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Seção Especial

Uma agenda estratégica e de futuro para o desenvolvimento sustentável do Brasil

Em linha com os 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030

Resumo

Este policy paper propõe prioridades para o próximo governo brasileiro a fim de acelerar políticas públicas para a reconstrução e transformação do país em linha com a Agenda 2030 e outros compromissos internacionais, posicioná-lo frente às grandes transformações globais e resgatar o seu protagonismo internacional. Também propõe um ecossistema e mecanismos para a implementação dessa agenda.

Palavras-chave:

desenvolvimento sustentável; Objetivos de Desenvolvimento Sustentável; financiamento para desenvolvimento; política pública; política externa.
Imagem: Shutterstock.

A diplomacia brasileira tradicionalmente concebe política externa como “política de Estado”, com objetivos de longo prazo e padrões de inserção internacional (Lafer 2001, Burges 2016, Saraiva 2020). Com a abertura econômica e a consolidação do regime democrático, a política externa brasileira passou, cada vez mais, a ser percebida como uma política pública ancorada em uma tradição diplomática e moldada pela pluralidade de visões, práticas e interesses de atores institucionais e não estatais (Lima 2000, Milani & Pinheiro 2013, Saraiva 2020). Desde então, o debate público tem centrado no papel desses diferentes atores na formulação e implementação da política externa brasileira (Milani 2015).

Menos debatido é como política pública e política externa se articulam em uma agenda estratégica e de futuro que dialogue, de um lado, com as prioridades de desenvolvimento sustentável do país (Cooper 2019, Faleiro 2022) e as transformações nas relações internacionais (Gaetani e Teixeira 2021), de outro. Para tanto, essa agenda estratégica e de futuro pode ser pensada como uma via de mão dupla, em que política externa informa e potencializa política pública ao passo que política pública baliza política externa e contribui para o soft power do país no plano internacional. 

A partir dessa premissa, uma agenda estratégica e de futuro deve: (i) buscar parcerias e financiamento externos que potencializem políticas públicas, em linha com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil; (ii) antecipar, assimilar e entender o potencial disruptivo das transformações globais e promover ações que minimizem os riscos e maximizem as oportunidades dessas transformações para o Brasil; e (iii) reengajar e resgatar o protagonismo do Brasil nas diferentes regiões e espaços de concertação e cooperação político-econômica.

Este policy paper[1] propõe temas e ações que podem compor uma agenda estratégica e de futuro dentro de três grandes objetivos. Primeiro, acelerar políticas públicas para a reconstrução e transformação do país. Segundo, posicionar o Brasil frente às grandes transformações globais. Terceiro, reengajar o Brasil no mundo e resgatar o seu protagonismo internacional. O policy paper propõe, ainda, mecanismos para a institucionalização dessa agenda estratégica e de futuro, e a construção de um ecossistema capaz de agregar diferentes atores, articular posições e infundir uma perspectiva de futuro que ajude o Brasil a navegar com confiança e propósito em um mundo cada vez mais complexo.

A discussão sobre uma agenda estratégica e de futuro é oportuna na medida em que o país inicia um novo ciclo governamental em janeiro de 2023. Nos anos 2000, o Brasil cumpriu várias das metas dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) da Organização das Nações Unidas (ONU) antes do prazo.[2] Esse desempenho foi possível graças à participação social e políticas públicas que contribuíram para o desenvolvimento do Brasil e deram materialidade ao protagonismo do país na promoção do desenvolvimento internacional. Hoje, é preciso reposicionar o Brasil no mundo e acelerar o desenvolvimento sustentável e inclusivo dentro e fora do país. As ações neste policy paper foram identificadas a partir de observação direta, estudos, diálogos e consultas com especialistas no Brasil e no mundo, e são apresentadas para discussão nas seções a seguir.

ACELERAR POLÍTICAS PÚBLICAS PARA A RECONSTRUÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DO BRASIL 

Uma agenda estratégica e de futuro tem como ponto de partida potencializar políticas públicas em linha com os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) emergem como uma “bússola” (Gaetani & Teixeira 2021) para políticas públicas em todo o mundo desde o compromisso assumido pelos países-membros da ONU na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (ONU 2015a). Fruto de processo iniciado na Rio+20 em 2012 e que teve o Brasil como protagonista para a sua aprovação em 2015, o documento estabelece 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e suas respectivas 169 metas, cobrindo temas urgentes para o desenvolvimento econômico, a proteção ambiental e a inclusão social.

Uma vez referência no alcance dos ODM, o Brasil hoje está atrasado no seu cumprimento. Segundo levantamento realizado para o Plano ABDE 2030, sete ODS regrediram ou não deverão ser cumpridos até 2030, oito estão estagnados e apenas um avançou ou já foi cumprido. O ODS 1 (erradicação da pobreza) é o mais atrasado, seguido do ODS 8 (trabalho decente e crescimento econômico), ODS 10 (redução das desigualdades) e ODS 16 (paz, justiça e instituições eficazes). As regiões Norte e Nordeste apresentam os maiores gargalos, sobretudo no ODS 8, no que tange à renda e ao desemprego, e ODS 9 (indústria, inovação e infraestrutura), no que tange à infraestrutura de transporte e participação da indústria de maior intensidade tecnológica (ABDE 2022). A figura 1 apresenta o estágio da implementação dos ODS no Brasil.

