During Luiz Inácio Lula da Silva’s third term, the President initiated a new chapter in Brazilian foreign policy. The announced project holds the potential to shape Brazil’s global standing until January 2027. This analytical essay, structured into three sections, reviews campaign commitments on foreign policy, evaluates accomplishments and initial impacts of the administration, and engages in political analysis to determine whether the first year yielded positive outcomes for both the government and the country.
Em sua terceira passagem pelo Palácio do Planalto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva inaugurou, em 2023, novo capítulo de sua política externa. Entre continuidades e mudanças de ênfase, anunciou-se um projeto que, se nada de muito extraordinário sobrevier, pautará a inserção internacional do Brasil até 1º de janeiro de 2027. Para dar conta do primeiro ano do mandato, este ensaio de análise conjuntural subdivide-se em três seções. Na primeira, resgatamos o que, em linhas gerais, foi prometido para esta gestão presidencial na área de política exterior. Na sequência, mostramos as realizações parciais e seus impactos preliminares sobre tópicos salientes da agenda. Na terceira e última parte do texto, desenvolvemos um breve exercício de contabilidade política, com o objetivo de examinar se, concluído o primeiro ano, o saldo na política exterior é promissor para o governo e o país.
EXPECTATIVAS
O pano de fundo internacional
A Guerra Fria introduziu, em escala global, uma lógica carlschmittiana de formulação política. O confronto entre dois projetos de mundo – um americano e outro soviético – estendeu-se literalmente por todos os cantos do planeta. Ultrapassou até os limites da atmosfera terrestre, com a corrida espacial até a Lua, e as tentativas, momentaneamente contidas, de colonização do espaço sideral. Tudo era válido para avançar os interesses de um competidor em detrimento do rival. Era o chamado “jogo de soma zero”, do qual nada, absolutamente nada, escapava. O sistema bipolar assimétrico de Estados nacionais, formado ao longo da segunda metade do século XX, abrigava conflitos por procuração – Coreia (1950), Vietnã (1955), Cuba (1962), Angola (1974) e Afeganistão (1979). Era como se União Soviética e Estados Unidos disputassem partidas de xadrez com suas peças, confortavelmente posicionadas em tabuleiros distantes de seus territórios. Enquanto os ganhos eventuais eram difusos e difíceis de mensurar, os prejuízos eram tangíveis e concentrados nas populações beligerantes locais.
Na tentativa de escapar da rigidez estrutural, países do Terceiro Mundo, precursores do atual Sul Global, ousaram estabelecer as bases de um movimento cuja premissa fundamental era, com boas razões, o “direito de não se alinhar”. No contexto do processo de descolonização na África e na Ásia, nações como Gana, Egito, Indonésia, Índia e Iugoslávia assumiram protagonismo. A partir desse esforço existencial, manifestado em fóruns como o Movimento dos Não Alinhados (MNA) e o Grupo dos 77 (G77), o trinarismo dos desalinhados, antes considerado uma quimera, passou a substituir, em determinados temas e lugares, a sufocante dualidade das superpotências. O Brasil, mesmo adotando timidamente um discurso terceiro-mundista em suas relações econômicas exteriores, nunca se afastaria totalmente do campo magnético de Washington e do Ocidente, especialmente em questões de segurança. Essa era, ademais, a realidade predominante na América Latina.
O mundo mudou desde então? A expressão “Não Alinhamento Ativo” (NAA), cunhada em 2020 pelos politólogos latino-americanos Jorge Heine, Carlos Fortín e Carlos Ominami, surge do reconhecimento da crescente e contínua bipolarização mundial nas últimas décadas – uma aparente reedição, do ponto de vista sistêmico, das circunstâncias que marcaram a Guerra Fria. No entanto, o contexto da terceira década do século XXI exige revisões e atualizações do ideário de 1955-1964. Em vez da descolonização de territórios, emerge o debate sobre o desenvolvimento e a fronteira tecnológica; em lugar da política nuclear e da corrida armamentista, a questão ambiental ocupa o centro do palco; para além das guerras por procuração, destaca-se a importância das cadeias globais de suprimento e de agregação de valor.
É desafiador avaliar, após todos esses anos, o impacto do MNA e do G77. No momento em que foram concebidos, estavam preocupados com a descolonização e a garantia da soberania territorial e da viabilidade econômica de seus membros, em sua maioria africanos e asiáticos. Contudo, as ideias não morrem, e é provável que a doutrina do “não alinhamento” tenha ensaiado um retorno, com as devidas adaptações, encontrando no Brasil atual um protagonista.
As intuições do chefe de Estado
“Não nos envolveremos em nenhuma Guerra Fria. Seremos ativos e altivos”, afirmou Luiz Inácio Lula da Silva, ao responder a uma pergunta de Raquel Krähenbühl, da TV Globo, durante a sua visita a Washington, em fevereiro de 2023. A jornalista buscava obter do presidente uma perspectiva sobre o possível aumento das pressões por alinhamento internacional, questionando se o Brasil se inclinaria para o lado americano ou chinês. O presidente Lula limitou-se a destacar que, embora a República Popular da China fosse o principal parceiro comercial do Brasil, os Estados Unidos ocupavam a segunda posição no mesmo ranking. Ambos eram importantes.
Entusiasta da diplomacia presidencial, o chefe de Estado brasileiro absorveu o espírito da nova era: não seguiria o plano de voo da política externa adotada no início do século XXI, época de sua primeira passagem pelo Planalto. Haveria resgates, decerto, e não seriam poucos; no entanto, as diferenças de enfoque e método já se mostravam pronunciadas.
Na mesma entrevista, Lula também fez um apelo para que outros países do Sul Global – Índia, Indonésia, Turquia, México, Argentina e nações africanas – fossem mais ouvidos nos grandes fóruns de segurança e na governança ambiental. Além disso, incentivou os europeus a considerarem as potencialidades de uma aliança estratégica com a América Latina, especialmente num momento desafiador e cada vez mais voltado para a Ásia, sobretudo no âmbito econômico. Para aqueles que compreendem as sutilezas, a doutrina internacional para o terceiro mandato presidencial de Lula fora ali delineada. Entusiasta da diplomacia presidencial, o chefe de Estado brasileiro absorveu o espírito da nova era: não seguiria o plano de voo da política externa adotada no início do século XXI, época de sua primeira passagem pelo Planalto. Haveria resgates, decerto, e não seriam poucos; no entanto, as diferenças de enfoque e método já se mostravam pronunciadas.
