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Policy Papers

Entre a responsabilidade local e a cidadania mundial

O Brasil nas discussões socioambientais internacionais depende de um projeto de país multicultural

Resumo

O Brasil, ancorado em nossas riquezas socioambientais, poderia liderar esforços mundiais para enfrentar as consequências das ações humanas no planeta. Analisamos os fatores que inibem ou sabotam esse protagonismo. Propomos a gestação democrática de um novo projeto de país, multicultural e multifacetado, com um modelo de desenvolvimento sustentabilista progressista baseado em educação e conhecimento, uso sustentável e proteção do meio ambiente e combate severo às desigualdades sociais e econômicas. Identificamos a emergência de uma cidadania mundial, mais consciente e exigente, e sugerimos o uso da capacidade da nossa diplomacia e sociedade civil em uma frente supranacional em defesa da vida no planeta.

Palavras-chave:

sustentabilidade global; meio ambiente; responsabilidade local.

A espécie humana se destaca no reino animal, ademais de seus atributos físicos, por ter sido capaz de criar e utilizar ferramentas, por ser capaz de gerar e entender noções abstratas, de repassar esses e outros conhecimentos aos seus descendentes e, cada vez mais, por modificar o seu ambiente de forma a adequá-lo às suas necessidades e aos seus desejos.

“Domesticando” o fogo, transformando plantas e animais para serem mais produtivos naquilo que lhe interessa, barrando ou desviando rios, cortando florestas, secando pântanos para abrigar suas vilas e cidades, o ser humano foi capaz de colonizar todo o planeta, dos desertos gelados do Ártico às mais densas florestas tropicais. Infelizmente, fez isso à custa da extinção de outras espécies e de graves perturbações no equilíbrio desses ecossistemas.

Era, talvez, inevitável. A espécie humana, como disse Freud em O Mal-estar na Civilização, depende das próteses que cria para diminuir os riscos de sofrimento em função das fragilidades de seu corpo e para tentar fazer frente à inegável preponderância da natureza sobre suas vidas e destinos. Nessa jornada protética, muda a si mesma e o mundo.

Até o século XVIII, as perturbações no meio ambiente causadas pela ação humana resultaram, na maioria dos lugares, na instalação de novos equilíbrios, capazes de abrigar e até promover o crescimento da população. Por vezes, os impactos e as extinções locais foram devastadores, levando inclusive algumas civilizações ao colapso. No entanto, aquelas perturbações ainda não tinham como interferir no equilíbrio global e nas condições gerais da vida no planeta.

No entanto, a capacidade de destruição do ambiente aumentou de forma exponencial com a Revolução Industrial e, a partir do século XIX, esses impactos foram assumindo proporções continentais. Por exemplo, a poluição do ar pelo uso de combustíveis fósseis em larga escala tornou difíceis as condições de vida e saúde nas regiões industrializadas para humanos e todas as demais espécies.

Lamentavelmente, a responsabilidade que deveria acompanhar esses impactos na forma de mitigação e restauração não se deu na mesma medida. Cada país agia da forma que mais lhe convinha, dentro de suas fronteiras e nas suas colônias, exportando um modelo predatório e descuidado de apropriação dos bens naturais.

A Sociedade das Nações e a Organização das Nações Unidas (ONU), que a sucedeu depois da Segunda Guerra Mundial, ofereceram, pela primeira vez, um espaço multilateral amplo no qual os conflitos gerados pela ação humana poderiam ser discutidos, ainda que não tivessem poder de impor soluções em favor do bem comum.

Os advogados que prepararam a Carta das Nações Unidas identificaram o problema gerado pela lacuna de um espaço de governança global para solucionar problemas globais. Eles propuseram um artigo para que os países pudessem delegar parte de sua soberania nacional à ONU visando à resolução de problemas mundiais. O artigo foi vetado por todos os Estados-nações, sem exceção.