Figura 1 - Estágio de implementação dos ODS no Brasil*. Fonte: Estudo base que subsidiou a formulação do Plano ABDE 2030 (Vazquez et al. 2022)

Figura 1 - Estágio de implementação dos ODS no Brasil*. Fonte: Estudo base que subsidiou a formulação do Plano ABDE 2030 (Vazquez et al. 2022

* Cada indicador das metas dos ODS recebeu uma nota de zero a cinco segundo o seu estágio de implementação. Em seguida, foi calculada a média simples para cada ODS. O círculo verde representa ODS com média maior que 4 (avançaram ou foram cumpridos); os círculos amarelos representam os ODS com média entre 2 e 4 (estagnaram); e os círculos em vermelho representam os ODS com média entre 0 e 2 (regrediram ou não serão cumpridos).

Políticas públicas em todo o mundo têm sido reorientadas para o cumprimento dos ODS em esforço que deve ganhar maior velocidade nesta “década de ação”.[3] No Brasil, esse esforço é ainda mais urgente em meio à crise socioambiental, inflação, restrição do financiamento para o desenvolvimento[4] e instabilidade geopolítica. Ao alinhar políticas públicas com os ODS, o Brasil também dialoga com as políticas de outros países e se insere nos esforços de desenvolvimento de instituições de financiamentos internacionais e outras instituições multilaterais, favorecendo a construção de parcerias e a atração de financiamento externo que potencializem o desenvolvimento nacional em bases sustentáveis e inclusivas.  

Recriar a governança nacional para os ODS

Com vistas a acelerar políticas públicas para a reconstrução e transformação do Brasil, uma agenda estratégica e de futuro deverá atentar para a governança, o financiamento e o monitoramento da Agenda 2030 no país. Nesse sentido, seria oportuno recriar a governança nacional para os ODS nos primeiros seis meses do novo governo por meio da instituição de uma Política de Promoção da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável[5] e a recriação da Comissão Nacional para os ODS (CNODS),[6] com papel claro para as instituições financeiras de desenvolvimento (ABDE 2022), os formuladores de políticas públicas estruturantes e os órgãos de planejamento, orçamento e gestão pública.

Com vistas a acelerar políticas públicas para a reconstrução e transformação do Brasil, uma agenda estratégica e de futuro deverá atentar para a governança, o financiamento e o monitoramento da Agenda 2030 no país. 

A governança nacional para os ODS começou a ser estruturada no ano seguinte à adoção da Agenda 2030, com a instituição da CNODS, composta por 16 representantes das três esferas do governo e a sociedade civil, e que contava com o assessoramento técnico permanente do Instituto de Política Econômica Aplicada (Ipea) e do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e com o mandato de promover a disseminação, internalização, interiorização e o monitoramento da Agenda 2030 no Brasil. Dentre as instituições do Sistema Nacional de Fomento[7] (SNF), apenas o Sebraeparticipava da CNODS. 

Essa governança foi revista em 2019, com a extinção da CNODS[8] e o esvaziamento da pauta na Secretaria de Governo da Presidência da República.[9] Desde então, a promoção da Agenda 2030 no Brasil tem se dado a partir da iniciativa de entes do Poder Executivo e de estados como São Paulo, Paraná, Paraíba e Piauí. O Tribunal de Contas da União, o Ministério Público da União e o Poder Judiciário também têm contribuído para a promoção da Agenda 2030 por meio da formulação de acórdãos e da adequação de estruturas institucionais e planejamento interno com a Agenda 2030, sobretudo no que diz respeito ao ODS 16 (paz, justiça e instituições eficazes) e ODS 17 (parcerias e meios de implementação). Em 2021, a Frente Parlamentar Mista de Apoio aos ODS propôs a instituição da Política de Promoção da Agenda 2030 (PL 1308/2021) e a recriação das estruturas institucionais para os ODS na política pública. O PL, contudo, não trata do financiamento da Agenda 2030 no Brasil e depende de votação na Câmara dos Deputados.

Alinhar a Agenda 2030 e os investimentos do SNF com o ciclo de políticas públicas

Segundo, o governo brasileiro poderia alinhar a Agenda 2030 e os investimentos do SNF com o ciclo de planejamento, orçamento e gestão de políticas públicas por meio da integração das estratégias de financiamento para o desenvolvimento sustentável no Plano Plurianual (PPA) 2025-2027, na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e na Lei Orçamentária Anual (LOA) (ABDE 2022) ao longo de 2023. A Agenda de Ação de Adis Abeba sobre financiamento para o desenvolvimento (ONU 2015b) destaca a importância de estratégias de desenvolvimento sustentável coesas, nacionalmente apropriadas e apoiadas por Estruturas Nacionais de Financiamento Integradas (Enfi). 

A Indonésia foi o primeiro país a desenvolver uma Enfi para implementar o plano nacional de desenvolvimento e o plano de ação dos ODS, bem como acompanhar o cumprimento dos compromissos de desenvolvimento sustentável do país. O Centro de Financiamento dos ODS do Ministério do Planejamento da Indonésia (BAPPENAS), que lidera a implementação dos ODS no país, tem papel de convocação, coordenação e harmonização de políticas. O Centro também articula, com os ministérios e demais atores relevantes, na construção de uma abordagem holística de financiamento para o desenvolvimento sustentável, desenvolvimento de produtos de financiamento inovadores e mobilização de investimentos privados. Hoje, mais de 70 países possuem ou estão desenvolvendo Enfi (ONU s/d).

Alavancar a participação do país nos bancos regionais e multilaterais de desenvolvimento

No que tange ao financiamento da Agenda 2030 no Brasil, o governo brasileiro poderia alavancar a participação do país nos bancos regionais e multilaterais de desenvolvimento, em especial no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e no Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), no qual o Brasil detém a presidência, além do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF) e do Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (AIIB). Isso pode ser feito por meio do apoio à expansão do NDB a outros países da América Latina; da estruturação de operações e (co-)financiamento de projetos que fortaleçam ligações produtivas e cadeias regionais de valor, a integração regional de infraestrutura sustentável (Vazquez 2020); e de investimentos complementares aos do SNF, em linha com os ODS e ações lideradas pelos seus membros em prol da Agenda 2030. Exemplos dessas ações incluem a Aliança Solar Internacional, da Índia, a Global Development Initiative e o Belt and Road Initiative, ambos liderados pela China, e a Environmentally Sound Technology Platform, no âmbito dos BRICS, entre outros.

