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Seção Especial

Os efeitos do conflito israelo-palestino sobre a política brasileira

Posicionamento sobre o conflito tornou-se marcador ideológico

Resumo

Com a eclosão do conflito em Gaza após os atentados de 7 de outubro de 2023, o mundo se dividiu no apoio a Israel e à Palestina. No Brasil, o posicionamento sobre o conflito tornou-se marcador ideológico fundamental, impactando percepções e estratégias de atores políticos e sociais. Este artigo analisa as dimensões político-partidária e de opinião pública da polarização em torno do conflito israelo-palestino, chamando atenção para seus efeitos, tanto na política externa quanto na escalada de antissemitismo e islamofobia no país.

Palavras-chave:

polarização; opinião pública; Israel; Palestina; Gaza.
Imagem: Shutterstock.

No dia 25 de fevereiro de 2024, milhares de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro inundaram a Avenida Paulista. Muitos deles portavam a bandeira israelense e bradavam palavras de ordem em defesa de Israel. À primeira vista, as imagens da manifestação não eram tão diferentes daquelas observadas ao longo dos últimos anos, marcadas pela fusão meio nacionalista, meio religiosa do verde-amarelo da camiseta da seleção brasileira com o azul-e-branco da Estrela de David. A novidade estava no teor dos discursos dos políticos e lideranças religiosas que participaram do evento. Do alto do carro de som, defendiam Israel abertamente e insuflavam a plateia contra o presidente Lula – que, segundo o pastor Silas Malafaia, “fez o Brasil ser vergonha no mundo inteiro”.

A referência era bastante próxima. O evento pró-Bolsonaro ocorreu uma semana após Lula comparar as ações militares de Israel em Gaza ao nazismo. Em entrevista coletiva em Adis Abeba, onde participava da cúpula da União Africana, o mandatário brasileiro reiterou posicionamentos anteriores sobre o massacre em Gaza, chamando-o de “genocídio”, mas foi além: “O que está acontecendo na Faixa Gaza não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu, quando Hitler resolveu matar os judeus” (Granchi 2024). A declaração imediatamente repercutiu nos meios de imprensa brasileiros e internacionais, despertando um debate sobre em que medida a comparação feita por Lula teria sido pertinente – e alguns deles pontuando certo teor antissemita. Domesticamente, enquanto membros da bancada bolsonarista pediam o impeachment do presidente por sua fala (Poder 360 2024), políticos e ativistas de esquerda demandavam do governo o rompimento das relações com Israel (Brasil de Fato 2024).

Àquela altura, a polarização em torno do tema já estava colocada: Lula e a esquerda seriam porta-vozes da causa palestina, ao passo que Bolsonaro e a direita falariam em nome do povo de Israel. Em nenhuma das narrativas dominantes cabia a postura equilibrada da diplomacia brasileira – e tradicionalmente defendida pelos principais partidos do país – pela negociação entre israelenses e palestinos em busca da solução de dois Estados. Para muitos políticos e militantes de esquerda, apoiadores de Lula e do atual governo, qualquer tentativa de contemporizar com Israel seria uma autorização tácita de práticas colonialistas, de apartheid ou de genocídio. Sob o olhar da direita (que vem sendo engolida, gradativamente, pela extrema-direita), defender os palestinos seria condescender com o terrorismo, o totalitarismo e o fundamentalismo.

Em nenhuma das narrativas dominantes cabia a postura equilibrada da diplomacia brasileira (...). Para muitos políticos e militantes de esquerda, apoiadores de Lula e do atual governo, qualquer tentativa de contemporizar com Israel seria uma autorização tácita de práticas colonialistas, de apartheid ou de genocídio. Sob o olhar da direita (que vem sendo engolida, gradativamente, pela extrema-direita), defender os palestinos seria condescender com o terrorismo, o totalitarismo e o fundamentalismo.

Quanto mais calcificadas estiverem as posições políticas na sociedade, para usar o termo consagrado por Nunes e Traumann (2023), mais as visões sobre Israel e Palestina farão parte indissociável da identidade política dos cidadãos. Essa é a premissa que guia a elaboração deste artigo: a defesa de uma das partes do conflito tornou-se um marcador ideológico fundamental, que sinaliza o pertencimento individual a um dos dois campos políticos que organizam a política nacional – o petismo e o bolsonarismo. Quem quer que tenha simpatizado com o povo judeu após os atentados de 7 de outubro foi empurrado, simbolicamente, para a direita. Quem quer que tenha se solidarizado com o povo palestino diante do massacre em curso em Gaza foi jogado para a esquerda. Com isso, abandonam-se nuances necessárias e impede-se qualquer exercício de empatia com o outro lado, em um momento de preocupante crescimento do preconceito motivado por raça e religião – como o antissemitismo e a islamofobia.

Ainda que essa polarização em torno do conflito israelo-palestino faça parte de uma tendência maior, em franco crescimento no Ocidente (e visível, por exemplo, nas manifestações pró-Palestina nos campi universitários, sobretudo nos Estados Unidos), o Brasil reúne um conjunto de fatores sociais e políticos que tornam o país particularmente propício a esse tipo de calcificação. Destaca-se, em primeiro lugar, a crescente atenção à política externa no debate público ao longo dos últimos 20 anos, em um processo que coincide com a primeira passagem de Lula pela presidência e que, desde o princípio, já dava sinais de polarização em torno de temas internacionais (Cason & Power 2009).

Em segundo lugar, deve-se considerar que o crescente envolvimento brasileiro com a geopolítica do Oriente Médio produziu crises diplomáticas com Israel que também foram capturadas por narrativas domésticas, com destaque para o episódio do “anão diplomático” entre os governos de Netanyahu e Dilma Rousseff, em 2014, e a negativa brasileira diante da indicação de um representante dos colonos ilegais na Cisjordânia, Dani Dayan, para a embaixada em Brasília, em 2015. Em terceiro, a aliança de Benjamin Netanyahu com lideranças e parlamentares evangélicos, como Silas Malafaia e Eduardo Cunha, e mais tarde com o governo de Jair Bolsonaro, contribuiu para acirrar ainda mais o processo de polarização política (Casarões & Feldberg 2021). A combinação do maior ataque ao povo judeu desde o Holocausto, no 7 de outubro, e da maior agressão militar contra o povo palestino desde então, colocou o governo Lula no epicentro dessa disputa política de múltiplas camadas – e com profundas implicações sobre a própria vida política nacional.