Diversas agências da ONU, entre as quais especialmente o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e a Organização Mundial do Comércio (OMC), lidam com a questão ambiental, mas nem sempre o fazem priorizando o imperativo ético de proteger o meio ambiente. Aí também os conflitos de interesse entre países, em especial pelo direito de ter economias mais potentes e a suposta defesa do livre comércio, têm arrastado, por décadas, os acordos internacionais por caminhos e manobras protelatórias.

A consciência de que estamos destruindo a capacidade de suporte da vida no planeta tem aumentado bem lentamente. Mas, a partir da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano de 1972, nenhum dos promotores dos vetores de degradação pode, a menos que seja manifestamente negacionista, dizer que ignora os impactos de suas atividades.

Em Estocolmo, onde a Conferência aconteceu, o Brasil liderou o grupo dos 77 países em favor do desenvolvimento econômico sem restrições ambientais: “Desenvolver primeiro e pagar os custos da poluição mais tarde”, declarou o chefe da delegação brasileira, o ministro do Interior do governo militar, José Costa Cavalcanti, a despeito dos alertas do Clube de Roma publicados no livro Os limites do crescimento[1] e do relatório Uma Terra Somente – a Preservação de um Pequeno Planeta, de Bárbara Ward e René Dubos[2], da ONU, que reunia as contribuições de 70 cientistas de renome mundial.

Nessa época, vivíamos um dos períodos mais duros da ditadura militar. O governo abria a Transamazônica com os slogans “integrar para não entregar” e “uma terra sem homens para homens sem terras”, provocando a primeira grande onda de desmatamento da Floresta Amazônica. Ao mesmo tempo, tentava responder à pressão internacional com a criação da Secretaria Especial de Meio Ambiente (SEMA), em 1973, colocando à sua frente o ecologista e humanista Paulo Nogueira Neto.

Assim, de Estocolmo 72 nascem, na arena internacional, o PNUMA e, no Brasil, a SEMA. Também se coloca, ainda que timidamente, a necessidade de integrar as questões ambientais e sociais, o que significa o início da discussão em nível mundial sobre desenvolvimento sustentável. A Conferência, mesmo não assinando nenhum acordo, plantou as sementes da Convenção-Quadro sobre a Mudança do Clima e da Convenção sobre o Direito do Mar, além de discutir as consequências da degradação do meio ambiente, como, por exemplo, desastres naturais, modificações das paisagens, contaminações por metais pesados e utilização de pesticidas na agricultura.

No fundo, a expressão “Nós, os povos das Nações Unidas...” muitas vezes significa “Nós, os governos das Nações aqui representadas e mais ou menos Unidas...”.

Com o nosso olhar do século XXI, a posição do governo brasileiro de 1972 se apresenta como reacionária, provinciana e estreita, colocando seus interesses na Bacia do Prata (e a construção de Itaipu) acima do interesse da vida no planeta. É forçoso constatar que os outros países não se portavam ou portam de forma mais consequente. A tônica das discussões nas Nações Unidas é sempre uma mistura de interesses nacionais com necessidade de evitar desastres maiores. No fundo, a expressão “Nós, os povos das Nações Unidas...”, que inicia a sua Carta, muitas vezes significa “Nós, os governos das Nações aqui representadas e mais ou menos Unidas...”.

O cidadão comum pode até ter começado a mudar seu comportamento e a exigir maior responsabilidade de seus governos locais e nacional, em especial nos países mais ricos e com maior nível de educação. No entanto, no nível institucional e internacional, não há organismos com real poder para tomar as medidas necessárias e evitar os desastres previstos pelos cientistas de todo o mundo, como os convocados pela própria ONU no Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática (IPCC).

O ritmo dos acordos internacionais é lento, cheio de idas e vindas e, na maioria das vezes, tais acordos são referentes a catástrofes já acontecidas ou que se tornaram inevitáveis pela timidez das metas pactuadas. Ainda não existe, em muitos governos, um compromisso político efetivo, reflexo da consciência e das exigências coletivas, da necessidade de uma cooperação constante e de uma ação multilateral resolutiva para enfrentar problemas mundiais.

