O artigo aborda o recurso à força e à ameaça nuclear como instrumentos de política externa. Especula sobre como a formação histórica da Rússia a condicionou para um antagonismo latente com a Europa e para uma persistente propensão, em qualquer de suas identidades, imperial ou soviética, a implantar uma área de influência defensiva ao redor de suas fronteiras. Esses elementos estão refletidos no antigo debate entre as correntes eslavófilas e europeístas, com inevitáveis reflexos políticos no seu processo de tomada de posições. O artigo examina ainda as prováveis consequências da guerra sobre a conjuntura internacional vigente.
Nós somos um animal muito feroz, nós os humanos.
Nossa história é uma história de guerras.
– Sebastião Salgado, Sal da Terra
O mundo assistiu, a cores e ao vivo pela TV, em fevereiro passado, a uma bizarra e extravagante partida de xadrez entre as duas maiores potências nucleares do século XXI, uma de cada lado da fronteira da Ucrânia. Enquanto a Rússia acumulava tanques e soldados a poucos quilômetros do Donbass, em uma atitude ostensivamente ameaçadora e agressiva, os EUA, entrincheirados em território da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), na fronteira oposta, nas proximidades de Lviv, declararam sua intenção de não interferir para evitar uma escalada nuclear. De posse dessa “licença para matar”, a Rússia não se viu forçada a agir racionalmente, como prevê o sensato mas nem sempre confiável manual de procedimentos em situações de brinkmanship, quando um lado avança até o limite de segurança, sem saber se o outro vai pagar para ver. A Rússia pôde assim manobrar desimpedidamente suas forças convencionais, com resultados controvertidos do ponto de vista da performance militar, mesmo que devastadores para a Ucrânia e seus habitantes, dada a destruição sistemática de sua estrutura produtiva e os danos infligidos a alvos civis. Estratégias essas empregadas como forma de disseminar o medo entre a população e facilitar “operações humanitárias” de retirada de mulheres e crianças das regiões invadidas para as grandes extensões despovoadas da Rússia asiática.
Os EUA e a Europa só saíram de seu estado de letargia quando as forças ucranianas começaram a dar demonstrações de que era possível reagir e alcançar resultados. A frase mais significativa dessa primeira etapa foi a resposta de Zelensky à oferta de Biden de transportar, em segurança, seu governo para o destino que escolhesse: “preciso de munição, não de carona” (ver Braithwaite 2022). Houve depois uma revoada de líderes europeus a Kiev, ao ponto de merecer o irônico epíteto de “turismo político”, em uma espécie de competição para ver quem era mais pró-Ucrânia. A obstinada resistência das forças ucranianas motivou a entrega, pelos EUA e países europeus, de armamentos modernos, no padrão OTAN, em um estágio já avançado do conflito, quando a Rússia aparentava já ter revisto seus ambiciosos planos iniciais e se concentrado na fronteira leste, para formar um corredor entre o Donbass “independente” e a Crimeia anexada. Não é de se descartar, entretanto, o risco de que os europeus (Reino Unido e Polônia à parte) possam, com o tempo, vir a arrefecer sua resolução em favor da redução voluntária (sic) do consumo de gás e passar a privilegiar um acordo de paz, eufemismo para uma rendição disfarçada e para a cessão de territórios à Rússia, sem ter em conta o que essa atitude implica em matéria de estímulos a novas aventuras militares (russas ou não), no futuro.
A invasão da Ucrânia, embora anunciada com bastante antecipação, pegou de surpresa muitos observadores calejados, talvez pelo fato de que as evidências acumuladas eram tão óbvias e visíveis, que despertassem suspeitas. Ou talvez porque, mesmo transparentes, feriam a lógica geopolítica longamente assentada e tida como um dado da realidade.
A invasão da Ucrânia, embora anunciada com bastante antecipação, pegou de surpresa muitos observadores calejados, talvez pelo fato de que as evidências acumuladas eram tão óbvias e visíveis, que despertassem suspeitas. Ou talvez porque, mesmo transparentes, feriam a lógica geopolítica longamente assentada e tida como um dado da realidade. Assim, meio envolvida em uma atmosfera de realismo mágico, a Ucrânia se tornou vítima de uma versão da “teoria do dominó” às avessas pois, na perspectiva do Ocidente, não apresentava nenhum dos fatores consagrados do amplo cardápio de ameaças à segurança regional. Ou seja, não estava comprometida com algum modelo autoritário e repressivo (de direita ou de esquerda); não albergava grupos fanáticos religiosos ou outros voltados para políticas de extermínio; nem advogava em favor de qualquer ideologia tida como heterodoxa. Ao contrário, estava voltada para colocar sua economia em ordem e para o fortalecimento do estado de direito e da democracia, pré-requisitos para uma candidatura bem-sucedida à União Europeia. Condições que, até prova em contrário, não constituíam uma ameaça ao país agressor, com o qual compartilha a mesma origem histórica, a mesma família eslava e a mesma religião cristã ortodoxa.
A Ucrânia se tornou o campo de batalha de dois elefantes em perigosa rota de colisão, a crer nos objetivos iniciais anunciados por Putin, que contemplavam a ambiciosa e nostálgica missão de recuperar a área de influência conquistada por Stalin em 1945, confortavelmente sentado ao redor da mesa, no Palácio de Livadia, em Ialta. Putin valeu-se, para tanto, da velha tática de invadir, ocupar e esperar que a situação se consolide, se torne um fait accompli, antes de desferir o próximo golpe. Nessa ordem, teria desfechado as operações na Abecásia e na Ossétia do Sul, em 2008, seguidas da Crimeia, em 2014, e agora o Leste da Ucrânia. As pessoas de coração mais leve verão, nessa sequência de lances, paranoia ou excesso de imaginação malsã. Mas não os vizinhos europeus e os países bálticos, aos quais se somam agora Finlândia e Suécia, dotados da perspectiva que a história e a proximidade lhes proporcionam.