O diagnóstico da equipe de transição
Convocado pelo atual vice-presidente da República, Geraldo Alckmin, o Grupo Técnico de Relações Exteriores (GT-RE) da equipe de transição entre presidências preparou, ainda em dezembro de 2022, relatório com uma avaliação abrangente da política externa conduzida pelo governo Jair Bolsonaro, além de examinar questões orçamentárias, administrativas e estruturais no âmbito do Ministério das Relações Exteriores (MRE). Para sua elaboração, foram conduzidas reuniões com a administração do Itamaraty, que forneceu uma extensa lista de documentos analisados pelo GT. Além disso, o grupo interagiu com diversas entidades, incluindo o Grupo de Mulheres Diplomatas, a Associação e Sindicato de Diplomatas Brasileiros, o Sindicato dos Servidores do MRE, a Associação de Familiares de Servidores do Itamaraty, bem como grupos específicos de diplomatas negras e negros, servidores com deficiência e responsáveis por dependentes com deficiência. Também ocorreram reuniões com entidades da sociedade civil, organismos internacionais e representantes do setor privado.
O relatório destacou suas conclusões principais. A combinação do desmonte de políticas públicas internas com uma postura isolacionista no cenário internacional prejudicou a imagem do Brasil e sua capacidade de influenciar questões globais. Isso incluiu a perda de protagonismo na diplomacia ambiental, questionamento dos esforços multilaterais contra a pandemia e uma abordagem inconsistente com a defesa dos direitos humanos. Foram propostas dez medidas prioritárias para os primeiros 100 dias de governo, visando a restaurar posicionamentos e reconquistar espaços de atuação, como o retorno a organizações regionais tais como UNASUL e CELAC e ao Pacto Global para Migrações, a retomada da política externa para a África e a saída do Brasil da Aliança Internacional sobre Liberdade de Crença e de Religião.
A atual força de trabalho do Serviço Exterior Brasileiro foi considerada insuficiente para impulsionar a retomada do protagonismo internacional, com déficits significativos em diversas categorias de servidores. A diversidade na composição do corpo de servidores também se mostrou uma preocupação, com lacunas de representação. Há uma demanda por mecanismos institucionalizados de participação social na formulação e execução da política externa, no intuito de aumentar a legitimidade interna e externa do MRE. Questões críticas também incluíram a dívida do Brasil com organizações internacionais, a necessidade de aprimoramento na transparência de dados governamentais e a implementação de uma nova política de segurança da informação alinhada com normativas atuais.
A rota traçada pela nova chefia do Itamaraty
O discurso de posse do atual chanceler, Mauro Vieira, proferido em 2 de janeiro de 2023, enfatizou a necessidade de uma política externa que abraçasse diversos setores – como crescimento econômico, meio ambiente, agricultura, educação, cultura, ciência, tecnologia, inovação, direitos humanos, desenvolvimento social e defesa. Destacou, ademais, o compromisso com o desenvolvimento sustentável, a igualdade de gênero e a defesa dos direitos humanos. Em sua análise do cenário internacional, Vieira falou de desafios como as tensões entre grandes potências, a guerra na Ucrânia, a pandemia de Covid-19 e a necessidade de reconstruir a inserção do Brasil no mundo e na região. Frisou, por fim, a importância de recuperar e ampliar a capacidade de ação conjunta na América Latina e no Caribe.
Vieira pôs toda a sua ênfase na importância de resgatar o lugar do Brasil nas relações internacionais, especialmente em temas como mudança do clima, cooperação humanitária e fortalecimento de instituições globais. Salientou a posição estratégica do país na segurança alimentar mundial, buscando abrir mercados e reduzir barreiras ao comércio agrícola. O discurso abordou as relações com diferentes regiões, incluindo a África, o Oriente Médio, a Ásia-Pacífico, a Europa e os Estados Unidos. No que pode ser percebido como novidade (se não na essência, ao menos no grau), tratou da diplomacia consular para os brasileiros no exterior.
O chanceler de Lula III comprometeu-se a modernizar o Itamaraty, valorizar os servidores, promover a diversidade e inclusão, e reforçar a diplomacia pública. Falou da formação contínua dos servidores, da luta contra o assédio e da promoção da igualdade de oportunidades. Classificou a diplomacia como instrumento essencial na ampliação de comércio e investimentos, o que estaria refletido nas prioridades da nova estrutura do ministério. O discurso de posse terminou com uma expressão de confiança na equipe do Itamaraty e no apoio da embaixadora Maria Laura da Rocha, reconhecendo ademais que sua nomeação como a primeira mulher a ocupar o cargo de secretária-geral do Serviço Exterior Brasileiro era um marco histórico.
REALIZAÇÕES
Uma renovação lampedusiana
Como é bem sabido, o sistema internacional “baseado em regras” tornou-se mais tensionado. Revivendo eventos de décadas passadas, quando líderes do “Mundo Livre” e da “Cortina de Ferro” disputavam entre si os territórios, a preocupação central hoje é a ascensão da China – e as incertezas a ela associadas. O epicentro de toda a agitação geopolítica são a guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia em 24 de fevereiro de 2022, em drástica ruptura da normatividade jurídica global, e o conflito em Gaza, decorrente da desproporcional reação militar israelense aos atos terroristas perpetrados pelo Hamas, em 7 de outubro de 2023. A ordem global como a conhecemos está em xeque.
O trinarismo, aquela inovação conceitual da geração de Bandung, deu vazão a novos comportamentos entre os países do Sul Global. A neutralidade, um princípio do Direito Internacional, tornou-se opção para Estados que desejam evitar serem arrastados para conflitos armados. Afinal, quando se trata dos graus de liberdade na política internacional, é necessário lutar por cada palmo de chão. A autonomia na política externa não é concedida, mas sim conquistada. A capacidade de estabelecer a própria norma de conduta em um ambiente altamente polarizado e conflituoso requer grande determinação e um claro senso de propósito. A busca pela harmonia entre os povos, no tempo presente, é uma missão nada trivial.