Em 2022, a CAF aprovou aumento de capital de US$ 7 bilhões, permitindo ao banco duplicar a sua carteira até 2030. No caso do NDB, estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) apontam que o banco teria um volume de capital para empréstimos de US$ 25-30 bilhões entre 2020 e 2025 e de US$ 45-65 bilhões nos cinco anos seguintes. Já no AIIB, a disponibilidade de capital para empréstimo poderia atingir US$ 120 bilhões até 2030 (Baumann 2017).   

Relançar o Relatório Nacional Voluntário sobre os ODS

Terceiro, o governo brasileiro poderia relançar o Relatório Nacional Voluntário sobre os ODS (ABDE 2022) para avaliar o cumprimento da Agenda 2030, mensurar o que ainda precisa ser feito e reafirmar o compromisso com o multilateralismo antes da Cúpula do Futuro da ONU[10] em setembro de 2023. A avaliação sistemática do cumprimento das metas e indicadores dos ODS começou em 2016 e deverá ocorrer ao longo dos 15 anos de vigência da Agenda 2030, período em que os países deverão submeter seus relatórios nacionais voluntários ao menos uma vez. Mais de 120 países já submeteram os seus relatórios, reafirmando o seu compromisso com o enfrentamento dos maiores desafios globais. O Brasil apresentou o seu primeiro e único relatório em 2017.

Atualmente, menos da metade das metas e indicadores da Agenda 2030 internalizados pelo Brasil são mensurados.[11] Dentre eles, a minoria possui séries estatísticas contínuas, atualizadas e desagregadas por regiões e grupos de maior vulnerabilidade social. Em 2017, o TCU apontou a necessidade de melhorar a mensuração dos indicadores da Agenda 2030 por meio da desagregação de dados por município e gênero.[12] Tampouco existem classificações, mensurações e monitoramento comuns para o financiamento dos ODS pelo SNF, dificultando a comparabilidade de dados e a troca de informações entre as instituições financeiras de desenvolvimento no país. 

O monitoramento da Agenda 2030 pode apoiar a identificação e o financiamento de políticas públicas em áreas prioritárias para o país, além de ser um importante exercício de prestação de contas à sociedade brasileira. Cada ponto no avanço dos ODS significa mais qualidade de vida para a população brasileira, uma economia mais produtiva e eficiente, e um meio ambiente mais protegido e estável, podendo ser usado pelo governo brasileiro como soft power no plano internacional.

O monitoramento da Agenda 2030 pode apoiar a identificação e o financiamento de políticas públicas em áreas prioritárias para o país, além de ser um importante exercício de prestação de contas à sociedade brasileira. Cada ponto no avanço dos ODS significa mais qualidade de vida para a população brasileira, uma economia mais produtiva e eficiente, e um meio ambiente mais protegido e estável, podendo ser usado pelo governo brasileiro como soft power no plano internacional.  

POSICIONAR O BRASIL FRENTE ÀS GRANDES TRANSFORMAÇÕES GLOBAIS 

Uma agenda estratégica e de futuro também deve estar atenta ao potencial disruptivo das grandes transformações globais e promover ações que minimizem os riscos e maximizem as oportunidades para o desenvolvimento sustentável e inclusivo do país oriundas de três cenários futuros. O primeiro deles é o deslocamento do eixo geopolítico do Ocidente para a Ásia com o aumento do peso econômico da China e da Índia e da influência desses países também no campo das ideias e princípios que orientam as relações internacionais, além do potencial de mercados como os da Coreia do Sul, Indonésia, Singapura, e Vietnã para o Brasil.

Atualmente, cinco das maiores economias do mundo estão no continente asiático. Juntos, China, Coreia do Sul, Índia, Indonésia e Japão representam 32% do total das correntes comerciais dos países do G20, 39% do Produto Interno Bruto segundo a paridade de poder de compra (PIB-PPC), 63% da população e 18% da extensão geográfica do bloco. A China já ultrapassou os Estados Unidos como a maior economia do mundo em termos de PIB-PPC, e a Índia deve subir ao segundo lugar até 2050, segundo estimativas da consultoria PwC e do Fundo Monetário Internacional (FMI). 

Segundo dados do Ministério da Economia, o comércio Brasil-China saltou de US$ 6,5 bilhões em 2003 para mais de US$ 120 bilhões em 2022. Em 2021, mais de US$ 47 bilhões das importações brasileiras vieram da China, tendo bens de média e alta complexidade tecnológica correspondido a 21,7% desse fluxo. No mesmo ano, a China foi destino de 31,3% das exportações brasileiras (US$ 87,9 bilhões). Commodities como soja, minério de ferro e petróleo concentraram 77% das vendas do Brasil para o país asiático. Em relação aos investimentos chineses no Brasil, estima-se que 34,5 mil empregos locais tenham sido criados entre 2003 e 2020 com a entrada de projetos greenfield crescentemente em setores de tecnologia digital e verde (CEBC 2021).

