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Seção Especial

A guerra na Ucrânia: uma análise geopolítica

Integridade territorial e condições de segurança

Resumo

O presente trabalho apresenta algumas interpretações preliminares dos efeitos da guerra na Ucrânia para o sistema interestatal e para o Brasil, tendo em vista a teoria geopolítica clássica, anglo-saxã e brasileira. O argumento central é que a causa primária para a deflagração da guerra é a sensibilidade geográfica inerente às grandes potências no que diz respeito à sua integridade territorial e às condições de segurança em seu entorno, caso que se observou com a Rússia. Sendo a guerra na Ucrânia um evento em desenvolvimento, busca-se avaliar os aspectos mais significativos que já podem ser destacados, relacionando-os às mudanças estruturais ocorridas nos últimos 15 anos. Por fim, são mostradas indicações referentes ao desafio de revisão da “grande estratégia” brasileira diante do novo cenário geopolítico que se apresenta. 

Palavras-chave:

Brasil; geopolítica; guerra na Ucrânia; grande estratégia.
Imagem: Shutterstock.

Podemos afirmar que a eclosão da guerra na Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022 representou um “acelerador de tendências” já pré-existentes, como a crise na globalização, as tensões sobre as cadeias produtivas e o imperativo dos fatores de segurança nacional na “grande estratégia” das principais potências. E, ainda mais importante, pelo menos desde a crise econômica e financeira de 2007/2008, já se manifestavam fenômenos relacionados a uma disputa sistêmica em torno de como resultariam a configuração e o balanço de forças entre as grandes potências neste século XXI. 

Pode-se dizer que, desde o “episódio Lehman Brothers” – o primeiro choque na hiperglobalização instaurada ao fim da Guerra Fria, com a vitória de um dos polos da contenda, o liderado pelos Estados Unidos –, o mundo assistiu a uma sucessão de eventos de grande intensidade geopolítica: as repercussões políticas da desindustrialização nos países desenvolvidos, com o Brexit na União Europeia e depois com a presidência de contestação sistêmica de Donald Trump, nos Estados Unidos, que “dobra a aposta” na confrontação com a China, herdada da presidência de Obama; a eclosão da pandemia de Covid-19, cujos efeitos mais agudos são, além de milhões de mortes, a paralisia da economia mundial e a destruição de forças produtivas. Na sequência, antecedida pela declaração sino-russa de 4 de fevereiro último, inicia-se o que os russos denominam “operação militar especial”, dando partida a um confronto bélico de grandes proporções no Leste da Europa com dramáticas consequências, como se buscará demonstrar neste texto. Vistos em conjunto, esses eventos encadeados têm fortes consequências sobre o sistema e a ordem internacional.

Neste trabalho, além desta breve introdução, buscaremos a seguir discutir os fatores que deram origem à guerra na Ucrânia, sobretudo aqueles relacionados à sensibilidade geográfica típica de grande potência, no caso, da Rússia, em relação a seu território. Buscaremos ainda apresentar o desenvolvimento da guerra, ao completar seis meses de sua eclosão, no momento da redação deste trabalho; em seguida, observaremos algumas consequências sistêmicas da guerra; por fim, buscaremos discutir, preliminarmente, os impactos relevantes para o projeto brasileiro.  

GUERRA NA UCRÂNIA: SUAS ORIGENS E SEU DESENVOLVIMENTO

O conflito iniciado em 24 de fevereiro último não poderá ser compreendido em sua plenitude sem uma breve digressão histórica acerca dos fatores que levaram à sua eclosão. 

Primeiro, pelo fator histórico mais remoto, relacionado a ser a “Rus de Kiev” a origem da própria nacionalidade russa. Os séculos seguintes veriam o centro de gravidade da Rússia como nação transladar-se a Moscou e São Petersburgo, mas a origem da nacionalidade não pode ser subestimada para compreender exatamente por que a Ucrânia representa, no imaginário russo, uma “linha vermelha” existencial de sua identidade nacional. 

A existência da Ucrânia independente, apartada da Rússia, é obra da construção da União Soviética após a Revolução de 1917, quando a questão nacional passa a ter uma interpretação singular no âmbito da cosmovisão do marxismo-leninismo, que, por décadas, hegemonizaria as 15 repúblicas soviéticas que a conformavam, em especial a interpretação leninista quanto à “autodeterminação dos povos”. 

O desfecho da Guerra Fria nos episódios de 1989/1991 é o passo seguinte a ser observado. A vitória do bloco liberal-ocidental essencialmente decorre do colapso da União Soviética, após cinco décadas de vigência de uma sofisticada “geopolítica da contenção” (containment), originada na teoria clássica anglo-saxã – com Mackinder e Spykman –, tomando forma no Departamento de Estado pela ímpar figura de George Kennan em seu longo telegrama. A prolongada contenção ao longo das cinco décadas da Guerra Fria tem seu episódio definidor, como argumentamos em trabalho recente (Carmona 2019), na manobra kissingeriana que logra potencializar diferenças ideológicas entre a liderança chinesa e a soviética no início dos anos 1970 – recentemente registrou-se o cinquentenário da visita do presidente Nixon ao presidente Mao em Pequim, 1972.  

O fato é que, ao longo das duas décadas que seguiram a essa visita, a China iniciaria, poucos anos depois – em 1978, com o início da política de “reforma e abertura”, magistralmente concebida por Deng Xiaoping –, uma ascensão (ou melhor, uma re-ascensão, dada sua posição anterior à chamada guerra do ópio) no sistema internacional, cujas consequências se fazem sentir na sua plenitude nos dias de hoje, na atual disputa sistêmica em torno da supremacia mundial. 

Já a União Soviética, exaurida por uma disputa que sua base material não lograria sustentar, agravada por problemas internos de diversas ordens, acabaria por render-se unilateralmente através de sua dissolução em 1991, rendição que não foi mediada por qualquer acordo quanto aos termos deste colapso. Há quem argumente quanto ao compromisso norte-americano, quando da aceitação por Gorbachov da reunificação da Alemanha, de abster-se da expansão da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) a Leste. Contudo, registre-se acordo realizado entre uma parte vencedora, com uma postura triunfalista – representada pela ideia, como diria Fukuyama, da eternidade do sistema liberal-ocidental com o fim da história –, e a outra, em colapso, sem condições de impor qualquer exigência relevante.   

O fim da URSS e a liderança de Yeltsin marcam uma humilhação histórica de grandes proporções para o velho império russo.  Estrategistas norte-americanos, como o russófobo de origem polaca Zbigniew Brzezinski, chegam a propor o golpe de misericórdia que seria a fragmentação territorial da Rússia, para que ela jamais pudesse se reerguer. 