Logo depois de eleito, Lula da Silva visitou Sharm El-Sheikh, no simbólico Egito, em novembro de 2022, destacando o compromisso do Brasil com a gestão ambiental. Sua primeira agenda internacional, após o empossamento, foi na Argentina, indicando o desejo de maior integração entre os dois países. O novo presidente brasileiro reforçou o compromisso regional com a Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), antes enfraquecidas. Consultou líderes europeus e asiáticos, buscando equilíbrio nas relações internacionais do Brasil. Ao agendar visitas consecutivas a Joe Biden e Xi Jinping, sugeriu um caminho de equidistância entre potências globais. Com o apoio do Papa Francisco, propôs a criação de um “clube da paz” para tentar trazer um armistício à Ucrânia. Em adição, elaborou planos para proteger a democracia e combater as fake news.
Há 15 anos, o discurso soberanista brasileiro estava inteiramente ancorado na expectativa do desenvolvimento baseado em extrativismo mineral, dada a então descoberta de reservas do pré-sal. Agora, a ênfase recai na economia verde e na governança ambiental.
Há 15 anos, o discurso soberanista brasileiro estava inteiramente ancorado na expectativa do desenvolvimento baseado em extrativismo mineral, dada a então descoberta de reservas do pré-sal. Agora, a ênfase recai na economia verde e na governança ambiental. O regionalismo retornou, mas com um olhar diferente. Em 2023, há menos tolerância social com ditaduras de esquerda na América Latina e menos entusiasmo pela chamada Onda Rosa. Apesar de continuar promovendo ativamente a integração sul-americana, Lula busca se aproximar de México, América Central e Caribe, e administrar antagonismos com os Estados Unidos no hemisfério.
A maior transformação no terceiro mandato presidencial, pode-se alegar, é a recalibragem das ambições da política externa. Se, há 20 anos, o chanceler Celso Amorim já falava em diplomacia “altiva”, a prática atual parece ainda mais audaciosa. Há uma vocalização do desejo de refundar a ordem global. Embora as tentativas de servir como negociador em conflitos internacionais de grande magnitude não sejam totalmente inéditas, a autoconfiança com que Lula e sua equipe se lançam em questões internacionais complexas difere da postura precavida e reativa do passado – como em 2004, quando o Brasil aceitou, pela primeira vez em sua história, liderar a missão para estabilização do Haiti (MINUSTAH).
A construção da potência agroambiental global
Lula da Silva, após vencer o segundo turno da eleição presidencial, proclamou na COP 27 que “o Brasil estava de volta”. Isso marca a saída do país de uma postura historicamente reativa, iniciada na Conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, no Rio de Janeiro, em 1992, em que ações eram moldadas em resposta a pressões internacionais. Ao longo dos anos, o Brasil, muitas vezes, adotou uma abordagem reativa, inclusive ao sediar a conferência da ONU e demarcar terras indígenas para apaziguar críticas sobre a destruição da Amazônia. A diplomacia brasileira resistiu ao mecanismo financeiro para conservação das florestas (REDD), proposto por ONGs e cientistas, até que a enorme pressão internacional e a redução das taxas de desmatamento levassem o país a liderar as discussões climáticas.
O governo de Jair Bolsonaro, apesar de ensaiar denúncias de grandes acordos climáticos, representou, formalmente, mais continuidades do que rupturas. O soberanismo brasileiro, mais exacerbado durante seu mandato, já existia anteriormente. A explosão do desmatamento após 2018 elevou a cobrança internacional, com a ameaça real de boicotes a produtos brasileiros. Em 2023, o time de Lula entrou em cena, reconhecendo a necessidade de mudar o jogo. Diante da impossibilidade prática de um Estado aumentar as exportações do agronegócio à custa da destruição ambiental, o novo presidente ousou, sugerindo um novo padrão de governança global na COP 27. A proposta visava garantir a efetiva implementação das decisões climáticas, com representatividade e inclusão política, evitando os fracassos do passado, como o Protocolo de Kyoto.
Durante os anos de Bolsonaro, uma parcela do setor produtivo brasileiro experimentou benefícios provenientes de diversas tragédias externas, impulsionando os preços das commodities. Em 2018, a febre suína levou o governo chinês a eliminar mais da metade de seu rebanho, resultando em aumento significativo nas exportações de carne brasileira. A pandemia de Covid-19, aliada à necessidade de reconstruir as matrizes do rebanho suíno, manteve a demanda por soja alta. Adicionalmente, a guerra na Ucrânia, que interrompeu as exportações de dois dos maiores produtores globais de grãos, elevou preços agrícolas. Apesar desses ganhos no curto prazo, o agronegócio brasileiro enfrentou derrotas no âmbito diplomático. Desde o início dos anos 2000, a União Europeia vem expressando preocupações sobre a compra de produtos brasileiros associados ao desmatamento. Após um relatório do Greenpeace, em 2006, que evidenciou a relação entre desmatamento e produção de soja para ração animal, Bruxelas ameaçou mais de uma vez fechar as portas para o Brasil.
Contrariando a crença infundada de uma parte significativa do agronegócio nacional, as exportações brasileiras não são indispensáveis para evitar a fome global. Embora tenham possibilitado a incorporação da carne na dieta chinesa, conforme se disse, o consumo permaneceu relativamente estável no restante do mundo. A China, inclusive, indicou a intenção de reduzir suas importações como parte de uma política de soberania alimentar, buscando diminuir o consumo de carne pela metade até 2030. Se o maior parceiro comercial adotar padrões ambientais semelhantes aos dos europeus, o agronegócio brasileiro enfrentará desafios para manter sua posição de liderança.
Em 2023, a condução das relações exteriores do Brasil assumiu visão favorável à construção da nova ordem global, amarrando as questões climáticas e alimentares à reforma do sistema financeiro e do Conselho de Segurança da ONU. No cálculo diplomático, o vasto patrimônio natural do país facilita o reconhecimento de seu status de superpotência agroambiental, com credenciais suficientes para se equiparar a outras referências globais dessa área temática.
