alerta que não pode ser ignorado. Além das consequências trágicas e desestabilizadoras para as regiões em que ocorrem, geram descrédito e cinismo em relação à ONU e ao multilateralismo. 

As múltiplas violações do Direito Internacional que se vêm acumulando nas últimas décadas – como vimos no Iraque, na Ucrânia e no conflito em Gaza – acendem um sinal de alerta que não pode ser ignorado. Além das consequências trágicas e desestabilizadoras para as regiões em que ocorrem, geram descrédito e cinismo em relação à ONU e ao multilateralismo. Participo também de um projeto intitulado Better World Order, patrocinado pelo Quincey Institute (2024) sob a coordenação do cientista político Trita Parsi. Um colegiado, semelhante ao dos LPP, reuniu-se durante dois fins de semana no início deste ano para elaborar um relatório à Cúpula do Futuro, convocada por António Guterres. O exercício do Quincey Institute rejeita narrativas segundo as quais a multipolaridade será menos estável que o mundo unipolar ou que a bipolaridade. Cenários cooperativos são realisticamente imagináveis em um ordenamento geopolítico multipolar. A persistirem atitudes irresponsáveis em relação à promoção da paz e segurança internacionais, contudo, uma erosão progressiva do sistema de segurança coletiva da Carta da ONU corre o risco de ocasionar uma proliferação destrutiva de posturas unilaterais.   

Tanto Raffarin como Parsi acreditam que o Brasil tem um papel importante a exercer na transição para um mundo não unipolar, capaz de evitar uma crise sistêmica e aprimorar o multilateralismo. Não por acaso, os Líderes pela Paz planejam organizar sua Assembleia Anual no Brasil no fim de 2024. O Quincey Institute deverá apresentar seu relatório sobre Uma Ordem Mundial Melhor à margem do T20 no Rio – o colóquio de think tanks de países integrantes do G20. Recordo que os Elders, grupo presidido por Mary Robinson, ex-presidente da Irlanda e ex-alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, também se reuniu em cidades brasileiras em maio último (Elders 2023). O fato de o Brasil estar na presidência do G20 poderá explicar em parte esse interesse. Mas os depoimentos que ouço me permitem deduzir que não se trata de interesse despertado apenas por uma presidência rotativa circunstancial. Sou frequentemente abordado em termos como “o Brasil está especialmente bem posicionado para levar adiante uma agenda que contribua ao fortalecimento da cooperação internacional” ou “o Brasil pode avançar, ou mesmo liderar, uma agenda de reafirmação do multilateralismo”.

Sou frequentemente abordado em termos como “o Brasil está especialmente bem posicionado para levar adiante uma agenda que contribua ao fortalecimento da cooperação internacional” ou “o Brasil pode avançar, ou mesmo liderar, uma agenda de reafirmação do multilateralismo”.

Sabemos que o Brasil terá que persistir por décadas na aplicação de políticas públicas bem concebidas para superar suas insuficiências socioeconômicas. Não é possível ignorar desafios específicos brasileiros, como os da erradicação da fome e da pobreza urbana e rural, do combate à criminalidade, das melhorias requeridas em matéria de educação, saúde e saneamento básico. Sabemos também que, ao lado dos traços identificados por Zweig e Caetano, comportamentos ameaçadores do progresso civilizacional não hesitam em tentar abalar os alicerces de nossa democracia. Nenhuma nação está imune a posturas demolidoras. Não obstante, é possível constatar que, até mesmo em função de um déficit de outras lideranças, o Brasil afirma-se como uma voz em favor da racionalidade na defesa da democracia, da sustentabilidade e da paz. É possível afirmar que o Brasil voltou a encarnar valores humanistas de ressonância universal. Abraçar as causas contemporâneas essenciais e posicionar-se no centro de esforços para evitar que a humanidade se transforme em civilização do passado representam um compromisso com o presente, sem o qual as profecias mais alarmistas sobre o futuro correm o risco de se materializarem.

