É crescente a relevância econômica e geopolítica dos oceanos, em razão da corrida por minérios estratégicos e hidrocarbonetos, e da bioprospecção. O artigo propõe iniciativas aptas a reforçar os interesses do Brasil com relação aos recursos do mar: o fortalecimento da proposta de extensão de sua plataforma continental; a adoção de marco legal para o aproveitamento econômico sustentável da Amazônia Azul; e o retorno do país à Área.
Este texto propõe e discute um conjunto de iniciativas passíveis de robustecer os interesses do Brasil com relação aos recursos do mar. São três pilares: o primeiro, o fortalecimento da proposta de extensão da plataforma continental do país, ora em exame pela Comissão de Limites da Plataforma Continental das Nações Unidas (ONU) – trata-se de consolidar as fronteiras marítimas do Brasil, que ainda restam por ser fixadas; o segundo componente contemplado é a adoção de um marco normativo apto a permitir o aproveitamento econômico sustentável dos recursos da Amazônia Azul; o terceiro, o possível retorno do país à Área, como a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar batizou o enorme espaço marítimo que se encontra além da jurisdição de Estados costeiros.
Não se trata, está claro, de definir os contornos de política pública. Ela já existe e é sólida: trata-se do Plano Setorial para os Recursos do Mar, cuja execução está a cargo da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar e de sua Secretaria. O trabalho contempla, isto sim, iniciativas aptas a fortalecer aspectos centrais dessa política pública.
As iniciativas discutidas fundam-se na lógica de que corresponde ao melhor interesse nacional assegurar a possibilidade, na maior extensão possível, de ter acesso aos recursos vivos e não vivos do mar, e de proceder a seu aproveitamento econômico. Fazê-lo permite preservar as opções do país – inclusive a opção de abster-se de atividades econômicas, se for essa a decisão mais sólida – com relação à exploração e ao aproveitamento de recursos do oceano, sejam aqueles da Margem Equatorial, da Elevação do Rio Grande, da Área ou de outros espaços marinhos. A discussão das iniciativas contempladas permite identificar, como se verá, importante espaço de envolvimento e apoio do setor privado aos interesses do país com relação aos recursos do mar.
O contexto e a motivação para a reflexão que o trabalho empreende é a crescente relevância econômica e geopolítica dos espaços marinhos. Embora já expressiva, essa relevância é ainda pálida diante de suas perspectivas. Isto se deve à biodiversidade marinha, à busca por alimentos e ao desenvolvimento tecnológico que torna economicamente viáveis atividades cujo custo era até recentemente proibitivo, como a energia eólica offshore e aquela das marés. Deve-se também, e principalmente, aos minerais da transição energética, dos quais há reservas abundantes no fundo do mar.
O empenho das nações para assegurar acesso a minerais críticos ocorre sobretudo na Área. Os recursos da Área são administrados pela Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos – International Seabed Authority (ISA) – e não poderão ser objeto de aproveitamento econômico até que a ISA tenha regulamentado a atividade de mineração na Área.
Não é certo, na verdade, que haverá um dia deep-sea mining (DSM) em larga escala. O Global Critical Minerals Outlook 2024 da Agência Internacional de Energia (IEA 2024) não considera minérios do fundo do mar. Estudos específicos da International Renewable Energy Agency tampouco. A preocupação com os impactos ambientais da atividade é tema nevrálgico, e há importante mobilização pela suspensão indefinida do seu início. Ao aspecto ambiental soma-se importante discussão sobre a efetiva necessidade de DSM no contexto da transição para a economia de baixo carbono, à luz de particularidades da evolução tecnológica (EJF 2024).
Dito isso, os trabalhos de elaboração do Código de Mineração na Área avançam no âmbito da ISA, e países relevantes posicionam-se para a largada através da celebração com a ISA de contratos de pesquisa mineral (Khadka 2024). A China lidera, seguida por Rússia e Índia. Os Estados Unidos da América não aderiram até hoje à Convenção sobre o Direito do Mar e por isso estão excluídos desse grupo.
