The article analyzes the transnationalism of the Brazilian far-right from a historical perspective, highlighting its international connections since the 20th century. Divided between the radical right and the extreme right, the text explores how, initially, authoritarian movements like integralism connected with European fascism. In the contemporary context, Bolsonarism resumes this transnationalism by aligning with Trumpism and figures like Steve Bannon, and in spaces such as CPAC and the Madrid Forum. Meanwhile, neo-fascist groups expand their global networks by connecting with neo-nazi and supremacist movements through the internet. The study concludes that the transnationalism of the Brazilian far-right is a continuous process of adaptation and dissemination of global ideas, shaped by distinct historical contexts.
O tema do transnacionalismo se consolidou como uma das preocupações centrais no campo de estudos das ultradireitas, fruto da amplitude e complexidade do tema. Em geral, é possível afirmar que há uma preocupação em compreender os espaços desse fenômeno transnacional, tanto em termos das ideias comuns que fornecem um campo de imantação, como na análise dos "nós" de ligação e os principais atores envolvidos de uma rede articulada, sejam eles lideranças políticas ou organizações voltadas à finalidade de um transnacionalismo em movimento "contra o globalismo".
A fim de analisar o que chamamos de instâncias transnacionais da ultradireita brasileira recente, propomos um exercício baseado em dois níveis, compreendendo o campo político formal da direita radical, assim como os cenários anti-institucionais da extrema-direita.
A fim de analisar o que chamamos de instâncias transnacionais da ultradireita brasileira recente, propomos um exercício baseado em dois níveis, compreendendo o campo político formal da direita radical, assim como os cenários anti-institucionais da extrema-direita. A esse respeito, este artigo se vale da demarcação terminológica sugerida por Cas Mudde (2007 e 2019) segundo o qual far-right (traduzido geralmente em língua latina como ultradireita) pode ser dividida em dois subgrupos ideológicos: radical right (direita radical) e extreme right (extrema-direita). A extrema-direita rejeita a essência da democracia, isto é, a ideia de soberania popular e a regra majoritária (volunté general). O exemplo mais emblemático da extrema-direita é o fascismo. A direita radical, por sua vez, aceita a essência da democracia, mas se opõe aos elementos liberais da democracia, isto é, o direito de minorias, a separação de poderes e o Estado de Direito. Ambos os subgrupos se opõem ao consenso liberal-democrata do pós-Segunda Guerra, mas de maneiras fundamentalmente distintas. Enquanto a extrema-direita é revolucionária (quer a ruptura radical e violenta com a ordem social vigente para resgatar um passado idealizado), a direita radical é reformista.
Além disso, adotamos aqui o entendimento de Nye e Keohane (1972) de que o transnacionalismo é um fenômeno nas relações internacionais em que atores não estatais participam de interações que atravessam fronteiras nacionais, desafiando o papel exclusivo dos Estados na política internacional. Como veremos, embora a transnacionalização das organizações ultradireitistas no Brasil tenha sido impulsionada pela globalização, ela já existia de maneira menos intensa desde o final da Segunda Guerra Mundial. Sendo assim, em linha com a definição de Nye e Keohane (1972), não discutiremos a política externa brasileira durante o governo Bolsonaro, uma vez que ações internacionais de Estados não se enquadram na tipificação de transnacionalização aqui empregada. Além disso, a inserção internacional do Brasil, como de qualquer outro Estado, é movida por uma série de condicionantes domésticos e internacionais, não nos permitindo afirmar que determinadas alianças internacionais são motivadas por alinhamentos ideológicos.
A nossa hipótese é que a transnacionalização da ultradireita brasileira não obedece a um sentido único de apropriação de um centro irradiador, tampouco está encruzilhada em um só fluxo de movimento.
