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Editorial

“O Brasil está de volta”, mas o mundo é outro

Os desafios da política externa na terceira gestão de Lula
Capa: Mariana Jaguaribe Lara Resende. Ilustração: Bicho Coletivo

A frase “O Brasil está de volta”, citada em várias das contribuições da Seção Especial desta edição, remete ao discurso do presidente Lula logo após as eleições, ao participar da COP 27 no Egito. O slogan, que foi incorporado na campanha de comemoração dos primeiros 100 dias de governo, trazia uma mensagem de ruptura com a gestão anterior e esperança com relação ao porvir. No caso da política externa, essa volta à normalidade implicaria o fim do alinhamento ideológico com a extrema-direita global (e a adoção do antiglobalismo) e a retomada de uma postura ativa e propositiva no cenário internacional, com ênfase no diálogo, forte engajamento em foros multilaterais, na reaproximação com vizinhos, além da busca por protagonismo como representante do Sul Global (Saraiva & Reis 2023).

O contexto em que as eleições ocorreram já antecipavam que essa “volta” não seria fácil. Do lado doméstico, fatores como o desmonte das instituições do Estado, o aumento do radicalismo político de direita reforçado pela onda de fake news e a ausência de regulação da internet; os nefastos efeitos sociais e econômicos derivados da pandemia de Covid-19 e sua gestão; e o enorme poder de barganha de um Congresso majoritariamente conservador e com acesso a recursos cada vez mais volumosos já indicavam que o presidente Lula não teria a mesma margem de manobra em comparação às suas gestões anteriores. No âmbito internacional, a acirrada disputa por hegemonia entre China e Estados Unidos, a guerra entre Rússia e Ucrânia e a mudança do cenário político regional (que antes era caracterizado por governos mais alinhados à esquerda) resultaram em um ambiente muito mais complexo e fragmentado, reduzindo o possível espaço de influência da nova gestão. Nesse contexto, quão factível seria essa volta à normalidade?

Em sua quinta edição (...) [a revista discutiu] se a política externa do novo governo Lula seria uma correção de rumos (...) ou se seria necessária uma abordagem distinta, devido à necessidade de resposta ao legado bolsonarista. Ainda que se reconhecessem naquele momento os enormes desafios que seriam enfrentados pela nova gestão, passado mais de um ano após a posse de Lula é possível ver com mais clareza as dificuldades práticas de governar após quatro anos da gestão Bolsonaro. 

Em sua quinta edição, do primeiro trimestre de 2023, a CEBRI-Revista trouxe importantes reflexões sobre as expectativas ligadas a essa mudança de gestão. Em especial, discutiu-se se a política externa do novo governo Lula seria uma correção de rumos (Azambuja 2023) — logo uma volta à tradição diplomática brasileira — ou se seria necessária uma abordagem distinta, devido à necessidade de resposta ao legado bolsonarista (Lima 2023; Milani & Ives 2023). Ainda que se reconhecessem naquele momento os enormes desafios que seriam enfrentados pela nova gestão, passado mais de um ano após a posse de Lula é possível ver com mais clareza as dificuldades práticas de governar após quatro anos da gestão Bolsonaro. Ainda, podemos observar os efeitos de elementos não previstos um ano atrás, como a súbita escalada da violência em Gaza após os ataques do Hamas a Israel em outubro de 2023. Aliás, a forma como esse conflito impactou a política doméstica, nutrindo a polarização política no país, encapsula um dos grandes desafios enfrentados por Lula, qual seja, a necessidade de encontrar um equilíbrio entre as demandas do conturbado ambiente doméstico (afetado, além tudo, por uma tentativa orquestrada de ruptura democrática) e um ambiente internacional cada vez mais fragmentado.

Os artigos que compõem a Seção Especial desta edição discutem esse e outros elementos, fazendo uma retrospectiva da política externa do primeiro ano do terceiro mandato de Lula. Apesar das diferentes ênfases e abordagens, emerge um consenso em relação a algumas questões. Primeiramente, os autores reconhecem que o atual contexto que permeia a gestão Lula 3 é de fato mais complexo do que o período relativo às suas duas primeiras gestões, e isso traz desafios de outra escala, mesmo para um presidente experiente. Em segundo lugar, e não obstante essas dificuldades, os autores fazem uma avaliação em geral positiva desse período. Ainda que tenham ocorrido percalços de natureza distinta, a retomada da diplomacia ativa, a visita a 26 países no primeiro ano e participação vocal em foros multilaterais – ainda antes de começar o mandato, aliás – são vistas como uma clara tentativa de reafirmar um papel protagônico do Brasil no mundo, resgatando princípios basilares da diplomacia brasileira, feridos durante a gestão Bolsonaro. Por fim, ainda que de forma distinta, os autores também problematizam o caminho adiante, discutindo quais seriam as estratégias para otimizar a atuação brasileira na política internacional levando em conta os desafios existentes.

