Na última década, o Chile e a Bolívia se enfrentaram duas vezes na Corte Internacional de Justiça (CIJ), o principal órgão jurídico da Organização das Nações Unidas (ONU). A judicialização das disputas entre os dois países é um sintoma de um relacionamento diplomático difícil, que encontra suas origens em questões mal resolvidas de um dos maiores conflitos da América do Sul, a Guerra do Pacífico (1879-1884).
As disputas por recursos hídricos impactam principalmente a Bolívia, que após se encontrar sem acesso ao mar nas negociações do pós-guerra com as autoridades chilenas, elencou a busca pela saída ao mar como uma das prioridades de sua política externa. Então, em 2013, a Bolívia submeteu seu primeiro caso contra o Chile à CIJ. O caso foi julgado em 2018, com a decisão final favorável ao Chile. O objeto do litígio era a suposta obrigação do Chile em negociar um acesso soberano ao Oceano Pacífico para a Bolívia. Paralelamente, o Chile apresentou o segundo caso de disputa entre as partes em 2016, que reivindicava o status do Rio Silala como um curso de água internacional. O resultado, julgado em 2022, foi novamente favorável ao Chile. Desde então os países tentam aprofundar suas relações, mas os conflitos do passado impactam as relações diplomáticas do presente.
AS ORIGENS DA DEMANDA BOLIVIANA
A busca da Bolívia pelo acesso soberano ao mar encontra suas origens no resultado imediato da Guerra do Pacífico (1879-1884), que redesenhou as suas fronteiras territoriais. Em suma, a declaração de guerra feita pelo Chile contra o Peru e a Bolívia, em abril de 1879, marcou o início do conflito que ficou conhecido como Guerra do Pacífico, no qual uma aliança boliviana e peruana disputou com o Chile a hegemonia do deserto do Atacama, rico em recursos minerais (Costa 2017). No curso do conflito, as tropas chilenas ocuparam os territórios de Antofagasta, que correspondiam à costa marítima boliviana, com saída para o Oceano Pacífico.
O fim das hostilidades bélicas aconteceu em 1984, após o Chile se impor militarmente, mas as negociações de paz entre o Chile e a Bolívia tiveram fim apenas em 1904, com a assinatura do Tratado de Paz e Amizade, que assentou as bases para a relação entre os países sul-americanos no pós-guerra (Clemente & Terra 2021). No tratado, fica formalizada a cessão dos territórios costeiros bolivianos ao Chile, deixando a Bolívia com uma de suas maiores cicatrizes – a falta de acesso soberano ao mar.
O impacto político e social do enclausuramento territorial na Bolívia reverbera até hoje. A importância da saída ao mar para a sociedade boliviana se materializou simbolicamente na comemoração nacional do Dia do Mar, que recorda anualmente, no dia 23 de março, a perda da costa marítima boliviana (Costa 2017). Então, desde os anos que seguiram o Tratado de Paz e Amizade, as autoridades bolivianas pressionam para que seja feita uma negociação bilateral com o Chile por um acesso soberano da Bolívia ao Oceano Pacífico. Em 1978, a Bolívia rompeu as relações diplomáticas com o Chile por falta de avanço prático nas negociações e mantém relações no nível consular com o país até hoje. As alternativas à negociação com o Chile, também impulsionaram o envolvimento da Bolívia em outras disputas, como a Guerra do Chaco (1932-1935), contra o Paraguai (Bandeira 1998).
A ascensão de Evo Morales (2006-2019) ao poder, presidente da Bolívia por três mandatos consecutivos, fortaleceu o tema na agenda política do país. Já em 2006, o governo boliviano estabeleceu, em diálogo com o governo chileno, uma agenda que tinha a intenção de se tornar base para as relações bilaterais entre os países – a agenda dos treze pontos. A questão marítima é um dos treze desafios propostos pelas partes, que buscariam soluções conjuntas para superá-la. Mas, já em 2011, o governo boliviano dava sinais de que buscaria avançar no tema para além do diálogo bilateral, quando criou a Direção de Reivindicação Marítima (DIREMAR) para coordenar a elaboração da demanda marítima perante tribunais internacionais. O trabalho da DIREMAR resultou na judicialização das demandas por negociação da questão marítima com o Chile na CIJ em abril de 2013.
A OBRIGAÇÃO DE NEGOCIAR O ACESSO SOBERANO AO OCEANO PACÍFICO
A demanda boliviana à CIJ não envolvia diretamente a superação do Tratado de Paz e Amizade e nem reivindicava os territórios de sua antiga costa marítima. Para a Bolívia, o objeto do litígio era, na verdade, o não cumprimento de uma obrigação chilena – a obrigação de negociar o acesso pleno e soberano da Bolívia ao Oceano Pacífico (International Court of Justice 2018b). Para isso, uma comissão de historiadores, juristas e especialistas designada pelo governo boliviano elaborou um extenso dossiê com trocas diplomáticas entre as partes e declarações das autoridades chilenas que, junto às cartas da ONU e da Organização dos Estados Americanos (OEA), mostravam que o Chile havia se comprometido a negociar, de acordo com a argumentação boliviana.
O Chile, por sua vez, buscou mostrar que o argumento boliviano não era sólido juridicamente, já que não havia um compromisso formal entre as partes que gerava uma obrigação para negociar a questão marítima. A defesa chilena buscou reforçar que os diálogos diplomáticos não criam uma obrigação de negociar e o direito internacional não obriga que os Estados negociem suas aspirações com os seus vizinhos (Ceppi 2017).