Porém, já no ocaso do decadente governo de Yeltsin, a emergência do primeiro ministro Vladimir Putin e da figura do chanceler Evgueni Primakov marca o início da restauração dos objetivos geopolíticos da Rússia. Em especial cabe destacar, na Doutrina Primakov, a ideia de que a Rússia deveria voltar sua atenção para a Eurásia, restabelecer sua zona de influência e trabalhar pela multipolarização do sistema internacional. A ascensão de Putin à presidência no ano 2000 iniciaria duas décadas de reconstrução lenta, mas persistente, do poder nacional russo, ancorado principalmente nos excedentes de energia, sobretudo petróleo e gás natural, e também no legado do parque científico e tecnológico soviético e de seu suporte à recomposição de sua indústria militar. 

As três décadas após o fim da Guerra Fria marcariam sucessivas ondas de expansão da OTAN a Leste, incorporando, na prática, quase todo o antigo Pacto de Varsóvia.  

Figura 1: Expansão da OTAN na Europa. Fonte: Munich Security Conference (2022).

Figura 1: Expansão da OTAN na Europa. Fonte: Munich Security Conference (2022). 

Não seria exagerado considerar a Ucrânia o “ventre-mole” do império russo, isto é, sua área de maior sensibilidade territorial e, portanto, nacional – tendo em vista ser a geografia a questão de maior sensibilidade de uma nação. Não por acaso, a compreensão mais recente da crise atual precisa ser observada em seu ponto inicial na chamada “Revolução Laranja” nas eleições presidenciais ucranianas de 2004, assim denominada pela cor que simbolizava a campanha do candidato de oposição, Viktor Yushchenko. O evento desencadeia as chamadas “Revoluções Coloridas”, uma série de acontecimentos em cascata ocorridos em países do entorno russo, com nítidas digitais de serviços de inteligência norte-atlânticos visando à desestabilização política de governos pró-Moscou. Os episódios se repetiriam em linhas gerais, quase dez anos depois, no movimento que ficaria conhecido como Euromaidan, no qual uma parcela expressiva da população ucraniana defendia um acordo de associação do país com a União Europeia. Depois, radicalizado, resultaria na deposição do governo pró-Moscou de Viktor Yanukovych em 2014 e, ato contínuo, na invasão militar russa da Crimeia e em partes das oblasti (províncias) de Donetsk e Luhansk, todas de maioria étnica russa. 

A compreensão da crise atual pela dimensão psicossocial é fundamental para entender suas causas de fundo. Observe-se que a Ucrânia é um país de frágil identidade nacional. Grosso modo, a margem oeste do Rio Dnieper sempre sofreu forte influência europeia; a própria cidade de Lviv, a maior na porção mais ocidental do país, em tempos mais remotos era parte do império austro-húngaro. Por outro lado, a parte a Leste do Dnieper e o Sul da Ucrânia têm uma identidade russa bastante acentuada. A província da Crimeia, aliás, sede da esquadra russa do Mar Negro, foi uma concessão do ucraniano Nikita Kruchov, quando liderou a União Soviética, à então República Soviética da Ucrânia, um fato nunca bem aceito pelos russos em função da posição geoestratégica fundamental daquela região para Moscou.      

A atual guerra na Ucrânia, portanto, se origina de uma combinação de fatores, que vão da cosmovisão nacional russa a respeito do que representa esse país para sua própria nacionalidade, combinada com a expansão contínua da OTAN à esfera de influência da Rússia, cuja “linha vermelha”, na argumentação de Moscou, foi a ameaça da incorporação à instituição militar norte-atlântica. 

Vale recordar que, em 17 de dezembro de 2021, o governo russo propôs um acordo aos Estados Unidos e à OTAN visando preservar aquilo que Moscou considera como seus interesses de segurança vitais. Nesse documento, ignorado por Washington e Bruxelas, propunha-se, dentre outras coisas, a neutralidade militar da Ucrânia e a não concentração de mísseis nas fronteiras russas[1] 

O desenvolvimento da guerra na Ucrânia desde 24 de fevereiro 

A transposição das fronteiras ucranianas por tropas russas, após meses de concentração preventiva no seu próprio território, deflagrou a atual campanha militar. Numa primeira fase, a ofensiva militar russa chegou a se estabelecer em quatro frentes. Vejamos o desenvolvimento de cada uma delas nos primeiros meses da guerra. 

A primeira frente desenvolveu-se a partir do Donbass, isto é, das “repúblicas populares” de Donetsk e Luhansk – governos autonomizados no extremo Leste da Ucrânia sob controle político de Moscou desde 2014 –, no qual o objetivo inicial visava à cidade de Mariupol, sede de forças de elites ucranianas, dentre elas o Batalhão Azov, que, por todos estes anos, desde 2014, assediava militarmente de maneira regular as posições pró-Rússia no Donbass. A Siderúrgica Azovstal, onde se entrincheiraram os combatentes pró-Kiev, foi finalmente tomada em 20 de maio, após três meses de duras batalhas. Em seguida, a conquista russa da estratégica cidade de Severodonetsk, em 25 de junho, representou outro avanço importante nos objetivos militares de Moscou na região, que seria completado pela conquista russa da íntegra da oblast de Luhansk após a tomada da cidade de Lisichansk em 3 de julho. Atualmente, num avanço lento, tendo em vista o Teatro de Operações, a Rússia busca a conquista da íntegra da oblast de Donetsk, com a qual poderá proclamar a vitória total no Donbass, região ucraniana de etnia russa, um dos grandes objetivos de guerra para Moscou. 

A segunda frente desenvolveu-se no eixo Crimeia-Kherson. A conquista russa da cidade de Kherson, na embocadura do Rio Dnieper, logo no início da guerra, em 3 de março, foi a primeira vitória expressiva da Rússia. Com essa conquista, a Rússia não apenas resolveu o problema logístico relativo ao abastecimento de água para a Crimeia, como solidificou posição na franja norte do Mar Negro, estabelecendo uma posição, que numa próxima fase da guerra, estima-se, será crucial para a conquista da cidade de Odessa, a Oeste, criando condições para o que nos parece o principal objetivo geoestratégico russo nesta campanha na Ucrânia: o domínio completo da parte ucraniana do Mar Negro, estendendo-o até a Transnístria, região autônoma de maioria russa na Moldavia, conformando, desde o Donbass, o que seria a Novarossia.  

A terceira frente deu-se no eixo Belarus-Kiev. No início da guerra, a partir de tropas estacionadas na aliada Belarus, Moscou deflagrou esta frente visando, aparentemente num primeiro momento, ao cerco e à conquista da capital ucraniana. Após obter o cerco de Kiev, em meados de março, contudo, Moscou começou a retirada do entorno de Kiev, o que se completou totalmente no início de abril. Desde então, ataques a objetivos militares na capital ucraniana continuam a ser registrados por meio de mísseis lançados à distância. Aparentemente, o objetivo inicial russo com o ataque a Kiev foi obrigar as tropas ucranianas a se dividirem, pela importância central que tem, para qualquer país, a defesa de sua capital. Contudo, se forem corretas as declarações do chanceler russo no início de julho na reunião da Liga Árabe no Cairo, que o objetivo russo é a deposição do regime de Kiev, será inevitável a retomada, como objetivo militar, da conquista de Kiev, o que por certo prolongaria a guerra em muitos meses ou até anos. 