O antagonismo com a Europa tem origens históricas e decorre, em muito, de como os povos moldam sua imagem nacional. No caso russo, que nunca integrou o Império Romano nem conviveu com sua cultura política e jurídica, o “sistema senhorial moscovita” se desenvolveu a partir de referências como o “despotismo mongol e o césaro-papismo de Bizâncio” (Colin 2007, 22). Some-se a isso, a grande influência das tradições populares, do folclore e do ambiente familiar e podemos identificar os principais ingredientes do choque produzido pelas reformas modernizantes introduzidas por Pedro, o Grande, que governou a Rússia entre 1672 e 1725, após suas excursões, ainda jovem, aos países europeus (a chamada Grande Embaixada), quando “se deu conta da medida do atraso russo” (Colin 2007, 24). Dessas missões exploratórias ao berço do Renascimento e aos grandes centros do Iluminismo laico, resultaram a fundação de São Petersburgo em 1703 (o novo modelo), a construção de belíssimos monumentos arquitetônicos (de que Peterhof, sua residência, é o melhor exemplo) e o aperfeiçoamento do exército e da marinha, tornando-a habilitada a enfrentar (e derrotar) a vizinha Suécia, principal potência naval no Báltico à época. Em compensação, não caíram nada bem as exigências que impôs a seus súditos para que aparassem suas longas barbas e reduzissem o comprimento de seus vetustos casacões pretos, como forma de torná-los menos distantes da moda das sofisticadas cortes europeias.
Regras que eram pequenos contratempos de etiqueta, refinamento e bom gosto, irrelevantes se comparadas com a extensão e profundidade da reestruturação que Pedro, o Grande, impôs, com a delicadeza de um Ivã, o Terrível, na organização política, econômica, militar e administrativa do país. Medidas que deram margem a um conflito que está na base das divergências que se cristalizaram entre os nacionalistas eslavófilos, conservadores e a Igreja Ortodoxa, por uma parte, e as elites europeizantes e liberais, por outra. Os primeiros, acusados de idealizarem “as qualidades moralmente inigualáveis do campesinato”, no entendimento clássico de que os árcades/pastores são o verdadeiro sal da terra e, nessas condições, os legítimos representantes do povo; os segundos, de subserviência intelectual à Europa e de “traição aos tradicionais costumes populares”. No centro da controvérsia, estava a decifração da “misteriosa alma eslava”, moldada em cima do sofrimento e do misticismo, em perfeita sintonia com os preceitos do Cristianismo, imbuída de grandes doses do socialismo utópico francês e do idealismo alemão, ao ponto de a intelligentsia russa “encarnar a sede humana pelo absoluto em dimensões patológicas” (Berlin 2013, XXXIV). Sintomas perceptíveis em prosa e verso no século XIX, na obra dos grandes autores da época de ouro da literatura e da cultura russa (no sentido lato). Obras que eram populares no Brasil e leitura obrigatória nas décadas de 1950 e 1960, quando desfrutávamos de Pushkin, Gogol, Dostoiévski, Tchekhov e Tolstoi, sem nos darmos conta de que o discurso de seus personagens podia embutir uma queda de braço entre as duas correntes.
Típico dessa polêmica foi o exaltado pronunciamento de Dostoiévski, quando da cerimônia de inauguração da estátua de Pushkin em 8 de junho de 1880, em Moscou, eivado de um profundo viés político, coerente com sua combativa pregação em favor dos ideais eslavófilos. Tanto que ele se viu compelido a alertar que sua fala era “arrebatada, exagerada e fantástica”, como quando, no tom dos grandes profetas bíblicos, atribuía aos “russos verdadeiros” a missão de “reconciliar as contradições da Europa”, mensagem que tinha implícita a noção de que “a alma russa redimiria o Ocidente sem alma”. Essa tese era questionada por alguns de seus contemporâneos mais atentos, que apontavam contradições entre esses grandes ideais de “solidariedade e universalidade”, tidos como representativos da consciência nacional russa e do conceito russo de Cristandade, com os preconceitos que identificavam em Dostoiévski “contra a Europa inteira e outros credos cristãos”. Sintomaticamente, em Os Irmãos Karamázov, Ivã externa o desejo de “viajar pela Europa”, para visitar “um cemitério querido” (querido, mas – que diabos – cemitério de toda forma). Em Os Demônios, Chátov alerta que, quando os povos perdem sua religião e seu Deus próprio, e adotam conceitos de bem e de mal comuns a todos os povos, eles “perdem sua individualidade e se extinguem”. Em outras palavras, abdicam de ser “um grande povo” e se reduzem a mero “material etnográfico”. Em Crime e Castigo, Raskólnikov acredita que o “homem extraordinário”, quintessência do individualismo ocidental, tem “direito ao crime”.