Ambiguidade calculada na guerra russo-ucraniana
Decorridos dois anos desde a invasão russa do território ucraniano, o saldo é inequivocamente trágico. Cidades inteiras na Ucrânia foram devassadas por tropas de Vladimir Putin. Mortes são contadas aos milhares. Refugiados, aos milhões. A economia ucraniana sofreu abalo equivalente a aproximadamente 40% do seu PIB em 2022 – o que, por si só, serve como indicador eloquente do estrago infligido. Armado e apoiado pelo Atlântico Norte, Volodymyr Zelensky não dá sinais de que vá retroceder. A bravura dos combatentes locais tampouco autoriza prognóstico de capitulação.
Os russos têm de lidar cotidianamente com custos nada triviais de uma guerra de conquista. As sanções ocidentais não conseguiram asfixiar a Federação – cujo desempenho econômico, segundo projeções do Fundo Monetário Internacional (FMI) para 2024, deve superar o de todos os países do G7. Ainda que Moscou não consiga acessar bens com alto componente tecnológico, o bloqueio comercial e estratégico não impede que aliados como China, Índia, Irã e Turquia sigam provendo os demais gêneros. Com o impasse nos campos de batalha e nos foros diplomáticos, e a sombra de uma guerra longa e desgastante no horizonte, que papel caberia a um país relativamente periférico e apenas medianamente potente como o Brasil?
Às vésperas da invasão, encontrava-se em Moscou um Jair Bolsonaro ostensivamente “solidário” à Rússia. O serviço de inteligência brasileiro – conforme fontes relatam – não contemplava o cenário da guerra imediata. Na contramão de projeções feitas pela Casa Branca, o desavisado líder do Brasil resolveu excursionar por campo minado. Alguns dias depois, teve de se haver com palavras jogadas ao vento. A foto ao lado de Putin, afinal, cobraria um pedágio. Deu-se, a partir dali, uma sucessão de recuos e avanços. Para não desagradar grupos de apoio dentro e fora do Brasil, o ex-presidente buscou equilibrar-se entre falas truncadas, fragmentárias e contraditórias. Ora acenou para Zelensky e o Ocidente, condenando a invasão no âmbito da ONU, ora “aliviou a barra” de Putin, evocando uma peculiar noção de “neutralidade” diante das partes em contenda.
Tecnicamente, porém, neutralidade nunca houve. Bolsonaro tentou afagar, ao mesmo tempo, o financista da Avenida Faria Lima e o produtor rural dependente de fertilizante. Se simpatizava pessoalmente com o autoritarismo de Moscou, também sabia não poder contrariar o establishment diplomático-militar de Washington. Quando a questão deixou de pagar dividendo eleitoral, o ex-presidente do Brasil entregou a sua condução para os profissionais da diplomacia.
Embora o vetor resultante – o posicionamento efetivo diante das nações em guerra – não difira tanto em relação ao que foi praticado no governo anterior, Lula da Silva mudou o enquadramento do tema. Saiu da postura defensiva e tentou propor o destravamento das operações. O truque diplomático envolveu a inversão da chave de leitura: em vez de apenas se precaver em relação a efeitos colaterais, o mandatário colocou fichas na construção da paz mundial, oferecendo os préstimos como facilitador. Ambiciosa quanto possa soar, a fórmula para reposicionar o Brasil no tabuleiro geopolítico tem fundamento histórico. Repousa em bicentenária tradição de mediar conflitos – das arbitragens de Dom Pedro II ao Grupo do Rio, sem deixar de lado a pedagógica experiência da Declaração de Teerã. Também encontra respaldo na lei – nomeadamente, nos princípios listados no artigo 4º do texto constitucional.
Gaza e a volta do pêndulo no Oriente Médio
Naquele que se configurou como o grande ato de reconhecimento internacional do Estado de Israel – a sessão da ONU, em 1947, sobre o plano de partilha para a região da Palestina –, quem presidiu os trabalhos foi o diplomata brasileiro Oswaldo Aranha. Essa é uma metade da história; a outra, mais determinante para entender o acirramento de ânimos neste momento, está relacionada com o posicionamento crítico à política externa de Israel que nosso país tem frequentemente assumido nos foros internacionais. Desde a década de 1970 (e, particularmente, a partir da Resolução 3379 da Assembleia Geral da ONU, aprovada em novembro de 1975, que equiparou o sionismo ao racismo), repetem-se em ciclotimia as acusações de que o Brasil estaria a conduzir diplomacias antissemitas.
Vale notar que, quando Brasília, Ancara e Teerã se puseram a negociar saídas para o impasse nuclear iraniano, em 2010, o mal-estar diplomático sobreveio. Diante do arranjo proposto por Celso Amorim e seus homólogos, Washington e Tel Aviv estrilaram. Atribuiu-se ao Brasil a pecha de ingênuo – pois, segundo a titular do Departamento de Estado dos EUA, Hillary Clinton, o país estaria sendo “enganado” pelos aiatolás da República Islâmica. Não tardou para que o referido plano (conhecido como Declaração de Teerã) fosse desautorizado e cabalmente rejeitado pelo Conselho de Segurança da ONU. Em outro episódio anedótico bastante repercutido, o então porta-voz da chancelaria israelense, Yigal Palmor, reagiu com dura retórica à medida brasileira de convocar, em 2014, o embaixador em Tel Aviv para “prestar esclarecimentos” (um eufemismo para expressar a insatisfação do Brasil com a conduta israelense na crise em Gaza). Palmor disse tratar-se de “demonstração lamentável de como o Brasil, um gigante econômico e cultural, continua[va] a ser um anão diplomático”.
O equilíbrio tênue da política externa brasileira para o Oriente Médio foi rompido com a chegada de Jair Bolsonaro à presidência em 2018. O país mudou seus votos e passou a acompanhar o governo dos Estados Unidos em resoluções ligadas ao conflito israelo-palestino. Depois de aproximar-se do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e prometer transferir a embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém, Bolsonaro subverteu o tradicional apoio brasileiro à causa palestina. O alinhamento entre Brasil e Israel-EUA nas Nações Unidas aumentou em aproximadamente 40% no ano de 2019. O voto brasileiro foi revisado em nove tópicos da agenda a respeito da questão israelo-palestina – sempre em favor de Israel. Uma guinada incomum, dado o nosso histórico diplomático de previsibilidade.