Por isso, como ponto de partida, é importante considerar que o transnacionalismo na ultradireita brasileira é um fenômeno situado historicamente, o que fornece possibilidades de incorporação ou reificação de padrões ligeiramente consolidados. A primeira grande etapa de transnacionalismo ocorre no surgimento de movimentos autoritários do século XX, que por sua vez se desdobrou em duas clivagens principais. Do ponto de vista de intelectuais autoritários, exemplificados na figura de Oliveira Vianna e no autoritarismo instrumental (Gentile 2019), o movimento transnacional se consolidou no campo das ideias e inspirações em regimes autoritários transatlânticos, como o modelo corporativista do fascismo italiano. Essa intelectualidade lia e se apropriou das experiências políticas concretas, assim como de propostas que circulavam o meio intelectual, notadamente autoritário, da primeira metade do século XX. Assim, ideias como o darwinismo social, a organização de entidades eugenistas, demarcam espaço de circulação transnacional de ideias entre o campo da cientificidade e os modelos autoritários para os problemas e questões nacionais.
Além desse campo exemplificado por intelectuais como Oliveira Vianna, o principal componente do transnacionalismo fascista, a partir de movimentos políticos, foi constituído pela Ação Integralista Brasileira. Aconteceu das conexões fascistas e autoritárias entre Itália, Portugal e França, como no caso da intelectualidade fascista-católica de Plínio Salgado (Bertonha 2018), ou do corporativismo-fascista de Miguel Reale, até a colaboração de Gustavo Barroso com grupos fascistas-antissemitas em países distantes da "irradiação fascista", como o Canadá (Bertonha & Caldeira Neto 2016). De fato, o movimento integralista se consolidou como um ator ativo em uma rede global do fascismo, influenciado e em diálogo com grupos no continente americano e europeu. Assim, além da condição de "apropriação" passiva de referenciais ideológicos dos cânones fascistas (principalmente italiano e alemão), o integralismo, como principal expoente do fascismo extraeuropeu, foi um ativo importante na consolidação de um espaço transnacional ibero-americano (Grecco & Gonçalves 2022) dos fascismos, sendo um exemplo concreto do consenso transnacional (Alcalde 2020) sobre o campo de estudos do fascismo.
No contexto do pós-guerra, o transnacionalismo fascista perdeu centralidade no campo de diálogo global das direitas, dando lugar às diversas redes transnacionais constituídas a partir de, especialmente, o discurso anticomunista matizado a partir da conjuntura de Guerra Fria. Exemplo dessa rede foi a atuação da TFP (Sociedade Brasileira em Defesa da Tradição, Família e Propriedade), cujo discurso contrarrevolucionário e católico constituiu presença marcante no continente americano, especialmente em localidades como a Argentina (Zanoto 2014) e os EUA (Neves Junior & Lanza 2023). Mesmo os integralistas do pós-guerra conseguiram construir um diálogo, relativamente ligeiro, com entidades vinculadas aos interesses políticos dos EUA (Oliveira 2015).
Conciliando a dimensão global da Guerra Fria com a emergência das ditaduras militares no Cone Sul, algumas entidades fundamentalmente transnacionais impactaram o cenário político e militar, como a World Anti-Communist League (Van Dongen & Scott-Smith 2014) (posteriormente World League for Freedom and Democracy), gerando entidades regionais como a Confederação Anticomunista Latino-Americana (Kaysel 2022). Além de ser uma rede global, abarcando os continentes asiático, europeu e americano, a dimensão regional dessas entidades forneceu uma base integrativa no contexto da emergência das ditaduras de segurança nacional (e de suas doutrinas) (Ribeiro 2019), assim como de algumas pautas específicas, como a perseguição a religiosos considerados "sacerdotes vermelhos" e subversivos (Kaysel 2023). Outro ponto de intersecção se cristalizou na estrutura repressiva latino-americana e do terrorismo de Estado (Padrós 2009), cujo principal expoente foi a Operação Condor e sua articulação simultaneamente presente no Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai, Uruguai e Peru, além do apoio de setores dos EUA.
Essa articulação emerge a partir do campo militar propriamente dito – no qual o transnacionalismo pode ser medido também pela influência das escolas francesa e americana (Quadrat 2012) – que impactou a formação de agentes de repressão e/ou informação em espaços como a Escola Superior de Guerra (ESG) e a Escola Nacional de Informações (ESNI), assim como na lógica de construção do inimigo e da própria Doutrina de Segurança Nacional. Mesmo o processo e os métodos de tortura praticados ao longo da ditadura militar brasileira (e mesmo após a transição democrática) expõem um movimento de compartilhamento de "técnicas" presentes em esquadrões de morte e terrorismo de Estado, da Argélia ao Brasil (Duarte-Plon 2016), tendo a escola militar francesa como um dos eixos de ligação.