Outro expoente literário, Tolstoi fez questão de realçar que todos os livros russos notáveis não seguiam modelos literários estrangeiros, afirmação que só pode ser entendida no contexto do reducionismo próprio desses vereditos grandiloquentes. Dostoiévski, por exemplo, aponta, em seu discurso, a influência exercida pelos “poetas europeus, em especial Byron”, na obra de Pushkin. O próprio Tolstoi reconhece e valoriza a contribuição de Rousseau (cujo “bom selvagem” é quase um retrato do camponês virtuoso em seu estado natural) e Stendhal (por sua descrição da batalha de Waterloo) ao seu entendimento e ofício (Berlin 2013, 63). Isso não impedia que visse a ciência ocidental com desconfiança, por acreditar que servia aos interesses dos países europeus. Coerentemente com essa linha de raciocínio, atribuiu, com certo despeito, a vitória militar do Japão contra a Rússia, em 1905 (com navios mais modernos, artilharia mais eficaz e tropas mais organizadas), a um “triunfo do materialismo ocidental”. Ou seja, da aplicação do “conhecimento científico” ao processo produtivo e à máquina de guerra (Ferguson 2015, 131).
Do lado “ocidental”, o escritor mais cotado é Turguêniev, que, com um perfil menos combativo do que seus rivais, denunciava a Rússia autocrática, a corrupção e a injustiça prevalecentes. Sem ser um pregador revolucionário, era um crítico realista da idealização do coletivismo praticado pelos aldeões russos, “livres da ambição capitalista e do individualismo desumano”, tal como exaltado pelos intelectuais na Europa ocidental, após o fracasso das revoluções de 1848 (Berlin 2013, 309). Para Turguêniev, essa idealização era uma “patética fantasia”, fruto da desilusão com os frustrados levantes populares, provocados pela fome e pela fermentação intelectual socialista naquele ano, de que fora poupada a Rússia tzarista. Com residência em Moscou e Paris, de onde expunha os males da Rússia, sem comprometimentos claros (seus detratores diriam “sem senso cívico”), desagradava a muitos círculos, inclusive aos de Dostoiévski e Tolstoi. Este último chegou a dizer – com uma argumentação que lembra as atuais “bombas de fragmentação”, que atingem igualmente alvos civis e vítimas inocentes – que “as damas russas escrevem muito melhor do que Turguêniev... pena que não tenham nada a dizer”.
A querela se mantém, mutatis mutandis, na questão atual entre nacionalistas e ocidentalistas, agravada pelos ferimentos causados ao orgulho nacional russo pela expansão da OTAN para o Leste e a humilhante perspectiva de uma possível perda de uma Ucrânia “rebelde”. A esses fatores se somam a persistência da memória dos tumultuados anos Iéltsin e dos efeitos desastrosos da intensa terapia de choque ortodoxa (liberação de preços, abertura da economia, rígida austeridade fiscal e privatização) aplicada sobre os remanescentes institucionais e jurídicos do antigo modelo soviético, o que provocou a crise de 1998. Como resultado, o pêndulo voltou a pender em favor das correntes nacionalistas, sob a liderança de Vladimir Putin, que condenam a “subordinação” da Rússia aos padrões ocidentais, tidos como instrumentos do poder americano. A tese é recorrente e foi reiterada por Lavrov no final de maio, quando repetiu o mantra de “não aceitar a dependência da Europa ocidental”. A Ucrânia, ao contrário, sem abdicar de seu rico legado eslavo, perceptível em seus belos monastérios dos séculos XI e XII, onde repousam os restos mortais dos primeiros santos da Igreja Ortodoxa, fez a opção pela Europa.
Também do ponto de vista ideológico, em âmbito mundial, as abordagens sobre a guerra deixam transparecer uma ambígua leitura das ações dos principais atores. Se a OTAN mantém um protocolar distanciamento do conflito, para evitar uma escalada indesejada, os critérios de alinhamento a favor ou contra a invasão, empregados pelas facções tradicionais, não obedecem a um padrão claramente definido.
Também do ponto de vista ideológico, em âmbito mundial, as abordagens sobre a guerra deixam transparecer uma ambígua leitura das ações dos principais atores. Se a OTAN mantém um protocolar distanciamento do conflito, para evitar uma escalada indesejada, os critérios de alinhamento a favor ou contra a invasão, empregados pelas facções tradicionais, não obedecem a um padrão claramente definido. À esquerda, várias personalidades de destaque contemporizam com a agressão militar russa por sua instintiva e automática lógica de oposição sistemática a qualquer iniciativa apoiada pelos EUA. Independentemente do fato que a Rússia esteja longe de encarnar a posição de guia ideológico de que desfrutava no período soviético, quando controlava a unidade da doutrina e a agenda política através de uma bem azeitada rede partidária e sindical, em escala planetária. Para essa corrente, a contestação russa da soberania da Ucrânia e do equilíbrio de poder instituído no pós 1991 sinaliza o redesenho do mapa geopolítico atual e põe fim à ditadura de um “critério ético” (Fiori 2022), imposto pelos EUA e seus aliados atlânticos, na esteira da dissolução da URSS. Cresce assim o entusiasmo pela adoção de valores de sociedades fora da cadeia de pensamento hegemônico (para gáudio dos nacionalistas de direita na Rússia e dos dirigentes da China, tecnicamente comunista). As fileiras de esquerda não perderão de vista, ademais, que a reemergência da Rússia antiliberal fornece um manto de pretensa legitimidade à falta de liberdades civis e à concentração de poder econômico nas mãos do Estado, no circuito de países que adotam o modelo “socialista” de governo (da Venezuela à Coreia do Norte). De quebra, para os mais antigos apparatchiks, Moscou provavelmente ainda ocupe, mesmo que involuntariamente, o papel de “consciência lírica da esquerda" (a exemplo de Cuba na nossa região).