Foi contra esse pano de fundo, portanto, que o Brasil reagiu aos eventos deslanchados em 7 de outubro de 2023. O atentado terrorista perpetrado pelo Hamas, que ceifou a vida de mais de 1.100 pessoas, sendo 695 civis israelenses, foi sucedido por represália militar de Israel, responsável pela morte de 27.000 e o deslocamento interno de mais de 1,7 milhão de palestinos (para citar apenas os dados dos quatro primeiros meses de conflito). A tal ponto que, em 29 de dezembro de 2023, a República Sul-Africana peticionou à Corte Internacional de Justiça (CIJ) com o intuito de evitar a ocorrência de um genocídio em Gaza. O Brasil optou por apoiar formalmente a ação da África do Sul, gesto que repercutiu no âmbito doméstico[1], sobretudo junto à comunidade judaica.
Calhou de, no momento em que aconteceu o ataque, em outubro de 2023, o Brasil ocupar a presidência rotativa do Conselho de Segurança da ONU. Durante aquele mês, buscou-se, sem êxito, a aprovação de uma resolução para distensionar o conflito. O momento-chave foi 18 de outubro de 2023, quando a proposta patrocinada pelo Brasil, cujo conteúdo havia sido negociado com os outros catorze membros do órgão, acabou sendo vetada por uma única manifestação contrária, vinda dos Estados Unidos, apesar dos doze votos favoráveis e de duas abstenções que foram registrados.
Americanismo, antiamericanismo, desamericanismo
Ao longo de 2023, abundaram na imprensa brasileira textos, originais ou republicados de fontes estrangeiras, cujo mote era o alegado “antiamericanismo” ou “antiocidentalismo” da política externa de Lula da Silva. Os motivos da rotulação cobriam aspectos tão diversos quanto a defesa de um sistema financeiro não centrado no dólar americano, a referência às culpas de EUA e Europa em fazer perpetuar a guerra russo-ucraniana, a recusa brasileira em aderir às sanções à Rússia e ceder armamentos à Ucrânia, a visita do presidente à China ou a participação do Brasil no BRICS.
Os primeiros anos de existência soberana do país foram plasmados por relações assimétricas com os europeus. O jogo começou a mudar no século XX, quando os EUA emergiram como potência mundial e, de certa forma, ocuparam a vaga de Portugal, Inglaterra e França. No início dos 1900, o gigante da América do Norte tornou-se nosso maior parceiro comercial, grande importador de café. Estava pavimentado o caminho. Um dos momentos mais críticos dessa aliança hemisférica foi a Segunda Guerra Mundial. Depois de flertar com alemães do III Reich, Getúlio Vargas alinhou-se de modo derradeiro aos EUA de Franklin Delano Roosevelt, ao declarar guerra ao Eixo, em 1942. O chanceler Oswaldo Aranha, aliás, foi um dos arquitetos do alinhamento.
Como sabemos hoje, parte expressiva de nosso parque industrial, a siderurgia em especial, guarda relação genética com os aportes estadunidenses no pré-guerra. As Forças Armadas do Brasil – em especial a Força Aérea Brasileira, criada nos anos 1940, e o Exército – também se beneficiaram grandemente dessa aproximação. Os Estados Unidos seguiram sendo o país sob cujas asas, durante praticamente toda a Guerra Fria, o Brasil se acomodou – até o crepúsculo do seu regime militar, em 1985.
Com o fim da bipolaridade EUA-URSS e a chegada do século XXI, todavia, uma distinta ordem de poder começou a se configurar no horizonte. Um século após os EUA terem se tornado os grandes sócios comerciais do Brasil, a China lhes substituiu, tornando-se, desde 2009, a primeira em corrente total de comércio. Para se ter ideia, Pequim respondeu, em 2023, por cerca de 31% das exportações de nosso país, contra pálidos 11% de Washington.
Vamos e venhamos: o mundo tem mais ou menos duzentas unidades territoriais e soberanas. Cada uma delas exerce a prerrogativa de formular a sua política externa. Como é razoável supor, a regra vale também para Brasil e EUA. E a verdade é que, mesmo em momentos de distanciamento entre os dois maiores Estados do hemisfério, houve esforços para reconciliá-los. Governos moderadamente críticos a Washington, como os de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, e abertamente desafiadores, como os de Jânio Quadros e João Goulart, ainda assim votavam com os EUA na ONU.
Entretanto, trata-se de países distintos quanto a aspectos estruturais. Enquanto os EUA têm a maior economia do mundo (em valores dolarizados), o maior parque tecnocientífico e, de longe, a maior capacidade militar do planeta, o Brasil é potência média e economia emergente do Sul Global. É saudável, portanto, que divirjam entre si. Dadas as profundas e enormes dessemelhanças, é possível até afirmar que, se um deles está concordando em demasia com o outro, como durante a gestão Bolsonaro, é mau sinal. Sinal de que alguém na relação está “comprando” agenda que não é a sua.
Venezuela, retorno ao regionalismo e transição democrática
Um ato da reabilitação internacional de Nicolás Maduro ocorreu em Brasília, em maio de 2023, na reunião de cúpula dos chefes de Estado sul-americanos, convocada pelo Brasil, para retomada do projeto de integração regional. Lula, na ocasião, disse alto e bom som que, com base no que havia escutado do “companheiro” Maduro, era momento de reverter a narrativa segundo a qual a Venezuela não seria um país democrático. O que alguns viram como cobrança leve e envergonhada, a maioria – aí incluídos os chefes de Estado chileno e uruguaio – interpretou como atitude condescendente e inaceitável do presidente brasileiro.
Na formulação dos tomadores de decisão de Brasília, o encaminhamento justificava-se por alguns motivos. Em primeiro lugar, reconhece-se que uma Venezuela isolada e instável é fonte de múltiplos problemas para a América do Sul. Da não confiabilidade do suprimento energético ao fluxo descontrolado de migrantes, passando pela internalização de disputas entre potências extrarregionais, a débâcle de Caracas é o fracasso de todos ao seu redor. Também há, por outro lado, oportunidades a explorar. A cooperação em áreas como defesa, meio ambiente, saúde pública e petróleo interessa sobremodo. Os fluxos comerciais e de investimentos, numa Venezuela redemocratizada e reintegrada aos circuitos diplomáticos, irrigarão os Andes, a Amazônia e o Mar do Caribe, destapando potenciais econômicos em vários outros setores. De mais a mais, se se almeja a integração regional, é preciso costurar a volta de Caracas. Enquanto, na primeira década do século XXI, em tempos de Onda Rosa, o obstáculo para a unidade sul-americana residia na Colômbia do direitista Álvaro Uribe, hoje a gestão Maduro é divisiva. Se Brasil e aliados foram capazes de trazer Caracas novamente ao sistema, a porta escancara-se para, no limite, a retomada da UNASUL.