Já o comércio entre o Brasil e a Índia aumentou de US$ 1 bilhão para US$ 14 bilhões no mesmo período, apesar das oscilações entre 2012 e 2019 (Ipea 2021). Como no caso da China, é preciso buscar maior diversificação e complexidade da pauta exportadora direcionada ao país asiático, hoje fortemente concentrada em produtos de menor valor agregado como petróleo cru, gorduras e óleos vegetais, açúcares e melaços e minérios de cobre. Já as exportações indianas para o Brasil se concentram quase exclusivamente em produtos industrializados como compostos orgânicos e inorgânicos, óleos combustíveis, inseticidas, medicamentos e fios têxteis. Os investimentos indianos no Brasil totalizam US$ 8 bilhões e geram entre 25 e 30 mil empregos em setores como tecnologia da informação, farmacêutico e eletrônicos.[13]

Esses dados apontam a assimetria no comércio bilateral e a oportunidade de se pensarem estratégias de diversificação, aumento de complexidade e agregação de valor das exportações brasileiras dentro de um processo de reindustrialização sustentável e inclusiva do Brasil, que se beneficie de parcerias com países como a China e a Índia para a transferência de tecnologias, a geração de empregos, a redução de emissões, a integração com novas cadeias globais de valor e a implementação da Agenda 2030 (Assis 2022, Falsetti & Ungaretti 2022). China e Índia também defendem a democratização das relações internacionais como meio para a multipolaridade, o respeito à soberania dos Estados, a não interferência em assuntos domésticos, horizontalidade, não imposição de condicionalidades e benefícios mútuos, dentro de uma construção Sul-Sul.

No âmbito do Mercosul, China e Índia são, respectivamente, o primeiro e o quarto maior parceiro comercial do mercado comum, sinalizando a oportunidade de o Brasil de articular uma maior aproximação do Mercosul com esses países e blocos econômicos da Ásia. Para além dos dois gigantes asiáticos, estimativas apontam que as negociações de um acordo de livre comércio do Mercosul com Indonésia, Vietnã, Coreia do Sul e Singapura trariam um aumento no PIB brasileiro de US$1 bilhão, além de impactos positivos nos investimentos, na corrente de comércio e na massa salarial (SECEX 2021a, 2021b). Novas correntes de comércio baseadas na agricultura sustentável podem ser criadas com países megadiversos como a Indonésia e o Vietnã, hoje vistos pelo agronegócio brasileiro como a “próxima China.”[14] 

A segunda grande transformação global a que o Brasil deve prestar atenção é a revolução tecnológico-digital e a inauguração de um paradigma produtivo de maior competitividade. Esse paradigma nasce em meio ao nearshoring, reshoring[15] e powershoring[16] de processos industriais e outras mudanças estruturais nas cadeias globais de valor que determinarão o acesso a mercados, o futuro do trabalho e a inserção internacional competitiva dos países; e que nos compelem a repensar os sistemas produtivos para um desenvolvimento inclusivo e sustentável. 

Mudanças estruturais não são mais viáveis sem uma indústria neutra, resiliente e digitalizada. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento econômico sustentável exigirá, cada vez mais, inovação e inclusão. Nesse sentido, o governo brasileiro deverá promover ações para que a capacitação, infraestruturação e inserção do Brasil na indústria 4.0 e a busca do país pela liderança na agricultura digital ocorram de forma competitiva, inclusiva, sustentável e sem atrasos. 

A terceira grande transformação global é a transição energética. O compromisso das maiores economias do mundo em neutralizar as suas emissões de carbono terá impacto nas correntes de comércio e investimentos, pressionando as cadeias de suprimentos globais de energia a se adaptarem. Em 2020, a China foi o principal importador mundial de petróleo cru e refinado com um total de US$ 166 bilhões (15,3%) em importações de países como Rússia (15,6%), Arábia Saudita (14,9%), Iraque (10,2%), Angola (7,29%) e Brasil (6,84%). Considerando o alto perfil do petróleo cru na pauta de exportação para a China, o Brasil deverá estar atento aos possíveis impactos econômicos, ambientais e sociais de uma contração da demanda chinesa por combustíveis fósseis e identificar elementos que possam contribuir para o seu reposicionamento efetivo (Vazquez 2021).

Esse reposicionamento também deverá considerar as oportunidades que surgirão em indústrias de baixo carbono e as vantagens competitivas do país. Segundo estimativas da McKinsey (Ferreira & Ceotto 2021), a demanda por créditos voluntários de carbono no Brasil pode atingir de US$ 1,4 bilhão a US$ 2,3 bilhões até 2030. Nesse cenário, o Brasil responderia por 15% do potencial total da oferta de soluções baseadas na natureza. Hoje, o Brasil emite menos de 1% desse valor. Projetos de reflorestamento, de agricultura e de combate ao desperdício de energia poderiam alavancar a geração de créditos de carbono no país, com receita de até US$ 15 bilhões (Reset 2022). A receita da venda dos créditos de carbono poderia financiar o reflorestamento das pastagens degradadas do Brasil, além de contribuir para a redução da fome e da pobreza no país.

A reconfiguração do poder político e econômico do Ocidente para Ásia e a transição global para uma economia mais digital e de baixo carbono demandam uma renovação das políticas públicas no Brasil e um reposicionamento diplomático condizente com essa nova realidade, bem como as demandas, capacidades, anseios e interesses concretos do país.

Articular IED com desenvolvimento tecnológico e agregação de valor nas cadeias produtivas agrícolas e industriais

Posicionar o Brasil frente às grandes transformações globais demandará uma agenda estratégica e de futuro que articule investimento externo direto (IED) com desenvolvimento tecnológico e agregação de valor nas cadeias produtivas agrícolas e industriais por meio de parcerias internacionais para o desenvolvimento de hubs de pesquisa, desenvolvimento e inovação (PDI). Na Tailândia, uma das maiores empresas de telefonia celular, a AIS, assinou um acordo de cooperação com a chinesa ZTE para criar um hub de pesquisa e desenvolvimento em tecnologia 5G em Bangcoc. As duas empresas pretendem lançar tablets e smartphones conjuntamente, além de oferecer soluções para negócios e construir infraestrutura digital para a tecnologia 5G no país do sudeste asiático. 