No campo da direita, a desinibição do Kremlin no apoio e financiamento de grupos políticos radicais no tabuleiro europeu reforça a pregação do ideário autoritário e encoraja as campanhas de desestabilização das instituições da democracia liberal, propósitos convergentes com a pregação dos ultranacionalistas russos, para quem a democracia, os direitos humanos e o individualismo são valores típicos das sociedades ocidentais e decadentes, que já ultrapassaram seu prazo de validade. O plano não é original nem destituído de sentido estratégico. A ideia de um Estados Unidos da Europa sempre foi vista pela União Soviética, desde o início, como uma ameaça à sua segurança. Coerentemente com essa perspectiva, Stálin firmou o Pacto Ribbentrop/Molotov, em 1939, com o objetivo de manter os exércitos de Hitler ocupados a Oeste, na expectativa de que os países capitalistas (Alemanha, França e Reino Unido) se destruíssem uns aos outros. Além disso, também alardeava uma “fantasiosa invasão da Europa Ocidental”, mais como forma de “testar a firmeza da determinação ocidental” (Kissinger 1994, 443). Desde a década passada, a Rússia de Putin fomenta “forças populistas, fascistas e separatistas na Europa” (a que se poderia agregar o trumpismo nos EUA), como forma de desestabilizar a União Europeia e de minar as bases de sua ideologia liberal (Snyder 2017). Enquanto isso, espera mais uma vez a providencial ajuda do General Inverno para aumentar a pressão dos consumidores pelo gás russo, no final do ano no Hemisfério Norte.
Essa campanha divisionista incorporou lideranças conhecidas, como o húngaro Viktor Orban, recém-reeleito, que faz uma condenação enérgica das elites europeias e aplaude a “resistência” da Hungria e da Polônia católicas, como “últimos bastiões do cristianismo conservador” na linha da Igreja Ortodoxa, sabidamente “pouco afeita às instituições democráticas e à economia de mercado” (Harrison 2006, 107). Em junho, a Hungria foi o único voto contrário ao novo plano energético da UE. Esse segmento político está voltado para a valorização do herói, do homem-forte, de tipos carismáticos, verdadeiros one-man show, “centrados na personalização do poder e na sua capacidade de agir à margem de partidos e programas”, dentro do que Roger-Gérard Schwartzenberg (1977) qualificou como “política-espetáculo”, que torna o cidadão um espectador atônito de um folhetim em perpétuo movimento até que, no último capítulo, morre a democracia. Resultado nem sempre mal recebido, visto que essa parcela da opinião pública nutre um acentuado “fraco” pelos regimes fortes.
Os países dos BRICS mantiveram uma certa ambivalência em sua condenação, na ONU, do ataque de seu parceiro russo à Ucrânia, por “espírito de grupo” (favorecidos pelo cálculo de que o todo é muito superior à soma de suas partes) e/ou para não comprometer interesses econômico-comerciais. Esta é a alegação do Brasil agora, e na anexação da Crimeia, em 2014 (mas não na independência do Kosovo, em 2008, apoiada pelos EUA). É a mesma ambivalência aliás que exibiam antes no Conselho de Direitos Humanos, em Genebra, em que se resguardavam de criticar as constantes ameaças e atentados perpetrados contra jornalistas e adversários políticos na Rússia. Putin pôde assim aproveitar a última cúpula virtual dos BRICS, no final de junho, para condenar a forma desvirtuada como os “sócios ocidentais” praticam o “livre comércio” (o que trouxe implícita a noção de uma aproximação mais intensa com os demais membros da sigla, já ensaiada, segundo alegou, com a China e a Índia no campo comercial). Putin sugeriu ainda a criação de “mecanismos alternativos de transferências internacionais”, a partir de uma possível “moeda de reserva baseada em uma cesta de moedas dos BRICS”, fórmula que, pela composição do grupo, abrigaria desde espécimes inconversíveis ou instáveis, até outras com taxa de câmbio manipulada.
A China, que mantém com a Rússia, desde 4 de fevereiro passado, uma “aliança sem limites” nas áreas política, econômica e de segurança, mantém-se a uma distância prudente do conflito, mas estará atenta para seus desenvolvimentos, tendo em conta a resistência que enfrenta dos EUA em sua campanha para controlar o Mar do Sul e para “retomar Taiwan” (se necessário, pela força). Pequim também tem interesse na reforma dos “critérios éticos” adotados em escala internacional, como forma de conter as críticas à sua repressão das manifestações em Hong Kong, onde havia prometido proteger a democracia e o estado de direito até 2047. No comunicado firmado por ambos os países, há um apelo para que a Aliança do Atlântico Norte “abandone suas abordagens ideologizadas” e respeite “a diversidade de suas origens civilizacionais, culturais e históricas”, o que soa como uma tentativa de legitimar uma democracia à la russa e um capitalismo à la chinesa. Assim como quando Stálin se comprometeu, na Declaração de Ialta sobre a Europa Liberada, no pós Segunda Guerra Mundial, a também promover “eleições livres e o estabelecimento de governos democráticos na Europa Oriental”, compromisso que obviamente materializou em conformidade com “a versão soviética de eleições livres” (Kissinger 1994, 415).