[O]s autores reconhecem que o atual contexto que permeia a gestão Lula 3 é de fato mais complexo do que o período relativo às suas duas primeiras gestões, e isso traz desafios de outra escala, mesmo para um presidente experiente. (...) [A]inda que de forma distinta, os autores também problematizam o caminho adiante, discutindo quais seriam as estratégias para otimizar a atuação brasileira na política internacional levando em conta os desafios existentes.

No ensaio que abre a Seção Especial, A volta do Brasil a um mundo transformado por conflitos, o embaixador e conselheiro emérito do CEBRI Rubens Ricupero avalia o primeiro ano da política externa de Lula, destacando, de um lado, o esforço presidencial em reorientar o posicionamento brasileiro no mundo — em especial o papel da Amazônia e da agenda ambiental nesse processo —, mas também lembrando que o contexto internacional é hoje muito mais desafiador e pautado por intensa conflitividade. Nesse cenário, uma diplomacia ativa vai gerar inevitavelmente “divisões, controvérsias, desgaste interno e externo”. Assim, torna-se imprescindível adequar as mensagens diplomáticas ao contexto externo; ou seja, a margem para improviso se reduz, uma vez que pode acirrar controvérsias, a exemplo do que ocorreu face a comentários de Lula sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia e sobre o conflito em Gaza. Além disso, Ricupero alerta para a necessidade de se pensar a qualidade da política externa como atrelada à capacidade de identificar e externalizar os valores e interesses nacionais. Uma forma de fazer isso seria investir em um processo mais aberto de diálogo sobre a política externa com setores relevantes da sociedade brasileira e que, de alguma forma, também influenciam essa agenda.

Esse delicado equilíbrio entre contexto doméstico e externo é retomado no artigo de Sean Burges, How to Stay a Leader Without Followers: Brazil’s Foreign Policy Under Lula III. A partir da análise de teorias sobre liderança aplicadas ao contexto brasileiro, Burges argumenta que um dos problemas na atuação da política externa nesse terceiro mandato é a falta de adequação em termos de recursos para apoiar as propostas levantadas por Lula. Ainda que Lula tenha notória habilidade para coadunar atores em torno de agendas, no atual contexto internacional e doméstico faz-se necessário um esforço maior no sentido de se oferecerem meios concretos para impulsionar essas agendas — ou seja, incentivos políticos e econômicos para “atrair seguidores”. Isso, por sua vez, depende de um diálogo ampliado com a base, daí a recomendação do autor de que seja elaborado um “livro branco” da política externa, no estilo do que foi feito durante a gestão Fernando Henrique Cardoso e que resultou na publicação Reflexões sobre a Política Externa Brasileira (IPRI 1993).

Em A política externa da reconstrução: insumos para análise da política externa brasileira desde 2023, Laura Trajber Waisbich também reforça a preocupação com a coerência da política externa brasileira. Problematizando a agenda da “reconstrução” proposta pelo ministro Mauro Vieira, a autora questiona em que consiste essa reconstrução. Refletindo sobre as capacidades internas, a inserção internacional e os esforços de projeção internacional do Brasil, Waisbich resgata a agenda brasileira de cooperação para o desenvolvimento como um dos campos em que o Brasil pode exercer sua capacidade de inovação de forma estratégica, associando inclusive a agenda ambiental à de desenvolvimento rumo ao fortalecimento das relações do Brasil com o Sul Global. Conclui, na linha de Burges, que um diálogo entre os analistas de política externa e os de processo legislativo brasileiro seria crucial para o sucesso dessa empreitada.