Pouco depois de assumir minhas funções na embaixada do Brasil em Londres, fui procurado pelo parlamentar do Labour Party David Lammy. Filho de imigrantes da Guiana, Lammy é hoje secretário de Estado (ministro) das Relações Exteriores, Commonwealth e Desenvolvimento no governo do primeiro-ministro Keir Starmer. Nós nos sentamos para almoçar e ele puxou conversa com a provocação: “será o Brasil um país destinado a permanecer o país do futuro?” A insinuação de que o Brasil permanecerá uma promessa não cumprida não chega a ser incomum, inclusive entre brasileiros céticos. Acredito, porém, ser essa uma perspectiva que merece ser desconstruída. Em um cenário internacional em mutação geopolítica, o país do presente é aquele que assume plenamente suas responsabilidades no plano interno e internacional e exerce uma influência positiva na articulação de uma agenda civilizatória. Descrever o Brasil como país do presente pode envolver outra reflexão, contudo: a promoção da democracia, da sustentabilidade e da paz exige uma mobilização interna e internacional robusta. É necessário agir com coerência, ousadia e um sentido de urgência, pois podemos ser atropelados pelo tempo – o futuro chegou.

O mundo pós-unipolar em que nos situamos apresenta diferentes facetas dos pontos de vista militar, econômico e diplomático. O plano militar apresenta um cenário trilateral, em que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), a Rússia e a China constituem os principais polos. Zbigniew Brzezinski (1997) descreve essa configuração como instável e fadada a gerar insegurança tríplice, com cada polo sentindo-se vulnerável a uma aliança entre os outros dois. A realidade econômica é mais multipolar, com a União Europeia posicionada entre os principais atores, além de EUA e China, Reino Unido e Japão, e os “emergentes” que integram o G20, como Índia, Brasil e Indonésia, entre outros. O plano diplomático, enfim, inclui protagonistas de economias não integrantes do G20, como Noruega, Suíça ou Egito. O Brasil, situado em região desnuclearizada e predominantemente pacífica, não alimenta ambições militares. Por outro lado, como a oitava economia e o décimo país com maior número de embaixadas, pode-se dizer que o Brasil possui relevância econômica e diplomática. Sem inimigos, o Brasil mantém relações com todos os Estados-membros da ONU; é o país em desenvolvimento que mais vezes foi eleito para o Conselho de Segurança; contribuiu para o consenso da Agenda 2030; exerce liderança nos debates ambientais; e mantém perfil elevado em todos os foros multilaterais.

Entre as nações democráticas do mundo, nos destacamos hoje por havermos sobrevivido com instituições intactas a um processo de assédio antidemocrático que afeta nações de diversos níveis de desenvolvimento. Até mesmo democracias bem estabelecidas, como a norte-americana, enfrentam ameaças à governabilidade. Dois aspectos centrais merecem ser sublinhados em matéria de um convívio democrático digno dessa denominação: a aplicação da lei a todos indistintamente; e a dimensão da “representatividade”, ou seja, participação da sociedade como um todo nos processos políticos. A resposta ao 8 de janeiro, em Brasília, diferenciou a voz brasileira na promoção de valores democráticos. Ao papel exercido pelo Tribunal Superior Eleitoral e pela Justiça na governança interna, soma-se a recriação pelo atual governo de pastas como Direitos Humanos, Mulheres e Igualdade Racial, além da criação do Ministério dos Povos Indígenas. A declaração do presidente Lula perante a 78ª Assembleia Geral da ONU de que o Brasil adotará um 18º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável voluntário no combate ao racismo estabeleceu uma eloquente sintonia entre objetivos internos e a agenda externa.

O Brasil é hoje também porta-voz da democratização das relações internacionais. Estabelecido um paralelo com os dois aspectos centrais da democracia no plano interno, estaríamos falando na adesão não seletiva ao Direito Internacional e na defesa de mecanismos decisórios inclusivos e transparentes. Como aponta o politólogo Richard Ned Lebow, não há compatibilidade possível entre agendas hegemônicas e relações internacionais democráticas. Mas aqui reside um paradoxo. O Brasil é convidado para encontros entre democracias, nos quais declara que se opõe à utilização do conceito para erigir muros e excluir vozes. Tais encontros não chegam, entretanto, a preconizar relações internacionais democráticas. Também integra o Brasil grupos que incluem países não convidados a cúpulas de democracias, como o BRICS+, mas cujos comunicados defendem a democratização das relações internacionais. Em outras palavras, nos destacamos como uma democracia tanto no plano doméstico como na defesa não seletiva do Direito Internacional e na promoção de um multilateralismo inclusivo. Interessante notar que, entre as vozes da sociedade civil e do meio acadêmico, há uma convergência significativa com essa dupla defesa doméstica e internacional da democracia. 