A sentença da CIJ, emitida em 2018, estabeleceu que o Chile não assumiu uma obrigação legal de negociar o acesso soberano ao Oceano Pacífico da Bolívia. Em suma, a CIJ entendeu que nenhum instrumento apresentado pela Bolívia em sua denúncia gerava uma obrigação legal vinculante. A CIJ, todavia, ressaltou a importância da manutenção do diálogo entre as partes para solucionar a questão. O resultado não foi bem aceito pelas autoridades bolivianas, que o qualificaram como “injusto”, mas insistiram que darão seguimento à busca pelo acesso ao Pacífico e convocaram o Chile para seguir com o diálogo (Conjuntura Latitude Sul 2018).
AS ORIGENS DA DEMANDA CHILENA
O Rio Silala é objeto de disputa entre o Chile e a Bolívia desde a década de 1990. O rio tem sua nascente em território boliviano e, seguindo sua topografia natural, cruza a fronteira com o Chile. Mas as autoridades bolivianas afirmam, desde 1999, que a soberania do uso das águas é integralmente boliviana, rechaçando a ideia de que se trata de um recurso hídrico transfronteiriço. De acordo com o governo boliviano, as águas do Silala pertencem em sua totalidade à Bolívia, já que foram artificialmente direcionadas ao Chile (Cancillería de Bolívia 2016).
A acusação boliviana remete ao ano de 1908, quando a empresa Ferrocarril de Antofagasta a Bolívia (FCBA), que tinha a concessão de uso das águas do Silala no Chile desde 1906, modificou o fluxo do Silala por um meio de um projeto de canalização possibilitado por uma concessão da Bolívia (Bahia 2021). A empresa tinha como objetivo aumentar o fornecimento de água para o funcionamento da malha ferroviária da região. Em 1997, o governo boliviano revogou a concessão alegando que as águas não estavam mais sendo utilizadas para o propósito inicial, visto que as águas designadas para o sistema ferroviário estavam sendo usadas também para consumo humano (Bahia 2021). Desde então, a Bolívia passou a tomar medidas unilaterais em relação ao Rio Silala, enquadrando-o como um recurso hídrico nacional (Bahia 2021).
Com o tensionamento da disputa pelo acesso ao Pacífico em 2013, a questão do Rio Silala também se agravou. Em março de 2016, o presidente boliviano Evo Morales anunciou que estudaria a possibilidade de uma demanda à CIJ contra o Chile pelo uso sem autorização e sem compensação financeira das águas do Silala. As águas, de acordo com a acusação boliviana, foram artificialmente direcionadas ao Chile. Diante disso, a então presidente do Chile, Michelle Bachelet, anunciou que o governo chileno iria enviar sua própria demanda ao CIJ, reivindicando o status do rio Silala como um rio internacional.
O STATUS E USO DAS ÁGUAS DO RIO SILALA
Em junho de 2016, o Chile submeteu à CIJ suas reivindicações sobre o Rio Silala. Em suma, o objeto de disputa era a natureza do Silala como um curso de água internacional, sujeito ao direito internacional consuetudinário e ao princípio de uso equitativo e razoável por ambos os países (International Court of Justice 2022).
A disputa sobre a natureza e uso do Silala é particularmente complexa porque é afetada por questões históricas e científicas (Bahia 2021). No âmbito histórico, o Chile argumentou que ambos os Estados reconheceram o Rio Silala como um curso de água internacional já no Tratado de Paz e Amizade de 1904, que estabeleceu as bases do relacionamento entre as partes após a Guerra do Pacífico, como mencionado anteriormente. No âmbito científico, o Chile sustentou que as nascentes do Silala fluíam em direção ao seu território antes da canalização artificial e, sendo assim, os canais artificiais não afetam o curso transfronteiriço do Silala (Bahia 2021).
Já a Bolívia, no âmbito científico, entendia que as águas do Silala são mananciais, não o qualificando como um rio (Bahia 2021). O país argumentava também que os canais artificiais mudaram substantivamente o fluxo do Silala para gerar o volume de água presente no território chileno (International Court of Justice 2018a). As autoridades bolivianas ainda reivindicavam, no curso do processo, que o Chile deveria compensar financeiramente a Bolívia pelo uso das águas oriundas de fluxos artificialmente criados no Silala.
A decisão da CIJ veio em novembro de 2022. No julgamento, as partes já haviam entrado em acordo sobre a maior parte das reivindicações do processo. A CIJ, então, entendeu que o sistema integral (natural e artificial) do Rio Silala é um curso de água internacional governado pelo direito internacional consuetudinário que deve ser usado por ambas as partes com base no princípio do uso razoável equitativo, favorecendo a posição inicial do Chile. Desta vez, as principais autoridades bolivianas e chilenas ficaram satisfeitas com o resultado do processo.
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Cancillería de Bolívia. 2016. El presidente Evo Morales inspeccionó este martes los manantiales del Silala… 29 de março de 2016. https://www.cancilleria.gob.bo/webmre/node/1398.
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Costa, Murilo Gomes da. 2017. “Bolívia e Chile: Reflexões geopolíticas sobre o litígio marítimo”. Boletim OPSA (1): 08-11. http://opsa.com.br/wp-content/uploads/2017/05/Boletim_OPSA_2017_n1.pdf.
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Recebido: 13 de julho de 2024
Aceito para publicação: 29 de agosto de 2024
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