Como autores do artigo Guerra russo-ucraniana: impactos sobre a segurança regional e internacional (2022), publicado na terceira edição da CEBRI-Revista (jul-set 2022), recebemos com um espírito de interlocução a crítica de Demétrio Magnoli (2022), de título Nomes para uma guerra, após a publicação da mesma na seção Análises de Conjuntura, em setembro de 2022.
Vários pontos foram levantados pelo autor da crítica ao nosso artigo, e como elas tangem uma variedade de assuntos – entre esses alguns que nem sequer foram objeto de nosso artigo – vamos aqui limitar-nos a comentar apenas algumas questões apontadas na crítica de Magnoli. Entendemos, entretanto, que existem diversos outros pontos mencionados que sequer foram tangenciados por nós autores na via técnica do artigo. Desta forma, uma vez que não houve a intenção de tratar de determinado(s) aspecto(s), por óbvio que não haveria razão da abordagem ou desdobramento do(s) mesmo(s). Então vamos à nossa resposta:
Em primeiro lugar, sobre o título dado ao artigo ser “burlesco” porque aquela não seria uma guerra, mas “uma guerra de agressão” russa. Vamos ao ponto, afinal: o que é uma guerra? Para Clausewitz (2008, p. 77), “a guerra não é apenas um ato político, mas um verdadeiro instrumento político, uma continuação do processo político, uma aplicação por outros meios.” Ainda mais, o ato da guerra, que é um ato relacional, não unilateral, está presente no conflito russo-ucraniano, e como regra geral inclui um ator ofensivo e outro defensivo; um enfrentamento violento entre dois ou mais exércitos. A maior parte de analistas militares e de centros especializados em estatísticas da guerra – como o Stockholm International Peace Research Institute (SIPRI) e o UPSA, base de dados da Universidade de Upsala, coincidem que estamos em presença de uma guerra quando existem mais de 1000 baixas. No conflito em questão, somando as baixas em ambos os lados, estas se contabilizam hoje em dia em mais de 100 mil.
É necessário não confundir o conflito entre Rússia e Ucrânia simplesmente como um ato imperial de ocupação, desde que a Ucrânia tem mostrado forte capacidade de revide e de engajamento no conflito. Ela tem sofrido muitas baixas, mas também tem ocasionado muitas baixas ao exército russo. Nesse aspecto, Magnoli se perde na semântica discursiva do conflito. Os combates entre ambos os exércitos são violentos e mesmo que existisse “uma guerra de agressão” do lado russo, a ocupação de territórios se mostra instável porque as forças militares da Ucrânia não se mantêm só passivamente ou numa guerra defensiva, também são capazes de retomar territórios (ou seja, passar à forma ofensiva). Foram atos e eventos de guerra (do exército ucraniano) que permitiram a conquista e a retomada de territórios que haviam sido ocupados pelos russos. Concedamos que o conflito poderia ter sido uma “guerra de agressão” nas suas primeiras semanas, mas a partir daí o que se viu foi um desenrolar entre dois exércitos que se equivalem em muitos momentos, e que tenderão a se equivaler mais na medida em que novos equipamentos militares prometidos pela Alemanha e os Estados Unidos comecem a chegar ao território ucraniano. Por exemplo, em 21 de dezembro, os Estados Unidos confirmaram “um envio de baterias de defesa aérea Patriot ao país que está em guerra com a Rússia desde fevereiro de 2022” (Aventuras na História 2002).
Utilizar termos como Guerra de Agressão, destruição legítima de alvos (como pontes usadas por civis e militares), propaganda de guerra ou dizer que determinado título é “burlesco” são recursos retóricos, e que geralmente só escondem o lado que um crítico não quer revelar, digamos assim, mas cuja opção transparece claramente no argumento de Magnoli. De sorte que não estamos sozinhos nessa concepção – ou melhor dizendo, no título que demos ao artigo. Há de se notar que artigos especializados e até centros especializados em gastos militares e conflitos, como o SIPRI e a Base de Dados de Conflitos da Universidade de UPSAL, aproximam seus títulos do nosso. Na verdade, na medida em que a guerra foi avançando, muitas fontes no mundo deixaram de lado títulos como “guerra da Rússia na Ucrânia” e passaram a utilizar com mais frequência títulos tais como “a guerra ou o conflito entre a Rússia e a Ucrânia” (veja-se Aparecido e Aguilar 2022, Bumbieris 2022, BCDOC Defensa 2022, Mielniczuk 2006, Brinci 2022, Sanchez Tapia 2022). Caracterizar como Guerra de Agressão os atos reais de dois atores em guerra é uma forma de propaganda ou discurso para levantar a moral coletiva ou nacional de um dos lados (e suas partes apoiadoras).