[É] possível considerar que a ultradireita brasileira é marcada pela característica transnacional em diversidade, desde a perspectiva intelectual, passando pela ordem de organizações políticas, assim como pela cooperação entre entidades ideologicamente convergentes, ou mesmo em instituições e aparelhos de Estado.
Assim, como ponto de partida, é possível considerar que a ultradireita brasileira é marcada pela característica transnacional em diversidade, desde a perspectiva intelectual, passando pela ordem de organizações políticas, assim como pela cooperação entre entidades ideologicamente convergentes, ou mesmo em instituições e aparelhos de Estado. Do ponto de vista dos nós de associação transnacional, é cabível considerar que esses movimentos, apesar de plurais, foram condicionados a partir de grandes "tradições" da extrema-direita latino-americana: o anticomunismo e o catolicismo como dois dos conceitos quase indispensáveis (Boisard 2014) para pensar essas direitas e os seus espaços, do regional ao transnacional.
De modo evidente, essas duas grandes "fases", por assim dizer, obedecem a momentos distintos em termos da ordem política internacional, assim como no campo das instituições políticas brasileiras. No entanto, a despeito da diversidade entre uma "época fascista/autoritária" e o contexto da Guerra Fria e das ditaduras militares, há uma sincronia em termos da crise da ordem democrática. Assim, tomamos como ponto de inflexão a reflexão sobre o caráter transnacional da ultradireita brasileira, em um momento de acirramento da crise da democracia, e como isto se reflete em dois campos complementares da ultradireita – a direita radical e a extrema-direita.
BOLSONARISMO E A TRANSNACIONALIZAÇÃO DA DIREITA RADICAL BRASILEIRA
Desde a ascensão do bolsonarismo como movimento político, no contexto da crise democrática brasileira e, posteriormente, com a chegada de Jair Bolsonaro ao poder, a direita radical brasileira tem estabelecido com a ultradireita global diversos canais de internacionalização. Essas conexões têm privilegiado relações com ideias, organizações e grupos políticos nos Estados Unidos, em função do papel preponderante que esse país exerce sobre a América Latina, de modo geral, e sobre o Brasil, em particular.
Assim, conforme sustenta Casarões (2022), o bolsonarismo no Brasil se constitui como um movimento transnacional, fortemente inspirado pelo trumpismo nos Estados Unidos. O autor argumenta que o fenômeno bolsonarista envolve três etapas principais: emulação, articulação e internalização. Isso significa que o movimento reproduz práticas e estratégias de sucesso da ultradireita global, se articula com grupos internacionais que fornecem suporte ideológico e material, e alinha narrativas domésticas com pautas internacionais, especialmente as vindas dos EUA. Essa "americanização" da política brasileira reflete-se na adoção de uma gramática política e estratégias da alt-right (alternative right) americana, como a guerra cultural e a defesa de valores conservadores.
Um dos importantes eixos de internacionalização da direita radical bolsonarista teve como fio condutor Steve Bannon, estrategista da campanha de Donald Trump. No centro da visão de mundo de Bannon estava a defesa do nacionalismo populista e dos valores da civilização ocidental. O ideólogo norte-americano advogava pela necessidade de as nações ocidentais protegerem sua identidade cultural, religiosa e política contra a ameaça do islamismo radical e o crescente poder econômico e político chinês (Hart 2020). Seu discurso frequentemente evocava uma retórica de "choque de civilizações", baseando-se na tese de Samuel Huntington (Beiner 2018), ao mesmo tempo que rejeita o liberalismo político, o cosmopolitismo e os organismos internacionais.
Além disso, Bannon concebia seu movimento como uma resposta direta ao que ele denominava "partido de Davos" — elites globalistas que, em sua visão, controlam as regras globais em benefício de seus próprios interesses materialistas e cosmopolitas. Através do Breitbart News, uma plataforma que desempenhou um papel central na ascensão da alt-right, Bannon conseguiu disseminar suas ideias amplamente, especialmente entre a classe trabalhadora dos EUA, que ele identificava como a principal resistência ao globalismo (Japiassu 2020).