A operação de construção de confiança entre atores políticos também traz componente partidário. Não é segredo que o Partido dos Trabalhadores manteve relações intensas com os governos socialistas de Chávez e Maduro, durante as mais de duas décadas em que o Movimiento V República (MVR) e o Partido Socialista Unido de Venezuela (PSUV) ocupa(ra)m o Palácio de Miraflores. A solidariedade à esquerda articula-se regionalmente por meio de instâncias como o Foro de São Paulo, mas também envolve relações interpessoais de longa data. Nos momentos de baixa, PT e Lula encontraram apoio em seus pares – e essa memória, certamente, ainda está viva.
A insistência do chefe de Estado do Brasil em servir de escudo para Nicolás Maduro é corolário de uma aposta em diplomacia. Lula crê possível a normalização da democracia venezuelana, oferecendo-se como facilitador do processo. Para tanto, precisa arrancar concessões de Maduro. No cálculo do negociador brasileiro, a oposição política venezuelana, ora prostrada, e líderes ocidentais engajados (como Joe Biden e Emmanuel Macron) não se oporiam ao movimento. A realização de eleições limpas na Venezuela seria um primeiro passo – e um passo decisivo – para o início da reconstrução do país amazônico-andino-caribenho. Na substância, a atitude do presidente do Brasil não surpreende. Bastaria ler o plano de governo de Lula, entregue ao Tribunal Superior Eleitoral em 2022, e o intérprete mais treinado nas artes da política exterior logo identificaria esse ânimo. O grande desafio para o líder brasileiro é produzir um remédio que, sob a promessa de cura, não termine por lhe fulminar o prestígio internacional.
Argentina, disrupção eleitoral e distanciamento diplomático
Rivais desde o século XIX, no momento de definição das fronteiras nacionais e de guerras sangrentas na Bacia do Prata, os dois maiores países da América do Sul realizaram, no curso dos últimos 30 anos, uma das mais espetaculares conversões de relacionamento tóxico em aliança política. É o que notaram Cameron Thies e Mark Nieman em sua obra Rising Powers and Foreign Policy Revisionism, voltada para a análise de política externa por meio da “teoria dos papéis”. O marco consensual entre historiadores para indicar a mudança de rumos foi a relação forjada entre os presidentes José Sarney, do Brasil, e Raúl Alfonsín, da Argentina, do que resultou a base do atual Mercosul. Antes mesmo do retorno à normalidade democrática, generais de lá e de cá buscaram um modus vivendi para distensionar as políticas exteriores.
A criação de Itaipu Binacional, em fins dos anos 1970, estabeleceu precedente de cooperação estratégica que, em estágio ulterior, levaria Brasília e Buenos Aires a cogitarem caminhos para superar as desconfianças. Um significativo filhote dessa rearticulação é a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (ABACC), fundada em 1991, na esteira da transformação dos humores diplomáticos. A etapa mais recente da aproximação entre Brasil e Argentina remonta aos dois mandatários, Luiz Inácio Lula da Silva e Alberto Fernández, que se tornaram amigos pessoais.
Enquanto Lula da Silva esteve encarcerado, o então candidato à presidência argentina o defendeu publicamente; e, num gesto de solidariedade, veio a Curitiba, deixando-se fotografar ao lado de Celso Amorim, coordenador internacional da campanha “Lula Livre”, com os dedos a formar um “L”. Empossado pela terceira vez como plenipotenciário brasileiro, Lula escolheu exatamente a Argentina para inaugurar o seu périplo pelo mundo. Empenhou apoio ao país platino e a seu colega Fernández, prometendo recursos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para financiamento de exportações brasileiras. Fez mais: levou a crise financeira argentina ao conhecimento do G7, em Hiroshima, cobrando das potências soluções para alívio imediato e apontando o dedo em riste para as instituições de Bretton Woods. Num lance gerador de muito ruído, projetou o seu peso político para facilitar um empréstimo emergencial à Argentina, no marco do CAF, o Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe.
A última jogada, que consagraria a fase construtiva da aliança, foi a inclusão de Buenos Aires – por solicitação explícita de Brasília – entre os novos membros do grupo BRICS, a coalizão revisionista de grandes nações do Sul Global. Embora a Argentina conserve certo porte na economia integrando o G20, sua presença na lista final de contemplados com vagas soou como surpresa. O aceite foi interpretado como concessão ao Brasil e à China – sócia majoritária do BRICS e maior parceira comercial argentina. Todavia, o novo incumbente argentino, Javier Milei, que chegou à Casa Rosada em 10 de dezembro de 2023, após o triunfo eleitoral, rejeitou o convite, esvaziando as conexões que vinham se desenvolvendo entre os vizinhos do Prata.
O tripé plurilateral institucional – BRICS 10, G20, COP 30
O BRICS, em versão expandida, concentra cerca de 35% do PIB e de 45% da população do mundo. Bem distribuído por diversas regiões geográficas – América Latina, África Subsaariana, Norte da África, Oriente Médio, Eurásia, Sul da Ásia e Ásia-Pacífico –, seu conjunto de dez membros combina-se de tal forma que, no agregado, responde por quase inesgotáveis reservas energéticas, por um celeiro mundial de alimentos e por insuperável patrimônio ambiental. Aliança revisionista do Sul Global, tornou-se em 2023 uma baliza incontornável.
Há, contudo, duas grandes questões com as quais o Brasil terá de lidar: a heterogeneidade do bloco, internamente; e o tensionamento que ele gera com velhos parceiros do Ocidente, externamente. O primeiro ponto traz por implicação a dificuldade de agir para além do simbólico. Ainda que se fale, com alguma recorrência, na construção de um sistema financeiro desdolarizado, o consenso parece distante. Há resistências, abertas e veladas, ao excessivo protagonismo chinês. O segundo ponto, para um país de vocação universalista como o Brasil, também pede cuidados, dado que não interessa a Brasília bloquear avenidas de cooperação com América do Norte e Europa.