Índia e Paquistão, cada qual por suas razões, adotam uma posição de cautela, retratada com fina tradução nas palavras do professor da UFRJ A. Zhebit (2003), quando afirma que os interesses da Rússia e dos dois podem coincidir em assuntos globais, não convergir em assuntos regionais ou divergir em assuntos concretos. O ativismo do grupo leva a especulações sobre um possível renascimento do Movimento dos Não Alinhados, de que o Brasil participou na condição de observador no século passado. E, como não existe vácuo de poder, a tendência é que outros candidatos surjam para integrar o novo “clube multipolar” anunciado. O que não implica dizer que a nova constelação resultará, necessariamente, em um mundo mais estável e seguro, mesmo para aqueles que, sem ser antiamericanos, se sentiram desconfortáveis com a precipitada e arrogante decretação do “fim da história” por Francis Fukuyama, em 1989. Tampouco para os descrentes dos dogmas do apostolado neoconservador assumido pelo Governo Bush, em 2001, no sentido de impor seus “valores de liberdade”, na presunção de que são corretos e verdadeiros para todas as pessoas, em todas as sociedades.
O ultimato russo à OTAN, de 17 de dezembro de 2021, o Comunicado Conjunto Putin-Xi Jinping, de 4 de fevereiro de 2022, e a invasão da Ucrânia, no dia 24 do mesmo mês de fevereiro, guardam uma certa sincronia. Parece razoável admitir que, por uma questão de transparência e confidence-building, tenham as partes dado conhecimento antecipado de ações individuais no campo militar, que pudessem repercutir sobre a postura internacional do outro sócio (caso de uma iniciativa tão extravagante e ousada, como foi a invasão da Ucrânia). Esse fato ocorreu, sobretudo, porque não terá escapado ao lado chinês que os planos russos para a Europa tinham, como condição prévia, a garantia de que sua fronteira oriental não estaria sujeita a acidentes de percurso (pelo menos no curto prazo, diria um estrategista precavido). Isso não torna a China cúmplice (accessory) da ação bélica do Kremlin, mas Pequim dificilmente poderá alegar ignorância, ao selar o entendimento com a guarda de um segredo comum desse calibre. Esse “código de honra” tenderá a prevalecer até que o despovoado extremo oriental da Rússia possa vir a atiçar (ou não) apetites dentro da nova “confraria”, ou que as repúblicas centro-asiáticas ao Sul, dotadas de características linguísticas, culturais ou religiosas distintas, venham a ter que optar entre se manter na esfera de influência de Moscou ou de Pequim, em um futuro não muito distante.
Internamente, não há como afirmar que a ofensiva contra a Ucrânia tenha sido mais um passo na direção das fantasias alimentadas pelos seguidores de Aleksandr Dugin, autor do livro Fundamentos da Geopolítica, de 1997, que propõe a constituição da “Eurásia”, potência transcontinental, de Dublin a Vladivostok, sob o comando do Kremlin. Mas não desprezou os métodos de “desinformação, desestabilização e anexação” recomendados para cumprir a tarefa, descrita como uma espécie de “imperativo espiritual” (BBC 2022). Da mesma forma, seria também exagero afirmar que o deslocamento maciço de tropas e armamento pesado para a Ucrânia objetivou tão somente ajudar o Patriarca Kirill – visto por todos na TV no ato de benzer os armamentos e conhecido por apoiar a repressão de dissidentes e da mídia independente – a recuperar para seu aprisco as ovelhas extraviadas pelo cisma entre as Igrejas Ortodoxas de Kiev e de Moscou em 2018. Mas a medida tampouco o desagradou. Não se pode dizer o mesmo do cidadão russo, afeito à máquina de propaganda nacionalista do Kremlin e inconformado, desde a extinção da URSS, com o quadro de perda de influência regional. Essa frustração terá sido atenuada pelas intervenções na Geórgia e na Ucrânia, ao reforçar a convicção de que – na condição de país com valores não corrompidos pela “decadência ocidental” e dotado de um “destino manifesto” singular – cabe à Rússia “libertar” e “unificar” os países que integravam seu antigo império, eslavos em especial, sob a égide de Moscou. Dito de outra forma, no caso da Ucrânia, salvá-la de si mesma. Essa parece ser a mensagem subjacente ao discurso de Putin de julho de 2021.
Essa proposta estaria legitimada aos olhos dos grupos aferrados à superioridade da Mãe Rússia, pela habitual caracterização depreciativa da Ucrânia como “Pequena Rússia” e pelo desprezo à língua e à literatura ucranianas, vistas como uma “deformação” ou “dialeto”. Essa percepção está retratada, por exemplo, nos comentários vertidos por um personagem gaiato e fanfarrão nos capítulos iniciais de Rúdin, livro de Turguêniev de 1856, ao ridicularizar o corte de cabelo à la cossaco, usado como símbolo de afirmação nacional, e o sentimentalismo piegas dos “pequenos-russos”. Esse preconceito arraigado talvez explique porque, quando de minha chegada a Kiev em 2003, me pareceu que, tendo em vista os valores impostos pela cultura dominante (a russa), o uso do ucraniano era preterido socialmente, pois estava associado ao lado ocidental do país, rural e menos sofisticado do que o Leste, industrial e rico. Essa situação mudou radicalmente após a “revolução laranja”, no inverno de 2004/2005, e a assunção do novo presidente, Viktor Yushchenko, oriundo da fronteira ocidental, na vizinhança da Polônia.
…quando de minha chegada a Kiev em 2003, me pareceu que, tendo em vista os valores impostos pela cultura dominante (a russa), o uso do ucraniano era preterido socialmente, pois estava associado ao lado ocidental do país, rural e menos sofisticado do que o Leste, industrial e rico.
