O mundo assiste, atônito, às cenas brutais de Gaza. Desde 7 de outubro de 2023, as operações militares e os ataques na região aumentaram, resultando em graves violações do direito internacional. De acordo com a Comissão Internacional de Inquérito das Nações Unidas sobre o Território Palestino Ocupado, tanto Israel quanto o Hamas são acusados de cometer crimes de guerra. Contudo, Israel enfrenta alegações de crimes contra a humanidade, devido às enormes perdas civis, incluindo atos de extermínio (OHCHR 2024) e até mesmo de genocídio (CIJ 2024). Segundo estimativas conservadoras (Khatib, McKee & Yusuf 2024), o número de mortos em Gaza pode chegar a 186.000 ou mais. Isso corresponde a 7-9% da população. Esses eventos renovam a urgência de entender como os processos de desumanização se desenvolvem e são abordados em sociedades afetadas por violência persistente.
O livro de Joana Ricarte Impacto dos processos de paz prolongados nas identidades em conflito oferece uma análise profunda sobre como processos de paz prolongados influenciam as identidades em conflito e a persistência da violência em conflitos de longa duração. O cerne da investigação dessa complexa relação reside na forma como esses processos afetam a construção das identidades coletivas e as representações do “outro”. Utilizando o conflito entre Israel e Palestina como estudo de caso, o livro examina uma ampla gama de políticas, narrativas, normas e práticas associadas aos esforços de paz, buscando compreender tanto os sucessos quanto os fracassos dessas iniciativas.
O texto se estrutura em uma abordagem interdisciplinar que combina elementos de Relações Internacionais, História e Psicologia Social. Partindo de um quadro analítico, o livro investiga como a desumanização e as práticas de reconciliação em conflitos prolongados – descritas como “reconciliação sem paz” – moldam as identidades sociais e contribuem para a manutenção ou transformação da violência cultural. Dividido em duas partes principais, o livro inicia com uma exploração teórica das identidades em conflitos prolongados. Utilizando os conceitos de violência cultural de Johan Galtung (1990) e de reconciliação sem paz de Anat Biletzki (2013) como base teórica, a obra examina como a persistência de processos de paz pode, paradoxalmente, perpetuar a violência ao reforçar padrões de alteridade e desumanização em sociedades que experimentam a natureza prolongada dos conflitos.
[A] obra examina como a persistência de processos de paz pode, paradoxalmente, perpetuar a violência ao reforçar padrões de alteridade e desumanização em sociedades que experimentam a natureza prolongada dos conflitos.
A pesquisa de campo desempenha um papel crucial. A qualidade da análise é destacada pela abordagem metodológica, incluindo entrevistas exploratórias não estruturadas e observação participante, que fornecem percepções profundas sobre as dinâmicas internas das partes envolvidas. Esses métodos são complementados por uma análise discursiva fundamentada em discursos políticos, documentos oficiais, relatórios, dados de violência e mobilização social, além do papel crucial da mídia em momentos decisivos do processo de paz, que desvela como as políticas e práticas de paz se tornam parte integrante do ciclo de prolongamento do conflito, reforçando as distinções identitárias e a desumanização mútua. O estudo revela como esses elementos contribuem para a perpetuação da desumanização e animosidade entre israelenses e palestinos, mesmo durante esforços formais para promover a paz.
A segunda parte aplica essas teorias ao conflito israelo-palestino, traçando uma genealogia da desumanização e reconciliação sem paz desde o início do século XX até os dias atuais. O livro investiga as continuidades e mudanças nas representações do “outro” e suas implicações para as identidades e as formas de violência no conflito Israel-Palestina através das fases da Guerra Fria, da Era de Oslo na década de 1990 e do século XXI. Ricarte argumenta que, a partir do Plano de Partição da Palestina aprovado pela Resolução 181 da Assembleia Geral das Nações Unidas em 1947, que estipulava a partição da terra da Palestina em Estados judaico e árabe, institucionalizou-se a desumanização mediante uma negação deliberada da identidade, aspirações e direitos palestinos.
O Plano de Partição foi o ponto de partida para um prolongado processo de paz no conflito israelo-palestino, catalisando dinâmicas complexas de identidade e coesão, mas também perpetuando problemas não resolvidos que se manifestaram em várias formas de violência. O livro explora como os esforços diplomáticos da ONU, apesar de suas resoluções e mediações, não conseguiram abordar integralmente as questões identitárias fundamentais, contribuindo inadvertidamente para a desumanização dos palestinos. Essa dinâmica foi exacerbada pela marginalização política e exclusão dos palestinos, complicando ainda mais o conflito e promovendo narrativas desumanizadoras.