O grupo das vinte maiores economias do mundo (G20), sob a presidência rotativa do Brasil a partir de dezembro de 2023, reuniu-se em Nova Delhi para passar em revista a agenda e tentar chegar a acordos credíveis e implementáveis sobre a economia. Interessantemente, seu conjunto de membros congrega, em igual medida, representantes do novo BRICS e do G7. Mesmo entre os que não integram os dois grupamentos, há paridade entre o Sul Global (Indonésia, México e Turquia) e o Norte Global (Austrália, Coreia do Sul e União Europeia). Trata-se, no fim das contas, de uma instanciação fiel das fissuras da ordem mundial.
Durante o período em que ocupar a liderança do fragmentário bloco, Brasília buscará difundir perspectivas que, a um só tempo, sirvam ao interesse nacional e desviem-se de “bolas divididas”. Uma ênfase provável é o tema do combate às desigualdades e à fome no mundo; outra temática que gera menor fricção é o meio ambiente. O Brasil e seus pares do Sul evitarão levar a espinhosa discussão sobre a guerra na Ucrânia para o foro. Não existe tópico mais desagregador nas relações internacionais contemporâneas.
Albergada sob o toldo das Nações Unidas, a Conferência Mundial das Partes (COP) é o momento em que o mundo para e discute, em cúpula de alto nível, a mudança do clima. Em 2025, o encontro chegará à sua trigésima edição – e será realizado na maior potência verde do planeta, o Brasil, e justamente numa cidade, Belém, que nucleia o bioma amazônico. Será oportunidade para avançar uma visão brasileira sobre o assunto. Afinal, se existe dossiê temático em que o país sul-americano pode reclamar liderança, é o da governança ambiental global.
Brasília joga xadrez nos três tabuleiros, ao mesmo tempo e de forma coordenada, tentando atar as decisões alcançadas à nossa motivação diplomática: ao promover a expansão do BRICS, tenta alavancar a reforma do Conselho de Segurança da ONU; ao defender a reforma do Conselho, justifica-o com argumento ambiental – a necessidade de empoderar países zeladores de recursos ecológicos; ao tratar da proteção do meio ambiente, associa-a à temática do financiamento da “transição verde”. Em suma, é de uma só coisa, indissociável, que Lula da Silva e o Brasil estão a tratar.
Revisionismo brando da ordem mundial
Entre os que advogam por uma postura menos protagônica do Brasil nas relações exteriores, repete-se o argumento de que nos faltam atributos geopolíticos – como os da Índia, por exemplo. Mesmo que desconsiderássemos, apenas por um instante, que o país de Gandhi e Nehru, diferentemente do jovem Brasil, é uma civilização de cinco mil anos, com mais de 1 bilhão de cidadãos nacionais, não poderíamos deixar de notar, no curso do século XX, as disputas que marcaram a sua trajetória moderna – de colônia britânica a Estado independente, em 1947. Sua soberania foi conquistada com lutas sangrentas e dilacerantes, não como concessão benevolente.
Tampouco foi simples, para a Índia, adquirir o status de potência nuclear. O país nadou contra a maré das relações internacionais ao não assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) – instrumento de direito internacional que assegura apenas aos vencedores da Segunda Guerra a capacidade de deter arsenais nucleares. Ao desenvolver tecnologia autóctone passível de uso dual (civil e militar), a Índia, por óbvio, quebrou regras e desrespeitou convenções. Ao longo desse caminho de afirmação global, Nova Delhi teve de suportar castigos e estigmas. Não se curvou a pressões. Depois de algumas décadas, conseguiu “negociar” a sua entrada no clube das grandes potências. Já é a terceira economia do mundo em paridade de poder de compra e, recentemente, entrou para o reservado clube dos países com recursos para promover uma expedição lunar.
De igual maneira, não há nada mais equivocado, diante do acumulado de evidências, do que a crença na emergência pacífica da China no decorrer do último século. Regional e globalmente, a República Popular enfrentou resistências. Da humilhante ocupação, pelo Japão, ao não reconhecimento internacional do governo de Pequim – entre 1949 e 1971. Da condenação, em uníssono, do massacre da Praça da Paz Celestial, às atuais denúncias de abusos em matérias de direitos humanos e campanhas de descrédito do Partido Comunista Chinês. Nunca houve, de fato, uma trégua.
Chama a atenção, para os propósitos do ensaio, a mudança da opinião pública estadunidense sobre a China. Segundo levantamento do Pew Research Center, até o recente ano de 2011, 51% dos americanos tinham visões positivas sobre o país asiático, contra 36% de visões negativas. Em 2023, mais de 80% dos estadunidenses enxergam desfavoravelmente a China. A guinada passou pelas manobras discursivas de Donald Trump, mas tem raízes mais profundas do que isso.
Notem que, aqui, não se discute o mérito ou o demérito das ações indianas ou chinesas no plano doméstico ou exterior. Contesta-se, isto sim, a ideia de que é possível subir a escadaria das relações internacionais sem perturbar os seus guardiões. Há potências médias conformadas à ordem – como Canadá, Austrália, Suécia, Holanda e Noruega – e outras que, por nutrirem ambições maiores, engajam-se em revisionismo. A segunda classe de atores chamaremos de “potências emergentes”; com algumas ressalvas, é o bloco a que o Brasil pertence.
O Brasil não tem vocação para pária, nunca teve, muito antes pelo contrário; é universalista e desconhece inimizades arraigadas. O “gigante gentil” sul-americano reclama assento à mesa alta e, ao mesmo tempo, promete seguir a boa etiqueta internacional. Se será bem-sucedido nas novas configurações do mundo, o tempo dirá.
Esse Brasil que despontou diante dos nossos olhos em 2023 é revisionista, mas de um tipo suave. O novo governo não nutre pretensão de desenvolver ogivas nucleares para fins bélicos, não inspira temores de praticar subimperialismo na própria região, tampouco se nega a cumprir normativas internacionais para o meio ambiente ou os direitos humanos. O Brasil não tem vocação para pária, nunca teve, muito antes pelo contrário; é universalista e desconhece inimizades arraigadas. O “gigante gentil” sul-americano reclama assento à mesa alta e, ao mesmo tempo, promete seguir a boa etiqueta internacional. Se será bem-sucedido nas novas configurações do mundo, o tempo dirá.