As atividades de Steve Bannon, contudo, foram muito além dos Estados Unidos. O ex-assessor de Trump tornou-se uma figura-chave na ascensão de uma ultradireita global, ao fundar, em 2017, o The Movement. Essa iniciativa buscava unir forças políticas populistas e soberanistas pelo mundo para fazer frente ao avanço da agenda liberal-cosmopolita, que, de acordo com Bannon, seria promovida por organizações internacionais, elites tecnocráticas globais e por magnatas progressistas, como George Soros (Verdú 2019).
Um dos projetos do The Movement envolvia a criação de uma academia política e cultural chamada "Academia Ocidental Judaico-Cristã", com o objetivo de formar uma nova elite intelectual conservadora. Desenvolvido em parceria com o político britânico Benjamin Harnwell, o centro de estudos seria instalado no antigo mosteiro de Trisulti, na Itália (Verdú 2019). Para além da Europa, Bannon ampliou a atuação de sua organização para outras partes do mundo. Eduardo Bolsonaro foi escolhido por Bannon para ser o representante do The Movement na América Latina.
Os primeiros sinais de aproximação entre Steve Bannon e o Brasil surgiram durante o período eleitoral de 2018, quando Eduardo Bolsonaro conheceu pessoalmente o estrategista de Donald Trump em Nova York, estabelecendo uma "união de forças contra o marxismo cultural" (Bolsonaro 2018). Após a vitória de Jair Bolsonaro, Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins, assessor de assuntos internacionais, participaram de encontros com congressistas republicanos nos Estados Unidos. Durante a viagem, também compareceram à celebração de aniversário de Steve Bannon, fortalecendo ainda mais os laços com o ex-estrategista de Trump (Spektor 2018).
Essas conexões foram consolidadas por meio de encontros entre Bannon e figuras-chave da direita radical brasileira. Em janeiro de 2019, Bannon organizou um jantar que reuniu Olavo de Carvalho, Eduardo Bolsonaro, Filipe Martins e Gerald Brant, no qual discutiram o governo Bolsonaro e a agenda nacionalista para o Brasil (Teitelbaum 2020). Dois meses depois, durante a visita de Bolsonaro aos EUA, Bannon, Olavo de Carvalho e a direita bolsonarista se reuniram em um jantar promovido pela embaixada brasileira em Washington. Ali, de acordo com Teitelbaum (2020, 152), a posição da política externa brasileira deveria ser pautada no “alinhamento com o Ocidente judaico-cristão”.
A Conservative Political Action Conference (CPAC), um importante marco para o movimento conservador nos Estados Unidos, foi realizada pela primeira vez no Brasil em outubro de 2019, em São Paulo. Criada em 1974 nos EUA, a CPAC tornou-se uma referência para o conservadorismo, contando com figuras como Ronald Reagan em suas edições iniciais. Organizada por Eduardo Bolsonaro, a primeira edição brasileira do CPAC reuniu um público expressivo e teve transmissão online, promovendo otimismo e euforia quanto ao futuro do Brasil sob diretrizes conservadoras.
A CPAC teve suas origens em 1974 como uma resposta à fragmentação do movimento conservador nos Estados Unidos durante a década de 1970. O movimento estava dividido em várias facções, e havia uma necessidade de criar uma plataforma em que líderes, intelectuais e ativistas pudessem se reunir, compartilhar ideias e coordenar suas estratégias políticas. A CPAC foi fundada por organizações importantes da direita norte-americana, incluindo os Jovens Americanos pela Liberdade (Young Americans for Freedom - YAF), a União Conservadora Americana (American Conservative Union - ACU) e a National Review, com o objetivo de unir os conservadores em torno de uma agenda comum e revitalizar o Partido Republicano como um veículo para as ideias conservadoras (Parker 2015).
Sob a influência de Matt Schlapp à frente da American Conservative Union e da ascensão de Donald Trump, a partir de 2017 a CPAC começou a realizar edições em outros países, como Austrália, Japão, Coreia do Sul e Brasil, refletindo uma tendência de ampliação do alcance internacional do movimento conservador americano (Ferreira 2021). A primeira edição brasileira do CPAC ocorreu em 2019, em São Paulo, e foi celebrada por Eduardo Bolsonaro como “o maior evento conservador do mundo” (Coletta 2019). Desde então, com exceção de 2020, em razão da pandemia, o Brasil tem sediado anualmente encontros do CPAC: 2021 (Brasília), 2022 (Campinas), 2023 (Brasília) e 2024 (Camboriú).