Para adensar a integração de PDI e IED, os acordos de cooperação e investimento firmados pelo Brasil poderiam prever a transferência e o desenvolvimento conjunto de tecnologia que acelerem o catch up tecnológico do Brasil, além de incentivos a investimentos em setores capazes de gerar maior ganho de complexidade econômica e no conjunto dos ODS[17] (Vazquez et al 2022, Perrone 2022).

Expandir o comércio do Mercosul com a Índia e o Sudeste Asiático

Tendo em conta as negociações entre o Mercosul e a Índia, a Indonésia e o Vietnã, o governo brasileiro poderia expandir a lista de produtos e o nível das preferências concedidas mutuamente, além de aproximar o bloco da Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN). O governo brasileiro também poderia trabalhar em um pacote multisetorial de acordos de facilitação comercial incorporando algumas das agendas inovadoras que Brasil e Índia têm promovido na Organização Mundial do Comércio (OMC) e criar capítulos específicos como medidas não tarifárias, sistemas de pagamentos em moeda local e cooperação técnica em agricultura para apoiar a expansão sustentada das correntes comerciais com a Índia e a Agenda 2030. 

Apoiar alianças internacionais em energias renováveis

Outra ação é a promulgação do projeto de lei que aprova a entrada do Brasil na Aliança Solar Internacional. A iniciativa foi apresentada pela Índia e pela França na Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP-21), em dezembro de 2015, para o enfrentamento de desafios comuns à difusão da energia solar. O acordo entrou em vigor em 2017 e conta com 102 países signatários e 81 membros. No Brasil, o Acordo-Quadro sobre o Estabelecimento da Aliança Solar Internacional (PDL 271/2021) foi aprovado pelo plenário do Senado em outubro de 2022. A entrada do Brasil na Aliança Solar Internacional pode acelerar a adoção da energia solar no país[18], favorecer a atração de novos investimentos em energias renováveis, além de incentivar a participação do Brasil na negociação de novas alianças, como a aliança global de biocombustíveis, a ser proposta durante a presidência indiana do G20 em 2023.

Criar linhas de financiamento para impulsionar a descarbonização do Brasil e da América Latina

Igualmente importante seria aprofundar o diálogo entre as instituições financeiras de desenvolvimento brasileiras e suas contrapartes chinesas e de terceiros países para a operacionalização de iniciativas como o Fundo de Kunming para a biodiversidade e a criação de linhas de financiamento ágeis e desburocratizadas em energias capazes de impulsionar a descarbonização do Brasil, somando-se a iniciativas como o Fundo Clima e o Renova Bio.[19]

O governo brasileiro poderia, ainda, trabalhar para ampliar o acesso do Brasil e demais países da região ao Fundo de Cooperação China-América Latina, o Fundo de Investimento para a Cooperação Industrial China-América Latina e Caribe e o Fundo Especial para Infraestrutura China-América Latina no contexto da transição energética global e cumprimento da Agenda 2030. Estima-se que os fundos de investimento em desenvolvimento da China tenham recebido US$ 155 bilhões em capitalização entre 2007 e 2019. Somando fundos específicos para o Brasil e o México, a América Latina e o Caribe têm o maior montante total potencial de capital, com US$ 42,2 bilhões (Moses et al 2022).

Posicionar o Brasil como líder global na geração de créditos de carbono

Com base nas vantagens competitivas do Brasil, seria oportuno posicionar o país como líder global na geração de créditos de carbono por meio da transferência de tecnologia e atração de investimentos externos para projetos de sequestro de carbono, inclusive entre países amazônicos. O governo brasileiro poderia, ainda, desenvolver taxonomias verdes em conjunto com outros países, a exemplo do Ground Taxonomy - Climate Change Mitigation entre o Banco Popular da China (PBoC) e a Comissão Europeia. Iniciativas que aumentem a comparabilidade e interoperabilidade com os mercados de créditos de carbono na China,[20] Europa e nos Estados Unidos são fundamentais para garantir a fungibilidade dos créditos de carbono gerados no Brasil e a sustentabilidade dos fluxos transfronteiriços de capital. 

Em paralelo, seria oportuno avançar a cooperação Sul-Sul entre o Brasil, a Indonésia e a República Democrática do Congo anunciada na COP 27 no sentido de incluir outros países com grandes áreas de floresta tropical e garantir melhores condições de financiamento de ações para a preservação da biodiversidade e a geração de créditos de carbono pelos países mais afetados pela mudança climática.

REENGAJAR O BRASIL NO MUNDO E RESGATAR O SEU PROTAGONISMO INTERNACIONAL

Por fim, uma agenda estratégica e de futuro deve reengajar o Brasil no mundo e resgatar o protagonismo internacional do país de forma pragmática e não excludente. Isso significa ter como base as melhores parcerias para a defesa dos interesses nacionais e do multilateralismo, de um lado, e a cooperação para o enfrentamento de desafios transnacionais e a provisão de bens públicos globais, de outro. Na América do Sul, a construção de um entorno regional politicamente estável, próspero e unido depende do reengajamento brasileiro, ao mesmo tempo em que contribui para o desenvolvimento do Brasil e fortalece a posição do país e da região frente às grandes potências mundiais. Para impulsionar uma relação ganha-ganha, o governo brasileiro deverá reinserir o país em foros regionais de concertação política e reforçar os alicerces econômico-comerciais entre o Brasil e os seus vizinhos.

…uma agenda estratégica e de futuro deve reengajar o Brasil no mundo e resgatar o protagonismo internacional do país de forma pragmática e não excludente. Isso significa ter como base as melhores parcerias para a defesa dos interesses nacionais e do multilateralismo, de um lado, e a cooperação para o enfrentamento de desafios transnacionais e a provisão de bens públicos globais, de outro.