Este texto está organizado da seguinte forma: na próxima seção, faz-se um apanhado da política externa do governo Lula em relação ao conflito israelo-palestino desde os atentados do Hamas. Em seguida, apresentam-se as dinâmicas político-partidárias que intensificaram a polarização doméstica do conflito, com destaque para iniciativas e posicionamentos parlamentares dentro dos campos bolsonarista e petista. Na terceira parte, analisam-se a cobertura midiática sobre o tema, os números de opinião pública sobre o conflito e a política externa, bem como suas implicações para o agravamento dos discursos de ódio na sociedade brasileira. Por fim, a conclusão apontará tendências e perspectivas futuras – de interesse acadêmico e de preocupação pública.  

AS AÇÕES DO GOVERNO LULA

Os ataques perpetrados pelo grupo Hamas em 7 de outubro de 2023 vitimaram aproximadamente 1.200 israelenses, em sua maioria civis, tornando-se um dos atentados terroristas mais mortais da história – e o mais violento contra judeus desde o Holocausto. Aproximadamente 100 países lançaram declarações oficiais sobre o tema. Entre os países ocidentais, prevaleceram o repúdio ao ato terrorista, a condenação ao Hamas e a defesa do direito israelense de se defender. Na América Latina e na Ásia, o tom dominante foi de crítica à escalada de violência, variando o grau de responsabilização – se ao Hamas, a Israel, ou a ambos. Algumas nações árabes e islâmicas, por sua vez, mostraram-se simpáticas ao que chamaram “Operação Inundação Al-Aqsa”, como parte da resistência palestina contra a ocupação sionista (Waldo et al. 2023).

As respostas imediatas

Consistente com seu posicionamento histórico, o Itamaraty lançou nota condenatória poucas horas depois dos atentados, por meio da qual se solidarizou com o povo de Israel, exortou as partes a evitar a escalada da situação e lamentou a deterioração da situação securitária entre Israel e Palestina (Ministério das Relações Exteriores 2023a). Nas redes sociais, o presidente Lula expressou condolências aos familiares das vítimas e reafirmou seu repúdio ao terrorismo “em qualquer de suas formas” (@LulaOficial, 7 de outbro de 2023). Ao longo dos dias seguintes, o Brasil centrou esforços em duas frentes. A primeira delas envolveu a repatriação dos brasileiros que se encontravam na zona de conflito, por meio da chamada “Operação Voltando em Paz”. Em duas semanas, aeronaves da Força Aérea Brasileira levaram mais de 1.400 nacionais de volta ao Brasil. Ao mesmo tempo, o governo negociava a retirada de um grupo de 30 brasileiros e familiares da Faixa de Gaza, que dependiam de uma autorização israelense para saírem pela fronteira de Rafah (Laboissière 2023).

A segunda frente de atuação brasileira deu-se no âmbito do Conselho de Segurança das Nações Unidas, presidido pelo Brasil no mês de outubro de 2023. Além de contatos bilaterais com autoridades israelenses, palestinas e de nações árabes e muçulmanas, no dia 11, Lula realizou um apelo público, em seus canais oficiais, em defesa das crianças palestinas e israelenses, em que pediu um cessar-fogo entre Israel e Hamas, bem como uma “intervenção humanitária internacional” (Presidência da República 2023). Dois dias mais tarde, o chanceler Mauro Vieira viajou a Nova York para participar de uma reunião do Conselho. Reforçando o pedido do presidente, exortou os demais países-membros a trabalhar pela libertação dos reféns e por uma ação humanitária multilateral para minimizar o sofrimento de civis. Na prática, a posição brasileira envolvia o estabelecimento de uma “pausa humanitária” e de “corredores humanitários” na Faixa de Gaza (Ministério das Relações Exteriores 2023b). Esses termos serviram de base para o projeto de resolução apresentado pelo Brasil dez dias após os ataques em território israelense. 

Apesar de contar com o apoio de 12 outros países, a proposta brasileira foi vetada pelos Estados Unidos. O governo brasileiro não escondeu sua frustração com o resultado da negociação. Sérgio Danese, representante do Brasil junto às Nações Unidas, declarou que “a paralisia do Conselho diante de uma catástrofe humanitária não é de interesse da comunidade internacional” (Silva 2023). Ao realizar um balanço da presidência brasileira, o Itamaraty destacou a relevância das ações diplomáticas e ponderou que o uso recorrente do veto expõe a necessidade de uma reforma para tornar o Conselho mais representativo, legítimo e eficaz (Ministério das Relações Exteriores 2023c).

De fato, o Conselho de Segurança somente logrou aprovar uma resolução sobre o tema em 16 de novembro, momento em que já se contabilizavam 11 mil palestinos mortos e 1,5 milhão de deslocados internos em Gaza. A delegação brasileira aderiu ao documento, mas frisou que um posicionamento do Conselho chegava tardiamente (Ministério das Relações Exteriores 2023d). Nesse meio tempo, o Brasil apoiou documento adotado pela Assembleia Geral das Nações Unidas, na 10ª Sessão Especial de Emergência, reconvocada por países árabes e islâmicos. Inspirada na proposta brasileira derrotada no Conselho sobre uma trégua humanitária, a resolução ES-10/21 foi aprovada por 121 votos favoráveis, 14 contrários e 44 abstenções.

A mudança de tom contra Israel

O agravamento da situação humanitária palestina, somado aos obstáculos encontrados pelo Brasil tanto na negociação de uma solução multilateral quanto na liberação dos brasileiros e familiares em Gaza, levou Lula a aumentar o tom de suas declarações críticas a Israel. Em 25 de outubro, em discurso de lançamento do Conselho da Federação, o presidente rotulou as ações israelenses de genocidas: “Não é uma guerra, é um genocídio que já matou quase duas mil crianças que não têm nada a ver com essa guerra, são vítimas dessa guerra”. Em 14 de novembro, na Base Aérea de Brasília, ao recepcionar os repatriados vindos da Faixa de Gaza, Lula foi além, comparando a operação militar israelense a terrorismo: “Se o Hamas cometeu um ato de terrorismo e fez o que fez, o Estado de Israel também está cometendo vários atos de terrorismo ao não levar em conta que as crianças não estão em guerra; ao não levar em conta que as mulheres não estão em guerra” (Teixeira 2023).

