Como pesquisador do desenvolvimento sustentável e da Agenda 2030, minha leitura do livro foi motivada por e será resenhada a partir dessas referências. Cabe então uma advertência ao leitor puramente acadêmico: o livro não trata de conceitos, não é um livro teórico. É sobre a experiência prática da autora em diversos fóruns internacionais e a luta de lideranças locais ao redor do globo em busca de minimizar os efeitos das mudanças climáticas. A ideia que dá título ao livro, de justiça climática, é apresentada no primeiro capítulo e é muito mais intuitiva que propriamente “conceitual”: todos os seres humanos já estão sendo afetados pelas mudanças climáticas; entretanto, os pobres são afetados de forma muito mais intensa e pagam um preço muito maior. Constitui-se assim uma situação de injustiça, pois quem menos contribui para as mudanças do clima é penalizado primeiro.
…pelo conceito utilizado de justiça climática, a obra busca dar primazia ao elemento humano do tripé – economia, meio ambiente, social – que dá suporte ao desenvolvimento sustentável.
Tendo isso em mente, onde o livro se localiza? Claramente, pelo conceito utilizado de justiça climática, a obra busca dar primazia ao elemento humano do tripé – economia, meio ambiente, social – que dá suporte ao desenvolvimento sustentável. No primeiro capítulo, narrado em primeira pessoa, a autora conta como seu trabalho no Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos a levou à luta por direitos básicos, como o direito à alimentação, água potável, saúde, educação e ao trabalho decente. Todavia, segundo ela, em todas as frentes dessa batalha, a questão climática aparecia como central.
Esse foco no ser humano e nas ações individuais confere um caráter um tanto liberal à obra, pois o Estado, quando surge, é muito mais um agente passivo que responde às demandas dos indivíduos, do que ativo em propor e implementar políticas públicas. Há também uma enorme ênfase no desenvolvimento local, de baixo para cima, conforme a concepção de Tenório (2007). Em outras palavras, a autora parte de uma perspectiva microssocial. Discutirei as implicações dessa opção ao comentar o oitavo capítulo. Do ponto de vista narrativo, o livro é particularmente bem-sucedido ao enfatizar o elemento humano, utilizando fotos e histórias reais. A autora apresenta dez mulheres e dois homens cujas vidas foram impactadas e que resolveram agir. Todas essas pessoas se tornaram lideranças em suas comunidades e tiveram projeção internacional por conta de seus trabalhos.
Do ponto de vista narrativo, o livro é particularmente bem-sucedido ao enfatizar o elemento humano, utilizando fotos e histórias reais.
Do segundo ao sexto capítulo, os casos tratados discutem: gênero – cerca de 70% dos alimentos produzidos mundialmente são cultivados por milhões de pequenos produtores familiares ou de subsistência na África e na Ásia, sendo a grande maioria de mulheres (Capítulo 2); gênero e raça – os mais impactados pela devastação do Furacão Katrina nos EUA em 2005 foram os mais pobres e, em particular, as mulheres negras e de outros grupos étnicos, que posteriormente também foram preteridos da ajuda governamental (Cap. 3); as comunidades tradicionais/indígenas e suas lideranças femininas – os povos tradicionais devem ser protagonistas na preservação e resistência às mudanças climáticas, por sentirem o impacto em curso de forma muito mais intensa que os residentes dos grandes centros urbanos ao redor do mundo, e por possuírem conhecimentos valiosos sobre a natureza (Caps. 4, 5 e 6).
O sétimo capítulo trata dos moradores do pequeno arquipélago de Kiribati, no Oceano Pacífico, primeiro país do mundo que deixará de existir em decorrência do aumento do nível do mar. O plano do então presidente de Kiribati envolve a compra de vastas porções de terras na segunda maior ilha de Fiji, a mil milhas de distância, e também a capacitação dos mais jovens para migração com dignidade. Apesar de tratar de uma questão importantíssima nesse capítulo – os refugiados ambientais –, creio que a autora poderia ter desenvolvido melhor a questão, pois refugiados e imigrantes representam desafios completos na política doméstica e internacional. Afinal, questões como xenofobia e nacionalismo já são perceptíveis em relação aos exilados pelas mudanças climáticas?
O oitavo capítulo trata da mudança de padrão de vida e consumo de pessoas em países ricos, no caso, a Austrália. Esperava uma discussão nesse sentido desde o primeiro capítulo, pois considero uma questão central. John Robinson (2004) distingue duas correntes de pensamento no debate ambientalista úteis para “lermos” esse capítulo e o livro de forma mais geral. De um lado, temos o desenvolvimento sustentável, que implica ajustar o modelo de desenvolvimento existente unindo crescimento econômico e uso racional dos recursos naturais no mesmo conceito. Do outro lado, a ideia de sustentabilidade, vertente mais crítica e que implica mudar o padrão de desenvolvimento, encerrando o ciclo antropocêntrico com mudanças de valores e crenças subjacentes.