A energia renovável e de transição pode ser um desses alicerces econômico-comerciais ao orientar a integração produtiva entre o Brasil e os demais países da América do Sul. Estudos apontam a possibilidade de o gás natural ser o centro de uma integração sul-americana por demandar o estabelecimento de estruturas físicas compartilhadas, além de estender o desenvolvimento a outros setores carentes da região (Ipea 2016). Com exceção dos gasodutos Brasil-Bolívia, Argentina-Bolívia e Argentina-Chile, decisões políticas têm obstaculizado os planos estratégicos acordados, como a construção do Grande Gasoduto do Sul, vindo da Venezuela pelo Brasil interligando os gasodutos do Mercosul. Nesse sentido, a conjunção de governos progressistas e conservadores moderados na região poderá facilitar a construção das bases da integração regional.

Na África, o Brasil pode ter a infraestrutura sustentável como vetor de reaproximação com o continente. Como resultado de uma década de decoupling econômico no Atlântico Sul, o Brasil exportou apenas US$ 7,5 bilhões para a África, a maioria em produtos primários, em 2019. O país também esqueceu o seu papel estratégico no Golfo da Guiné e a força econômica que resultou em grandes projetos de investimento e infraestrutura em Angola, Namíbia e Moçambique. Na África Oriental, o comércio bilateral caiu de US$ 362 milhões em 2011 para apenas US$ 80 milhões em 2019 (Instituto Brasil-África 2021). Esse cenário se agravou ainda mais após a pandemia. 

As cadeias de valor brasileiras e africanas podem ser adensadas, qualificadas e integradas no marco do Acordo Continental Africano de Livre Comércio (AfCFTA), um mercado estimado em US$ 2,5 bilhões que abrange mais de 1,2 bilhão de pessoas em 55 países. Estima-se que o acordo aumente o consumo do continente para US$ 6,7 bilhões até 2030, ofereça acesso a inputs e serviços mais baratos, e impulsione a modernização do agronegócio e a industrialização no continente africano, levando a um aumento da demanda por produtos de maior valor agregado em que o Brasil tem vantagem competitiva, como maquinaria e componentes para o agronegócio. À luz da experiência de projetos como o ProSavana, seria importante conciliar investimentos com mecanismos de prevenção, mitigação e compensação de impactos socioambientais e que contribuam para a segurança alimentar e redução da pobreza no continente africano.

O comércio brasileiro também pode se beneficiar indiretamente dos portos, estradas e corredores econômicos construídos no âmbito do Belt and Road Initiative para mover os seus produtos até os países do Indian Ocean Rim,[21] onde a presença brasileira ainda é baixa. Os projetos de infraestrutura da Iniciativa do Cinturão da Rota no Quênia, na Tanzânia e em Moçambique, como o Nairobi-Mombasa Railway, poderão expandir as exportações da África Oriental em US$ 192 milhões por ano (Instituto Brasil-África 2021). Nesse sentido, o governo brasileiro pode impulsionar acordos de facilitação de comércio e investimento em linha com a Agenda 2030, além de fortalecer a concertação política com o continente.

O diálogo com os Estados Unidos e a Europa pode ser profícuo, dado o interesse crescente desses países em temas caros ao Brasil, como mudanças climáticas, democracia e desenvolvimento econômico. É possível construir uma relação não excludente com a China e outras economias emergentes engajadas, por exemplo, no tema ambiental. Com a possibilidade de se tornar a única economia do mundo no G-20, nos BRICS e na OCDE, o Brasil poderá se posicionar como um parceiro estratégico na construção de pontes globais. O governo brasileiro pode usar o Ibas como vetor dessa estratégia à luz da presidência indiana do G20 em 2023, da presidência brasileira dos BRICS e do G20 em 2024, e da presidência sul-africana do G20 em 2025 (Malhotra 2022).

Fortalecer a interlocução do Brasil na América Latina

Para reengajar o Brasil no mundo e resgatar o protagonismo internacional do país, o governo brasileiro deverá fortalecer o diálogo com os demais países da América Latina por meio do reingresso do Brasil na Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e da União de Nações Sul-Americanas (Unasul). O governo brasileiro pode, ainda, atuar pela aproximação entre a Celac e outras regiões como a Índia, a África (via AfCFTA), o Conselho de Cooperação do Golfo Pérsico (CCGP) e a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) por meio da criação de mecanismos de diálogo próprios. Tanto o retorno do Brasil à Celac e à Unsaul quanto a aproximação da CELAC com outras regiões poderão, ainda, fortalecer o Brasil e a América Latina frente à disputa entre os Estados Unidos e a China. 

Articular os maiores produtores de lítio e gás natural da América Latina

Outra estratégia seria posicionar os maiores produtores de lítio e gás natural da América Latina frente à crescente demanda de países como China, Coreia do Sul, Estados Unidos e Japão. A demanda global por lítio para uso em veículos elétricos aumentou exponencialmente nos últimos anos. A Argentina (18 milhões de toneladas de reservas) iniciou a exploração, mas ainda não produz em escala. O Chile, que tem a terceira maior reserva (10 milhões de toneladas), responde por 26% da oferta global.

O ponto de partida para essa articulação seria a ratificação do Protocolo de Adesão da Bolívia ao Mercosul (PDC 745/2017), a entrada da Bolívia no Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul (Focem), e a criação de padrões sócio-ambientalmente responsáveis pela extração, produção e comercialização do lítio no âmbito da organização. O governo brasileiro pode, ainda, considerar retomar a negociação do Tratado Energético Sul-Americano para tornar a geração e o consumo de energia na região mais eficientes.