Os mesmos oceanos que poderão vir a fornecer parte importante dos minérios estratégicos empregados na transição para a economia de baixo carbono produzem também os hidrocarbonetos, cujo ocaso essa transição possivelmente permitirá, ou forçará. Se a relevância potencial dos recursos minerais do mar é momentosa, é também enorme, e concreta, a relevância geopolítica e econômica dos hidrocarbonetos localizados no fundo do mar. As tensões no Mar do Sul da China, rico em reservas de petróleo e gás natural, ilustram essa importância de forma eloquente. Há também exemplos especialmente relevantes em nossa região: a projeção marítima da área controvertida de Essequibo e a produção crescente de petróleo no espaço marítimo adjacente às Ilhas Malvinas.
Para o Brasil, a relevância dos recursos do mar dispensaria comentários. Mais de 95% da produção nacional de petróleo e gás natural ocorre em mar. (...) Ainda opaca, mas não por isso desimportante, é a relevância para o Brasil dos minérios estratégicos do mar. (...) Antes de proceder ao exame das iniciativas voltadas a robustecer os interesses do Brasil com relação aos recursos do mar, este artigo relembra elementos da Convenção sobre o Direito do Mar que são indispensáveis para a compreensão da discussão empreendida.
Para o Brasil, a relevância dos recursos do mar dispensaria comentários. Mais de 95% da produção nacional de petróleo e gás natural ocorre em mar. Ao final de 2023, pela primeira vez, foram arrematados em leilão da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) blocos situados além do limite de 200 milhas da zona econômica exclusiva, na plataforma continental estendida do país. A eventual produção na Margem Equatorial viria renovar a importância dos recursos do mar para o país.
Ainda opaca, mas não por isso desimportante, é a relevância para o Brasil dos minérios estratégicos do mar. A proposta do Brasil de extensão de sua plataforma continental, ora sob exame pela Comissão de Limites da Plataforma Continental da ONU, incorpora à Amazônia Azul a Elevação do Rio Grande, área distante 1.200 km da costa sul-sudeste, rica, ao que indicam estudos já realizados, em minérios estratégicos.
Antes de proceder ao exame das iniciativas voltadas a robustecer os interesses do Brasil com relação aos recursos do mar, este artigo relembra elementos da Convenção sobre o Direito do Mar que são indispensáveis para a compreensão da discussão empreendida.
ESPAÇOS MARÍTIMOS E SUA INDEFINIÇÃO
A titularidade sobre os recursos do mar segue a divisão dos espaços marítimos em que eles se encontram, e esses direitos são regulados pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, comumente chamada de Constituição dos Oceanos em razão de sua abrangência e ambição. A Convenção foi celebrada na Jamaica em dezembro de 1982 e entrou em vigor apenas doze anos depois, ao final de 1994.
A titularidade sobre os recursos do mar segue a divisão dos espaços marítimos em que eles se encontram, e esses direitos são regulados pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar…
A Convenção procede a uma grande divisão entre os espaços sob jurisdição exclusiva dos Estados costeiros, de um lado, e, de outro, o vasto espaço marinho residual – o Alto Mar e, sob o Alto Mar, a Área, que constitui patrimônio comum da humanidade.
O espaço sob jurisdição dos países litorâneos compreende faixas sucessivas: o mar territorial, que integra o território do Estado costeiro, e a zona contígua, uma espécie de buffer, em que o país litorâneo pode tomar medidas de fiscalização em matéria aduaneira, de imigração ou sanitários; a zona econômica exclusiva, faixa de 200 milhas náuticas de largura; e, sob ela, a plataforma continental.
Figura 1 - Divisão dos espaços marítimos. Fonte: https://www.state.gov/about-ecs/.
O limite exterior da plataforma continental corresponderá ao ponto mais distante entre duzentas milhas náuticas contadas da costa e o bordo exterior da margem continental do Estado costeiro, que é o prolongamento submerso de sua massa terrestre. Esse bordo exterior não é um marco objetivo; sua fixação resultará de interação técnica com a Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC), que a Convenção criou, e envolve o exame de dados geológicos e geomorfológicos.