Outro tema levantado por Magnoli, que ele sustenta sem se referir a fontes para isso, é que “os orçamentos de defesa e as forças militares dos países europeus da OTAN decresceram drasticamente após o final da Guerra Fria, inclusive durante a expansão da aliança militar para o leste – e não se recompuseram nem mesmo depois da primeira invasão russa da Ucrânia, em 2014” (Magnoli 2022). Esse é um argumento que não se sustenta quando analisamos o relatório anual do SIPRI (2020), uma das principais fontes internacionais em gastos militares. Observamos que o Reino Unido, a Alemanha, a França e a Itália formam parte do grupo dos top 10 em gastos militares em relação ao PIB de cada país no período 2011 a 2020; e que Espanha, Polônia, Holanda, Noruega, Suécia, Ucrânia, Romênia, Bélgica, Grécia e Dinamarca, no mesmo período, foram classificados no grupo dos 40 países no mundo com maior volume de gastos militares em relação ao PIB nacional. É insustentável o argumento de que países europeus da OTAN não gastam militarmente, e que eles só têm incrementado seus orçamentos militares após a invasão russa na Ucrânia em 2014.
Sobre o argumento de Magnoli de que nosso artigo adere ao discurso “putinista”, acreditamos que ele não entendeu que estávamos utilizando o discurso não só de Putin, mas dos Estados Unidos, de países nórdicos (como a Suécia e a Finlândia) e até da China-Rússia – no comunicado conjunto de fevereiro de 2022 (Kremlin) –, como uma técnica de triangulação de discursos, que procurava mostrar como a retórica embalada com cores nacionalistas e históricas pode ser instrumentalizada tanto para fins de política externa quanto na guerra. E é que esta guerra, para além de seu cruel desenvolvimento, tem sido uma guerra discursiva não menos importante que aquela que se lavra nos campos de batalha, e na qual os primeiros movimentos da linguagem russa pareciam que prevaleceriam, mas que tem sido equilibrada pela hábil condução nacionalista e a contra semântica da liderança ucraniana e ocidental, principalmente EUA e a Alemanha (ver Brinci 2022).
Afirma Magnoli que “Lebelem & Villa parecem acompanhar o diagnóstico putinista acerca da revolução ucraniana de 2014 quando enfatizam que ‘os EUA apoiaram a derrubada do então governo de Kiev’ (2022, 120), como se o dedo da Casa Branca fosse capaz de deflagrar manifestações de milhões de cidadãos num país distante” (Magnoli 2022). Ao contrário do que afirma Magnoli, não acompanhamos o argumento defensivo de Putin, só mostramos como doutrinariamente esse discurso defensivo é mobilizado pelos atores (especialmente as lideranças nacionalistas como Putin) para justificar as motivações de uma guerra, seja qual for a natureza e a axiologia desta. E a função da teoria, como no caso daquela de John Herz por nós citada no artigo, é compreender o contexto internacional que dá origem a esse discurso. No entanto, parece um sofrimento insuportável para Magnoli aceitar “que o dedo da Casa Branca vem influindo como se fosse capaz de deflagrar manifestações de milhões de cidadãos num país distante” (Magnoli 2022). Não é necessário relembrar para Magnoli, porque ele sabe disso, que desde o final da Segunda Guerra Mundial os Estados Unidos têm justificado sua participação em golpes de estado e alimentado mobilizações populares na América Latina, na Ásia, no Oriente Médio e na África, em nome da paz liberal. E claro isso não faz das invasões russas a outros povos, que também têm existido com bastante intensidade e frequência desde Pedro o Grande e Catarina, guerras menos guiadas pelo dedo russo. Recomendamos a Magnoli a leitura do bom e “burlesco” livro do pesquisador Christopher Kelly (2015), America Invades: How We've Invaded or been Militarily Involved with almost Every Country on Earth. Surpreenderá bastante ao leitor ver “o dedo da casa branca” envolvido em conflitos sociais e políticos em diversas partes do mundo.