As posições brasileiras também convergiam com as de outros países emergentes, que passaram a condenar abertamente as ações israelenses. Foi o caso do presidente turco, Recep Erdogan, que não somente chamou a ofensiva israelense de genocídio, mas também descreveu o Hamas como “um movimento patriótico de libertação que luta para proteger a terra e o povo palestino” (Zaman 2023), antes de convocar seu embaixador de Tel Aviv, ainda no início de novembro de 2023. Processo semelhante ocorreu com a África do Sul, que retirou seus diplomatas de Israel e, na sequência, entrou com petições contra as ações militares em Gaza junto ao Tribunal Penal Internacional (em 17 de novembro) e à Corte Internacional de Justiça (em 29 de dezembro), caracterizando-as como crimes de guerra e genocídio (Tolsi 2024).

Como forma de preparar o terreno para mudanças mais significativas na orientação da diplomacia brasileira, Lula e Mauro Vieira passaram a se articular cuidadosamente. No mês de dezembro, o presidente brasileiro assumiu o papel de porta-voz das posições brasileiras para o exterior, ao passo que o chanceler se incumbiu da defesa da diplomacia brasileira para o público interno. Em entrevista à rede Al Jazeera, Lula teceu duras críticas públicas ao premier Benjamin Netanyahu (“um extremista insensível às questões humanitárias enfrentadas pelo povo palestino”) e ao presidente Joe Biden (“alguém tão influente, mas que não teve sensibilidade de mandar parar a guerra”), além de reforçar sua leitura da ação israelense como genocídio e defender uma solução multilateral para o conflito (Al Jazeera 2023).

Por sua vez, falando à Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, o chanceler Mauro Vieira reiterou os posicionamentos tradicionais e a contribuição histórica da diplomacia brasileira em busca da solução de dois Estados para o conflito israelo-palestino (Ministério das Relações Exteriores 2023e). Ao mesmo tempo, o Brasil seguia defendendo medidas humanitárias para aliviar a aguda crise em Gaza, conseguindo aprovar, em parceria com outros países, uma resolução na Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre as condições sanitárias nos territórios palestinos ocupados. 

O fim da equidistância histórica

Na entrada do ano de 2024, a política externa brasileira já estava posicionada de maneira mais resoluta contra as ações israelenses. Em 10 de janeiro, poucas horas depois de um encontro entre Lula e o embaixador da Palestina em Brasília, Ibrahim Alzeben, o Itamaraty lançou comunicado expressando o apoio brasileiro à iniciativa sul-africana de acionar a Corte Internacional de Justiça contra Israel, nos termos da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Ministério das Relações Exteriores 2024a). Entretanto, o divisor de águas nas relações entre Brasil e Israel viria um mês mais tarde, quando o presidente traçou o paralelo entre a crise humanitária em Gaza e o Holocausto. A reação do governo israelense foi imediata: Netanyahu condenou os comentários de Lula, chamando-os de “vergonhosos e graves”, e o chanceler Israel Katz convocou o embaixador brasileiro em Tel Aviv, Frederico Meyer, para uma reprimenda pública (e inédita) no Museu Yad Vashem. “A comparação entre a guerra justa de Israel contra o Hamas e as atrocidades de Hitler e dos nazistas é uma desgraça e um grave ataque antissemita”, disse o israelense – anunciando, na sequência, que Lula seria considerado persona non grata em Israel até que se retratasse pelos comentários (Jerusalem Post 2024).

O status de Lula perante Israel – também inédito entre chefes de Estado (TASS 2024) – não mudou o direcionamento da política exterior brasileira. Lula não se retratou; ao contrário, reiterou suas posições em postagem no X, diante da escalada de críticas pelas autoridades israelenses: “Não troco a minha dignidade pela falsidade” (@LulaOficial, 23 de fevereiro de 2024). A crise diplomática aberta por Lula foi deliberadamente insuflada por Benjamin Netanyahu e seu chanceler, sobretudo nas redes sociais, com o objetivo de provocar uma polêmica doméstica que contivesse futuras ações do governo brasileiro (Dieguez 2024).

A estratégia israelense não funcionou. Entre fevereiro e meados de junho de 2024, quando este artigo foi finalizado, o Itamaraty havia publicado diversos comunicados condenatórios a Israel (144, 191, 216, 239, 244), incluindo alguns em apoio a medidas cautelares adotadas pela Corte Internacional de Justiça (140 e 213). Do ponto de vista propositivo, o Brasil voltou a trabalhar pelo reconhecimento internacional da soberania palestina. Em 15 de março, o ministro Vieira realizou um périplo por Jordânia, Palestina, Líbano e Arábia Saudita, cujo principal objetivo era tratar do “conflito e [d]a aguda crise humanitária que atingem a Faixa de Gaza e sua população, bem como as perspectivas para estabelecimento de um cessar-fogo e eventual retomada de negociações voltadas a alcançar paz duradoura para o Oriente Médio” (Ministério das Relações Exteriores 2024b). No mês seguinte, em discurso no Conselho de Segurança, o chanceler foi assertivo: “Chegou a hora de a comunidade internacional finalmente receber o Estado da Palestina plenamente soberano e independente como um novo membro das Nações Unidas” (Ministério das Relações Exteriores 2024c). Em maio, o Brasil saudou os anúncios oficiais de Espanha, Irlanda e Noruega em reconhecimento formal do Estado palestino (Ministério das Relações Exteriores 2024d). 

POLARIZAÇÃO POLÍTICO-PARTIDÁRIA

É possível compreender a evolução das posições brasileiras sobre o conflito israelo-palestino, após o 7 de outubro, a partir de dois níveis distintos de polarização: a político-partidária e a da opinião pública. No plano político-partidário, o que se viu foi um movimento em dois tempos. O primeiro deles envolveu a tentativa da oposição em empurrar o governo (e o presidente Lula) para o campo anti-Israel e pró-Hamas, independentemente do que a diplomacia estivesse efetivamente fazendo. A premissa simples é que, se o “cidadão de bem” ama e apoia Israel, qualquer um que critique o país está automaticamente no campo oposto – e simpatiza com ditaduras (como o Irã) ou terroristas (como o Hamas). Em um segundo momento, o Partido dos Trabalhadores e aliados buscaram qualificar a crítica a Israel, expondo a violência em curso em Gaza, mas buscando dissociar sociedade/povo de governo. O objeto de condenação do governo seria Netanyahu e seu gabinete, frequentemente associados à extrema-direita e a Jair Bolsonaro, e o objetivo do posicionamento brasileiro seria contribuir para a solução de dois Estados.