Por definição, os contornos definitivos da Área somente surgirão quando houver sido concluído o processo de definição dos limites exteriores da plataforma continental de todos os Estados costeiros. Quase que certamente, esse momento nunca chegará. Seria de se esperar que três décadas de vigência da Convenção sobre o Direito do Mar houvessem sido suficientes para sedimentar as fronteiras marítimas, mas não é o caso. Razões importantes concorrem para que seja assim.
O regulamento da Comissão prevê que a CLPC não examinará submissões que lhe forem submetidas quando houver controvérsias entre Estados costeiros relativas à área em questão. Isso é o que ocorre quase invariavelmente. Além disso, o Estado costeiro tem a prerrogativa de apresentar proposta revista, ou nova proposta, sempre que discordar das recomendações da Comissão, o que também ocorre habitualmente.
A Comissão tem estrutura incompatível com suas atribuições, e as discussões voltadas a reforçá-la pouco avançam. São vinte e um membros não remunerados, que trabalham em subcomissões de sete integrantes, cujos encontros ocorrem em Nova York em três longas sessões a cada ano. As propostas submetidas à Comissão assumem maior complexidade à medida que evolui a tecnologia disponível para levantamentos geológicos e geomorfológicos. É enorme, como resultado, o estoque de submissões pendentes de análise e decisão, e estima-se que se passarão décadas até que a Comissão conclua o exame das propostas que já lhe foram submetidas. Rápido exame do website da Comissão, e em particular da longa lista de submissions awaiting consideration, permite identificar a perspectiva de grande demora.
A razão mais importante para que perdurem numerosas fronteiras por definir, no entanto, é o fato de que a Comissão de Limites não tem competência para delimitar fronteiras marítimas entre Estados costeiros vizinhos ou confrontantes. Nos termos da Convenção, isso deve ser feito por acordo entre os países interessados, ou mediante procedimento de solução de controvérsias.
Embora expressivo, o número de limites fronteiriços decididos, desde a entrada em vigor da Convenção, por tratados ou por mecanismos de solução de controvérsias é relativamente baixo diante das fronteiras que permanecem por ser definidas em todas as regiões do globo – são exemplos notórios aquelas no Ártico e no Mar do Sul da China. Conforme comenta Andreas Østhagen em livro publicado em 2022:
Com 180 fronteiras no mar ainda não acordadas, é possível dizer que as disputas em relação a fronteiras marítimas permanecerão nas agendas nacionais e internacionais nas próximas décadas. Algumas não vão evoluir ou serão pouco significativas, enquanto outras podem irromper devido a mudanças climáticas, econômicas e/ou políticas (tradução livre).
BRASIL E RECURSOS DO MAR
O acréscimo de relevância dos recursos vivos e não vivos dos oceanos ocorre, portanto, em contexto de marcada indefinição de importantes e numerosas fronteiras marítimas do globo. Não surpreende que, nessas circunstâncias, nações relevantes ponham em marcha estratégias cuidadosas no tocante a seus interesses no mar.
O acréscimo de relevância dos recursos vivos e não vivos dos oceanos ocorre, portanto, em contexto de marcada indefinição de importantes e numerosas fronteiras marítimas do globo. Não surpreende que, nessas circunstâncias, nações relevantes ponham em marcha estratégias cuidadosas no tocante a seus interesses no mar.
Em janeiro de 2024, o Parlamento da Noruega aprovou lei que autoriza o aproveitamento econômico de recursos minerais na plataforma continental estendida do país – ou seja, além do limite das 200 milhas náuticas de sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE). É uma decisão pioneira, adotada por país que se pretende especialmente ativo em matéria conservacionista. A nota à imprensa do governo da Noruega (2024) esmera-se para prevenir críticas:
O mundo necessita de minerais na transição para uma sociedade de baixa emissão. Hoje, a extração de minerais é amplamente concentrada em alguns poucos países ou entre algumas poucas empresas, com graus variados de riscos políticos, sociais e ambientais. O governo irá explorar as oportunidades que a Noruega tem de contribuir para satisfazer a grande demanda global de minerais, de maneira responsável (tradução livre).
É especialmente interessante, e relevante, o caso dos Estados Unidos da América. Em dezembro de 2023, o governo dos EUA anunciou a conclusão, após duas décadas de trabalho, do delineamento de sua plataforma continental estendida, que incorpora à jurisdição exclusiva do país uma área correspondente ao dobro do território da Califórnia.