O livro explora como os esforços diplomáticos da ONU, apesar de suas resoluções e mediações, não conseguiram abordar integralmente as questões identitárias fundamentais, contribuindo inadvertidamente para a desumanização dos palestinos.
Por outro lado, o reconhecimento crescente da identidade palestina, resultado de resistências internas, de eventos como a Intifada, de mudanças na Organização para a Libertação da Palestina (OLP) e iniciativas internacionais de paz, abriu caminho para uma representação mais direta dos palestinos nos processos de negociação. No entanto, o livro argumenta que esse reconhecimento tardio, embora crucial, não foi suficiente para promover uma transformação significativa do conflito ou alcançar a reconciliação duradoura. Os fracassos dos Acordos de Oslo exemplificam como tentativas anteriores de paz, embora inicialmente promissoras, falharam em resolver as raízes profundas do conflito, perpetuando assim a violência cultural e estrutural que caracteriza o conflito até os dias de hoje.
No contexto dos Estudos de Paz, o livro se destaca por sua abordagem conceitual e empírica, que desafia abordagens convencionais – centradas no processo – e a abordagem instrumental típica de muitos processos de paz. A partir de enfoques construtivistas de Relações Internacionais que lhe permitiram pensar em como narrativas dominantes e significados intersubjetivos criam e definem identidades, interesses e comportamentos, Ricarte argumenta como os discursos, as narrativas e as práticas ligadas aos processos de paz prolongados afetam a manutenção do conflito ao longo do tempo. Sua análise sugere que a violência e a identidade nos conflitos são coconstitutivas – e a normalização da violência ocorre ao longo das gerações – o que afeta diretamente a maneira como as pessoas nesses cenários percebem a si mesmas e, sobretudo, ao “outro”. Segundo a autora, a desumanização do “outro” funciona como um mecanismo de enfrentamento (coping mechanism) dentro das sociedades, que permite precisamente a legitimação do uso da violência contra esse “outro”.
Segundo a autora, a desumanização do “outro” funciona como um mecanismo de enfrentamento (coping mechanism) dentro das sociedades, que permite precisamente a legitimação do uso da violência contra esse “outro”.
Em síntese, este livro é uma leitura valiosa para acadêmicos, profissionais de paz e formuladores de políticas que buscam uma compreensão mais profunda das complexidades dos processos de paz e suas implicações duradouras nos processos de formação das identidades, o que fornece o contexto para que algumas estruturas violentas existam e persistam. Oferece também uma reflexão sobre como as dinâmicas de desumanização podem ser mitigadas e transformadas em direção à reconciliação genuína, a favor de processos de desidentificação dessas dinâmicas. Ao elucidar os mecanismos por meio dos quais processos de paz prolongados influenciam as identidades e relações em conflito que se transmutam, o livro não apenas contribui para o campo teórico, mas também oferece perspectivas práticas para abordagens mais eficazes na busca pela paz duradoura e sustentável para outros conflitos sociais prolongados.
Biletzki, Anat. 2013. “Peace-less Reconciliation”. In Justice, Responsibility and Reconciliation in the Wake of Conflict, organizado por Alice MacLachlan & Allen Speight, 31-46. London: Springer.
CIJ. 2024. Lista de Casos. “Application of the Convention on the Prevention and Punishment of the Crime of Genocide in the Gaza Strip”. Corte Internacional de Justiça, Organização das Nações Unidas. https://www.icj-cij.org/case/192.
Galtung, Johan. 1990. “Cultural Violence”. Journal of Peace Research 27 (3), 291–305.
Khatib, Rasha, Martin McKee & Salim Yusuf. 2024. “Counting the Dead in Gaza: Difficult but Essential”. The Lancet, 5 de julho de 2024. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(24)01169-3.
OHCHR. 2024. “Israeli Authorities, Palestinian Armed Groups Are Responsible for War Crimes, Other Grave Violations of International Law, UN Inquiry Finds”. Human Rights Office of the High Comissioner, 12 de junho de 2024. https://www.ohchr.org/en/press-releases/2024/06/israeli-authorities-palestinian-armed-groups-are-responsible-war-crimes.
Ricarte, Joana. 2023. The Impact of Protracted Peace Processes on Identities in Conflict: The Case of Israel and Palestine. Londres: Palgrave MacMillan. https://doi.org/10.1007/978-3-031-16567-2.
Recebido: 8 de julho de 2024
Aceito para publicação: 11 de julho de 2024
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