Nos encontros do CPAC no Brasil, os principais temas abordados foram a defesa de valores conservadores, como a luta contra o socialismo, a preservação da família e da liberdade de expressão, além de críticas ao “globalismo” e à influência da China. No entanto, como argumentam Sanders e Jenkins (2023), a agenda da CPAC atravessa o campo de um conservadorismo moderno para avançar em teses típicas da direita radical ao, por exemplo, unir o populismo de direita com pautas do antifeminismo transnacional. As autoras defendem que o populismo patriarcal combina a retórica populista tradicional, que opõe o povo puro às elites corruptas, com um discurso profundamente misógino e antifeminista, visando restringir os direitos reprodutivos das mulheres, diminuir os avanços dos direitos LGBTQIA+ e promover um retorno a estruturas familiares tradicionais.
Exemplo de como a CPAC se transformou em um dos mais importantes espaços da transnacionalização da direita radical são as edições anuais que passaram a acontecer na Hungria a partir de 2022. O país, liderado por Viktor Orban, é visto, por líderes da ultradireita global, como um modelo de luta contra o globalismo. O evento teve a participação do senador republicano Rick Santorum, o incendiário líder do Brexit, Nigel Farage, e Eduardo Bolsonaro (Hungary Today 2022). A CPAC Brasil de 2024, por sua vez, contou com a presença de Javier Milei, que faltou à reunião do MERCOSUL no Paraguai para participar do encontro conservador em Camboriú, e José Antonio Kast, ex-candidato ultradireitista à presidência do Chile. O encontro recebeu ainda o ministro da Justiça e Segurança Pública de El Salvador, Gustavo Villatoro Nunes, do governo de Nayib Bukele, cujo populismo penal no combate à criminalidade fez dele “a maior referência em segurança pública da América Latina”, nas palavras de Eduardo Bolsonaro (Bechara 2024).
Fora da CPAC, outros espaços também foram criados para o intercâmbio de ideias e o alinhamento de políticas com a direita radical nos EUA. Em 2021, o então ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, organizou um evento na Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) para discutir o globalismo. Além de participantes nacionais, como Filipe Martins e o blogueiro Flávio Morgenstern, o evento recebeu Christopher Buskirk, editor da revista American Greatness e um intelectual que tem denunciado em textos e palestras “a crescente desumanização produzida pelo globalismo” (Buskirk 2019).
As conexões internacionais da direita radical brasileira, contudo, não se limitam às relações hemisféricas. Com a ascensão do Vox, na Espanha, e do Chega!, em Portugal, o espaço iberoamericano aproximou as direitas através do Atlântico. A esse respeito, o exemplo mais notável foi a criação do Foro de Madrid, em 2020, iniciativa idealizada por Santiago Abascal, líder do Vox, partido espanhol de direita radical populista. O Foro de Madrid criou uma rede transnacional de líderes ultradireitistas no espaço iberoamericano, incluindo políticos como Eduardo Bolsonaro, Javier Milei, José Antonio Kast, Jeanine Áñez e Keiko Fujimori. Além de políticos, o Foro conta com a participação de partidos e organizações conservadoras, como a Fundación Disenso, e movimentos pró-vida e pró-família de diversos países. Intelectuais e ativistas conservadores também participam, promovendo uma agenda de defesa da soberania nacional, da família tradicional e de oposição ao comunismo e globalismo. Vale destacar que um dos propósitos dessa organização é “contrapor as estratégias de influência geopolítica do Foro de São Paulo e do Grupo de Puebla, construindo uma rede de aliados a favor da liberdade em todos os países da Iberosfera” (Foro de Madrid 2024). Desde 2022, o Foro organizou encontros regionais na Colômbia, no Peru e na Argentina. Ernesto Araújo, ex-chanceler brasileiro, participou de todos os encontros do Foro de Madrid.