Aos que contam com uma possível mudança de regime na Rússia derivada da ação de oligarcas descontentes, Olga Chyzh (2022), professora da Universidade de Toronto, alerta que o grupo não detém poder político e que as grandes indústrias que controlam dependem, para sua sobrevivência, dos favores do Estado. Conclui que “Putin é o árbitro final” e, “se ele se for, perdem seus bens no país, podem vir a enfrentar acusações de corrupção, serem processados, ou pior”. Quanto aos “dissidentes”, Putin sancionou uma lei que os submete a uma infausta reclusão de até 15 anos, caso se aventurem a “desacreditar” as Forças Armadas ou a disseminar “informações falsas sobre a operação especial” em curso na Ucrânia. As grandes manifestações ocorridas em maio parecem indicar que o movimento não se intimidará com a repressão legal, o que não significa garantir que jamais adquirirá expressão política capaz de ameaçar o regime. Age, entretanto, como um fator a mais para que Putin, um “monarca” sem herdeiro aparente, cioso de deixar um legado, se sinta prisioneiro do tempo e refém de sua própria história. Ou receoso – a exemplo de um personagem do livro Os Demônios, que “pertenceu durante um certo tempo à célebre plêiade de homens célebres” – de sair de cena e cair no ocaso, “por um turbilhão de circunstâncias”, nunca discriminadas ao longo do livro (Dostoiévski 2004, 16).
É difícil entender Putin (exercício que se tornou muito popular nos últimos tempos, com variados graus de empatia embutidos na tentativa), já que controla uma área de 17 milhões de quilômetros quadrados, o dobro do território brasileiro, e abriga uma rica variedade de minerais estratégicos e grandes jazidas de gás e petróleo. Por que então se aventurar em uma iniciativa controvertida, ao arrepio do Direito Internacional e tão previsivelmente contrária à opinião pública (pelo menos a ocidental, com os matizes antes descritos)? Talvez possa ser a influência da ação dos antigos tzares, preocupados, no passado, desde o primeiro deles, Ivã, o Terrível (1547-1584), com a existência de grandes espaços abertos entre Moscou e as potências lindeiras e antagônicas. Esse sentimento seria acentuado hoje pelo fato que a fronteira ocidental russa está traçada por uma linha imaginária próxima à capital, que liga São Petersburgo, ao Norte, a Rostov-on-don, ao Sul, e percorre uma planície com poucas barreiras naturais (Friedman 2016). O sentimento de vulnerabilidade em sua condição de potência terrestre aberta estaria aguçado por um oposto, de claustrofobia enquanto potência marítima, destituída de portos oceânicos, o que condena sua frota a seguir rotas que cruzam mares internos ou estreitos controlados pela OTAN (a exceção seria Vladivostok, mesmo assim às margens do mar do Japão).
Um discípulo otimista de Mestre Pangloss poderia achar que esses sentimentos estão fartamente compensados pela segurança e autoconfiança que confere a condição de superpotência nuclear, com mísseis hipersônicos novinhos em folha em seu arsenal, uma vez que não ocorre a nenhum Estado-Maior projetar uma invasão terrestre da Rússia, por meios convencionais. Já o QG russo não está submetido a esse constrangimento, na medida em que tem plena consciência de que “o poderio nuclear é um importante instrumento de política externa, se usado contra um país que não possa retaliar da mesma forma”, como nos lembra Morgenthau (1978). O cenário é favorecido pelo retraimento americano provocado pela atrapalhada retirada de suas tropas do Afeganistão e pelas hesitações iniciais de Biden, além das “lições” extraídas da tímida reação ocidental às intervenções na Abecásia e na Ossétia do Sul, em 2008, e à anexação da Crimeia, em 2014, quando a proverbial – e sempre reiterada – adesão da comunidade internacional aos princípios da Carta das Nações Unidas não foi forte o suficiente para articular uma condenação incisiva. Não surpreende assim que os estrategistas russos possam ter antecipado a ocupação total da Ucrânia, inclusive sua capital, com uma espalhafatosa (e desorganizada) parada militar, em uniforme de gala, em uma reedição moderna da blitzkrieg nazista nos países germanófilos.
O balanço da guerra até agora alcançou um saldo controverso para a Rússia. Por um lado, Putin está em condições de afirmar que assegurou um corredor terrestre entre o Donbass e a Crimeia; que assumiu o controle do que restou de Mariupol e, com isso, tornou o Mar de Azov um lago russo. E, embora não tenha “chegado, visto e vencido”, conquistou a parte que mais lhe interessava da Ucrânia, destruiu drasticamente sua indústria e, se tomar Odessa, a terá submetido à condição de uma potência econômica mediterrânea, dependente da boa vontade russa para escoar sua produção pelas vias tradicionais. Putin promoveu um grande êxodo da população ucraniana, forçando uma espécie de referendo votado a pé, que afeta o futuro político e a posição da Ucrânia como país economicamente viável, entre outros danos. Apesar disso, o fracasso na incorporação da Ucrânia à órbita de Moscou enfraquece o projeto de somar, com a inclusão posterior de Belarus, contingentes expressivos de eslavos ao diversificado melting pot da Federação. A imagem de maior impacto junto à opinião pública mundial foi, entretanto, a dos cadáveres expostos nas ruas de Bucha, onde suas tropas executaram, de forma fria e calculada, atos que confirmam o diagnóstico de Sebastião Salgado sobre a ferocidade e a barbárie inerentes à condição humana. Também as reiteradas ameaças nucleares, pronunciadas com discutível sutileza, serviram para depreciar o status de potência nuclear, tornando-a menos solene e prestigiosa do que seu uso recomenda. São bravatas (até agora) que parecem mais condizentes com uma potência declinante, inconformada com seu papel de coadjuvante da ascensão da China ao primeiro plano que antes ocupava, ou seja, ameaçada de ser excluída da “célebre plêiade de nações célebres”.