Os EUA não acederam à Convenção sobre o Direito do Mar, como dito. O Senado dos EUA mantém bloqueada a adesão a despeito do empenho de sucessivas administrações, mas o país empenha-se em seguir as normas da Convenção. A divulgação pelo Departamento de Estado (EUA 2023) da conclusão do processo de delineamento da plataforma continental do país comenta:
Desde sua adoção em 1982, os Estados Unidos têm apoiado fortemente a Convenção, e tem sido política do país agir de forma consistente com suas disposições, no tocante aos usos tradicionais do oceano. A Convenção reflete em geral o direito internacional consuetudinário vinculante para todos os países, incluindo as disposições do Artigo 76, que se refere ao delineamento dos limites exteriores da plataforma continental. Nesse particular, os Estados Unidos delinearam os limites exteriores de sua plataforma continental estendida de acordo com o Artigo 76 (tradução livre).
Na esteira do anúncio, China e Rússia externam contundente objeção aos supostos direitos dos EUA no tocante a recursos do mar (Kenza, Gabert-Doyon & Sevastopulo 2024):
As reivindicações dos EUA sobre uma faixa de leito marinho rica em minerais estão sendo contestadas por China e Rússia, porque Washington não ratificou um tratado que regula o acesso a recursos em águas internacionais. Diplomatas chineses e russos disseram, na semana passada, que uma reivindicação dos Estados Unidos sobre uma área estendida de leito marinho era inaceitável, devido à sua posição com relação à Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar em 1982 (tradução livre).
Em março de 2024, foi renovada a mobilização pela adesão dos EUA à Convenção. Carta enviada ao Senado por líderes políticos e militares ilustra com clareza a relevância da discussão:
“Nós já perdemos duas das nossas quatro áreas de mineração de leito marinho profundo designadas como ‘EUA’, cada uma contendo um trilhão de dólares em valor de minerais estratégicos como cobre, níquel, cobalto, manganês e terras raras, minerais críticos tanto para o domínio da segurança dos Estados Unidos, como para a transição a um século XXI mais verde”, dizia a carta endereçada aos senadores Ben Cardin (D., Md.) e Jim Risch (R., Idaho). A inação contínua em relação ao Tratado significa uma provável perda rápida das nossas duas áreas restantes designadas como ‘EUA’. Além do mais, a China avançou para obter cinco áreas, a Federação Russa três, e elas também estão se encaminhando para obter o monopólio do refino desses minerais estratégicos (...)” (tradução livre).
O caso da China não é menos interessante. A estratégia do país inclui as Nine Dash Lines na importantíssima região do Mar do Sul da China, com as quais o país objeta as pretensões de outros Estados costeiros que seriam, ou são, amparadas pela Convenção sobre o Direito do Mar. O país recusou-se a participar em arbitragem iniciada pelas Filipinas. Quando a Malásia apresentou à Comissão de Limites, em 2019, proposta de extensão de sua plataforma continental, a China enviou comunicação formal ao Secretariado-Geral da ONU (2019), que afirmava:
A submissão da Malásia violou gravemente a soberania, os direitos soberanos e a jurisdição da China no Mar do Sul da China; (...) O governo chinês solicita seriamente à Comissão que não considere a submissão da Malásia (tradução livre).
Chama a atenção que, a despeito dessa política firme, o país se mostra interessado, pelo que dão conta notícias especializadas, na eventual adoção de arranjos para a exploração conjunta de recursos naturais com outros países cujo litoral alcança o mar do Sul da China, como Vietnã e a própria Filipinas, no que poderia ser percebido como reconhecimento de direitos da parte desses países vizinhos (Qi 2019).
Também o Brasil tem uma estratégia para seus interesses no mar. Ela está refletida, como já dito, no Plano Setorial para os Recursos do Mar. O que se discute a seguir são três iniciativas aptas a robustecer aspectos centrais desse Plano.
Consolidar a fronteira marítima
O Brasil submeteu à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) proposta de extensão de sua plataforma continental em 2004 – foi o segundo país a fazê-lo, após a Rússia. Desde então, o governo brasileiro apresentou propostas reformuladas, nas quais segmentou em três regiões o litoral do país para efeito de análise da Comissão.