Por uma coincidência que não teria parecido provável quando fui removido para o Egito em 2019, encontrava-me no Cairo quando Lula fez sua única viagem ao exterior como presidente eleito para participar da COP 27, em Sharm el Sheikh. Presenciei, com os atuais ministros Mauro Vieira e Fernando Haddad, várias reuniões bilaterais por ele mantidas com representantes estrangeiros (John Kerry, Xie Zhenhua, Frans Timmermans, António Guterres etc.). A frase mais repetida foi “no governo que se inicia, o Brasil adotará o comportamento mais responsável em todo espectro da questão ambiental”. O anúncio da intenção de sediar a COP 30 foi feito na mesma ocasião. A designação de Marina Silva para ocupar o Ministério do Meio Ambiente foi anunciada meses depois. A sustentabilidade foi incluída entre as prioridades da presidência brasileira do G20 este ano, sustentabilidade entendida em suas três dimensões – econômica, social e ambiental. Há muitos caminhos possíveis em direção a uma economia descarbonizada e nem todos reduzem pobreza e desigualdade. Não são esses os que o Brasil defende, como ilustrado pela proposta de uma Aliança Global contra a Fome e a Pobreza no G20.

A partir da matriz energética mais limpa entre as economias do G20, foi retomado o objetivo de desmatamento zero. Tanto nas prioridades estabelecidas para a presidência do G20 quanto na intenção de sediar a COP 30, o Brasil volta a se situar no âmago dos debates sobre clima e biodiversidade, questões estratégicas para a comunidade internacional. Forçoso constatar que nem sempre governos de outros países estão sintonizados com a narrativa brasileira, embora o meio acadêmico, a sociedade civil e até mesmo a imprensa internacional absorvam com interesse pontos de vista que se distanciam de posturas menos progressistas. Cito dois exemplos: a denúncia da corrida armamentista contemporânea, em que o aumento dos orçamentos militares das principais potências contrasta com a escassez de recursos para combater o aquecimento global ou a promoção de desenvolvimento sustentável; e a proposta de taxação de bilionários, apresentada ao G20 e nas negociações da ONU sobre a cooperação internacional sobre impostos.

Stefan Zweig já observava, nos turbulentos anos 1940, um aspecto da identidade brasileira que se consolidou desde então – o pacifismo. Segundo Zweig, o Brasil é “um país que odeia a guerra”. Como comentava, em 1941, “o Brasil resolveu todas as questões de fronteira com seus vizinhos de forma amistosa e fazendo apelo aos tribunais internacionais de arbitragem (...). Não são os generais, mas homens de Estado, como Rio Branco, que evitaram a guerra graças ao bom senso e espírito de conciliação”. Sua conclusão é que a “política brasileira nunca ameaçou a paz mundial”. Tendo em mente a participação da Força Expedicionária Brasileira na II Guerra Mundial, creio possível afirmar que a postura do Brasil não se confunde com um pacifismo absoluto como os de Tolstoi ou de Gandhi. Trata-se talvez de um pacifismo na linha daquele preconizado por Bertrand Russell em seu artigo de 1943 The Future of Pacifism, em que desenvolve a noção de “pacifismo político relativo”. Segundo essa visão, haveria causas – ainda que poucas – em defesa das quais o recurso às armas seria justificado. A luta contra o nazi-fascismo era, no entender de Russell, uma delas. Mas ele contrapõe que as guerras são desencadeadoras de um mal tão perverso, que se torna “imensamente importante” encontrar maneiras de avançar as causas justas de forma não bélica.