O isolamento diplomático de Putin resultou maior do que o esperado, deixando-o, na votação contra a invasão, na ONU, na companhia de quatro usual suspects – Kim Jong-un, Bashar al-Assad, Lukashenko e Isaias Afewerki, que ocupa o poder desde 1993 na discreta e tiranizada Eritreia. Nem o “aliado ilimitado” Xi Jinping, apesar de visto como igualmente interessado na derrocada dos valores “liberais” prevalecentes, se animou a acompanhá-lo, preferindo uma decorosa abstenção. Para piorar esse quadro, em julho Putin penou 50 longos e constrangedores segundos de espera por Erdogan, em frente às câmeras dos jornalistas, em Teerã. Isso tudo depois de a Rússia ter comprometido o que parecia ser um possível entendimento com países europeus, ensaiado pela Alemanha e subsidiariamente pela França, que pareciam estar costurando uma aliança em torno de interesses comuns, em especial no campo energético. Além disso, jogou os líderes que apostaram nessa possibilidade na delicada situação de novos Neville Chamberlains. As condições de possível parceiro, constante do Conceito Estratégico da OTAN de 2010, e de ativo sócio na utilização e pesquisas conjuntas na Estação Espacial, iniciativa de 1998, da época em que predominava a tendência ocidentalista, foram igualmente descartadas pela Rússia.
Por outro lado, não há como ignorar que a guerra iniciada pela Rússia foi responsável pela elevação internacional do preço da energia, dos alimentos e de outros produtos básicos, com repercussão mundial e especial impacto negativo sobre a sobrevivência de populações e a estabilidade de áreas pobres do planeta, como o Norte da África. Como resultado, a Rússia foi afastada de vários foros internacionais, o que compromete sua capacidade de influenciar o processo decisório em setores de seu interesse. O peso das sanções econômicas não lhe permitirá uma fácil retomada do crescimento econômico, mesmo que a China, cuja cadeia de abastecimento até agora privilegiou a América Latina e a África, se disponha a direcionar investimentos para o país e a absorver parcela considerável de suas exportações de petróleo e gás. A situação pode reativar um quadro semelhante ao que vigorou no período anterior à extinção da URSS, quando a economia declinante e os altos custos da política de superpotência foram fatores relevantes no processo que levou à “maior catástrofe geopolítica do século XX”, nas palavras de Vladimir Putin.
A Ucrânia, por seu turno, sairá diminuída, qualquer que seja o desfecho da guerra. Excluída a opção de ingresso na OTAN, mesmo que receba de volta as províncias ocupadas, não deixará de ser um terreno minado para a atração de novos investimentos, ainda que se incorpore à União Europeia. A existência de uma fronteira ameaçada tenderá a agir como um importante desestímulo. Em qualquer circunstância, Kiev vai ter que direcionar uma parte significativa de seu orçamento para manter sua segurança, deslocando recursos necessários para sua reconstrução. A União Europeia, por seu turno, não poderá impor um very fast track para a admissão da Ucrânia, sob pena de afetar a legitimidade e a seriedade de seus critérios técnicos a respeito. A Turquia, vale lembrar, é candidata oficial desde 1999, quando essa condição foi aprovada pelo Conselho Europeu em Helsinque. O processo está, entretanto, longe de ter uma conclusão, ao ponto de Erdogan interpretar os reiterados adiamentos como uma forma diplomática de lhe negarem o acesso. O ingresso não é, portanto, automático, embora as condicionantes não sejam comparáveis. Por um lado, a Ucrânia não é muçulmana, mas, por outro, tem uma produtividade agrícola tão elevada que deixa à beira de uma crise de nervos os países que se beneficiam dos critérios vigentes na onerosa Política Agrícola Comum da UE, agora revalorizada como fator crucial de segurança alimentar. No entanto, isso não significa desmerecer o alcance político do anúncio feito pela União Europeia no final de junho com relação à Ucrânia, em um momento delicado do conflito.
E o mundo? Bem, o mundo terá que conviver com as incógnitas do rearmamento alemão e da militarização da Europa, no futuro, bem como repensar os termos de convivência com o “amigo urso”, transfigurado em uma versão colérica do Misha, o simpático mascote das Olimpíadas de 1980. A OTAN – que, nos idos da década de 1960, mereceu uma reportagem do Times em tom de mofa relatando que, quando dois jovens americanos tinham um encontro e nada acontecia, eles diziam ter tido “uma NATO” (na sigla em inglês, significando No Action Talking Only) – sai fortalecida. A adesão de dois novos membros, Finlândia e Suécia, torna o mar Báltico um “lago atlântico”. Esse revigoramento da OTAN implica maiores responsabilidades e riscos, já que a Rússia, onde o Estado exerce um controle considerável da mídia, é menos sensível à opinião pública, o que a deixa mais livre e desinibida em sua atuação política e militar externa. A indústria bélica agradece e terá um novo surto de expansão. A reforma do Conselho de Segurança da ONU voltará ao topo da agenda, depois de mais uma exibição de inoperância para lidar com as transgressões ao Direito Internacional.