O Brasil tem uma posição privilegiada no mundo. Para além do peso de nossa economia e das riquezas do país, nossos diplomatas têm capacidade internacionalmente reconhecida para mediar e atuar em negociações de natureza inédita e complexa. Mesmo quando as instruções vindas dos altos escalões governamentais são claramente equivocadas, como, por exemplo, a eliminação à menção de gênero dos acordos internacionais em negociação, eles têm sido capazes de encontrar formas de isolar os absurdos do conjunto das pautas importantes e zelar pelos interesses do Estado brasileiro. Ademais, conseguem muitas vezes transformar a capacidade técnica do país em propostas inovadoras que se convertem em opções internacionais, como na questão do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo, incluído no Protocolo de Quioto como mecanismo de flexibilização para auxiliar o processo de redução de emissões de gases de efeito estufa.

Contribuindo para a posição privilegiada do Brasil estão pelo menos três dos principais componentes – problemas ou soluções – da questão ambiental mundial, todos com íntima ligação com a mudança climática: a biodiversidade, com grande ênfase naquela presente nas florestas; as próprias florestas e seu papel de estoque de carbono e nos ciclos de nutrientes e água; e a água em si.

A elaboração da Convenção da Diversidade Biológica, da Convenção de Combate à Desertificação, da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas e do Acordo sobre Florestas contou com a participação ativa da diplomacia e da sociedade civil brasileira. Os quatro acordos formam um quadro legal no qual os chamados (na linguagem empresarial) “ativos naturais” do Brasil podem ser valorizados internacionalmente, seja financeiramente, seja como elemento de negociação (tecnológica ou outra).

Quando os governos brasileiros negligenciam a proteção e o uso sustentável das florestas, colocam o país em posição vulnerável, podendo sofrer retaliações em acordos comerciais, como vemos no caso do acordo União Europeia-Mercosul, sem contar com boicotes de consumidores mundo afora, estimulados por campanhas de proteção ambiental ou social. O caso dos boicotes ao governo da África do Sul no tempo do Apartheid nos mostrou como a escolha de consumo do cidadão comum pode ser uma poderosa alavanca para a mudança de atitude de governos.

As empresas e o capital financeiro têm uma real dimensão deste poder e buscam evitar se tornarem alvos desse tipo de campanhas. Assim, por exemplo, a Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais (ABIOVE) e a Associação Nacional dos Exportadores de Cereais (ANEC), frequentemente associadas ao desmatamento da Amazônia, se sentaram à mesa de negociação e, em 2006, assinaram uma moratória prevendo a não comercialização e o não financiamento da soja produzida em áreas desmatadas na Amazônia Legal. Algumas empresas ligadas à pecuária fizeram movimentos similares.

A bem da verdade, a queda no desmatamento da Amazônia, na ordem de 83% durante quase uma década, só ocorreu enquanto a fiscalização se manteve séria, no âmbito do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento. Ainda assim, é importante ressaltar que esse tipo de atitude das empresas é um forte indicador do quanto as políticas públicas, bem estruturadas e implementadas sem contemporizar com a devastação, podem influenciar os agentes econômicos. Graças a essas políticas públicas, aqueles cujos ganhos econômicos são garantidos de forma ilegal se veem constrangidos a sinalizar, mesmo que inicialmente apenas no discurso, algumas mudanças de postura, que acabarão se desdobrando em ações concretas se houver incentivo e acompanhamento do Estado e nenhuma complacência com o ilícito.

O desmatamento da Amazônia está ligado ao clima do planeta em mais de um aspecto: liberação de gases de efeito estufa, modificação na circulação de água na atmosfera, desertificação, perda massiva de solo e de biodiversidade e conhecimentos tradicionais associados aos recursos naturais. É um desastre mundial e não há qualquer justificativa para dar continuidade a essa corrida rumo ao abismo, além do lucro de poucos em prejuízo de todos.