Por fim, uma quarta frente observou-se no eixo Kharkiv-Kiev, tendo em vista o objetivo de chegar à capital ucraniana partindo da conquista de Kharkiv (ou Carcóvia), uma grande cidade ucraniana de um milhão e meio de habitantes e capital do país até 1934. A tomada de Kharkiv, contudo, nunca se efetivou, e o cerco russo à cidade começou a ser relaxado em meados de maio, concluindo o recuo no final deste mês. Em junho e julho, movimentos de contraofensiva ucraniana a partir da cidade foram alternados com pequenos avanços russos nos subúrbios de Kharkiv. 

A situação militar da guerra na Ucrânia, no momento em que concluímos este texto – ao sexto mês do conflito –,  caracteriza-se por uma situação de progressão lenta, quer da ofensiva russa, quer da contraofensiva ucraniana, não permitindo, pela via militar estritamente, sob as atuais condições, observar o horizonte de seu desfecho.  

Do ponto de vista russo, pelas dificuldades inerentes para avançar num ambiente eminentemente urbano, em que a progressão de quem ataca é imensamente desfavorável a quem defende, entrincheirado entre a população em instalações civis, como prédios residenciais, na proporção de oito para um, como estimam alguns analistas militares do ambiente tático-operacional nesse contexto. A narrativa russa, de irmãos de sangue, não permite uma ação militar de “terra arrasada”, que implicaria baixas civis extremamente volumosas.  

A narrativa russa, de irmãos de sangue, não permite uma ação militar de “terra arrasada”, que implicaria baixas civis extremamente volumosas.  

As tropas de Kiev, por sua vez, confiam sua capacidade de resistência no impressionante apoio econômico e militar da OTAN. Não podendo as próprias forças da OTAN realizar um engajamento direto no Teatro de Operações – se não por meio de mercenários, forças especiais camufladas ou assessores militares –,  buscam apoiar as forças ucranianas com abundante e moderno material militar, treinamento de tropas e informações de inteligência. Afinal, como se sabe, o engajamento direto da OTAN explicitaria uma guerra com a Rússia, envolvendo, portanto, potências nuclearmente armadas, cujas consequências, no limite, seria a destruição mútua, de todo o planeta, num cenário de armageddon

Contudo, a “linha vermelha” do envolvimento direto da OTAN é bastante tênue. No início de agosto, entrevista de oficial de inteligência ucraniana à imprensa britânica revelou que dados de inteligência americana fariam a diferença para o funcionamento de sua artilharia, o que levou o governo russo a acusar os Estados Unidos de envolvimento direto, com o risco óbvio de escalar o conflito. Já o presumido ataque ucraniano à base aérea de Saki, na Crimeia, a mais de 200 quilômetros da linha de contato, em 9 de agosto, se comprovado, explicitará o fornecimento de armas de alcance longo (300 km) por parte da OTAN aos ucranianos, com riscos de escalar o confronto militar.   

A rigor, o maciço envolvimento militar norte-atlântico em si já representa, no limite e de fato, uma atividade de guerra direta com a Rússia. No final de abril, na base aérea de Ramstein, no Oeste da Alemanha, os Estados Unidos reuniram cerca de 40 países – os 30 membros da OTAN e seus aliados mais próximos, como Japão, Coreia do Sul e Austrália – para coordenar a ajuda militar ao governo Zelensky. Cabe destacar nessa reunião, na base de Ramstein, a proclamação do secretário de Defesa americano, Lloyd Austin, que “nosso objetivo na Ucrânia é enfraquecer a Rússia para que não possa invadir nenhum outro país”, numa revelação da permanência dos objetivos geoestratégicos clássicos de Washington nesta guerra.  

Os Estados Unidos, após mobilizarem cerca de US$ 14 bilhões em ajuda militar nos primeiros três meses de guerra, aprovaram no Congresso, no final de maio, um aporte de mais US$ 40 bilhões em ajuda militar, sendo que, no caso da União Europeia, até final de maio, falava-se em € 2 bilhões em ajuda militar. Essa conta tende a aumentar, a despeito das queixas políticas internas nesses países quanto ao seu expressivo volume, tendo em vista a crise social que se agrava. 

Dentre os equipamentos militares fornecidos pela coalizão da OTAN que conseguiram retardar o avanço russo, e até mesmo possibilitar algum contra-ataque ucraniano, estão os mísseis antitanque Javelin, os drones de origem turca Bayraktar TB2 e, sobretudo, mais recentemente, o sistema de artilharia HIMARS (High Mobility Artillery Rocket System) – bastante semelhante ao sistema Astros 2020, da Avibras, utilizado pelo Exército Brasileiro. Aliás, cabe destacar o papel proeminente dos sistemas de artilharia dos dois lados do conflito. 

Por outro lado, a guerra na Ucrânia tem permitido às Forças Armadas russas testarem um conjunto de novas armas, fruto de seu revigorado complexo industrial-militar. Afinal, nove das cem maiores empresas de Defesa do mundo são russas, segundo o Military Balance, do think thank International Institute for Strategic Studies (IISS) de 2020.  

Destaca-se, em especial, o uso pioneiro, pela Rússia, de artefatos hipersônicos. Em março, a Rússia anunciou ter utilizado o sistema de mísseis hipersônicos de aviação Kinjal, visando a depósitos de munições e suprimentos das forças ucranianas. Esse míssil hipersônico viaja a cinco vezes a velocidade do som e, dada essa capacidade de deslocamento, anula qualquer possibilidade de defesa antiaérea. Trata-se de uma arma absolutamente disruptiva, pela qual atualmente há uma intensa corrida tecnológica para torná-los operacionais, e na qual a Rússia, aparentemente, com o êxito do experimento, tornou-se a potência pioneira na sua utilização. É praticamente um consenso entre os analistas militares que a entrada em cena dos mísseis hipersônicos, potencialmente, anula a capacidade de defesa antiaérea de um país, inclusive contra artefatos nucleares. Fala-se de uma revolução hipersônica, tamanho seu efeito disruptivo.  

Dimensões não militares da Guerra 

A guerra na Ucrânia vai muito além da dimensão militar. O próprio desenvolvimento desse conflito, aliás, permite refletir sobre a natureza e as tendências da guerra contemporânea e projetá-las para o futuro. Podemos dizer que, mais que nunca, a “guerra não guerra”, ou a dimensão não militar da guerra, por vezes toma tanta preponderância quanto o engajamento bélico entre as duas partes em confronto.   

A guerra na Ucrânia vai muito além da dimensão militar. O próprio desenvolvimento desse conflito, aliás, permite refletir sobre a natureza e as tendências da guerra contemporânea e projetá-las para o futuro. 

Nessa guerra, destaca-se em especial duas outras dimensões em que o conflito é travado: uma relacionada à natureza informacional e de propaganda, e outra relativa à guerra econômica, por meio das sanções impostas à Rússia, em especial pelos países do G7. 