Ainda que com conexões menos estreitas, a direita radical brasileira estabeleceu laços com a ultradireita alemã e italiana. Em 2021, por exemplo, o presidente Jair Bolsonaro se reuniu fora da agenda oficial com a deputada Beatrix von Storch, vice-líder do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), no Palácio do Planalto. Além de ser uma proeminente líder de uma das alas mais radicais da AfD, Beatrix von Storch é neta de um ministro do governo nazista (Mazui 2021). Eduardo Bolsonaro já se reuniu com o líder da Lega, Mateo Salvini, momento em que defenderam “uma Europa forte, que dialogue com o Brasil, com os Estados Unidos, com Israel, e que a esquerda se distancie do poder” (Ansa 2019).
AS VIAS DO TRANSNACIONALISMO DA EXTREMA-DIREITA
Do ponto de vista da extrema-direita, a relação de grupos bolsonaristas efetivamente de extrema-direita estabelece diálogos transnacionais variados. Justifica, inclusive, alguma espécie de reprodução de estratégias, notadamente dos EUA. Os eventos da tentativa de golpe do 8 de janeiro ilustram essa hipótese, embora seja necessário considerar esse evento em torno de suas particularidades e traços históricos, alguns deles marcadamente brasileiros e latino-americanos (Caldeira Neto 2024). De toda forma, o repertório da extrema-direita bolsonarista reproduziu, em alguma medida, os fluxos transnacionais possíveis no próprio campo bolsonarista.
Além desse foco, possivelmente o maior expoente de transnacionalismo da extrema-direita seja o campo neofascista, compreendido como um fenômeno ligeiramente recente, desenvolvido com autonomia a partir da transição democrática. Em linhas gerais, é possível compreender o fenômeno neofascista em torno de três fases distintas, que guardam gradações e ambições variadas em termos de diálogo transnacional.
Na primeira fase, desenvolvida da transição democrática ao início do século XXI, o principal expoente de articulação do neofascismo transnacional, no Brasil, foi o campo do negacionismo do Holocausto, que, a partir da Revisão Editora, buscou consolidar uma rede de publicação, divulgação e circulação de livros e boletins de material antissemita e negacionistas do Holocausto. Além desse espaço editorial que articulou autores brasileiros, do Leste europeu e da Europa, houve colaborações pontuais com entidades negacionistas como o Institute for Historical Review (EUA) e o francês L'Association des Anciens Amateurs de Récits de Guerres et d'Holocaustes. Embora tenha sido o fenômeno mais "internacional" do neofascismo em sua primeira fase, o negacionismo do Holocausto perdeu essa capacidade ao longo dos processos judiciais contra a Revisão Editora e o seu fundador, Siegfried Ellwanger, o que impactou as ambições de fixação da entidade negacionista como hub transnacional articulado a partir do Brasil.
Na fase que durou entre o final dos anos 1970 e início dos anos 2000, outras tendências do neofascismo brasileiro, como os neointegralistas, privilegiaram a estratégia de rearticulação interna após a transição democrática, impactando diretamente o seu nível de diálogo internacional. Menções pontuais à literatura neofascista internacional, como o próprio negacionismo do Holocausto e de autores benquistos no campo do neofascismo global (como Julius Evola), ou acenos a entidades como a International Third Position não foram capazes de concretizar uma via transnacional efetiva para os neointegralistas. De maneira similar, o campo neonazista buscou alternativas locais, inclusive devido à baixa receptividade de interlocução internacional.
Esse cenário passa a se modificar a partir dos anos 2000 e particularmente com a adesão desses grupos às redes sociais e a novas tecnologias da informação. A segunda fase, desenvolvida entre 2000 e meados da década de 2010, foi marcada pela popularização da internet como um divisor de águas para as ambições transnacionais do neofascismo brasileiro. Além da continuidade de articulações no campo negacionista do Holocausto (agora, por meio de fóruns e ambientes supremacistas brancos, como o Storm Front), os outros cenários do neofascismo brasileiro demonstram capacidade de interlocução internacional.