Esse contrassenso só aumenta quando sabemos que já temos um valioso acervo de conhecimentos e de algumas experiências altamente promissoras sobre o uso sustentável do ambiente. São conhecimentos milenares dos Povos Indígenas, conhecimentos desenvolvidos pela sociodiversidade que habita nosso país (Povos e Comunidades Tradicionais) e graças à diversidade de culturas que para cá migraram nos dois últimos séculos. O conhecimento também vem de nossas instituições de pesquisa em áreas estratégicas e de pesquisadores competentes. A grande capacidade inventiva do brasileiro é um elemento que se soma a esses conhecimentos e experiências.

O diálogo entre saberes tradicionais e acadêmicos ainda é incipiente, fruto do esforço de indivíduos mais do que de políticas públicas ou políticas científicas institucionais, apesar do reconhecimento de que sua associação e traz à luz possibilidades inovadoras e fora do comum, em especial nas áreas de filosofia e de uso e conservação de recursos naturais e de ecossistemas, ambas essenciais para a sobrevivência da vida no planeta.

O conhecimento, lamenta-se, é historicamente pouco valorizado no Brasil. São reconhecidos os brasileiros que vencem “lá fora”, sendo o caso icônico de Santos Dumont uma regra e não a exceção. Raros foram os governos que investiram em Ciência e Tecnologia e, na maioria dos casos, é com dinheiro internacional que os grupos de pesquisa se sustentam. Aqui também se expressa a relação de amor e ódio ao interesse internacional pelas “riquezas” do Brasil.

Poderíamos ser um ator coletivo de grande importância na mudança de paradigma necessária à sobrevivência da espécie humana no planeta. Temos os elementos necessários para fazê-lo e as comunidades, as lideranças e as organizações da sociedade brasileira já se tornaram referência mundial desde os tempos de Chico Mendes e da Aliança dos Povos da Floresta. Também, no âmbito do Estado, conquistamos um importante protagonismo quando, de 2004 a 2012, combatemos significativamente o desmatamento da Amazônia, reduzindo a perda de biodiversidade e evitando lançar na atmosfera mais de 5 bilhões de toneladas de CO2, a maior contribuição já dada até hoje por um país desde o Protocolo de Quioto.

Por que esse protagonismo não se efetivou? Por que esse movimento de transformação não se completou? E, agora, o que devemos – ou podemos – fazer para mudar essa situação? Entender nossas dificuldades em assumir um papel de liderança internacional na área socioambiental, com todas as vantagens comparativas que possuímos, não é uma equação de primeiro grau. Aliam-se aqui fatores históricos e escolhas políticas.

Historicamente, a elite política e financeira do país, que ainda hoje forma uma só voz, baseou seu enriquecimento na exploração do território e dos bens naturais e, com raras exceções, com poucas preocupações com a sustentabilidade de suas práticas. Inicialmente, as terras eram tomadas dos Povos Indígenas e doadas pela Coroa portuguesa para serem usadas de acordo com os interesses econômicos dos agraciados. Não entendendo o diferente, os europeus não foram capazes, à época, de perceber a sofisticação da gestão de ecossistemas florestais praticada pelos indígenas e, quando não os eliminavam, acreditavam estar fazendo-lhes um favor ao colonizá-los e assimilá-los a seus padrões religiosos e culturais.

A apropriação e a privatização de terras públicas (ou de povos autóctones) como forma de criar capital privado ainda é prática vigente, e o Brasil cunhou um termo próprio para ela: “grilagem”, muito corrente atualmente na Amazônia. A corrupção estrutural que legalizava o ilegal nasceu nos tempos da colônia e contamina hoje a sociedade em todos os seus escalões, individuais ou institucionais, atualizando-se na forma perversa do que o ex-delegado da Polícia Federal, Jorge Pontes, denominou de "corrupção normativa".