A ampliação pretendida pelo Brasil corresponde a 2,1 milhões de km2 e está indicada em azul escuro no mapa abaixo.
Figura 2 - Proposta de extensão da plataforma continental brasileira, em azul escuro no mapa. Fonte: LEPLAC.
A proposta brasileira pode suscitar objeções ao longo do largo período que decorrerá até que a CLPC conclua sua análise, porque a expansão pretendida importará, por definição, diminuição da Área. E, em particular, porque resultará na incorporação da Elevação do Rio Grande (ERG) – província de 480 mil km2 que se situa a mais de 1.200 km da costa, provavelmente dotada de minérios críticos para a transição energética (Damasio 2023; Constantino 2024). Trata-se da grande formação que se vê em azul escuro no mapa acima, defronte à costa sul-sudeste.
A ERG foi no passado objeto de contrato de pesquisa mineral celebrado pelo Serviço Geológico Brasileiro com a ISA, o que refletia o entendimento (do próprio governo brasileiro) de que se situava na Área. Em 2018 o Brasil aditou sua submissão à Comissão de Limites para incorporá-la à sua plataforma continental estendida e, em momento posterior, denunciou o contrato com a ISA.
Em 2021, quando o Brasil não havia ainda formalizado a denúncia do contrato celebrado com a entidade, o próprio Secretário-Geral da ISA discutiu a ERG em artigo sobre temas relacionados à Área (Lodge 2021):
Na época em que o contrato foi celebrado, foi reconhecido que a parte da Elevação do Rio Grande abrangida pelo contrato fazia parte da Área. De fato, o Brasil tinha encaminhado uma submissão à CLCS, em 2004, de acordo com o Artigo 76(8) da UNCLOS, que não incluía a Elevação do Rio Grande. A CLCS adotou suas recomendações sobre a submissão brasileira em 4 de abril de 2007. No entanto, após receber as recomendações da CLCS, ao invés de estabelecer os limites exteriores da plataforma continental com base naquelas recomendações, o Brasil optou por fazer não apenas uma, mas três submissões parciais reformuladas a respeito de diferentes regiões da plataforma continental. A terceira dessas submissões parciais, apresentada em 7 de dezembro de 2018, abrange as margens oriental e meridional brasileiras e se sobrepõe à parte da Elevação do Rio Grande coberta pelo contrato de exploração entre a ISA e a CPRM. (...) Há também a questão de como a CLCS reagiria se um terceiro Estado contestasse a pretensão do Brasil de titularidade sobre a plataforma continental nessa área (tradução livre).
É insólito que o Secretário-Geral da entidade criada pela Convenção sobre o Direito do Mar para administrar a Área permita-se comentários públicos que poderiam encorajar terceiros a apresentar objeções à proposta brasileira. O fato é que o texto bem ilustra a perspectiva de que possam surgir questionamentos com relação à pretensão brasileira. Discussão de natureza semelhante é objeto de outro artigo publicado por Alexandre Pereira da Silva em 2021:
Como qualquer outra extensão da plataforma continental além do limite das 200 milhas náuticas, a incorporação pelo Brasil da ERG representa uma invasão da Área, o que reduz o papel da ISA. No caso concreto, isto representa uma perda territorial de mais de um milhão de quilômetros quadrados. Consequentemente, os recursos minerais da ERG, incluindo seus benefícios financeiros futuros, não seriam mais revertidos para a ISA ou para o seu beneficiário final – a humanidade (tradução livre).
É nesse contexto que convém contemplar medidas de reforço à proposta brasileira. Empenho nesse sentido pode ter proveito relevante, porque a atuação da Comissão de Limites da Plataforma Continental não consiste em simples conferência do atendimento, ou não, de requisitos objetivos, de aferição simples. A complexidade envolvida no trabalho da Comissão é bem comentada na introdução de manual publicado pela Division for Ocean Affairs and the Law of the Sea do Office of the Law of the Sea da ONU (United Nations 2007):
O regime legal estabelecido [pela Convenção] para o delineamento dos limites exteriores da plataforma continental estendida é muito complexo. Ele combina conceitos jurídicos e também científicos, o que torna sua implementação desafiadora tanto para profissionais do direito sem formação científica, quanto para cientistas marinhos sem treinamento jurídico (tradução livre).