No primeiro caso, destaca-se a “guerra de narrativas”, um velho lugar comum no que diz respeito à guerra – a ideia de que, na guerra, a primeira vítima é a informação –  torna-se ainda mais verdadeiro com a instantaneidade da informação possibilitada pelo advento das redes sociais em escala planetária. Aliás, o uso de celular na frente de batalha, em especial da plataforma TikTok pelos soldados ucranianos, tem sido uma das vedetes da atual guerra. Ressalte-se ainda, na dita “guerra de narrativas”, a extraordinária mobilização dos grandes conglomerados de comunicação norte-americanos e europeus, de forma quase uníssona, em torno da narrativa ucraniana da guerra e também da midiática figura de seu presidente, Vladimir Zelensky, ele próprio, aliás, tendo ascendido na política após exitosa carreira na TV local. Diante da demonização da figura do líder russo, para além de qualquer juízo de valor sobre sua figura, é fato que, na guerra informacional, a vitória ucraniana ancorada nesses fatores é inconteste. 

A outra frente absolutamente central na qual se trava a guerra na Ucrânia é o que podemos denominar de guerra econômica, convertida numa frente em que, estimou-se inicialmente por parte da OTAN, talvez se radicasse no instrumento principal, ou pelo menos um dos mais importantes, com o qual se poderia derrotar Moscou. A guerra econômica teria potencial até mesmo de contrabalançar a assimetria de poder entre as forças russas versus ucranianas e tendo em vista, como mencionado, a impossibilidade de engajamento direto das forças norte-atlânticas. 

A Rússia, que rigorosamente sofre com sanções à sua economia desde a guerra na Geórgia, em 2008, e viu recrudescer essas sanções com a ocupação da Crimeia e de parte do Donbass em 2014, viu, após a deflagração da atual fase da contenda, em 24 de fevereiro último, uma elevação a níveis sem precedentes dessas penalidades de natureza econômica. No limite, pode-se dizer que se buscou, por parte dos países do G7, uma exclusão da economia russa do sistema capitalista global, de suas relações de comércio, de trocas e meios de pagamentos, algo em nível ainda superior ao que tinha sido endereçado ao Irã no governo Trump, após a denúncia do acordo nuclear firmado por seu antecessor. 

As sanções à economia russa, contudo, se é fato que causaram danos importantes, tiveram efeitos pelo menos suportáveis, ou então não foram um impeditivo para o prosseguimento da campanha militar. Há várias razões para isso. Primeiro porque a Rússia de Putin se preparou longamente para essas barreiras às relações com os países desenvolvidos, não apenas pelas vultosas reservas russas – que ao início da atual fase da guerra somavam estimados US$ 630 bilhões, quase ¼ disso em ouro e aproximadamente 13% em renminbi[2] – mas, sobretudo, por acordos junto a outros grandes países em desenvolvimento, como os BRICS e especialmente a China, o que permitiu maior margem de manobra por parte de Moscou. Cabe destacar, em especial, que as exportações de petróleo e gás, a grande fonte de receita forte da economia russa, foram prontamente recambiadas dos países europeus para a Índia e a China. A alta dos preços não apenas anulou os efeitos das sanções, como elevou as receitas, se comparadas às de 2021. 

A rigor, a grande vítima das sanções foram os próprios europeus, numa espécie de autossanções, tema que comentaremos na próxima seção deste artigo.  

CONSEQUÊNCIAS DA GUERRA PARA O SISTEMA INTERESTATAL 

A atual guerra na Ucrânia explicitou fenômenos e consequências de grande importância para o funcionamento estrutural do sistema de nações, seja afirmando tendências que vinham de antes, seja iniciando problemas novos, em pleno desenvolvimento. 

Há pelo menos três aspectos sobre os quais nos debruçaremos nesta sessão: (1) o aprofundamento da crise da ordem internacional liberal e a explicitação dos limites do sistema multilateral; (2) a intensificação da crise da globalização – ou pelo menos de seus excessos neoliberais – e a explicitação de vulnerabilidades com a eclosão de um período de instabilidade política e social; (3) um novo ambiente geoestratégico global – ou de segurança internacional – com aumento dos conflitos e dos gastos em Defesa, incluindo uma nova corrida armamentista no mundo. 

A crise na ordem liberal 

Grande nações são extremamente ciosas de seu território, isto é, de sua unidade e integridade territorial. Afinal, compreendem que seus recursos de poder são o que permite a elas maior margem de manobra no sistema interestatal e, em grande parte, relacionam-se ao potencial e à pujança de seu território. No momento em que escrevemos este texto, há uma crise instalada no estreito de Taiwan exatamente em função do questionamento, por parte da terceira pessoa na hierarquia de poder dos Estados Unidos, ao reconhecimento da ilha como parte inalienável do território chinês – princípio fundador das novas relações sino-americanas inauguradas há meio século por ocasião da visita de Nixon a Pequim em 1972. 

O inverso também é verdadeiro. Para os Estados Unidos, o ponto mais “quente” da Guerra Fria ocorreu em episódio semelhante, na chamada crise dos mísseis, em Cuba, em 1962. Ao Brasil, igualmente, a questão territorial marca sua geopolítica como aspecto mais central. Primeiro, há 200 anos, na transição para a Independência operada por José Bonifácio de Andrada e Silva com vistas a manter a integridade do território, ao contrário da fragmentação da América espanhola. Hodiernamente, a Amazônia é a área de maior sensibilidade nacional brasileira. 

No caso da Rússia, a sensibilidade relacionada a seu vasto território é histórica e recorrente e, antes que tudo, refere-se à vastidão do império eurasiático, escassamente povoado, sobretudo em sua porção siberiana e asiática. Como dito, desde o fim da Guerra Fria, a Rússia sofre assédio sobre sua zona de influência e, a rigor, em seu próprio território. 

O General Karl Haushofer, mestre da Geopolitik germânica, discípulo de Friederich Ratzel e Rudolf Kjellén, formulou com precisão a ideia das panregiões, em obras como Geopolitische Grundlagen (Fundamentos geopolíticos, de 1939) e Grenzen in ihrer geographischen und politischen bedeutung (Fronteiras em seu significado geográfico e político, também de 1939). O conceito de panregiões versa sobre áreas de influência geopolítica e geoestratégica que a cada grande potência corresponderia, na leitura de Haushofer amadurecida ao longo dos anos 1930 – Estados Unidos, sua Alemanha, a Rússia e o Japão[3]

É falsa, desprovida de qualquer sentido geopolítico, a ideia de que o mundo deixou de se organizar em torno de áreas de influência (Duchiade 2022). De fato, as grandes potências possuem áreas de influência no seu entorno territorial, às quais maior dedicação em termos de projeção de poder – duro ou suave – ocorrerá à medida que essa mesma potência possuir pretensões próprias em relação à sua ascensão no sistema internacional. 