A "corrupção normativa" consiste em mudar as leis para deixá-las em conformidade com os crimes, em lugar de preservá-las e implementá-las para obrigar os criminosos a agirem em conformidade com elas. Exemplos de iniciativas dessa natureza são os recorrentes projetos de lei no Congresso Nacional que tentam a todo custo flexibilizar os regramentos ambientais e dificultar a demarcação das terras originariamente de domínio indígena.

O trabalho para usar e “desenvolver” as terras privatizadas veio, inicialmente, da mão  de obra dos escravizados e, em seguida, destas mesmas pessoas, agora “libertas”, mais tarde, de trabalhadores sem poder de negociação individual ou coletiva, fugidos de guerras e situações de fome. O sistema que produz riqueza também produz e mantém a pobreza.

O país se industrializou mantendo uma forte relação com os produtos naturais e a sua transformação – a agropecuária e a mineração ainda são a base, e sua transformação é o forte do nosso parque industrial, mesmo que as maiores fortunas do país tenham migrado para banqueiros, empreiteiras, empresas de saúde, de comunicação e de varejo.

Os que constituem 1% dos mais ricos do Brasil concentram 49,6% da sua riqueza, segundo o banco Crédit Suisse, e nosso índice de Gini está em 89 – o que nos tornou o 9º país mais desigual do mundo em 2020, segundo o IBGE. A desigualdade e um movimento de desindustrialização fizeram de nós um país cada vez mais cindido. Essa polarização se acentua com sua instrumentalização pelas elites políticas de parte da direita reacionária e de parte da esquerda tradicional e a aposta na desinformação como instrumento de dominação das pessoas.

O extrativismo bárbaro das riquezas naturais, o pior tipo de extrativismo, deixou e deixa atrás de si terra arrasada e o péssimo hábito de se fazer fortuna às custas da apropriação, seja dessas riquezas naturais, seja do trabalho árduo de outros. Os que se beneficiam desta situação são pouquíssimos, mas, ainda assim, dão as cartas das políticas públicas do país, diretamente ou por prepostos.

Um segundo fator que nos impede de assumir um papel de liderança mundial na arena internacional já foi abordado parcialmente acima: é um complexo de inferioridade que se manifesta em uma mescla de admiração por tudo o que vem de fora, sobretudo aquilo que reforça hábitos e práticas conservadoras endógenas, matizadas com um nacionalismo de fachada.

As terras brasileiras não podem ser vendidas a estrangeiros, mas basta que uma empresa tenha sede no Brasil para poder fazê-lo. Há indignação quando vemos pesquisadores de fora do Brasil publicando informações sobre a Amazônia, mas não há investimento para fixar e prover instrumentos de trabalho para os pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) ou do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG).

Nossos diplomatas brigam pela soberania nacional e os políticos de plantão ficam indignados porque querem nos obrigar a evitar a destruição da Floresta Amazônica, mas aplaudem abrir estradas sem viabilidade ambiental e cultural – grandes empreendimentos que afetam diretamente os povos indígenas e tradicionais – para que a soja chegue mais barata no Sudeste asiático, interesse principalmente da China.

A Gurgel não conseguiu manter uma linha de carros brasileiros, mas está tudo bem dar isenção de impostos para socorrer as multinacionais automotivas. As empresas da Zona Franca de Manaus são em sua grande maioria multinacionais, instaladas legalmente no Brasil, e receberam largos subsídios para se estabelecerem na região. Quando ONGs internacionais, que em última instância também são do setor privado, só que sem fins lucrativos, também funcionando legalmente no Brasil, apoiam as atividades produtivas de Povos Indígenas, Povos e Comunidades Tradicionais e agricultores familiares, são tratadas com xenofobia, acusadas de terem uma "agenda oculta", que prejudica os “interesses do país".