O êxito na incorporação da ERG dependerá da comprovação de que a área em questão constitui prolongamento submerso do território terrestre do país. Se essa comprovação não é desprovida de dificuldades na generalidade dos casos, ela é acentuada no caso de , como a ERG, situada a mais de 1.200 km da costa.
Está além do escopo deste trabalho discussão técnica e exaustiva dos aspectos que precisarão ser atendidos e dos entraves a superar, mas faz sentido comentar, a título ilustrativo, um aspecto dos requisitos aplicáveis. O limite exterior da plataforma continental estará sempre sujeito a uma distância máxima: ele não excederá 350 milhas náuticas das linhas de base (distance constraint) ou 100 milhas náuticas da isóbata de 2.500 metros (depth constraint). Dispositivo da Convenção (Nações Unidas 1982) que trata de elevações submarinas prevê o seguinte:
No caso das cristas submarinas, o limite exterior da plataforma continental não deve exceder 350 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial. O presente parágrafo não se aplica a elevações submarinas que sejam componentes naturais da margem continental, tais como os seus planaltos, elevações continentais, topes, bancos e esporões.
A redação desse importante dispositivo não é das mais simples. O que ele diz é que, no caso de cristas submarinas (submarine ridges), se aplicará necessariamente o limite das 350 milhas contadas da costa (o distance constraint); mas não no caso de elevações submarinas (submarine elevations): elas poderão estar além do limite de 350 milhas náuticas das linhas de base desde que sejam componentes naturais da margem continental. É essa a situação em que o Brasil pretende enquadrar a ERG, que se situa além das 350 milhas náuticas contadas da costa do país.
O que, no entanto, são elevações submarinas que sejam componentes naturais da margem continental? O que as diferencia de cristas submarinas, que estarão sujeitas necessariamente ao limite de 350 milhas? Não há resposta clara para essas perguntas tão relevantes. Nos termos de importante publicação que se reveste de especial autoridade (Cook & Carleton 2000):
A prática dos Estados costeiros, as reações de outros Estados, incluindo protestos diplomáticos e, em última instância, a Comissão, é que terão de avaliar a validade de tais alegações. (...) Seria então uma questão de julgamento (em grande parte subjetivo) por parte do Estado costeiro e, em última instância, da Comissão, se uma determinada formação assemelhada a uma elevação é de fato uma crista, um esporão ou algum outro tipo de elevação (tradução livre).
Os documentos que informam as propostas brasileiras revelam trabalho cuidadoso e de qualidade, o que não surpreende – o Plano de Levantamento da Plataforma Continental Brasileira (LEPLAC) foi concebido, e é cuidadosamente conduzido, há décadas. O pleito brasileiro, ainda assim, comporta reforço, que pode, ou deveria, dizer respeito a aspectos técnicos, jurídicos e estratégicos. Entre outros:
(i) revisão dos casos em que a Comissão de Limites examinou pretensões de Estado costeiro envolvendo elevações submarinas como a ERG (Rússia/Ártico, Austrália, Nova Zelândia). Esse exercício permitirá identificar possíveis aspectos considerados relevantes pela Comissão que porventura comportem ainda complementação, no tocante à proposta brasileira;
(ii) revisão de propostas envolvendo elevações submarinas ainda não examinadas pela Comissão (Namíbia/Walvis Ridge, entre outras);
(iii) revisão de decisões relevantes de instâncias de resolução de conflitos (Corte Internacional de Justiça, Tribunal Internacional para o Direito do Mar, tribunais arbitrais ad hoc);
(iv) revisão de tratados bilaterais e multilaterais relevantes.
Marco legal para o aproveitamento econômico
A segunda iniciativa aqui contemplada diz respeito à adoção de marco jurídico-institucional sólido para o aproveitamento econômico sustentável dos recursos do mar. A ausência de normas e, ali onde elas existem, a dissonância entre regras e autoridades competentes – ambos fenômenos que ocorrem com relação a atividades especialmente relevantes no espaço marinho do país – constituem entrave, de resto intuitivo, ao desenvolvimento ordenado e sustentável da economia do mar.