No campo econômico, a desorganização dos fornecimentos de petróleo e gás ameaça ter que ser compensada pela reativação das usinas a carvão e nucleares, retardando o cumprimento das metas de adoção de fontes energéticas limpas. Mesmo com a retomada das exportações de trigo e outros cereais pela Ucrânia e Rússia (depois de levantadas as restrições de seu uso do sistema SWIFT para transferências bancárias), o abastecimento alimentar só será regularizado gradativamente. A julgar pela maioria das previsões, a recuperação do mercado internacional se dará ainda sob os efeitos residuais do choque de oferta e menor crescimento econômico impostos pelo lockdown forçado da Covid-19, quando vários países lançaram mão de medidas assistenciais extraordinárias e, em consequência, estão agora condenados a adotar uma política de juros altos para corrigir a inflação gerada por esses gastos. Esse remédio, segundo os especialistas, é de delicada administração: em doses homeopáticas pode induzir a bolhas especulativas que, em geral, não terminam bem; em doses elevadas, em uma conjuntura recessiva como a que se aproxima, pode se tornar tóxico (Mauldin 2022).
Está assim em voga uma nova pet theory, como ocorre sazonalmente e se converte em uma espécie de “sabedoria convencional”. Na década de 1990, era a convicção generalizada de que os países da Europa Oriental seriam os maiores beneficiários do mundo que surgia com a queda da Cortina de Ferro, porque tinham uma grande tradição industrial e mão de obra qualificada. Fazia tabula rasa da baixa produtividade prevalecente, nos moldes soviéticos, da inadequação institucional e da ausência de uma estrutura legal e de segurança jurídica para a implantação do capitalismo e para a realização desse boom econômico. A transição revelou-se assim muito mais longa e difícil do que o esperado. No novo século, foi a vez dos países emergentes, dentre eles os BRICS, graças em muito à sua extensão territorial, população e tamanho de mercado, marcados por um certo grau de desenvolvimento econômico e social. Nessa imprecisa categoria, eram mais ou menos candidatos a se tornarem economias dominantes no mundo até 2050. O Brasil mereceu assim uma capa no The Economist, no final de 2009, decolando – Brazil takes off – graças às expectativas geradas pelas descobertas no pré-sal. Embalados nessa euforia, ninguém prestou atenção aos alertas sobre os riscos de excesso de confiança. Descontada a China, todas essas teses não foram cumpridas, por um “turbilhão de circunstâncias”.
A teoria em evidência no momento é que vários países deverão se beneficiar de importantes mudanças na economia internacional, para reorganizar as grandes cadeias produtivas afetadas pela crise sanitária e pela guerra na Ucrânia. Esse fato implicará reposicionar as empresas mais estratégicas, dentre elas as de semicondutores, em um esquema de reshoring (repatriação), nearshoring (avizinhamento) e friend-shoring (confiabilidade). A distribuição geográfica de minerais estratégicos não obedece, entretanto, à lógica da geopolítica. Exemplo disso, a Rússia é grande produtora de petróleo, gás, alimentos e fertilizantes indispensáveis ao mundo. Donde, nem sempre será fácil encontrar países que acumulem mais de uma das condições acima. E quando isso ocorrer, o candidato ainda terá que demonstrar dispor de um quadro regulatório adequado e seus fundamentos econômicos em ordem – o que tenderá a circunscrever o leque de opções.
O Brasil, por exemplo, é candidato natural a usufruir de categorias tão atraentes quanto próximo (e “bonito por natureza”, diria o poeta Benjor), amigo (condição sujeita, é claro, a uma certa ciclotimia), energy friendly (dotado que está de uma matriz energética limpa e renovável) e salary attractive (segundo o Financial Times, nossos salários estão hoje mais baratos do que na China). Apesar desses trunfos, se ressente, na opinião dos que operam no mercado de investimentos, menos suscetíveis a devaneios teóricos, de um índice inapropriado de competitividade – na lista do International Institute for Management Development (IMD), o Brasil ocupa o 59º lugar entre 63 países, à frente apenas da África do Sul, Mongólia, Argentina e Venezuela, e está marcado por um alto “déficit de mão de obra qualificada”, coerentemente com sua última posição no IMD no quesito Educação.
No lado positivo, o pós-guerra deverá restabelecer os fornecimentos de potássio e fertilizantes indispensáveis para a “salvação da lavoura”, mesmo que a preços mais elevados (pagos em rublos?), por questões de logística de transporte. Essa circunstância garantirá nossa posição como fornecedor confiável de soja, milho e outros alimentos para a China, destino de 80% dos nossos grãos vendidos ao exterior, que continua demandante, apesar da redução de seu ritmo de crescimento para índices mais modestos. Nada, portanto, que pareça ameaçar a formação de superávits comerciais pelo agronegócio brasileiro nos próximos anos. O resto, bem, o resto depende de algo imprevisível, como o país enfrentar a sério sua agenda de retomada do crescimento, a menos que o Papa Francisco esteja certo e já estejamos no limiar da Terceira Guerra Mundial, o que nos eximiria de qualquer esforço nesse sentido. Quer dizer, todos esses maçantes problemas seriam resolvidos, não mais “por um turbilhão de circunstâncias”, mas pelo acionar do gatilho nuclear por algum aventureiro de plantão, disposto a nos condenar ao atraso e ao fim da civilização!
Rio de Janeiro, 18 de agosto de 2022
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Recebido: 28 de julho de 2022
Aceito para publicação: 15 de agosto de 2022
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