Bertrand Russell postulava que duas condições seriam necessárias para avançar sua visão pacifista: um “governo internacional” e a noção de que guerras só seriam admissíveis quando autorizadas pelo Direito Internacional em linha com preceitos ditados por uma autoridade internacional. Essa visão viria a ser consignada no tratado constitutivo das Nações Unidas em 1945. O Brasil a adotou como sua e hoje se situa na vanguarda dos que se engajam na preservação do sistema de segurança coletiva e na defesa da Carta da ONU, embora ciente da necessidade de reformas para eliminar ineficiências. A proposta de revisão da Carta a partir do seu artigo 109, lançada pelo presidente Lula em Nova York, em 25 de setembro deste ano, não deixa dúvidas.  

O Brasil é um exemplo relativamente raro de adesão não seletiva ao Direito Internacional quando se trata da promoção da paz e rejeição ao unilateralismo.  Assim foi em relação à intervenção militar no Iraque, à invasão da Ucrânia e às interpretações unilaterais de Direito Internacional Humanitário ou de resoluções da ONU, como na Líbia e agora em Gaza. Como o personagem de Molière que descobre, surpreso, na peça O Fidalgo Burguês, que se comunicava em “prosa”, alguns reagem com incredulidade ante a afirmação de que o Brasil é um vetor da paz. Todos falamos em prosa. Poucos dominam a linguagem e o exercício da paz.

O cenário internacional não evolui em direção favorável à cooperação e ao multilateralismo. É de se lamentar que os double standards em matéria de paz e segurança internacional, evidenciados pelos dois pesos e duas medidas expostos em matéria de Ucrânia e Gaza, tendem a acelerar a redução de credibilidade internacional de democracias consolidadas, em detrimento da cooperação internacional. Ou seja, a defesa de valores democráticos nos planos interno e internacional pode vir a se tornar uma causa de apoio decrescente. O negacionismo climático e a relutância – ainda perceptível – dos países mais desenvolvidos em assumir compromissos financeiros em matéria de combate ao aquecimento global ameaçam a cooperação em questão fundamental para a sobrevivência da civilização humana no planeta. Os exemplos de comportamento irresponsável em matéria de paz e segurança dificilmente desaparecerão do horizonte. São cada vez mais frequentes as referências a hipóteses de conflito em grande escala. O recurso a armas de destruição em massa voltou a fazer parte da retórica belicista atual. O armamentismo atinge também países do Sul como Índia e Arábia Saudita.

Volto à ideia de que devemos trabalhar juntos para evitar tanto o tipping point climático como um tipping point sistêmico. Caso não sejamos bem-sucedidos, teremos deixado de legar às próximas gerações não apenas um planeta habitável, mas um sistema internacional coerente, capaz de favorecer o diálogo e a cooperação (...).

Volto à ideia de que devemos trabalhar juntos para evitar tanto o tipping point climático como um tipping point sistêmico. Caso não sejamos bem-sucedidos, teremos deixado de legar às próximas gerações não apenas um planeta habitável, mas um sistema internacional coerente, capaz de favorecer o diálogo e a cooperação –  substituir uma marcha da insensatez por uma nova marcha da razão é a missão que se torna premente; valorizar a ciência sem permitir experiências irresponsáveis na exploração de novas tecnologias como a inteligência artificial; promover formas de democracia lavradas na confrontação de ideias sem recurso a fake news e mentiras; enfrentar o desafio da sustentabilidade; rejeitar a violência e a guerra. 

Com a vitória do partido trabalhista no Reino Unido, a rejeição da extrema-direita na França, a nomeação de nova liderança para a condução da União Europeia, estarão talvez dadas as condições para uma coalizão entre o Norte e o Sul em torno de valores comuns civilizatórios. Caberá às classes dirigentes, à mídia, aos meios acadêmicos e ao setor privado, em sociedades de todos os quadrantes, estabelecer uma frente contra a insensatez. Os resultados eleitorais dos EUA revelarão as inclinações do futuro governo norte-americano. 