Também é correto dizer que os eventos disruptivos dos últimos 15 anos – que vão da crise econômico-financeira de 2007/2008 à atual guerra na Ucrânia – explicitaram a natureza última do sistema internacional, isto é, sua natureza anárquica, na qual, em derradeira instância, as nações, sobretudo as de grande território, dependem delas mesmas para prover sua integridade e segurança. 

O somatório dos eventos recentes especifica não apenas fenômeno que estrutura o sistema interestatal – a ausência, em última instância, de uma governança global acima dos interesses das potências –, como vem explicitando a profunda crise da ordem liberal estruturada no pós-Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, aquela proclamada ao final da Guerra Fria – a ordem liberal eterna, que anunciou Fukuyama, como dito em 1989. 

Em termos gerais, consideramos que a opção pelo multilateralismo por parte de países de grandes dimensões decorre de duas situações: a primeira, nos casos de posição hegemônica, como foi o caso dos Estados Unidos no pós-guerra, na busca deste por moldar um sistema de regras e valores que fortaleçam seu próprio poder nacional. A partir do momento em que se compreende que este mesmo sistema multilateral passa a ser disfuncional a seus objetivos de manutenção de hegemonia ou de supremacia no sistema de nações, “o criador volta-se contra a criatura”, como ocorreu muito claramente com os Estados Unidos na presidência de Donald Trump, em seu ativismo contra as instituições multilaterais. 

A outra situação em que o multilateralismo interessa a uma grande potência é aquela na qual a correlação de forças no sistema internacional torne útil à sua ascensão a manutenção do status quo. É o caso, por exemplo, do comportamento da China na sua ascensão internacional recente, em que deixa de ser uma potência revisionista para ser uma defensora da ordem multilateral.   

Vulnerabilidades nas cadeias globais de produção e a intensificação da disputa interestatal por recursos vitais ou escassos

Ao movimento de desindustrialização intensiva em áreas fabris nos países desenvolvidos – fruto de fenômeno estrutural relativo ao deslocamento produtivo para a Ásia, especialmente para a China, nas últimas quatro décadas –, os últimos 15 anos trouxeram uma série de encadeamentos disruptivos que deram curso a um movimento de desglobalização, ou, pelo menos, de reversão da hiperglobalização iniciada ao final da Guerra Fria, com a instauração da hegemonia das teses neoliberais no mundo. 

Em especial, esse movimento apresentou-se em fenômenos como o Brexit e a eleição de Trump – produto direto da crise da financeirização de 2007/2008 – e, mais recentemente, pela forte vulnerabilidade representada pela exposição de variados países, sobretudo grandes potências, à Covid-19 e, nos últimos meses, aos efeitos da guerra na Ucrânia, como as crises energética e alimentar. 

Em seu conjunto, esses fenômenos recentes impuseram a primazia do fator segurança nacional, que passa a ter preponderância sobre os custos de produção, que anteriormente determinaram, por exemplo, a organização das cadeias produtivas em escala global.  

Há um reordenamento das cadeias globais de valor, de produção e de suprimento sendo operado em escala global, na qual, dada a primazia do fator segurança nacional, ações de onshoring (renacionalização), reshoring (repatriamento), nearshoring (produção em país próximo) ou friendshoring (compra de país amigo ou aliado) passam a estar no centro de estratégias nacionais. 

O reordenamento das cadeias globais aliado às ações de guerra comercial – iniciadas por Trump e essencialmente mantidas por Biden – mais o recrudescimento das sanções à Rússia, fruto da guerra, vêm levando a uma crise de escassez e, como consequência, a um surto inflacionário no mundo, especialmente nos países desenvolvidos do G7.

A Guerra deflagrou problema de oferta, sobretudo em energia e alimentos, incluindo fertilizantes, que antes já havia se apresentado com a Covid-19, especialmente no que diz respeito à oferta de vacinas e equipamentos médicos, que explicitaram vulnerabilidades em questões absolutamente críticas à manutenção da soberania nacional por parte de muitos países, incluindo Brasil, Estados Unidos e países europeus como Grã-Bretanha, França e Alemanha, dentre outros. 

A consequência tem sido a eclosão de um surto inflacionário global. Dentre os exemplos dramáticos, está o fato de que, em maio de 2022, registrou-se inflação anualizada de 9,1% no Reino Unido (com o Banco Central inglês projetando algo como 11% em outubro próximo) e, em junho último, os mesmos 9,1% foram registrados nos Estados Unidos. 

Para combater o surto inflacionário, os Bancos Centrais deflagraram um movimento de elevação das taxas de juros e estão pressionados a elevá-las ainda mais, retroalimentando, por um lado, a carestia, agora com risco de recessão, a estagflação e desestabilizando as economias dos países em desenvolvimento, resultando que “Os títulos dos mercados emergentes estão sofrendo suas piores perdas em quase três décadas” (Wheatley 2022).

Diante de crise de oferta, surto inflacionário, aumento das taxas de juros e, portanto, carestia e risco de recessão, a consequência seguinte desse encadeamento é o “aumento da instabilidade política, econômica e social pelo mundo”, inclusive com queda de governos e, no limite, riscos de convulsões sociais. Recentemente, para falarmos de dois importantes países europeus, registrou-se a queda do governo de Boris Johnson no Reino Unido e de Mário Draghi na Itália, além da perda da maioria parlamentar do recém-reeleito presidente francês, Emmanuel Macron. Sob forte pressão política e econômica também se encontra o governo de Olaf Scholz na Alemanha e, cruzando o Atlântico, estão os ameaçadores efeitos políticos da conjuntura mundial nos Estados Unidos, onde possível derrota democrata na eleição de midterm em novembro poderia fragilizar ainda mais o governo de Joe Biden. 

No horizonte, a crise explicita os limites do ativismo dos principais países do G7 no que denominam luta contra as autocracias – numa espécie de reedição das teses da Guerra Fria, agora das “democracias” contra os “tiranos”, em especial representados, na narrativa liberal norte-atlântica, pelos presidente russo, Vladimir Putin, e chinês, Xi Jinping. 

Trata-se de uma narrativa que quiçá sirva à mobilização de setores das sociedades desses países, numa reedição de uma mentalidade de guerra fria, a qual, contudo, absolutamente, encontra dificuldades para se sustentar no great game geopolítico que se trava no mundo contemporâneo.      

Crise energética. Daniel Yergin, tido como um dos maiores especialistas em geopolítica da energia no mundo e autor de best-sellers a respeito, dentre eles o recente The New Map (2020) – que tem como subtítulo Energia, clima e o clash das nações –, afirma que a crise energética em curso não apenas se iguala aos dois choques do petróleo dos anos 1970, como pode superá-lo, tamanha a dimensão do problema para a conjuntura mundial. Isto ocorre principalmente porque há uma crise de oferta bastante acentuada, que pressiona os preços do petróleo e do gás a cifras potencialmente inéditas. 