Revigorar a parceria econômica e política com a África

Outra estratégia a ser perseguida é revigorar a parceria econômica e política com a África por meio da ratificação do Protocolo da Rodada de São Paulo sobre o relançamento do Sistema Global de Preferências Comerciais (GSTP) entre países em desenvolvimento. O Protocolo da Rodada de São Paulo entrará em vigor após a ratificação por pelo menos quatro dos seus oito signatários. Até a data, o Protocolo foi ratificado pela Índia (2010), Malásia (2011) e Cuba (2013). Dois dos quatro membros do Mercosul, Argentina e Uruguai, completaram as suas ratificações. Brasil e Paraguai devem ratificar o Protocolo para completar a ratificação do Mercosul. 

Igualmente importante seria alinhar a cooperação e o financiamento em projetos de infraestrutura sustentável, a produção de biocombustíveis e o desenvolvimento de setores estratégicos para as duas regiões, além de apoiar a criação da aliança de países produtores de biocombustíveis durante a presidência indiana do G20 em 2023 e lançar o Fórum G20+África durante a presidência brasileira do G20 em 2024 para cooperação e desenvolvimento sustentável.

Construir pontes e injetar vitalidade no debate global sobre desenvolvimento sustentável

Por fim, o governo brasileiro poderia converter a pandemia e a guerra na Ucrânia em uma oportunidade para construir pontes entre as grandes potências, as economias emergentes e os países em desenvolvimento, e soluções conjuntas para desafios globais como a transição energética justa, a erradicação da pobreza e da insegurança alimentar, a construção de sistemas de saúde equitativos, paz e segurança e governança digital. O governo brasileiro poderia, ainda, atuar pela reorientação do sistema financeiro internacional para iniciativas que acelerem os ODS, promovam ação climática nos países mais afetados e menos responsáveis pelo aquecimento global, e defendam a restruturação da dívida dos países de menor renda.

…o governo brasileiro poderia converter a pandemia e a guerra na Ucrânia em uma oportunidade para construir pontes entre as grandes potências, as economias emergentes e os países em desenvolvimento, e soluções conjuntas para desafios globais como a transição energética justa, a erradicação da pobreza e da insegurança alimentar, a construção de sistemas de saúde equitativos, paz e segurança e governança digital.

A revitalização do Ibas como espaço de coordenação política entre a presidência indiana, sul-africana e brasileira do G20 e a presidência sul-africana e brasileira dos BRICS pode ser o motor desse esforço nos próximos três anos. No novo contexto global, o Ibas pode atualizar suas metas e agenda fundadoras de 2003, alinhando-as com algumas das prioridades do G20 e do BRICS, e oferecendo uma agenda positiva do Sul Global para o desenvolvimento internacional. Nesse sentido, uma medida imediata seria rever a posição do governo brasileiro em relação à proposta da Índia e da África do Sul de suspender as patentes de vacinas da Covid na OMC. Essa medida poderia estimular iniciativas semelhantes no âmbito dos BRICS por meio do Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Vacinas lançado em 2022.

Com a China, o Brasil poderia explorar a criação de uma Aliança para a Erradicação da Fome e da Pobreza na próxima reunião do Fórum China-Celac, aproveitando a experiência dos dois países no combate à fome e à pobreza extrema, a importância da potência agrícola da América Latina para a segurança alimentar da China e a urgência do tema em uma das regiões mais desiguais do mundo. Recentemente foi lançada a Aliança África-China para o Alívio da Pobreza, uma plataforma para o intercâmbio de experiências e a mobilização de recursos para apoiar a redução da pobreza e o desenvolvimento agrícola na África.

INSTITUCIONALIZANDO A AGENDA ESTRATÉGICA E DE FUTURO 

As propostas acima devem ser executadas de forma integrada entre as diferentes esferas do governo e da sociedade civil. O primeiro passo seria criar uma Secretaria dos ODS vinculada à secretaria-geral da Presidência da República para secretariar o CNODS e seus grupos de trabalho, monitorar o cumprimento dos ODS no Brasil, produzir relatórios de avaliação – em linha com as tendências internacionais e discussões sobre a agenda pós-2030 para alimentar os grupos de trabalho – e coordenar a elaboração do Relatório Nacional Voluntário sobre os ODS. 

A Secretaria dos ODS também faria a interlocução nacional com as agências da ONU no Brasil e, para dentro do governo federal, com o Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social (CNDES), o Ministério das Relações Exteriores (MRE) e o Ministério do Meio Ambiente (MMA). O Ipea e o IBGE prestariam assessoramento técnico à produção dos relatórios de avaliação e o Relatório Nacional Voluntário. A Enap apoiaria a capacitação de gestores e lideranças do governo para os ODS, enquanto os ministérios econômicos e o Tribunal de Contas da União alinhariam a Agenda 2030 e os investimentos do SNF com o ciclo de planejamento, orçamento e gestão.

No que tange ao posicionamento do Brasil frente às grandes transformações globais, a Secretaria Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, em colaboração com os ministérios econômicos, o MRE e o Ipea, poderiam desenvolver estudos e facilitar grupos de trabalho para antecipar, assimilar e entender o potencial disruptivo das grandes transformações globais; informar políticas públicas; pautar e preparar as reuniões do G20, BRICS e outras grandes conferências que o Brasil irá sediar; e iniciar projetos e ações em eixos estruturantes. 

Esses órgãos poderiam, ainda, articular a criação de um “ecossistema de futuro”[22] conectando estudiosos e praticantes com formuladores de políticas para identificar oportunidades de colaboração, trazer novas perspectivas, além de contribuir para confirmar – ou redefinir – áreas prioritárias e avançar projetos de interesse comum do Brasil e de seus parceiros no exterior. Esse ecossistema poderia incluir uma rede de assessores especiais na China, à luz da experiência do Ministério da Agricultura, coordenada por um núcleo na Vice-Presidência da República.