O ataque da oposição

Imediatamente após os atentados contra Israel, a estratégia da oposição foi constranger ao máximo o governo. A narrativa oposicionista envolvia os seguintes elementos: (1) associar Lula e o PT ao Hamas, sob os argumentos de que a organização palestina parabenizou o presidente pela vitória nas eleições e de que as notas oficiais do governo sobre o 7 de outubro não mencionavam o Hamas; (2) questionar qualquer representante que equiparasse a resposta militar de Israel aos ataques do Hamas, como foi o caso das convocações protocoladas ao assessor internacional Celso Amorim e ao chanceler Mauro Vieira; (3) acusar determinados membros do governo de antissemitismo após comentários depreciativos contra Israel ou israelenses, com destaque para Gleide Andrade, tesoureira do PT; Sayid Tenório, então assessor parlamentar do deputado Márcio Jerry (PCdoB-MA); e Hélio Doyle, então presidente da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) – os dois últimos tendo sido demitidos de seus cargos.

O governo, por sua vez, adotou uma postura defensiva no seu enfrentamento à oposição parlamentar. A estratégia foi bastante errática no início, buscando (1) minimizar a relevância do tema para o debate público, reduzindo sua discussão a uma “armadilha da extrema-direita” (@AndreJanonesAdv, 11 de outubro de 2023); (2) enfatizar o protagonismo brasileiro na negociação de um plano de intervenção humanitária junto ao Conselho de Segurança (@Pimenta13Br, 12 de outubro de 2023); (3) concentrar a comunicação na bem-sucedida iniciativa do governo de repatriação dos brasileiros em zona de conflito, com destaque ao fato de que “nenhum outro presidente do mundo mandou o próprio avião presidencial para salvar o seu povo da guerra em Israel” (@AndreJanonesAdv, 15 de outubro de 2023); (4) esclarecer as falas de Lula sobre genocídio não como uma crítica unilateral ao governo israelense, mas como um posicionamento equilibrado de repúdio à violência de ambos os lados (@gleisi, 14 de novembro de 2023).

O primeiro mês do conflito concentrou, naturalmente, as principais manifestações de políticos governistas e de oposição. Nesse período, ficou claro que o bolsonarismo dominou a discussão, construindo uma associação entre Lula, esquerda, Hamas e terrorismo, segundo estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV ECMI 2023a). Ao mesmo tempo, aproveitando o engajamento das postagens pró-Israel, oposicionistas seguiram personificando a narrativa, reforçando os vínculos entre Bolsonaro e Israel e contrastando-os com a suposta relação de Lula com o movimento palestino. Aproveitaram, inclusive, para avançar uma pauta paralela – a de que o 8 de janeiro não poderia ser considerado terrorismo, à luz do que fizera o Hamas contra civis israelenses (@apropriajulia, 17 de outubro de 2023).

É verdade que o PT tentou imprimir certa nuance aos posicionamentos do partido e do governo: em resolução aprovada pelo Diretório Nacional, em 16 de outubro, o PT reiterou sua luta pela soberania do povo palestino e suas relações institucionais com a Autoridade Palestina, bem como defendeu os esforços da diplomacia brasileira pela solução de dois Estados. Nas redes, contudo, os bolsonaristas exploraram um único ponto do documento: “condenamos os assassinatos e sequestro de civis, cometidos tanto pelo Hamas quanto pelo Estado de Israel, que realizam, neste exato momento, um genocídio contra a população de Gaza, por meio de um conjunto de crimes de guerra” (Partido dos Trabalhadores 2023). O mero fato de se terem comparado os atentados terroristas (sem assim chamá-los) com a resposta militar israelense (qualificada como genocídio) foi o suficiente para reforçar a ideia de seletividade pró-Hamas do governo Lula. Oposicionistas também aproveitaram para capitalizar em cima da revolta pública de alguns judeus sionistas, eleitores de Lula em 2022, como o jornalista Caio Blinder, que disse nunca mais votar no PT (@caioblinder, 16 de outubro de 20/10/23) – apontando, assim, para o enfraquecimento da “frente ampla” estabelecida nas eleições.

O PT retoma o controle da narrativa

Em 8 de novembro, um encontro público entre Jair Bolsonaro e o embaixador de Israel em Brasília, Daniel Zonshine, proporcionou uma oportunidade para que o governo Lula passasse a controlar a narrativa. O ex-presidente participou de uma reunião organizada por parlamentares aliados, na Câmara dos Deputados, em que o israelense exibiu imagens dos ataques terroristas do Hamas. Gleisi Hoffmann imediatamente veio a público condenar o episódio, acusando o embaixador de “intromete[r]-se indevidamente na política interna de nosso país” e colocar em risco “a segurança e a vida de cidadãos brasileiros mantidos sob cerco e ameaça no massacre militar na região da Faixa de Gaza” (@gleisi, 9 de novembro de 2023). No dia seguinte, em entrevista à CNN Brasil, Bolsonaro afirmou que intercedeu pela liberação dos brasileiros em Gaza junto a Yossi Shelley, ex-embaixador de Israel em Brasília e assessor do premier Netanyahu (Magalhães 2023). Apesar de a informação jamais ter sido confirmada pelas autoridades israelenses, a frase “Obrigado, Bolsonaro” tornou-se um dos assuntos mais comentados na rede X nos dias seguintes, especialmente após a confirmação do retorno dos brasileiros, devidamente impulsionada por parlamentares da extrema-direita (Dall’Agnol 2023; Steil 2023).

A crescente polarização sobre o tema nos ajuda a compreender a decisão de Lula de receber os brasileiros e familiares palestinos vindos de Gaza. Nas redes bolsonaristas, chegou a circular vídeo falso sugerindo que Bolsonaro teria se encontrado com os repatriados antes mesmo do presidente (Reuters 2023). O tom adotado por Lula na recepção, em que chamava os atos israelenses de terrorismo, pode ser lido como uma tentativa de, a um só tempo, aproximar-se das demandas da militância de esquerda – abraçando, portanto, a dicotomia nutrida pela oposição; e antagonizar o governo de Benjamin Netanyahu – por meio do qual também atingiria Bolsonaro (FGV ECMI 2023b). A fala do presidente, deliberadamente polêmica, também acabou por trazê-lo novamente para os holofotes. Nos dias seguintes, grandes veículos nacionais e internacionais reportaram os comentários de Lula e muitas vezes abriram espaço para debates sobre a precisão conceitual da comparação (UOL 2023). Nas redes, a oposição ficou em silêncio.