Todos aqueles que demonstrarem consciência do desafio e um genuíno sentido de responsabilidade perante as gerações futuras precisam se associar na luta contra a insensatez. “Não devemos nos contentar em classificar os países por sua capacidade industrial, financeira ou militar, mas, ao contrário, situá-los pelo exemplo que fornecem em matéria de sentimentos pacíficos e sua disposição humanista (...) Por esse critério, o Brasil se apresenta como um exemplo”, declarava Stefan Zweig na introdução de seu livro. Obviamente esse lirismo não nos conduzirá aos objetivos pretendidos. No âmbito internacional será necessário vencer debates políticos contra a intolerância e os fundamentalismos, evitando retrocessos. No Brasil, será necessário produzir resultados econômicos, sociais e de segurança pública, lembrando que a defesa da paz deve também se refletir na promoção de um país menos violento e menos suscetível à criminalidade. Precisaremos melhorar as condições de vida da população mais pobre e modernizar a infraestrutura. Mas também devemos ter a consciência de representar, como poucos, um compromisso histórico com as causas civilizatórias mais estratégicas da atualidade.

Não precisamos aguardar o grau de investimento das agências de crédito ou um assento permanente no Conselho de Segurança para traduzirmos o status que já é o nosso – de país do presente – na defesa da democracia, da sustentabilidade e da paz. 

Não precisamos aguardar o grau de investimento das agências de crédito ou um assento permanente no Conselho de Segurança para traduzirmos o status que já é o nosso – de país do presente – na defesa da democracia, da sustentabilidade e da paz. Como disse Caetano Veloso, podemos nos orgulhar também de traços culturais que não se prestam a uma associação automática a valores universais abstratos. São traços que, no entender de Caetano, estariam relacionados a aspectos qualitativos do modo de ser brasileiro em nossa capacidade de metabolizar influências díspares. Caetano sugere que essa capacidade de “juntar lé com cré” seja fundida com o que chamamos de civilização.  Em suas palavras “o que eu desejo é que esse nosso modo de ser tome conta, tome em suas mãos os dados abstratos universais da civilização e faça deles algo que não foi feito ainda (...) minha ambição seria de tomar posse da civilização”. Caetano sugere um futuro de progresso civilizacional plenamente ecumênico, em que cultura e civilização caminhem de mãos dadas. Tenho certeza de que Stefan Zweig não se oporia.  

Notas

[1]Transcrição de palestra virtual proferida em 17 de julho de 2024, no âmbito da 2ª edição do curso História da Diplomacia Brasileira, oferecido pelo CEBRI. 

Referências

Brzezinski, Zbigniew. 1997. The Grand Chessboard: American Primacy and Its Geostrategic Imperatives. Nova York: Basic Books. 

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Guterres, António. 2024. “Secretary-General’s Remarks to the Munich Security Conference: Growing the Pie: A Global Order that Works for Everyone”. United Nations, 16 de fevereiro de 2024. https://www.un.org/sg/en/content/sg/statement/2024-02-16/secretary-generals-remarks-the-munich-security-conference-growing-the-pie-global-order-works-for-everyone-delivered

Patriota, Antonio de Aguiar. 2022. “Rapport annuel 2022: un nouvel humanisme pour un multilatéralisme renouvelé”. Conferência anual Leaders pour la Paix. https://leaderspourlapaix.org/rapport-2022/ 

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Patriota, Antonio de Aguiar. 2024. “Rapport annuel 2024: A March of Reason for Peace”. Conferência anual Leaders pour la Paix. https://leaderspourlapaix.org/rapport-annuel-2024/ 

Patriota, Antonio de Aguiar. 2022. “Democratizar as relações internacionais”. CEBRI-Revista 1 (3): 14-29. https://cebri.org/revista/br/artigo/41/democratizar-as-relacoes-internacionais. 

Quincy Institute for Responsible Statecraft. 2024.Proposals for a Better Order”. Better Order Project, Turquia. 

Russell, Bertrand. 1943. “The future of pacifism”. The American Scholar 13 (1): 7-13. https://www.jstor.org/stable/41204635.

Veloso, Caetano. 1996. “Entrevista ao Programa Roda Viva”. TV Cultura, setembro de 1996.

Zweig, Stefan. 1998. Le Brésil, terre d’avenir. France: Edition de l’Aube. 

Recebido: 4 de setembro de 2024

Aceito para publicação: 16 de outubro de 2024 

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