SALDO
O relatório do Grupo de Trabalho de Relações Exteriores (GT-RE) da equipe de transição delineou ambiciosas metas para o Brasil e, à medida que o tempo avançou, tornou-se nítido que muitas delas foram alcançadas no primeiro ano de gestão. O país retornou à cena internacional com destaque. O trio Lula-Amorim-Vieira parece afinado. O Brasil recuperou espaço e projeção, consolidando a sua presença em grandes cúpulas de chefes de Estado e de governo. O produto interno bruto cresceu 3% a.a. e o país voltou ao clube das dez maiores economias do mundo. O setor exportador, capitaneado pelo agronegócio, segue alcançando recordes históricos. O grande volume de investimentos externos diretos fez do Brasil o terceiro maior destino de recursos, em 2023, entre os membros do G20. Além disso, o desflorestamento na Amazônia, calcanhar de aquiles da presidência anterior, caiu em cerca de 50% no ano passado.
O relatório do Grupo de Trabalho de Relações Exteriores (GT-RE) da equipe de transição delineou ambiciosas metas para o Brasil e, à medida que o tempo avançou, tornou-se nítido que muitas delas foram alcançadas no primeiro ano de gestão. O país retornou à cena internacional com destaque. O trio Lula-Amorim-Vieira parece afinado. O Brasil recuperou espaço e projeção, consolidando a sua presença em grandes cúpulas de chefes de Estado e de governo.
Uma realização significativa, no marco do que houvera sido planejado, foi o pagamento de todas as dívidas com organizações internacionais, o que não apenas reforçou a credibilidade financeira do país, mas também abriu portas para outros convites. Decorreu da nova postura a conquista do direito de sediar a Conferência das Partes da ONU, em 2025, reposicionando o Brasil como ator incontornável nas discussões ambientais. É de se notar, também, a mudança no perfil da diplomacia presidencial: Lula da Silva fez 15 viagens ao exterior e visitou 24 países em 2023. Jair Bolsonaro, na integralidade do seu mandato (2019-2022), fez 24 viagens e esteve em 22 países. Tanto em intensidade quanto em latitude da agenda, não há termo de comparação.
Na América Latina, o Brasil ressurgiu nas principais mesas negociais. Atuações decisivas nas conversas de paz entre Venezuela e Guiana, em disputa envolvendo o Essequibo, e na Guatemala, por ocasião de tentativa de golpe de Estado naquele país, reintroduziram a liderança brasileira na resolução de contenciosos. O ressurgimento da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC) foi acontecimento importante, bem como as iniciativas, em curso, para resgatar a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL) e a Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). A admissão da Bolívia como membro pleno do Mercosul, longamente defendida pelo Brasil, deu nova vitalidade ao bloco.
As pesquisas eleitorais, de resto, refletem a popularidade da condução internacional do país. Empresas como Atlas Intel, MDA e Quaest abordaram o assunto em seus surveys, proporcionando acessar um juízo emanado da sociedade democrática. De modo geral, a população reconhece a importância do retorno do Brasil à cena internacional, o que impacta positivamente a avaliação do governo. No levantamento mais recente, feito pela Atlas Intel, 47% dos brasileiros apoiam a política exterior posta em prática (36% consideram-na “ótima”, enquanto 11% julgam-na “boa”). Entre todas as áreas perscrutadas na sondagem, datada de 6 de fevereiro de 2024, trata-se da segunda política pública com maior respaldo popular, atrás apenas da de direitos humanos.
Entretanto, nem tudo são êxitos e boas promessas. Estranhamentos com Europa e Estados Unidos, especialmente sobre o tema da Ucrânia, destacaram-se e foram merecedores de atenção. Problemas surgiram também no âmbito regional. A dificuldade de fazer o presidente Maduro seguir um script democrático na Venezuela é preocupação persistente. A recusa da Argentina em ingressar no BRICS, as negociações complexas com o Paraguai sobre um novo protocolo para a Usina de Itaipu, os flertes entre Uruguai e China pela constituição de um tratado bilateral de livre comércio e a paralisia das negociações entre União Europeia e Mercosul pelo acordo birregional são pontos de atrito e difícil solução.
A diplomacia do conhecimento, voltada para temas de educação, ciência e tecnologia, enfrenta estagnação e desinvestimento. A projeção cultural externa do Brasil perdeu vigor ao longo da década. Entraves organizacionais, como a falta de pessoal para a realização de grandes eventos (G20, BRICS e COP 30), geraram sobrecarga administrativa no Ministério das Relações Exteriores. A persistência da sub-representação feminina em cargos de alta chefia reclama correção de rumos, ainda que alguns progressos sejam reportados. O fenômeno da “gabinetização do Itamaraty” (falta de pessoal, forçando remoções do exterior para a Secretaria de Estado) e a “consularização da atividade das embaixadas no exterior” são efeitos colaterais do problema de fundo – a gestão de recursos humanos na diplomacia – e pedem reestruturação da Casa de Rio Branco.
AGRADECIMENTO
Minha gratidão a Benoni Belli, Carlos Aurélio Pimenta de Faria e Guilherme Casarões pela leitura atenta e apontamentos preciosos a uma versão prévia do manuscrito. Sigo, em todo caso, responsável por erros e omissões do ensaio.
Nota
[1]Resgato, a título de exemplo, expressões por escrito de dois chanceleres brasileiros. Na troca de argumentos, manifestou-se por carta aberta, em 11 de janeiro de 2024, o ex-ministro das Relações Exteriores Celso Lafer, para quem a decisão brasileira de ladear-se à África do Sul contra Israel insuflava o antissemitismo e quebrava uma longa tradição de não alinhamento diplomático. Avocando a expertise do professor de Direito Internacional, Lafer também questionou a fragilidade jurídica da peça submetida ao tribunal. Mauro Vieira, por sua vez, registrou as suas visões sobre o processo em artigo publicado pela Folha de São Paulo, em 20 de janeiro de 2024, com alegação de que a análise sobre o mérito caberia, em último caso, aos juízes da CIJ. Rejeitou, ademais, qualquer associação entre a expressão da política externa brasileira e o antissemitismo.
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Recebido: 20 de fevereiro de 2024
Aceito para publicação: 21 de fevereiro de 2024
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