As metas do Planejamento Espacial Marinho do Brasil, ora em elaboração sob a coordenação da Comissão Interministerial para os Recursos do Mar, incluem aquela de propiciar segurança jurídica às atividades desenvolvidas no ambiente marinho e aos investidores nacionais e internacionais. O marco jurídico a ser adotado deveria incluir um componente ambiental robusto, consentâneo com a noção de Amazônia Azul, e um regime jurídico-econômico geral que supra importantes lacunas hoje existentes.
Em 2023, foi celebrado, após décadas de negociação, o High Seas Treaty, formalmente denominado “Acordo no âmbito da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar a respeito da conservação e utilização sustentável da diversidade biológica marinha em áreas fora da jurisdição nacional”. O novo Tratado prevê a criação de áreas protegidas e institui mecanismos de financiamento para viabilizá-las.
O Tratado excetua de seu escopo, no entanto, atividades já reguladas por entidades existentes no âmbito da Convenção sobre o Direito do Mar, como é o caso da ISA. Em razão disso, a atividade de mineração na Área, se/quando iniciada, não será alcançada pelas novas regras. Além disso, as normas do Tratado não se estendem, como seu nome indica, aos espaços marítimos sob jurisdição nacional.
Dito isso, é razoável supor que as regras do High Seas Treaty e práticas conservacionistas consolidadas assumirão importância efetiva como referência para monitorar as iniciativas de Estados costeiros com relação ao aproveitamento econômico de seu espaço marítimo. O Brasil obviamente não será exceção nesse particular.
O componente ambiental do marco legal-institucional para o aproveitamento econômico do espaço marinho brasileiro deveria idealmente espelhar, em alguma medida, o High Seas Treaty. Há projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional que institui a Política Nacional para a Conservação e o Uso Sustentável do Bioma Marinho Brasileiro e pode vir a constituir esse componente.
São intuitivas a necessidade e a relevância de um marco normativo que constitua regime econômico sólido para as atividades empreendidas no espaço em questão. Há no Brasil lacunas importantes nesse particular – as indústrias do petróleo e da mineração ilustram o caso de forma eloquente.
Em dezembro de 2023, foram pela primeira vez arrematados, em leilão conduzido pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis, blocos integrantes de um setor situado na plataforma continental estendida do país. A minuta do contrato de concessão aplicável (Brasil 2024, 66) previa que:
A produção em reservatórios situados total ou parcialmente em áreas da plataforma continental situadas além das 200 (duzentas) milhas náuticas a partir das linhas de base, estará sujeita ao pagamento da contribuição à Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, nos termos da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (...).
O Concessionário será responsável pelo ônus econômico do pagamento dos valores devidos à Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos, nos termos da Legislação Aplicável.
A legislação aplicável a que se refere a minuta ainda não existe. Essa obrigação de pagamento – incidente quando ocorre aproveitamento de recursos da plataforma continental estendida de Estados costeiros – foi instituída pela Convenção sobre o Direito do Mar (Artigo 82) e ainda não foi regulamentada pela própria ISA. Os pagamentos ou contribuições:
devem ser efetuados por intermédio da Autoridade [International Seabed Authority], que os distribuirá entre os Estados Partes na presente Convenção na base de critérios de repartição equitativa, tendo em vista os interesses e necessidades dos Estados em desenvolvimento, particularmente entre eles, os menos desenvolvidos e os sem litoral.
Poucos Estados costeiros se propuseram até aqui a regulamentar o tema em seu direito doméstico. O Brasil seria pioneiro, nesse particular. As perspectivas de produção de petróleo na Margem Equatorial – questão ainda pendente de definição – acentuam a importância da discussão.
A despeito da enorme potencialidade da mineração no mar, o regime jurídico-econômico para atividades de mineração no Brasil é inapropriado para amparar com solidez eventuais investimentos relevantes da atividade, se/quando desenvolvida no mar. A Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM) constitui a principal exação devida por empresas mineradoras. O produto da arrecadação da CFEM será destinado aos municípios (a maior parte) e aos Estados onde ocorrer a produção. Inexiste tratamento legal relativo à repartição de receitas quando a mineração ocorrer no mar.