Por fim, recomenda-se alinhar, de maneira mais explícita, a cooperação internacional para o desenvolvimento com o financiamento de iniciativas estratégicas em setores-chave para o Brasil e os seus parceiros no exterior, por meio da coordenação entre a Agência Brasileira de Cooperação (ABC/MRE), o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social (BNDES) e os ministérios econômicos do governo brasileiro.

Notas

[1] A autora agradece a Adauto Modesto Jr, Carlos Timo, Edgard Porto, Filipe Porto, Gustavo Rojas, Ivan Oliveira, Jean Taruhn, João Bosco Monte, Lavínia Barros de Castro, Mayra Juruá e Rafael Paulino pelos comentários às versões preliminares do texto. A autora agradece, ainda, à equipe de pesquisadores, à Associação Brasileira de Desenvolvimento e aos 50 entrevistados do Plano ABDE 2030 de Desenvolvimento Sustentável pelas reflexões que contribuíram para este policy paper.

[2] Lançados em 2000, os ODM continham metas para tornar o mundo melhor e mais justo até 2015: http://www.fiocruz.br/omsambiental/media/ODMBrasil.pdf.

[3] Em setembro de 2019, líderes globais reunidos em Nova York definiram o lançamento da Década da Ação, um movimento que teve início em janeiro do ano seguinte para acelerar o cumprimento dos ODS globalmente.

[4] Com o redirecionamento da estratégia de atuação dos bancos públicos a partir de 2016, o volume de repasse do BNDES a outras instituições financeiras de desenvolvimento caiu de R$ 39,3 bilhões em 2014 para R$ 6,5 bilhões em setembro de 2021. A mudança na estrutura de juros do BNDES em 2017 também contribuiu para a diminuição do funding das instituições financeiras de desenvolvimento brasileiras.

[5] PL 1308/2021.

[6] Decreto n° 8.892, de 27 de outubro de 2016.

[7] Composto por 32 bancos públicos e de desenvolvimento federais e estaduais, agências de fomento, bancos cooperativos, além da Finep e do Sebrae, cuja missão é promover o desenvolvimento brasileiro por meio do financiamento a setores estratégicos.

[8] Decreto n° 9.759/2019 de 11 de abril de 2019.

[9] Decreto n° 9.980, de 20 de agosto de 2019.

[10] Proposta pelo secretário-geral da ONU na “Nossa Agenda Comum”, a Cúpula do Futuro terá como objetivo reafirmar a Carta das Nações Unidas, revigorar o multilateralismo, impulsionar a implementação dos compromissos existentes, acordar soluções concretas para os desafios e restabelecer a confiança entre os estados-membros.

[11] Segundo dados sobre os ODS nos sites do IBGE e do Ipea.

[12] Acórdão 298/2017 (TCU 2017).

[13] Dados fornecidos pelo embaixador da Índia no Brasil, Suresh Reddy, em novembro de 2022.

[14] Entrevista com representante do governo brasileiro em setembro de 2022.

[15] Os termos nearshoring e reshoring dizem respeito, respectivamente, ao processo de aproximação e internalização das cadeias produtivas no país de origem, que tem ganhado cada vez mais peso na agenda americana e europeia no contexto da guerra comercial com a China.

[16] Segundo Arbache (2022), o powershoring refere-se à descentralização da produção para países próximos a centros de consumo e que oferecem energia limpa, segura, barata e abundante, além de outras virtudes para a atração de investimentos industriais.

[17] Os setores com maior potencial de transformação econômica (ganho de complexidade) e social (ganho de ODS) em cada macrorregião foram identificados no estudo-base do Plano ABDE 2030 de Desenvolvimento Sustentável (Vazquez et al 2022).

[18] Estima-se um crescimento entre 7% e 10% da energia solar no Brasil após a mudança na política de incentivos. Consulta a representantes de banco de desenvolvimento brasileiro realizada entre agosto e setembro de 2022.

[19] Em geral, instituições financeiras de desenvolvimento tradicionais exigem condicionalidades que, se por um lado incentivaram a internalização da Agenda 2030 nas instituições financeiras de desenvolvimento brasileiras, por outro dificultam o acesso das instituições de menor porte, com atuação mais localizada e menor capacidade e entendimento dos ODS a estes recursos. Entrevistas realizadas com representantes de instituições do SNF entre janeiro e outubro de 2022.

[20] A China considera usar os Internationally Transferred Mitigation Options (ITMOs) do Artigo 6 do Acordo de Paris gerados nos países do Belt and Road Initiative para fins de compensação em seu Esquema de Comércio de Emissões de Carbono (ETS) nacional, dada a escassez de oferta de Chinese Certified Emission Reduction (CCER) no país. A medida pode criar uma fonte significativa de demanda para ITMOs.

[21] África do Sul, Austrália, Bangladesh, Cômoros, Emirados Árabes Unidos, Iêmen, Índia, Indonésia, Irã, Quênia, Malásia, Madagascar, Ilhas Maurício, Moçambique, Omã, Seicheles, Singapura, Sri Lanka, Tanzânia e Tailândia.

[22] No Chile, o grupo Nueva Política Exterior (NPE) é uma rede progressista e apartidária com o objetivo de gerar conhecimento, promover o diálogo político e contribuir para a política externa e as relações internacionais do país. Por meio de várias atividades de diálogo, pesquisa e divulgação, o grupo promove a cooperação entre especialistas, tomadores de decisão e uma pluralidade de atores ligados às relações internacionais do Chile.

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Recebido: 4 de novembro de 2022

Aceito para publicação: 16 de novembro de 2022 

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