Os três artigos que se seguem fazem um balanço mais geral da política externa do primeiro ano da gestão Lula 3. Em A Política Exterior no ano inaugural do governo Lula III, Dawisson Belém Lopes divide a sua análise em três momentos: as promessas de campanha, as realizações e os impactos preliminares da agenda. Segundo Lopes, o grande marco da política externa do terceiro mandato de Lula é a “recalibragem” das suas ambições, guiada pelo desejo de “refundar a ordem global”. Nesse contexto observa-se a proposição de um novo padrão de governança global pautado na interligação entre questões climáticas, alimentares e a reforma do sistema financeiro e do Conselho de Segurança da ONU. Ainda que essa agenda seja ambiciosa, e mesmo com os tropeços diplomáticos — em especial nos casos da guerra entre Rússia e Ucrânia e o conflito entre Israel e Hamas —, o saldo do primeiro ano de governo, de acordo com Lopes, é positivo, especialmente em termos de projeção do Brasil no mundo. 

Trazendo uma visão mais focada na relação entre o plano doméstico e o internacional, Maria Regina Soares de Lima e Diogo Ives, no artigo Desafios políticos na implementação da política externa do governo Lula 3, examinam de forma mais detalhada cinco agendas da política externa brasileira, respectivamente: a emergência climática (e a ambiguidade dessa agenda perante o conflito entre interesses do agronegócio e as prioridades ambientais); a regulação da internet (que enfrentou forte resistência no Congresso nacional); a integração regional (dificultada pela ascensão de Milei na Argentina); a mediação da paz (agenda politizada pela extrema-direita); e a expansão do BRICS (agora mais heterogêneo, dificultando a formação de consenso). Os casos discutidos sustentam a argumentação dos autores de que o “o cerne dos novos desafios políticos são a ascensão e a resistência de uma extrema-direita no Brasil, com articulações transnacionais, que radicaliza a politização da política externa”. Assim, em linha com outros autores do dossiê, Lima e Ives sugerem um estreitamento do diálogo entre o Ministério de Relações Exteriores e o Congresso, de forma a aumentar o conhecimento mútuo e alinhar as diretrizes da política externa.

Por outra ótica, Ivan Filipe Fernandes e Guilherme Antonio de Almeida Lopes Fernandes analisam esse primeiro ano de política externa de Lula 3 a partir “da recuperação das tradições do cânone da política, de uma postura de maior protagonismo internacional e da busca de um posicionamento, equilibrando-se diante das pressões sistêmicas”. Reconhecendo as atuais complexidades do sistema internacional e o difícil legado da gestão Bolsonaro, os autores avaliam que a atual política externa do governo Lula parece “seguir o rumo da política altiva e ativa dos seus governos anteriores”, ainda que o governo reconheça a mudança no cenário global e o papel da disputa entre Estados Unidos e Europa, de um lado, e China e Rússia, de outro. Ao mesmo tempo, se parece evidente o objetivo do Brasil de exercer uma liderança no Sul Global, não está tão claro, segundo os autores, se a gestão Lula irá buscar um coprotagonismo global, posicionando-se no meio das disputas entre potências, ou se tomará algum lado.

Fechando a Seção Especial, temos o artigo de Marianna Albuquerque e Gustavo Sénéchal, O Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas (2022-2023). Ao considerar o biênio 2022-2023, a proposta dos autores é observar em que medida o Brasil alterou sua postura nesse órgão a partir da mudança da gestão Bolsonaro para a de Lula. Ao analisar as propostas e posicionamentos do Brasil em 2022, ano marcado pela eclosão da guerra entre Rússia e Ucrânia, os autores concluem que o Brasil manteve as linhas gerais de sua política externa no tratamento do conflito, ainda que no âmbito doméstico o tema tenha sido politizado gerando dissenso. Em 2023, já com Lula e com a escalada da violência na Faixa de Gaza, o Brasil continuou seguindo suas diretrizes de política externa, dessa vez com um papel mais ativo na tentativa de mediar os conflitos em questão. Os autores observam que essa coerência entre os dois momentos se deve a fatores diversos, dentre outros ao papel do Itamaraty e sua relativa autonomia burocrática, mas também à natureza dos temas tratados no Conselho de Segurança, levando a um padrão distinto em comparação a outras frentes de atuação da política externa durante a gestão Bolsonaro.