O problema já vem de antes: pressionadas pela agenda da aceleração da transição energética, as majors (grandes petroleiras dos países desenvolvidos) se desengajaram da abertura de novas frentes exploratórias, reduziram seus planos de investimentos e, por consequência, viram uma diminuição de suas reservas. Some-se a isso o fato que, desde 24 de fevereiro, a Rússia, um dos maiores produtores de petróleo e gás do mundo – no primeiro caso, de cerca de 8% da produção mundial –, tem sido excluída do mercado internacional em razão das sanções e da meta de eliminação das importações por parte dos países do G7, especialmente os europeus, fortes dependentes desse fornecimento. Com a interrupção no fornecimento do gás russo à Europa, no momento em que redigimos este texto, não está resolvido o problema dos estoques para inverno europeu e nem mesmo para o funcionamento das plantas industriais. A Alemanha, por exemplo, fala em seu “momento Lehman Brothers” em função da crise de energia. 

Num cenário absolutamente apocalíptico, fala-se em barril de petróleo a US$ 300 – como conjecturou, talvez com algum exagero, mas não tanto, o vice-primeiro ministro russo, Alexander Novak, em março último –, o que geraria um cenário de crise inimaginável. O fato é que um petróleo acima de US$ 150 é o cenário base de analistas do mercado de petróleo, o que tem enormes efeitos econômicos. 

O principal deles é o recuo na transição energética. A questão climática passa a ser suplementada pelo fator segurança energética, componente determinante da segurança nacional. Ao Brasil, potência em energias renováveis, mas também já o sétimo exportador mundial de petróleo, segundo dados mais recentes do Ministério das Minas e Energia, essa é uma questão de grande importância, como veremos adiante.

Crise de alimentos. A guerra na Ucrânia começou por afetar este país que é o quarto maior produtor de trigo e o terceiro exportador de milho do mundo, neste caso responsável por 17% do mercado mundial. Já a Rússia, desde 2014, ultrapassou os Estados Unidos em volumes de exportações de trigo e se consolidou como o maior exportador global do produto. Juntas, Rússia e Ucrânia produzem 14% do trigo no mundo e fornecem 29% de todas as exportações do cereal. Trata-se também de grandes produtores e exportadores de fertilizantes: juntas, Belarus e Rússia respondem por 40% da produção de potássio, e a Rússia também é grande exportadora de fósforo e maior exportadora mundial de nitrogenados. Além disso, a Ucrânia também é relevante produtor e exportador de fertilizantes (CREDN 2022, Agência Safras 2022,  Carregosa & Barros 2022). 

Antes, a Covid-19 já havia evidenciado problemas de insegurança alimentar no mundo. Como observou a Unicef em comunicado, “O número de pessoas afetadas pela fome globalmente subiu para cerca de 828 milhões em 2021, um aumento de cerca de 46 milhões desde 2020 e 150 milhões desde 2019 (...segundo) a edição de 2022 do relatório The State of Food Security and Nutrition in the World” (Unicef 2022). 

Segundo dados do final de maio, um total de 23 países, em decorrência da alta dos preços dos alimentos, restringiram a exportação de alimentos, número que se ampliou desde então. Com menos oferta, aumentam os preços, penalizando sobretudo países pobres dependentes da importação dos alimentos, caso de países localizados, por exemplo, em regiões de escassez hídrica. Segundo o Banco Mundial, a cada 1% de aumento no preço internacional dos alimentos, mais dez milhões de pessoas são empurradas para a pobreza (Estadão 2022).  

A questão da soberania alimentar passa a estar no topo da agenda de muitos países, inclusive países desenvolvidos, os quais, nesse caso, seguem essa agenda a custas de pesados subsídios a seus agricultores, o que causa distorções agudas no sistema de comércio internacional. A Política Agrícola Comum (PAC) da União Europeia consome 1/3 de seu orçamento, sendo, em 2021, mais de 40 bilhões de euros em pagamentos diretos (Nègre 2022). A novidade mais recente, em função de preponderância do fator segurança alimentar como parte destacada da segurança nacional, é que governos europeus começam a manobrar para impor novas formas de protecionismo ancoradas agora na questão climática – na verdade, uma grande hipocrisia, enquanto ligam suas usinas a carvão para compensar restrições, fruto da crise energética. 

Em síntese, a guerra na Ucrânia colocou no centro uma geopolítica dos recursos, especialmente no que diz respeito à questão energética e alimentar, em especial novas ações de natureza protecionista. Trata-se de questões de grande interesse do Brasil, uma potência energética e alimentar.  

Um novo cenário geoestratégico e de segurança internacional em conformação 

As alterações no balanço de forças entre as potências, que definem um momento de transição, poderão resultar em distintas conformações em seu desfecho: um mundo multipolar, com vários polos de poder; uma nova potência ou ainda um novo bloco hegemônico; ou então, na reafirmação da posição hegemônica da potência dominante na maior parte do século XX, os Estados Unidos e seu bloco norte-atlântico. Em síntese, este é o grande jogo que se trava no mundo contemporâneo. A guerra na Ucrânia, pelas razões até aqui ressaltadas, deve ser lida como episódio que ocorre e é parte dessas incertezas quanto à resultante das alterações sistêmicas no balanço de forças entre as principais potências.

No geral, as sucessões de hegemonia ou eventos de crise e transições hegemônicas resolvem-se por meio da guerra, isto é, por meio do confronto geoestratégico, como demonstrou pesquisa recente de Graham Allison (2020), em seu A Caminho da Guerra: Os Estados Unidos e a China conseguiram escapar da Armadilha de Tucídides

Na última troca de guarda, no início do século XX, a potência decadente (Inglaterra) foi defrontada por uma potência contestadora (Alemanha) em duas guerras mundiais, resultando na ascensão de um terceiro interessado, os Estados Unidos. Ao final da segunda grande guerra, os EUA estabelecem o ápice de seu poder mundial, que prosseguiria por todo o século XX, sendo reafirmado ao iniciar a última década do século com a vitória na Guerra Fria. 

Na presidência de Barack Obama, os Estados Unidos alteram sua bússola geoestratégica, sepultando a centralidade da guerra ao terror, consequência do 11 de setembro de 2001, e proclamam a China como ameaça principal. Donald Trump radicaliza esse caminho, que é mantido, com nova coloração, na presidência de Joe Biden. Torna-se um novo consenso estratégico bipartidário americano o enfrentamento à China. 

A guerra na Ucrânia, contudo, gera um problema novo ao dividir as frentes geoestratégicas de engajamento do bloco norte-atlântico. Especialmente, introduz no Teatro de Operações europeu, num dos maiores países do continente, a Ucrânia, um ambiente de guerra cujo desfecho não se vê no horizonte. 