“Os nossos japoneses são melhores que os outros”[3] e admiramos as tradições orientais, mas temos de ouvir outro bordão para os indígenas que saem de seus territórios e usam celular: "deixaram de ser índios”.

Em torno desses absurdos, forma-se uma mentalidade enviesada, que se dissemina pela propaganda. Podemos continuar por páginas listando exemplos dos dois pesos e duas medidas usados para situações semelhantes ou parecidas neste nosso país cheio de tantas contradições, mas todos têm, em certa medida, origem na mentalidade de colonizados que herdamos e da qual temos tanta resistência em nos libertar, e que acabam por sabotar até mesmo as nossas melhores possibilidades. Precisaríamos de um projeto de país compartilhado pela nação multicultural e multifacetada que nos forma, capaz de superar estruturalmente, a partir de um novo pacto político, as desigualdades sociais que nos aviltam como povo e nos empobrecem como nação.

Infelizmente, sobretudo com o advento da reeleição, a maioria dos governos e dos grupos econômicos que os apoia e sustenta faz uma aliança perversa entre si com base na lógica do dinheiro pelo dinheiro e do poder pelo poder. Como sempre digo, governos e grupos econômicos fazem políticas de curto prazo para alongar seus prazos políticos. Desta forma também são mantidos os privilégios econômicos dos que apoiam (e se apoiam) no poder público.

Com tudo isso, o projeto de país acaba de certa forma sendo terceirizado, submetido aos interesses do capital financeiro, cujo objetivo é gerar mais capital no prazo mais curto possível, não importa como nem onde. A especulação e a visão das crises como “oportunidades" de negócios são evocadas como a “mão invisível do mercado” e casam-se com as políticas de governos que, mesmo legitimamente eleitos, não pensam para além dos seus mandatos e da ansiedade tóxica de renová-los.

O resultado soma a falta de projeto para a nação e para o continente e a proliferação dos investimentos mais rentáveis e imediatos; a falta de políticas públicas para as terras públicas e comunitárias e a privatização dessas terras e dos bens naturais que existem sobre e sob o solo; a falta de dinheiro para educação e investimentos em tecnologias estratégicas e para saneamento básico, enquanto sobra dinheiro para o marketing eleitoral.

Precisamos rever o debate sobre o Estado para além da eterna briga sobre seu tamanho e funções. É claro que o Estado não precisa fazer e definir tudo, mas também não se deve abrir mão do seu papel de mobilizar o melhor de si mesmo, do setor privado e da sociedade civil, com o fim de fazer o planejamento estratégico do país – pensado de forma participativa e revisto periodicamente – o que parcialmente os planos plurianuais já buscaram fazer timidamente. Mas é no âmbito de um Estado democrático que se podem definir planos de investimentos de longo prazo em educação e ciência, tecnologia e inovação, de modo a construir bases sólidas para a mudança do modelo de desenvolvimento predatório em curso, no Brasil e no mundo. Também é tarefa dessa Democracia – que deve incluir respeitosamente as comunidades menores e mais distantes – identificar os potenciais e os investimentos necessários para um desenvolvimento econômico estreitamente vinculado aos direitos sociais e à conservação ambiental.

Liderando dessa forma, pelo exemplo que daria ao mundo, o Brasil realizaria seu imenso potencial e cumpriria um papel determinante na mudança global, necessária para enfrentar a crise da civilização e o risco de extinção da vida no planeta, que é, afinal, a possibilidade aterrorizante que vislumbramos hoje.

Até agora buscamos um multilateralismo capaz de abrir negociações e acordos internacionais a um número maior e mais diversificado de atores, escapando da pauta de repetições da Guerra Fria entre superpotências. Mas o multilateralismo em que as sociedades só se expressam por meio de governos nacionais não é suficiente para acolher os novos sujeitos políticos que trazem contribuições diferentes, mais descoladas do jogo Estado-Mercado, do capital financeiro, dos sistemas políticos de cada país.