Ao longo do livro, Mary Robinson assume indiretamente uma posição de desenvolvimento sustentável: precisamos de mais tecnologias (mesmo que oriundas de conhecimentos de povos tradicionais) para lidar com os problemas climáticos. Essa constatação é particularmente decepcionante no capítulo em questão, pois, embora trate de mudanças de ações pontuais no dia a dia, principalmente das mulheres em países ricos, não há uma preocupação de fato com a natureza e o lugar do ser humano nelas, ou seja, “não envolve o reconhecimento dos limites da natureza e a necessidade de aderir a eles. Ao contrário, [sustentabilidade, nesse contexto] significa simplesmente garantir a continuidade de matérias-primas para a produção industrial, o fluxo contínuo de commodities e a infinita acumulação de capital” (Shiva 1992 apud Waters 2008. Tradução própria). A estratégia da autora de alocar o ser humano no centro da narrativa implica perder de vista os elementos macrossociais/estruturais e a chance de tecer críticas, mesmo que sutis, ao sistema capitalista contemporâneo e a seus valores e práticas.
O nono capítulo é particularmente feliz ao trazer para a discussão a questão do trabalho: trata dos impactos que a transição econômica necessária para frear, estabilizar e reduzir as mudanças climáticas gera nos postos de trabalho existentes nos setores “sujos”, como os de gás e petróleo. O décimo e último capítulo do livro aborda o Acordo de Paris e os desafios de sua implementação. A autora apresenta em linhas gerais o que foi definido em termos de objetivos e responsabilidades: limitar o aquecimento global a, no máximo, 2 °C acima da temperatura pré-industrial; reduzir as emissões brutas de gases de efeito estufa a zero até 2050; reunir-se novamente em cinco anos para apresentar os planos para redução nas emissões de carbono e reportar a cada cinco anos, começando em 2023, o progresso para alcançar as metas. Há uma grande ênfase no revés que a eleição de Donald Trump representou para os esforços internacionais (o então presidente americano retirou o país do Acordo) e no contraste com o senso de responsabilidade do restante do mundo. O movimento de cidades e estados norte-americanos que assumiram os compromissos do Acordo apesar do governo central é, ao meu ver, o caso mais interessante.
Por fim, cabem algumas considerações sobre o alcance e os limites do livro. Começando com os limites, a autora não menciona a Agenda 2030. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) lançados pela ONU em 2015[1] estão totalmente alinhados com o propósito de Robinson (2018): unir crescimento econômico, com justiça social e preservação ambiental. Inclusive, diversos ODS permeiam as discussões do livro, como 1 – Erradicação da Pobreza; 5 – Igualdade de Gênero; 6 – Água Potável e Saneamento; 8 – Trabalho Decente e Crescimento Econômico; 11 – Cidades e Comunidades Sustentáveis; 12 – Produção e Consumo Responsáveis; 13 – Ações contra Mudanças do Clima; ou o 17 – Parcerias e Meios de Implementação.
Em relação aos méritos do livro, destaco: a ênfase nas mulheres como principais atrizes impactadas pelas mudanças climáticas e protagonistas na busca por soluções, sejam de mitigação ou adaptação; a ênfase do livro na resiliência, que ao mesmo tempo alerta sobre a urgência do tempo, mas também inspira as pessoas a não ficarem paradas e a atuarem localmente para gerarem efeitos globais; o caráter humano do livro, mencionado no início desta resenha, que apresenta diversas pessoas líderes em suas comunidades e com visibilidade internacional, o que contribui para a difusão internacional de ideias e políticas (Gilardi 2013) e a cooperação internacional na linha do ODS 17 mencionado anteriormente.
[1] Ver: https://brasil.un.org/pt-br/91863-agenda-2030-para-o-desenvolvimento-sustentavel.
Gilardi, F. 2013. “Transnational Diffusion: Norms, Ideas, and Policies”. In Handbook of International Relations, organizado por Walter Carlsnaes, Thomas Risse & Beth Simmons, 453–477. Londres: SAGE Publications Ltd. https://fabriziogilardi.org/resources/papers/gilardi_handbook_IR_v2.pdf.
Nações Unidas. 2015. “Transformando nosso mundo: A Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável”. Traduzido pelo Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC Rio). Nações Unidas Brasil, 13 de outubro de 2015. https://brasil.un.org/sites/default/files/2020-09/agenda2030-pt-br.pdf.
Robinson, John. 2004. “Squaring the Circle? Some Thoughts on the Idea of Sustainable Development”. Ecological Economics 48 (4): 369-384. http://dx.doi.org/10.1016/j.ecolecon.2003.10.017.
Robinson, Mary. 2018. Climate Justice: Hope, Resilience, and the Fight for a Sustainable Future. Nova York: Bloomsbury Publishing USA.
Tenório, Fernando G. 2007. Cidadania e desenvolvimento local. Rio de Janeiro: Ed. Unijuí.
Waters, J. 2008. “Sustainable Development”. In The International Encyclopedia of Communication, organizado por Wolfgang Donsbach. Hoboken, N. J.: Wiley-Blackwell Publishing.
Recebido: 1 de novembro de 2022
Aceito para publicação: 8 de novembro de 2022
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