Nos meses seguintes, parlamentares bolsonaristas não foram capazes de mobilizar grandes argumentos contra a política externa do governo. De ofensivas no início, as postagens passaram a reativas. Carla Zambelli e Bia Kicis encabeçaram, na Câmara, uma carta de pedido de desculpas a Netanyahu após entrevista de Lula à rede Al Jazeera. Na semana posterior, Zambelli liderou um grupo de congressistas em viagem a Israel, onde entregaram a mesma carta ao líder do governo israelense no parlamento, Moshe Saada (@Zambelli2210, 20 de dezembro de 2023). As críticas ao apoio de Lula à iniciativa sul-africana junto à Corte Internacional de Justiça limitaram-se a argumentos e declarações indignadas do governo israelense, mas nenhuma dirigida especificamente ao Brasil.  

Bolsonarismo volta à ofensiva

Tudo mudou a partir do dia 18 de fevereiro, quando Lula, em coletiva de imprensa em Adis Abeba, disse que o único precedente histórico às ações de Israel em Gaza havia sido a decisão de Hitler de matar os judeus. A primeira reação veio de Benjamin Netanyahu, que publicou o seguinte em suas redes sociais: “As palavras do presidente do Brasil são vergonhosas e graves. Ele banaliza o Holocausto e tenta prejudicar o povo judeu e o direito de Israel de se defender. Comparar Israel ao Holocausto nazista e a Hitler é cruzar uma linha vermelha” (@netanyahu, 18 de fevereiro de 2024). Naquele mesmo dia, o premier fez um discurso indignado, dizendo que Lula desonrava a memória de milhões de judeus assassinados pelos nazistas “como o mais virulento antissemita” (@BolsonaroSP, 18 de fevereiro de 2024).

As declarações de Netanyahu foram amplamente reproduzidas na bolha bolsonarista, impulsionadas pelos parlamentares de oposição. A narrativa contra Lula possuía dois elementos: um deles era que o presidente negava o Holocausto e ofendia o povo judeu; outro era que ele defendia o Hamas e apoiava o terrorismo, tendo como prova máxima uma declaração do grupo islâmico em seu canal do Telegram, em que elogiava a comparação feita pelo petista (UOL 2024). Ambas levavam a uma conclusão comum: a de que Lula era antissemita – bem como seu governo, seu partido e suas políticas. Ao PT, coube defender o posicionamento do presidente, por vezes chamando-o de “corajoso e necessário”, mas sempre no espírito de esclarecer que ele não estava falando do povo israelense ou do judaísmo. Ao mesmo tempo, governistas antagonizavam Netanyahu, chamando-o de extremista e associando-o à extrema-direita brasileira (Veja 2024).

Embora Celso Amorim tenha afirmado que a fala de Lula “sacudiu o mundo” ao romper com a “frieza dos interesses políticos” (Bergamo 2024), internamente o presidente foi duramente contestado. Os próprios aliados não esconderam o desconforto. Nas redes, Orlando Silva (PCdoB-SP) escreveu: “O Holocausto foi o Holocausto” (@orlandosilva, 20 de fevereiro de 2024). Tabata Amaral (PSB-SP) foi além: “Lamento profundamente o comentário feito hoje pelo presidente Lula (...). É errado e irresponsável” (@tabataamaralsp, 18 de fevereiro de 2024). Em entrevista, Cezinha de Madureira (PSD-SP) disse que Lula “errou feio”, principalmente com os evangélicos (Zanini 2024). A oposição, por sua vez, além do barulho nas redes sociais, imediatamente protocolou uma moção de repúdio à fala “bizarra” do presidente (@apropriajulia, 19 de fevereiro de 2024) e passou a articular um pedido de impeachment, encabeçado por Carla Zambelli e que foi protocolado, dias mais tarde, com a assinatura de 140 deputados.

Nenhuma iniciativa parlamentar teve continuidade, é fato, mas o episódio contribuiu para fortalecer o bolsonarismo. As últimas notícias sobre o ex-presidente haviam envolvido venda ilegal de joias, uma suposta tentativa de asilo na embaixada da Hungria e fortes indícios da articulação de um golpe de Estado. A declaração de Lula permitiu à extrema-direita reposicionar Bolsonaro como defensor de Israel e dos valores judaico-cristãos. Bolsonaristas contaram, inclusive, com a ajuda do chanceler israelense Israel Katz, que fez uma postagem dizendo “Ninguém vai separar nosso povo – nem mesmo você @LulaOficial” às vésperas da manifestação pró-Bolsonaro (@Israel_katz, 23 de fevereiro de 2024) e que, no dia do evento, compartilhou fotos da Avenida Paulista agradecendo ao “povo brasileiro” o apoio a Israel – e novamente atacando Lula (@Israel_katz, 25 de fevereiro de 2024).

A manifestação de 25 de fevereiro, repleta de bandeiras de Israel e mensagens bíblicas por parte de Bolsonaro e seus aliados, foi não só um balão de ensaio dessa mudança de narrativa, como também demonstração inconteste de força nas ruas. Animado pela oposição a Lula, o bolsonarismo segue vivo para as eleições municipais, que ocorrerão em outubro de 2024, e para uma eventual revanche na corrida presidencial de 2026. Como o presidente segue inelegível, iniciou-se uma disputa pelo legado da extrema-direita, que tem em Israel um de seus principais símbolos. Não à toa, semanas mais tarde, a convite do governo israelense, os governadores Ronaldo Caiado, de Goiás, e Tarcisio de Freitas, de São Paulo, viajaram a Jerusalém. Ainda que a agenda oficial fosse técnica, o cerne da visita foi político: ambos se encontraram com o presidente Isaac Herzog e o premier Netanyahu, fizeram um apelo pela liberação dos reféns e, mais importante, desculparam-se pelas falas de Lula.

POLARIZAÇÃO PÚBLICA

A queda de braço entre oposição e governo em torno da política externa para Israel e Palestina não teria maiores impactos políticos caso a sociedade brasileira não estivesse preocupada com o tema. A tese de Janones de que a politização do conflito não passava de uma “armadilha” do bolsonarismo tem algum fundamento, no sentido de que lhe interessava conduzir o jogo para esse campo maniqueísta. No entanto, é importante ressaltar que a saliência do conflito israelo-palestino junto à opinião pública não é nova e que, neste caso em particular, os ataques de 7 de outubro mobilizaram fortemente a comunidade judaica, com representatividade no mundo artístico, cultural, empresarial e acadêmico, bem como entre lideranças e fiéis evangélicos.