Um desses novos sujeitos é uma nascente cidadania mundial, que pode se organizar em diversas formas de ativismo. Pode ser autoral, porém com forte sentido de interesse coletivo – voluntário, e independente de direções institucionalizadas do antigo ativismo dirigido por sindicatos, grandes interesses econômicos e partidos políticos. Pode também se manter em estado de fragmentação, inibidora do sentido de interesse público. Pode ter muitos rostos, gostos, desejos, aspirações e papéis, oscilando entre o anonimato individual e a fragmentação política e o sentido de interesse público e a identidade com base em ideais identificatórios de cunho coletivo.

Esse cidadão do mundo precisa, a cada dia, conhecer mais a si mesmo, saber a força que tem. Para intervir na arena mundial, tem que se exercitar, muitas vezes em restritos territórios locais, e precisa de discernimento para transitar entre o que é “fake” e o que é real num mundo superinformado.

Lembremos do relato de que, em 1938, a dramatização radiofônica da obra de H.G. Wells A Guerra dos Mundos provocou pânico em milhares de pessoas que acreditavam estar sendo testemunhas de uma invasão alienígena. Isto se repete hoje em escala planetária, com a internet e com personagens que disseminam desinformação e meias-verdades – as mentiras mais completas – para manipular o recém-nascido cidadão mundial.

Será necessária a emergência de um novo ideal identificatório, mais focado na noção do ser do que na do ter. Serão necessários movimentos que juntem ética com política e economia com ecologia. Serão necessárias novas expressões de saber, em que se combinem os conhecimentos produzidos com os postulados denotativos da ciência moderna e com a arte de escutar e compreender, ver e perceber, própria do saber narrativo dos povos tradicionais.

Serão necessárias novas expressões de saber, em que se combinem os conhecimentos produzidos com os postulados denotativos da ciência moderna e com a arte de escutar e compreender, ver e perceber, própria do saber narrativo dos povos tradicionais.

Em meio a uma realidade objetiva tensa e destrutiva, estas são condições subjetivas para a emergência de um cidadão do mundo capaz de transformar o multilateralismo e fazê-lo agir em favor da vida no planeta, acima dos interesses imediatos de países ou de corporações.

É claro que o Estado pode ajudar, desde que o governo promova o planejamento estratégico do país com um modelo de desenvolvimento sustentabilista progressista, baseado num trinômio de: a) educação e conhecimento; b) uso sustentável e proteção do meio ambiente; e c) combate severo às desigualdades sociais e econômicas.

Também as empresas podem ajudar, com investimento em tecnologia e inovação, com respeitoso e remunerado uso dos conhecimentos tradicionais e científicos já existentes no país para o desenvolvimento de cadeias produtivas nas áreas associadas à sociobiodiversidade. Essas cadeias produtivas têm um grande apelo junto aos consumidores mais conscientes e, quando vinculadas a mais tecnologia e agregação de valor, podem abrir caminhos para formas mais justas e ambientalmente sustentáveis de produção e consumo.

Vários grupos têm se debruçado sobre o que está sendo chamado de bioeconomia, ou economia 4.0, e que poderá vir a se tornar “a” economia do amanhã. A bioeconomia inclui o que nós conhecemos na região Amazônica por agroextrativismo, mas busca acrescentar componentes de tecnologia e modernidade na agregação de valor aos produtos da biodiversidade.

Mas é necessário alertar: a bioeconomia só faz sentido se efetivamente for uma economia da sociobiodiversidade, isto é, se, além da biodiversidade, forem associados os conhecimentos tradicionais e os conhecimentos científicos e se produtores e produtoras locais estiverem inseridos em igualdade de condições com os outros atores sociais e econômicos participantes destas cadeias produtivas, tornando-as um espaço de libertação dos envolvidos e das envolvidas. Deve ser não apenas mais uma forma de exploração da natureza e dos seres humanos nos moldes que nos trouxeram até aqui, mas a base para um novo ciclo de prosperidade econômica, com justiça social, diversidade cultural, democracia e sustentabilidade.