Seguindo o anteriormente preconizado por George Kennan[4] e contemporaneamente por John Mearsheimer[5], expoente da corrente realista americana, o nonagenário geopolítico americano Henry Kissinger advertiu, no último fórum de Davos, realizado durante a guerra – em meio às celebrações do grande capital financeiro internacional para a figura de Zelensky –, o erro da estratégia dos Estados Unidos ao abrir duas frentes e, mais que isso, favorecer a “amizade sem limites” entre os dois gigantes euroasiáticos, proclamada em 4 de fevereiro último, semanas antes da guerra, na abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno em Pequim. Na teoria geopolítica clássica anglo-saxã, podemos dizer, a unidade dos dois gigantes euroasiáticos é o grande pesadelo entre seus grandes protagonistas, de Mackinder a Spykman, de Brzezinski a Kissinger – este último, aliás, autor da manobra geoestratégica há cinco décadas que impediu tal “amizade sem limites”. 

Não obstante as advertências realistas, o comando “operacional” da estratégia americana – visando à continuidade de sua hegemonia no sistema global – parece estar sendo operada por expoentes de uma visão messiânica em política externa, bastante próxima ao Partido Democrata, que opera numa lógica ideológica de Guerra Fria contra os “autocratas”. Já a União Europeia, dividida, polarizada política e ideologicamente em seu interior, e sem maior clareza de seus objetivos estratégicos, após um período ensaiando um discurso sobre a necessidade de aumentar sua autonomia estratégica, com a guerra na Ucrânia, volta à condição de subordinação estratégica aos interesses de um setor de poder de Washington. 

Nesse contexto é que se opera um relançamento da OTAN, cujo mandato teoricamente teria se encerrado com a Guerra Fria. Contudo, a guerra na Ucrânia e o sepultamento das ideias de autonomia estratégica dos europeus oferecem ambiente ideal para seu relançamento, o que ocorreu na reunião de Madri no final de junho. Nela, atualiza-se o Strategic Concept da Organização, que substitui o opaco documento de 2010 e proclama suas novas prioridades em linha com o ambiente geoestratégico contemporâneo: a Rússia e agora também a China como ameaças estratégicas principais, além de inserir a questão ambiental como “grande desafio” do século XXI, com implicações evidentes para o Brasil.   

A guerra na Ucrânia também marcou o ingresso da Suécia e da Finlândia na OTAN. Em especial a entrada da Finlândia, por sua fronteira de 1.300 quilômetros com a Rússia e sinônimo de neutralidade – com o neologismo finlandização –, tem sido atribuída por analistas anglo-saxões como fator principal de derrota de Moscou no que diz respeito à sua demanda por manter um “cordão sanitário” da OTAN em relação a suas fronteiras. Contudo, essa novidade, se lida assim, talvez soe um tanto exagerada ao se observar que Suécia e Finlândia são membros da União Europeia desde 1995, sendo, a rigor, partícipes efetivos desse “bloco de poder atlânticode fato desde então. O ingresso de ambas deriva de uma compressão do cenário geoestratégico europeu, no qual ambos os países interpretam a necessidade de alinhar-se, agora organicamente, à OTAN. Vale lembrar ainda que a Rússia, efetivamente, já faz fronteira com a OTAN desde o ingresso dos países bálticos em 2004. Quanto à Ucrânia, cujo convite para ingresso foi formulado pela primeira vez em 2008, as razões expostas no início deste trabalho tornam clara a maior sensibilidade – a “linha vermelha” – para Moscou. 

Por fim, há que se destacar que o ambiente geoestratégico global observa uma ampliação do gasto militar ao lado de uma nova corrida armamentista, sobretudo em torno de tecnologias duais que possuem relação com a Quarta Revolução Industrial e a indústria de Defesa, tais como Inteligência Artificial e sua aplicação a sistemas autônomos, Ciberespaço e atividade espacial, dentre outras. Trata-se de fenômeno a monitorar, com grandes implicações para o cenário de segurança internacional vindouro.  

A GUERRA NA UCRÂNIA E AS DISRUPÇÕES RECENTES NO MUNDO: QUESTÕES PRELIMINARES PARA REDEFINIÇÃO DA “GRANDE ESTRATÉGIA” BRASILEIRA 

As análises apresentadas neste trabalho, realizadas, como dito, de modo preliminar, tendo em vista observar evento ainda em desenvolvimento, já permitem, contudo, extrair um conjunto de questões ou recomendações que serão necessárias levar em consideração para o desafio evidente que se estabelece de atualizar a estratégia nacional. Afinal, há uma mudança estrutural do cenário geopolítico e geoestratégico que, a um grande país como o Brasil, não poderá deixar de gerar consequências. 

Uma primeira questão – ou uma premissa – relaciona-se a compreender como funciona o mundo e quais as características e o papel do Brasil nele. Aos brasileiros, habitantes de um dos grandes países do mundo, com maior população e extensos recursos potenciais, não cabe iludir-se coletivamente sobre a natureza do sistema interestatal. A guerra e mais amplamente os eventos sequenciados dos últimos 15 anos demonstram que as grandes nações buscam, primordialmente, realizar seus próprios interesses nacionais, realizando alianças adequadas à potencialização desses mesmos interesses. Não cabe agirmos diferente. 

Um segundo fator a compreender da análise da situação geopolítica contemporânea é o fato que grandes países de dimensão continental, como é o caso do Brasil, são objeto de assédio indireto ou dissimulado por parte de outras potências no sentido de dividi-los, seja territorialmente, seja no que diz respeito à sua unidade nacional. Hodiernamente, instrumentos similares ao que se tem denominado como guerra híbrida são de larga utilização, em regra, de forma dissimulada por parte das grandes potências. Viabilizar uma série de contramedidas às guerras indiretas e por múltiplos meios é tarefa que se impõe, do ponto de vista geoestratégico.  

Hodiernamente, instrumentos similares ao que se tem denominado como guerra híbrida são de larga utilização, em regra, de forma dissimulada por parte das grandes potências. Viabilizar uma série de contramedidas às guerras indiretas e por múltiplos meios é tarefa que se impõe, do ponto de vista geoestratégico.  

Um grande país, coeso do ponto de vista psicossocial e guarnecido na preservação de sua grandeza e integração nacional, é inconquistável por sua retaguarda e fatores potenciais de força, sobretudo por possuir abundantes excedentes de recursos mobilizáveis. Assim, sua grandeza e unidade são alvo central de outros que possuem objetivos de hegemonia no sistema interestatal. 

Grandes potências também se tornam vulneráveis à medida que outras potências buscam assediar seu entorno geográfico, pretendendo fomentar a discórdia e o dissenso, explorando problemas reais, como de assimetrias de desenvolvimento, ou imaginários, relativos a manobras psicossociais. O Brasil – ensinou há quase um século um dos pioneiros de nossa geopolítica, Mário Travassos – precisa buscar na sua projeção continental, um fator de força de seu projeto nacional. Noutras palavras, uma política e uma estratégia continentalista não é uma opção ao Brasil, é uma necessidade irrenunciável que nenhuma ideologia poderá pôr em questão. Trata-se de um fator de Estado

Uma outra questão, refere-se à necessidade de compreender mudanças e continuidades no fenômeno da guerra, isto é, da forma mais aguda da política, como diria a máxima clausewitziana. Cada vez mais, principalmente tendo em vista as características territoriais do Brasil, a decapitação do Poder Nacional buscará ser feita pelo domínio e colonização de suas elites pensantes – políticas, intelectuais, econômicas e sociais. No momento anterior da grande alteração verificada no fenômeno da guerra, nosso país estruturou um centro de pensamento voltado a essa reflexão sobre as consequências ao Brasil, a Escola Superior de Guerra. Urge atualizar a percepção sobre a natureza que adquire a guerra moderna, num esforço de reflexão de múltiplos centros e think tanks voltados ao pensamento estratégico. 