O campo neointegralista, por exemplo, a partir dos anos 2000 passa a construir relações pontuais com grupelhos na França, Bélgica, Espanha e Argentina, a partir de grupos como Nation, Movimento Social Republicano e Movimiento pela Identidad Nacional. Ainda assim, era uma tentativa tímida de transnacionalização. Posteriormente, o surgimento de grupos neointegralistas renovados, como a Associação Cívico Cultural Arcy Lopes Estrella (ACCALE), demonstra uma maior integração no campo neofascista transnacional, seja em termos estéticos, quanto ideológicos. Esse grupo passa a se inspirar na Casa Pound Italiana, assim como reivindicam o legado de Julius Evola a partir de frases como "Revolta contra o Mundo Moderno", estampadas em camisetas ao lado dos rostos de líderes integralistas dos anos 1930.
O cenário neonazista, principalmente os skinheads (nomeadamente White Power), conseguem construir uma interlocução internacional a partir de uma rede composta desde grupos binacionais Brasil-Argentina, mas também por meio de articulação de grupos transnacionais em células brasileiras (Almeida 2013). A articulação de células brasileiras de grupos transnacionais, como a originalmente norte-americana Hammerskins, foi construída a partir de uma ampla integração, que foi possibilitada também por uma mediação com grupos portugueses.
Paralelamente, é possível verificar indícios de uma agenda nativamente transnacional (isto é, além dos cânones do fascismo integralista) no repertório do neofascismo brasileiro dos anos 2000-2020. A articulação de "Círculos Evolianos" forneceu uma espécie de antessala para a incorporação de autores vinculados/articulados na Nouvelle Droite francesa, como Alain de Benoist e Guillaume Faye. A partir desses diálogos e da circulação da intelectualidade neofascista, as chamadas estratégias “metapolíticas” auxiliaram para a composição de grupos autodenominados identitários (Caldeira Neto 2023a), como Legião Identitária, assim como grupos arqueofuturistas, como Aurora de Ferro.
Inspirado também em expressões de outras localidades, começa a ser construído um campo propriamente “ucranizador” no neofascismo brasileiro. A despeito da existência de grupos "ucranizadores" mais próximo do núcleo bolsonarista, como o “300” liderado por Sarah Winter, o núcleo “ucranizador” do neofascismo foi construído tanto por colaborações pontuais com entidades ucranianas como o Batalhão Azov, assim como pela inspiração destes para construção de grupos brasileiros (como a Frente Nacionalista, por volta de 2015) e a articulação de capítulos do grupo Misanthropic Division no Brasil.
Além do eixo ucraniano, outro campo, com bastante proeminência, constitui-se a partir da cooperação com a intelectualidade de origem nacional-bolchevique e os expoentes da quarta teoria política, cuja principal referência é Aleksandr Dugin. Esse campo, em particular, conseguiu estabelecer-se plenamente em uma rede transnacional vermelho-marrom, conjugando um discurso terceiro-mundista e a incorporação de cânones neofascistas a partir de uma linguagem anti-imperialista, autoritária e nacionalista, chegando inclusive a dialogar com grupos de extrema-esquerda, como o Partido da Causa Operária. Grupos como a Nova Resistência, em especial, demonstram uma forte articulação nesta tendência neofascista, que ultrapassa uma rede europeia-América Latina ou exclusivamente latino-americana.
Com efeito, do ponto de vista dos agrupamentos neofascistas, é possível afirmar que, ao longo do século XXI, esses grupos vão consolidar uma articulação efetivamente transnacional, traduzindo novas ideias, articulando novas expressões, assim como promovendo uma cooperação neste cenário que, embora diminuto, fornece um rico caldo cultural e político para as novas tendências da extrema-direita brasileira, inclusive em termos de novas ideias e repertórios, cada vez mais violentos.
Nos anos mais recentes, é possível falar em uma nascente terceira fase do neofascismo, que é marcada pela articulação mais intensa de grupos inspirados em tendências como o identitarismo, o aceleracionismo, o neonazismo esotérico e a articulação dessas novas características em bandeiras já consolidadas, como grupos separatistas de extrema-direita atuantes no Sul e Sudeste do país.