Uma questão imediata se coloca para essa nova economia da natureza: como tratar as chamadas “externalidades”, que são os efeitos sociais, econômicos e ambientais causados indiretamente na produção de um bem ou serviço, não incluídos no seu custo final, isto é, que ficam para o conjunto da sociedade enquanto o lucro e os benefícios advindos da venda desses bens e serviços são privados.

As externalidades nascem na economia e podem ser negativas ou positivas para a sociedade. Por exemplo, uma tonelada de soja consome 2 mil metros cúbicos de água para ser produzida, ou seja, 2 mil toneladas de água! Assim, ao exportarmos soja, devemos estar conscientes de que tiramos dos rios e do subsolo brasileiro 2 mil vezes mais água do que o peso exportado. O valor desta água não está incluído no custo do produto e é absorvido pelo conjunto da sociedade. Este custo é alto e tende a subir, em especial nos anos de estiagem, cada vez mais frequentes.

Os estudiosos da economia ecológica têm nos alertado sobre a necessidade da inclusão das externalidades no custo da produção desde os anos 1990 e está mais do que na hora de lhes darmos ouvidos. A internalização deste valor nos custos das commodities (da água e do solo exportados, do desmatamento provocado etc.), valor este associado a programas internacionais de apoio à manutenção e ao uso sustentável de ecossistemas vitais ao planeta, como a Amazônia ou a zona costeira, deve ser considerado como medida de solidez para uma economia do século XXI, na medida em que água doce, solos férteis, florestas saudáveis e protegidas se tornarão cada vez mais escassos, mas absolutamente necessários à manutenção da vida no planeta.

Fazer esses movimentos em uma economia baseada na competição e no menor preço, que não leva em conta nosso futuro, como a que temos atualmente, seria um suicídio. Assim, estrategicamente, deveríamos fazer uso da capacidade da diplomacia e da sociedade civil brasileira para aproximar interesses semelhantes aos do Brasil em uma frente supranacional em defesa da vida no planeta.

Essa frente deveria atuar não somente junto às Nações Unidas, na busca de melhores tratados internacionais, mas também junto aos povos da Terra para pressionar empresas e governos a atuarem com a celeridade necessária em favor da mudança de paradigma do modelo de desenvolvimento destruidor e excludente que temos hoje, rumo a uma cidadania que se expresse em direitos e responsabilidades tanto no lugar onde estão nossos pés quanto no conjunto do planeta do qual dependemos para viver.

O Brasil reúne as condições objetivas para ser um ator central do câmbio que virá. A pergunta que fica é se teremos o suficiente compromisso, que evoca a coragem para sê-lo, ou se vamos sucumbir aos ajustes da perversa cama de Procusto do nosso atual sistema, que tenta ajustar tudo e todos às suas necessidades de manutenção e reprodução, sistema no qual e com o qual vivemos incomodados, porém acomodados, sem forças para agir e transformá-lo.

Também não sabemos se a mudança do modelo de desenvolvimento se fará pela dor – como consequência da mudança climática que já está sobre nós – ou pelo amor ao nosso planetinha azul, que rodopia pelo universo, e a todas as espécies que nele vivem. Só sabemos que a mudança é inevitável. Nossa capacidade de atuar como indivíduos, comunidades, coletivos e como nação é que definirá o preço em vidas humanas e em extinção de espécies que pagaremos. 

Notas

[1] Ver Meadows et al. 1972. A obra foi revisitada pelos autores 30 anos depois, em Meadows et al. 2004. (N.E.)

[2] A revista Parcerias Estratégicas reproduziu um trecho desse documento (2000), publicado originalmente no Brasil na forma de livro em 1973. (N.E.)

[3] Campanha da “Semp Toshiba”.

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Recebido: 14 de dezembro de 2021

Aceito para publicação: 18 de janeiro de 2022

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