O mundo atual também ensina não ser possível seguir sendo o Brasil um país desarmado; desarmado no sentido de não poder fazer frente às ameaças contemporâneas e sobretudo a ameaças de agressões por parte de potências militarmente superiores que podem – e num determinado contexto certamente irão – cobiçar recursos, bens ou fatores de grandeza brasileira, sobretudo aqueles que temos em abundância e escasseiam em outras partes – que vão de minerais críticos à água doce, de biodiversidade a fontes de energia, de terras agricultáveis a recursos oceânicos. 

O mundo também nos ensina que não podemos abrir mão de um pujante parque industrial, agora adequado às necessidade e condições do século XXI, isto é, da Quarta Revolução Industrial, cujas tecnologias emergentes, de natureza dual, são objeto de uma intensa corrida tecnológica por parte das principais potências na atualidade. 

O ativismo industrialista, que hoje mobiliza as principais potências no mundo, deve ser por nós estudado e servir de base para a formulação de uma própria estratégia de política industrial ancorada na inovação. Esse é um imperativo da época, ao qual não cabem objeções ideológicas como as que temos observado no Brasil, mas não nas experiências internacionais. Trata-se, portanto, de ter centro numa estratégia de reindustrialização nacional, em linha com as melhores práticas que se observam no mundo. Há que se considerar que o movimento de reorganização das cadeias de produção e de valor no mundo abre espaço para esse projeto nacional reindustrializador. 

Contudo, o movimento de friendly-shoring – que tem sido exaltado por alguns, como a atual equipe econômica, como a redenção para o Brasil – deve ser observado no seu aspecto de segurança nacional, isto é, da tentativa de grandes potências norte-atlânticas de dominar recursos brasileiros. Estes recursos brasileiros, porém, devem servir e ser parte de um projeto geopolítico, que potencialize nossa reindustrialização. O pior cenário seria o de franquearmos a outras potências o livre acesso a nossos recursos, sem ser parte de uma equação estratégica mais sofisticada por parte do Estado brasileiro.  

Assim, precisamos tratar da necessidade de aproveitarmos nossos “fatores de força” e de “mitigar nossas vulnerabilidades”. Tenho defendido que nosso país estruture algo similar a uma Estratégia de Segurança Nacional[6]. Dentre os fatores de força evidentes de nosso país, estão nossa capacidade de produção de alimentos, nosso potencial energético e nossos recursos naturais, especialmente os ambientais. Tendo como premissa que esses fatores não podem nos condenar a ser a parte menos sofisticada das cadeias de valor, isto é, uma divisão internacional do trabalho assimétrica, nossa busca é exatamente a inversa, a de fazer desses recursos os nossos fatores de força, por meio da ciência, tecnologia e inovação. Ainda nesse quadro, tampouco devemos aceitar o papel de “vilões” do sistema internacional devido a um dos nossos fatores de força mais destacados, a pujança ambiental. Compreender o grande jogo geopolítico que se trava em torno da questão ambiental e ter consciência que, sim, existe uma geopolítica da energia e dos alimentos, são lições que urgem ser extraídas do atual cenário internacional. Aqui, não cabe ingenuidade, ao contrário, esses bens e fatores de força devem servir a uma estratégia geral que nos permita, a partir deles, fortalecer a barganha em torno de nossos interesses nacionais mais destacados. 

Afinal, a Covid-19 e depois a guerra na Ucrânia explicitaram que, sim, há uma geopolítica de energia e uma geopolítica dos alimentos, para além da ingenuidade (ou cinismo) liberal, que apresenta o fluxo desses dois insumos vitais como tão somente uma atividade de mercado. O Brasil, produtor de alimentos para pelo menos 800 milhões de habitantes, segundo a Embrapa (2021), e já o sétimo maior produtor mundial de petróleo do mundo (TV Senado 2021), em vias de se tornar o quinto maior exportador de petróleo do mundo (Bitencourt 2021), precisa tomar consciência disso diante deste novo cenário. 

Por fim, mas não menos importante: ao Brasil, interessa trabalhar por um cenário de multipolarização do poder mundial, que permita maior margem de manobra ao desenvolvimento de nosso próprio projeto nacional. Instrumentos como os BRICS e sua versão alargada, um BRICS Plus, são movimentos geopolíticos táticos no cenário atual que permitem maior capacidade ao Brasil de observar seus próprios interesses. O pior dos mundos seria o de precisarmos optar por um ou outro condomínio de poder. O Brasil é grande demais para ser parte do projeto de outros.  

Notas

[1] Ver Agreement on measures to ensure the security of The Russian Federation and member States of the North Atlantic Treaty Organization, Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa (2021) em https://mid.ru/ru/foreign_policy/rso/nato/1790803/?lang=en (acessado em 16/08/2022).

[2] O confisco (ou pelo menos congelamento) das reservas em dólar, euro e libra esterlina, que corresponderia a cerca de 55% dessas reservas, se é verdade que indisponibilizou seu uso por Moscou, por outro lado minou a credibilidade e a segurança jurídica do sistema; muito países firmaram a convicção quanto à insegurança em manter suas reservas ou títulos em moedas que podem ter uso como arma de guerra. Em certa medida, pode-se dizer, representou algo contraproducente, contribuindo para uma “multipolarização monetária”.

[3] Compreensível no ambiente geoestratégico dos anos 1930, por certo hoje caberiam duas ou três correlações às panregiões haushoferianas: primeira, quanto às Américas, em que é preciso separar o que hoje denominamos “entorno estratégico brasileiro” – área de influência que corresponde à América do Sul, Atlântico Sul e Oeste da África –, singularizando-a em relação à área direta de interesse norte-americano, a América do Norte, Central e Caribe; segundo, a panregião asiática, liderada num polo pela China – e não pelo Japão, hoje um ator menor da geopolítica mundial, mas sendo objeto de estudo de Haushofer, talvez lhe turvasse a visão geopolítica; e terceira, é claro, a Índia e sua influência sobre o Índico, ressalvadas as debilidades geopolíticas desse populoso país, em vias de superar a China como o mais povoado do mundo.

 [4] Ver o artigo de Kennan, em 1997, já ao final de sua vida, denominado A Fateful Error.

[5] O artigo mais recente de Mearsheimer (2022) a respeito é The Causes and Consequences of the Ukraine Crisis.

[6] Ver Vazquez (2022).

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Recebido: 3 de agosto de 2022

Aceito para publicação: 17 de agosto de 2022

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