Uma das primeiras iniciativas públicas foi um manifesto “contra o terrorismo e pela paz”, subscrito por personalidades judias e não judias como Abilio Diniz, Angélica e Luciano Huck, Natalia Pasternak, Patrícia Abravanel, Tiago Leifert e Zico. O documento, veiculado em página inteira nos três maiores jornais brasileiros (Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e O Globo) no dia 17 de outubro, pedia “a pronta liberação dos reféns que permanecem sequestrados pelos terroristas, assim como para que a ajuda humanitária chegue imediatamente à população na zona de conflito”. A reação do ator José de Abreu, vinculado ao PT, dava o tom da polarização já naquele momento: “Colegas (a maioria ignorantes políticos, que jamais leram uma página de jornal a não ser coluna de TV) envergonhando a categoria artística gravando vídeo em apoio a Israel” (@zehdeabreu, 16 de outubro de 2023). Nas semanas seguintes aos atentados, manifestações pró-Israel ocorreram em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. A capital paulista também foi local de uma manifestação pró-Palestina e em defesa do cessar-fogo (G1 2023).

A grande imprensa e a cobertura do conflito

A pluralidade, embora dicotômica, das percepções sobre o conflito entre direita e esquerda não se refletiu na grande imprensa. No cenário em que as redes bolsonaristas (e seus veículos associados, como Jovem Pan, Gazeta do Povo e Revista Oeste) são incondicionalmente pró-Israel e em que a mídia alternativa de esquerda (representada, entre outros, por Brasil 247, Opera Mundi e Diário do Centro do Mundo) é abertamente pró-Palestina e antissionista, a grande imprensa acabou trazendo pouca nuance e complexidade ao debate. Ao saírem em defesa de Israel, simplificarem as condições políticas palestinas e condenarem as ações e palavras do presidente Lula, veículos como Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo e aqueles vinculados ao Grupo Globo (o jornal O Globo e os canais Rede Globo e Globo News) assumiram posicionamentos que contribuíram para a polarização da opinião pública.

A pluralidade, embora dicotômica, das percepções sobre o conflito entre direita e esquerda não se refletiu na grande imprensa. No cenário em que as redes bolsonaristas (...) são incondicionalmente pró-Israel e em que a mídia alternativa de esquerda (…) é abertamente pró-Palestina e antissionista, a grande imprensa acabou trazendo pouca nuance e complexidade ao debate. Ao saírem em defesa de Israel, simplificarem as condições políticas palestinas e condenarem as ações e palavras do presidente Lula, [os grandes veículos] assumiram posicionamentos que contribuíram para a polarização da opinião pública.

O Observatório da Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (Opeb), liderado pela professora Ismara Izepe de Souza, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), produziu extenso relatório sobre o papel da imprensa na conformação da opinião pública sobre o conflito israelo-palestino. Segundo o estudo, a grande imprensa inicialmente adotou tom de cobrança ao governo brasileiro para que se posicionasse contra o Hamas (Souza et al. 2024). Ainda que essa posição seja absolutamente compreensível (e em larga medida correta), ela deixou de lado alguns elementos cruciais para a compreensão do quadro maior do conflito em que se inseriram os brutais ataques de 7 de outubro.

O primeiro deles é que se trata de uma relação assimétrica, entre um Estado constituído – o de Israel – e um povo sob ocupação (na Cisjordânia) e sob bloqueio (em Gaza). O segundo é que a violência israelense contra os palestinos – traduzida, entre outras coisas, na expansão dos assentamentos ilegais na Cisjordânia – aumentou visivelmente ao longo dos últimos anos, nos quais Israel foi governado por coalizões cada vez mais extremistas, pilotadas por Benjamin Netanyahu. Em terceiro lugar, ao vincular indissociavelmente Hamas a terrorismo, ignorando a dimensão política dessa designação, a imprensa constrange o posicionamento – histórico, frise-se – da diplomacia brasileira de não classificar nenhum movimento político como terrorista de maneira unilateral, seguindo as resoluções das Nações Unidas. Quarto, e por fim, ao enquadrar o problema estritamente como uma guerra entre Israel e Hamas, a grande mídia minimiza o sofrimento humano dos milhões de palestinos em Gaza – responsabilizando as ações do Hamas, e não de Israel, pelos milhares de mortes que já se contabilizam até hoje (Ojeda 2023).

Justiça seja feita: a Folha de S. Paulo, em particular, sempre deu espaço ao contraditório na forma de artigos opinativos. O jornal publicou dois textos de Salem Nasser (2023a; 2023b) bastante críticos a Israel e à própria cobertura do jornal, além de artigo de Idelber Avelar e Marcos Lisboa (2023), apontando para a tragédia da ocupação israelense da Palestina, e de coluna assinada pelo coletivo Vozes Judaicas pela Libertação “pela Palestina livre do apartheid israelense” (Barbosa et al 2023). Também veiculou, em seu caderno Ilustríssima, longos textos de Arlene Clemesha (2023a; 2023b), Idelber Avelar (2024) e Glenn Greenwald (2024), todos sobre o processo de “limpeza étnica” na Palestina. Nos demais veículos, a abordagem crítica não só ao Hamas, mas ao PT, prevaleceu nas colunas de opinião.

No caso dos editoriais e da cobertura jornalística, o tom geral é de absoluta oposição a Lula nesse tema – agravando-se após a referência a Hitler. Foi prática comum ouvir o posicionamento de organizações judaicas, como a Confederação Israelita do Brasil (Conib) e a Federação Israelita do Estado de São Paulo (Fisesp), além de ONGs como o Instituto Brasil-Israel (IBI) e a StandWithUs Brasil, sem conferir espaço para grupos palestinos ou pró-Palestina de natureza semelhante. Muitas vezes, também ganharam destaque as declarações do governo israelense contra Lula – ainda que o Estadão, em particular, tenha se posicionado criticamente contra Netanyahu em algumas oportunidades (O Estado de S. Paulo 2024). A linha editorial dos três principais veículos está sumarizada na Tabela 1: 

Tabela 1 – Cronologia do posicionamento editorial de jornais selecionados diante do conflito israelo-palestino. Fonte: Dados levantados pelo autor.

Tabela 1 – Cronologia do posicionamento editorial de jornais selecionados diante do conflito israelo-palestino. Fonte: Dados levantados pelo autor.