Um outro aspecto levantado por Magnoli diz respeito ao ponto que fala que “durante a Guerra Fria, a OTAN não invadiu país nenhum, ao contrário do Pacto de Varsóvia, que promoveu as invasões da Hungria (1956) e Tchecoslováquia (1968)”. Por essa via de argumentação deveríamos candidatar a OTAN ao próximo prêmio Nobel da Paz. Magnoli ignora que a OTAN participou com intensos bombardeios na Guerra do Kosovo (1999), por certo, defendendo os direitos humanos dos Kosovares, de acordo com a narrativa da OTAN e dos Estados Unidos, e que no século XXI a OTAN envolveu-se em missões no Iraque (2004) e Afeganistão (2003), interveio na pirataria no golfo de Áden e no oceano Índico, além de missões durante a Primavera Árabe, como na Líbia, em 2011. Além disso, países Europeus da OTAN, como a França e a Grécia, mais os Estados Unidos, se envolveram ativamente na Guerra Civil da Síria e obviamente está envolvido, com seu apoio militar, na guerra entre a Rússia e a Ucrânia. É muito legítimo a um crítico sublinhar os fatos que isentam de atitudes guerreiras a um país ou organização, mas não é muito legítimo academicamente fazer uma leitura e recortes históricos seletivos que tensionam o pacifismo desse país ou organização. Todos esses envolvimentos pós Guerra Fria por parte da OTAN poderiam ser justificados por acadêmicos e políticos como legítimos, porque foram feitos, na narrativa da paz liberal, em nome dos direitos humanos, da responsabilidade de proteger (R2P) e da democracia ocidental. Mas como o próprio Mearsheimer (2001) mostrou, tais discursos formam uma estrutura de ideologias liberais para fundamentar as intervenções, ou seja, uma maneira Agostiniana de dizer que há más e boas (justas) guerras.
E finalmente, sim, nós assumimos, e alongamos, o argumento de Mearsheimer, da responsabilidade primária da OTAN pelo conflito russo-ucraniano. Em tempo prestamos solidariedade a Mearsheimer, cuja liberdade acadêmica tem sido ameaçada e tensionada por expressar uma visão teórica e histórica que não seguem a visão que o mainstream político e acadêmico americano tem da guerra russo-ucraniana. Essas posições, contrárias ao pensamento de Mearsheimer, são veiculadas de maneira fundamentalista e embasadas na superioridade civilizatória e política da paz liberal, o que nos lembra os piores dias do discurso da administração de George W. Bush (2001-2008), que professava que “quem não está conosco está contra nós”. Tal tipo de reação fere a liberdade acadêmica de um intelectual como Mearsheimer, e de qualquer outro intelectual. Mas para além de qualquer diferença com Magnoli, acreditamos que nos une o sentimento de que a guerra só traz dores e sofrimentos para os povos, nosso sentimento de solidariedade com milhões de ucranianos vitimados pela guerra e com as famílias dos soldados russos e ucranianos que perderam suas vidas em combate, numa causa que talvez não lhes atingia.
Referências
Aventura na História. 2022. “Envio de armas para Ucrânia pode desenhar outro futuro para a guerra”. Aventura na História, 21 de dezembro de 2022. https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/historia-hoje/envio-de-armas-para-ucrania-pode-desenhar-outro-futuro-para-guerra.phtml
Aparecido, J. M & S. L.C. Aguilar. 2022. “A guerra entre a Rússia e a Ucrânia”. Série Conflitos Internacionais 9 (1).
Brinci, S. 2022. “Rusia y Ucrania: Una guerra (también) retórica”. Palabra Pública, 2 de Mayo de 2022. http://palabrapublica.uchile.cl/2022/05/02/rusia-y-ucrania-una-guerra-tambien-retorica/
Bumbieris, J.V. J 2022. “A Guerra Russo-Ucraniana e seus impactos para O Brasil”. ESTUDO, maio de2022). Câmara dos Deputados. Brasília.
BCDOC Defensa. 2022. Dosier: Guerra Rusia/Ucrania. https://patrimoniocultural.defensa.gob.es/sites/default/files/2022-07/GUERRA.pdf
Clausewitz, C. V. 2008. On War. Princeton University Press.
Mielniczuk, F. 2006. “Identidade como fonte de conflito: Ucrânia e Rússia no pós-URSS”. Contexto int 28 (1): 223-258. https://doi.org/10.1590/S0102-85292006000100004
Sanchez Tapia, S. 2022. “¿Hacia dónde va la guerra? Rusia pugna por recuperar la iniciativa mientras Ucrania se crece”. The Conversation. https://theconversation.com/hacia-donde-va-la-guerra-rusia-pugna-por-recuperar-la-iniciativa-mientras-ucrania-se-crece-191220
Recebido: 25 de outubro de 2022
Aceito para publicação: 19 de janeiro de 2023
Copyright © 2022 CEBRI-Revista. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença de Atribuição Creative Commons que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio desde que o artigo original seja devidamente citado.