Somados, os artigos da Seção Especial apresentam um amplo e detalhado panorama da política externa do primeiro ano da gestão Lula 3, não apenas pormenorizando os muitos desafios dessa gestão, como também apresentando propostas concretas para melhorar o alinhamento dessa ambiciosa agenda com as capacidades reais de sua implementação. O mundo mudou, as dinâmicas internacionais estão mais complexas e difusas, mas ainda há espaço para algum otimismo em relação ao protagonismo do Brasil e à correção de rumos após um período sombrio de isolamento.

Esta edição marca uma alteração na ordem das seções da revista. A partir do destaque editorial que os temas de capa têm recebido, a Seção Especial passa a ser apresentada após o Editorial, seguida então da seção de Policy Papers e das demais, na sua ordem usual, costurando eixos temáticos diversos. Assim, para além da Seção Especial, a presente edição da CEBRI-Revista conta com outras contribuições importantes. Primeiramente, o professor emérito da Universidade de Londres e conselheiro internacional do CEBRI Leslie Bethell nos brinda com um policy paper em que explica em detalhes o histórico da disputa territorial entre Venezuela e Guiana em relação à região de Essequibo, conflito que ressurgiu em 2023 e também contou com a mediação do Brasil. 

Em segundo lugar, contamos com duas contribuições à seção de Artigos Acadêmicos. Em Breve história do G20 e a participação social na agenda brasileira para 2024, Leonardo Ramos e Ana Garcia, apresentam a evolução do G20, destacando momentos cruciais que levaram à sua institucionalização, bem como seus momentos de crise. Os autores discutem, ainda, os principais pontos da agenda brasileira no G20 para 2024, dando ênfase à proposta de criação de espaços para participação social. O artigo complementa as reflexões apresentadas no último número da CEBRI-Revista de 2023, inteiramente dedicado a explorar a presidência do Brasil, que sedia o fórum este ano, e cuja premência na agenda de 2024 continua a justificar sua evidência na pauta editorial.

Já em Sinal verde: percepções sobre política ambiental e status do Brasil, Daniel Buarque discute o papel da política ambiental como instrumento para alavancar o status do Brasil no cenário internacional. A partir de entrevistas com membros da comunidade de política externa dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas, o autor conclui que o meio ambiente, em especial a Floresta Amazônica, tem grande influência na forma como o país é visto de fora. Isso evidencia a relevância dessa agenda para o Brasil, particularmente no contexto de retomada da busca de protagonismo internacional.

Conclui-se esta edição com duas importantes adições ao presente número. A entrevista a Silvia Maria Massruhá, presidente da Embrapa, discutindo segurança alimentar, o papel do Brasil na produção alimentar mundial e no combate à fome, tema central na atual gestão de Lula e pilar da agenda de política externa, complementando, assim, as reflexões da Seção Especial. E a homenagem de Celso Lafer em memória a Alberto da Costa e Silva (1931-2023), diplomata, poeta, historiador, ensaísta e membro da Academia Brasileira de Letras.
Boa leitura!

Referências Bibliográficas

Azambuja, Marcos de. 2023. “O lugar do Brasil”. CEBRI-revista 2 (5): 16-30.  https://cebri.org/revista/br/artigo/71/o-lugar-do-brasil.

IPRI. 1993. Reflexões sobre a política externa brasileira. Brasília: IPRI/FUNAG. https://www.funag.gov.br/ipri/images/capas-livros-ipri/reflexoes-sobre-politica-externa-brasileira-1993/Reflexes_Poltica_Externa_Brasileira_1993.pdf

Lima, Maria Regina Soares de. 2023. “A dialética da política externa de Lula 3.0”. CEBRI-Revista 2 (5): 79-95. https://cebri.org/revista/br/artigo/74/a-dialetica-da-politica-externa-de-lula-30.

Milani, Carlos R. S. & Diogo Ives. 2023. “A política externa brasileira a partir de 2023: a necessidade de uma frente ampla nacional, regional e internacional”. CEBRI-Revista 2 (5): 127-146. https://cebri.org/revista/br/artigo/78/a-politica-externa-brasileira-a-partir-de-2023.

Saraiva, Miriam Gomes & Ana Paula Marino Sant’Anna Reis. 2023. “O Brasil ‘voltou’: as mudanças na política externa nos primeiros 100 dias do governo Lula”.  Conjuntura Austral 14 (68): 61-72. https://doi.org/10.22456/2178-8839.133558.

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