Brasil na Área
O terceiro elemento de possível reforço da estratégia do Brasil no tocante a seus interesses no mar diz respeito à presença do país na Área. O Plano Setorial para os Recursos do Mar contempla a pesquisa mineral de sulfetos polimetálicos da Cordilheira Meso-Atlântica:
(...) [permanece na] Ação PROAREA o projeto de pesquisas de sulfetos polimetálicos na Cordilheira Meso-oceânica do Atlântico Sul e Equatorial (Procordilheira), em execução desde 2012. (...) A continuidade desse programa em águas profundas representa a retomada das atividades na cordilheira mesoatlântica, com o objetivo de obter novo contrato com a ISBA, agora para exploração de sulfetos polimetálicos.
Faria sentido neste momento, com efeito, o Brasil empenhar-se em integrar o grupo de nações que se posicionam para o eventual início de deep-sea mining no espaço marítimo internacional. Trata-se de grupo restrito e heterogêneo que inclui um consórcio – a Interoceanmetal Joint Organization – formado em momento anterior à queda do Muro de Berlim e integrado atualmente por países como Cuba, Bulgária, Rússia e também Polônia, República Checa e Eslovênia. A China lidera em número de contratos com a ISA, seguida de Rússia e Índia (ISA 2024).
Quase todos os contratos em vigor com a ISA têm como parte entes que integram o setor público do respectivo país. Entre as exceções está Nauru, que patrocina contrato celebrado pela empresa The Metals Company – cujo website, especialmente rico e ilustrativo, informa que a empresa “está desenvolvendo o maior recurso mundial de metais exigidos para veículos elétricos e energia de baixo carbono” . No caso do Brasil, poderia ser concebido um arranjo pelo qual a pesquisa geológica seja conduzida por agente do setor privado, que teria direito ao eventual aproveitamento econômico dos recursos em questão.
BRASIL E OS RECURSOS DO MAR – E O SETOR PRIVADO
A Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar é, no que diz respeito ao ordenamento dos espaços marinhos, uma obra incompleta – e possivelmente sempre o será. O balanço dos trinta anos iniciais de sua vigência permite afirmá-lo já com recuo suficiente.
A titularidade sobre os espaços marinhos e o acesso a seus recursos, que a Convenção se propôs a organizar, continuará a depender, em larga medida, da competência com que se mobilizarem as nações quanto a seus interesses nos oceanos. Trata-se da afirmação de uma obviedade, não por isso desimportante.
O Tratado de Tordesilhas, determinante para a história de nosso país, resultou da pronta reação de Dom João II à edição, pelo Papa Alexandre VI (o aragonês Rodrigo Borgia), da Bula Inter Coetera, que beneficiava a Espanha (a Bula foi provocada pelos reis Isabela e Fernando logo que Cristóvão Colombo regressou, em 1493, do território recém-descoberto, que viria mais tarde a ser batizado de América). A doutrina do mare liberum veio contestar a partilha de mares e territórios entre Portugal e Espanha; ela foi produto intelectual do notável Hugo Grotius, contratado pela Companhia das Índias Orientais para justificar a tomada pelos Países Baixos, em 1603, no Estreito de Singapura, de um riquíssimo navio português, o Santa Catarina. A noção de plataforma continental, que a Convenção sobre o Direito do Mar adotou, foi criação da Proclamação Truman ao final da Segunda Grande Guerra, ditada pela clareza do governo dos EUA quanto à necessidade de acesso aos recursos do mar, notadamente o petróleo, para alimentar sua forte indústria.
Em cada um desses momentos nevrálgicos da história, estiveram presentes interesses econômicos importantes, o que naturalmente não surpreende. Essa digressão se presta a apontar que o setor privado é capaz de mobilizar competências que, com frequência, se provam determinantes para a consecução exitosa de políticas públicas. Decididamente, os interesses do Brasil no mar constituem terreno promissor para que essa capacidade seja exercida com vigor, em proveito do país.
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Recebido: 27 de julho de 2024
Aceito para publicação: xx de MÊS de 2024
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