Visões do público sobre Israel, Palestina e a política externa

A maneira como a cobertura do conflito vem sendo conduzida guarda relações com a forma como a opinião pública responde aos eventos no Oriente Médio e à política externa de Lula (Baldin & Ramos 2024). Em novembro, logo após a declaração do presidente comparando as ações do Hamas às de Israel, pesquisa Real Time Big Data, encomendada pela Rede Record, mostrou que 86% dos entrevistados acompanhavam o noticiário sobre a guerra. Perguntados sobre a fala de Lula, 77% dos respondentes discordaram e 23% concordaram. Questionados sobre quem tem razão, 66% apoiaram Israel, 18% o Hamas e 16% nenhum dos dois (entre as respostas, não havia a opção palestinos). Finalmente, 73% dos entrevistados disseram que o Brasil deveria classificar o Hamas como grupo terrorista (Fonseca Fraga & Lima 2023).

O mesmo instituto realizou pesquisa três meses mais tarde, logo após a fala de Lula em referência a Hitler: 83% dos entrevistados discordaram do presidente, contra 17% que concordaram. Interessante notar, contudo, que, em comparação à pesquisa anterior, menos respondentes diziam que Israel tinha razão – 57%, contra 28% que diziam que o Hamas estava certo. Sobre o posicionamento do Brasil diante do conflito, 54% defendiam que o país deveria manter-se neutro, 26% foram a favor de apoiar Israel e 14% eram favoráveis a apoiar o “lado palestino” (R7 2024).

Esses resultados foram consistentes com levantamento feito pela Genial/Quaest nesse mesmo período. Perguntados se Lula exagerou ao comparar o que acontece em Gaza ao que Hitler fez na Segunda Guerra, 60% dos respondentes disseram que exagerou, contra 28% que acreditavam que não exagerou (69% a 19% entre evangélicos). Questionados se Israel exagerou ao considerar Lula persona non grata, 48% acharam que não exagerou, contra 41% que se opuseram à medida (63% a 27% entre evangélicos). No entanto, o dado mais relevante da pesquisa Genial/Quaest diz respeito às opiniões sobre Israel e Palestina. A visão favorável a Israel caiu de 52% em outubro de 2023 para 39% em fevereiro de 2024, ao passo que a visão desfavorável subiu de 27% para 41% nesse período (em ambos os casos, a tendência foi mais intensa entre eleitores de Lula). Percepções sobre a Palestina mantiveram-se mais estáveis: opiniões favoráveis caíram de 27% para 23% e as desfavoráveis subiram de 43% para 45% – em ambos os casos, a tendência foi maior entre eleitores de Bolsonaro (Genial/Quaest 2024).

Os números sugerem que, embora a opinião geral sobre episódios pontuais envolvendo Lula seja negativa, como nas referências às ações de Israel como terroristas ou como comparáveis ao que fez Hitler, isso não torna o público automaticamente simpático a Israel. (...) [A] associação permanente entre bolsonarismo e Israel não necessariamente favorece o ex-presidente e seus aliados em termos de atrair novos eleitores. 

Os números sugerem que, embora a opinião geral sobre episódios pontuais envolvendo Lula seja negativa, como nas referências às ações de Israel como terroristas ou como comparáveis ao que fez Hitler, isso não torna o público automaticamente simpático a Israel. Sob esse prisma, o direcionamento da política externa brasileira nos últimos meses – menos centrada no presidente, administrando a crise com Israel sem fazer concessões e, ao mesmo tempo, mantendo o foco na defesa do cessar-fogo e da construção de um Estado palestino – está alinhado com as expectativas da opinião pública. A queda da simpatia pelo lado israelense, sobretudo entre eleitores de Lula em 2022, também revela que a associação permanente entre bolsonarismo e Israel não necessariamente favorece o ex-presidente e seus aliados em termos de atrair novos eleitores. No máximo, como se viu na manifestação de 25 de fevereiro, a defesa de Israel, conjugada com a oposição a Lula, serviu para aglutinar grupos simpáticos a Bolsonaro e dar-lhes um mote comum. Entretanto, sem um “fato novo” atribuído ao petista, a capacidade de mobilização da extrema-direita em torno da defesa de Israel e do governo Netanyahu torna-se bastante limitada.

A polarização e o preconceito

O lado mais pernicioso da polarização observada em torno do conflito israelo-palestino é, sem dúvida, a escalada de discriminação contra judeus e muçulmanos no Brasil. Os dados sobre o preconceito contra seguidores do Islã no pós-7 de outubro são mais limitados e partem do segundo Relatório sobre Islamofobia no Brasil, produzido pelo Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes (Gracias) da Universidade de São Paulo (USP) e divulgado em dezembro de 2023. A pesquisa, coordenada pela professora Francirosy Barbosa, revelou que a maioria dos 310 muçulmanos entrevistados reconhece ter aumentado significativamente a intolerância contra sua religião após os ataques a Israel (56% entre homens e 69,2% entre mulheres), ao passo que um número menor identificou crescimento pequeno da intolerância no período (28% entre homens e 23,1% entre mulheres). Os respondentes também apontaram que a cobertura jornalística – e sua viralização pelas redes sociais – colaborou para o aumento de ataques contra muçulmanos no país (Bond 2023).

O lado mais pernicioso da polarização observada em torno do conflito israelo-palestino é, sem dúvida, a escalada de discriminação contra judeus e muçulmanos no Brasil. 

Os números sobre antissemitismo, por sua vez, têm sido monitorados de perto pela Conib e pela Fisesp. O relatório mais atual foi apresentado em 11 de junho de 2024 pelos presidentes das respectivas entidades, Claudio Lottenberg e Marcos Knobel. Comparando-se as denúncias de antissemitismo no período de outubro a dezembro de 2022 e 2023 (já no contexto da guerra em Gaza), observou-se um aumento de 800% nos casos de preconceitos contra judeus – que passaram de 125 para 1.119, predominando ataques nas redes sociais (Instagram e X, especificamente). Em 2024, observou-se um pico de denúncias de antissemitismo no mês de fevereiro, após fala de Lula comparando a ação de Israel ao que Hitler fez contra os judeus. À época, a própria resposta das organizações judaicas havia sido muito dura: “É lamentável o posicionamento, cada vez mais extremista, tendencioso e dissociado da realidade, do presidente Lula”, escreveu a Fisesp, em nota. Na apresentação do relatório, Lottenberg afirmou haver uma banalização e utilização imprópria do conflito por influenciadores digitais, além de “declarações esdrúxulas” de autoridades que têm “alimentado a intolerância e o ódio, algo que não víamos antes” (Cavalcanti 2024).

Silvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, já estava atento ao aumento desse tipo de discurso de ódio mesmo antes dos atentados de 7 de outubro. Em julho de 2023, um Grupo de Trabalho convocado pelo Ministério (e do qual o autor fez parte) publicou o “Relatório de recomendações para o enfrentamento ao discurso de ódio e ao extremismo no Brasil”, em que já se identificava a necessidade de medidas para combater antissemitismo e islamofobia (Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania 2023). Diante do ataque antissemita sofrido por uma comerciante judia em Arraial d’Ajuda, o ministro publicou uma nota de repúdio ao ocorrido, com o título “Repúdio ao antissemitismo e à islamofobia”, cujo prelúdio era o seguinte: “A absoluta e necessária condenação ao massacre contra o povo palestino na Faixa de Gaza, perpetrado pelo governo de Israel, não justifica e tampouco autoriza o antissemitismo” (@silviolual, 4 de fevereiro de 2024). Ao mencionar islamofobia em uma nota sobre antissemitismo, o ministro foi contestado nas redes (@AndreLajst, 9 de fevereiro de 2024; @GutoZacariasMBL, 5 de fevereiro de 2024) e em veículos de imprensa de direita (Borges 2024), que entenderam a manifestação como “parcial” – mesmo que o tom tenha sido, justamente, o de equilíbrio.

Lamentavelmente, a escalada de preconceito religioso e racial foi tragada pela própria dinâmica da polarização que, em certo sentido, ajudou a incentivá-la. Ainda que seja inegável que a confusão – deliberada ou ignorante – entre judeus, Israel e o premier Benjamin Netanyahu tenha incitado casos gritantes de discursos e agressões antissemitas, houve também alegações que certas acusações de antissemitismo foram utilizadas para minimizar ou silenciar críticas às práticas do Estado de Israel ou ao extremismo violento de seu atual governo. Um dos casos emblemáticos dessa zona cinzenta conceitual envolve o jornalista de esquerda Breno Altman, processado pela Conib por afirmar, entre outras coisas, que o Hamas seria “parte decisiva da resistência palestina contra o Estado colonial de Israel”. Aquilo que as entidades judaicas consideram antissemitismo (e, portanto, passível de punição legal), o Conselho Nacional de Direitos Humanos e a Associação Brasileira de Jornalistas defendem como liberdade de expressão, alegando que o jornalista é vítima de censura (Carta Capital 2024).

O presidente Lula também foi acusado de antissemitismo em função de suas declarações sobre o conflito. Em sua coluna no jornal O Globo, Guga Chacra ponderou: “É legítimo Lula criticar Israel por Gaza, mas antissemita comparar a Holocausto” (Chacra 2024). Na Folha, Demétrio Magnoli foi além: “Lula inscreveu-se – e inscreveu o Brasil – no discurso do antissemitismo (...). O Hamas foi o primeiro a aplaudir a declaração de Lula, o que deveria envergonhá-lo” (Magnoli 2024). Na Veja, Alexandre Schwartsman expandiu a crítica a todo o governo petista, que “padece de um antiamericanismo tosco que, sem maiores esforços, adquire tons sombrios de antissemitismo, convenientemente disfarçado de ‘antissionismo’” (Schwartsman 2024). No Estadão, por fim, as posições do PT levaram Denis Rosenfield a afirmar que “[s]er antissemita tornou-se fashion no campo da esquerda (...). O ministro das Relações Exteriores e os dirigentes petistas assumiram o papel de porta-vozes do Hamas” (Rosenfield 2024). A polarização parece turvar, cada vez mais, a capacidade de separar as críticas legítimas e necessárias ao antissemitismo da disputa político-ideológica que prevalece no Brasil de hoje.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, busquei analisar a dinâmica da polarização política brasileira sobre o conflito israelo-palestino (e a partir dele). Há pelo menos uma década, mas especialmente nos últimos cinco anos, os posicionamentos políticos, midiáticos e societários sobre a violência naquela região do mundo vêm se calcificando e se integrando, indissociavelmente, às identidades políticas de petistas, bolsonaristas e seus simpatizantes. Isso é preocupante por várias razões, a começar pelo ciclo de desumanização que acomete as percepções gerais sobre o conflito entre Israel e Palestina – e o sofrimento de seus respectivos povos. Acompanhando de perto esse processo há vários anos, notei, consternado, tentativas recentes de minimizar os ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro contra civis israelenses e, na sequência, de negligenciar as dezenas de milhares de palestinos mortos em nome de um alegado combate ao terrorismo. Testemunhei, igualmente, os efeitos da desumanização na forma de antissemitismo e islamofobia, inclusive contra pessoas próximas.

Acompanhando de perto esse processo [de desumanização que acomete as percepções gerais sobre o conflito entre Israel e Palestina] há vários anos, notei, consternado, tentativas recentes de minimizar os ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro contra civis israelenses e, na sequência, de negligenciar as dezenas de milhares de palestinos mortos em nome de um alegado combate ao terrorismo. Testemunhei, igualmente, os efeitos da desumanização na forma de antissemitismo e islamofobia, inclusive contra pessoas próximas.

Como se não bastasse a tragédia humanitária palestina em Gaza, é triste a constatação de que a sociedade brasileira sai ainda mais fraturada dessa dinâmica de polarização, para a qual não parece haver solução imediata. Em um mundo ideal, políticos não deveriam instrumentalizar o sofrimento alheio para ganhos internos; a imprensa deveria fazer um esforço maior, reconhecendo-se os obstáculos, de qualificar o debate (e a cobertura) a respeito do tema; e as pessoas deveriam desenvolver, pela educação e informação, uma compreensão mais clara sobre as injustiças históricas, a violência estrutural e a complexidade desse conflito. Nada disso acontece hoje: na distopia brasileira, coube à deputada bolsonarista Carla Zambelli servir de porta-voz dos defensores de Israel no mundo político-midiático. Curiosamente, no dia em que fecho este texto (25 de junho de 2024), ela fez postagem no X acusando, novamente, Lula e esquerda de antissemitismo. Quatro anos atrás, a mesma deputada estava comemorando o “Dia Internacional de Combate a George Soros”, usando a hashtag #StopSoros, amplamente utilizada pela extrema-direita para fomentar teorias conspiratórias contra judeus.

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Recebido: 26 de junho de 2024
Aceito para publicação: 3 de junho de 2024

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