Nos anos mais recentes, é possível falar em uma nascente terceira fase do neofascismo, que é marcada pela articulação mais intensa de grupos inspirados em tendências como o identitarismo, o aceleracionismo, o neonazismo esotérico e a articulação dessas novas características em bandeiras já consolidadas, como grupos separatistas de extrema-direita atuantes no Sul e Sudeste do país. A integração de atores brasileiros na comunidade Terrorgram, assim como a interlocução de atentados terroristas construída por meio de comunidades virtuais transnacionais, são articuladas em plataformas como Twitter/X, Discord, TikTok e outros aplicativos. A tradução e popularização de teorias conspiratórias, como "A grande substituição", fornece um caldo diversificado, que rompe com características autóctones, fornecendo padrões propícios para uma reprodução de técnica do neofascismo global.
Essas novas tendências, marcadas pela articulação em nós temáticos, como a misoginia, a islamofobia e o antissemitismo, dialogam com outros campos mais amplos da extrema-direita, como setores conspiracionistas, grupos inspirados na estética da direita alternativa dos EUA, inclusive de metaconspiracionismo como o QAnon. Essa nova fase, que prescinde uma articulação em torno de grupos ou grupelhos, se encaixa na composição teórica das direitas grupusculares, formulada por Roger Griffin (2003), além de atitudes individuais, embora sejam coletivamente construídas. É um fenômeno que conjuga tanto ações individuais quanto coletivas, assim como a possibilidade de diálogo com o campo da direita radical. Em certo sentido, embora seja uma nova fase marcada por uma grande hegemonia da articulação por meio de mídias e redes sociais digitais, essas tendências mobilizam os setores neofascistas já consolidados, assim como estabelecem articulações com outros campos da extrema-direita brasileira, inclusive grupos bolsonaristas. Assim fornece um campo transnacional diversificado, que vai além das redes da direita radical, como é possível averiguar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O transnacionalismo da ultradireita brasileira, conforme discutimos, revela-se como um fenômeno de múltiplas camadas, atravessado por influências históricas, políticas e ideológicas que vão além das fronteiras nacionais. Desde as primeiras manifestações autoritárias do início do século XX, marcadas por movimentos como o integralismo, até as articulações contemporâneas impulsionadas pelo bolsonarismo, o que se observa é um processo contínuo de apropriação, adaptação e disseminação de ideias que transitam em circuitos transnacionais. Esses movimentos têm se estruturado por meio de redes que conectam a direita radical e a extrema-direita brasileira a movimentos globais, reforçando uma dinâmica que alia elementos locais a agendas globais.
Ao longo das últimas décadas, o bolsonarismo consolidou-se como uma expressão da direita radical com forte inspiração no trumpismo norte-americano (...). Essas conexões facilitaram a inserção do Brasil em uma rede mais ampla da direita radical populista, articulando valores conservadores e um discurso antiglobalista que reverbera em diferentes partes do mundo.
Ao longo das últimas décadas, o bolsonarismo consolidou-se como uma expressão da direita radical com forte inspiração no trumpismo norte-americano, estabelecendo laços com figuras e organizações ultradireitistas globais, como Steve Bannon e o The Movement. Essas conexões facilitaram a inserção do Brasil em uma rede mais ampla da direita radical populista, articulando valores conservadores e um discurso antiglobalista que reverbera em diferentes partes do mundo. Nesse sentido, a internacionalização do bolsonarismo se apresenta como parte de uma estratégia mais ampla de mobilização e legitimação da direita radical brasileira, especialmente em eventos como a CPAC e o Foro de Madrid.
No campo da extrema-direita, o transnacionalismo é igualmente evidente, especialmente entre grupos neofascistas que, ao longo dos anos 2000, passaram a utilizar a internet como ferramenta de articulação internacional. Essa nova fase do neofascismo brasileiro reflete uma crescente interconexão com movimentos supremacistas, neonazistas e identitários em diversas partes do mundo. Através dessas redes, o Brasil não apenas importa referências ideológicas, mas também se coloca como um espaço ativo de propagação de ideias e estratégias da extrema-direita global, adaptando-as ao contexto local de crise democrática.
Notas
[1]Sobre a questão transnacional do neofascismo brasileiro, o argumento central está baseado em Caldeira Neto (2023b).
Alcalde, Ángel. 2020. “The Transnational Consensus: Fascism and Nazism in Current Research”. Contemporary European History 29 (2): 243–252. https://doi.org/10.1017/S0960777320000089.
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Recebido: 7 de setembro de 2024
Aceito para publicação: 25 de setembro de 2024
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