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Entrevistas

“Somente enxergando a tragédia palestina como tal é que haverá evolução libertária para todos na Palestina”

Ualid Rabah conversou com os editores da CEBRI-Revista
Ualid Rabah na Comissão Participação Legislativa Câmara dos Deputados. Acervo pessoal.

Ualid Rabah preside a Federação Árabe Palestina do Brasil (FEPAL) desde seu 10º Congresso, de 2019. Brasileiro-palestino nascido em Toledo, interior do Paraná, e hoje residente em Curitiba, onde é empresário, Rabah militou nos movimentos estudantil e sindical e integra o movimento palestino no Brasil desde 1984. Ocupou cadeira no Conselho Nacional de Igualdade Racial por oito anos, sendo seis como titular. É casado com a jornalista e escritora Cassiana Pizaia, com quem tem dois filhos.

Segue a entrevista concedida aos editores da CEBRI-Revista.

 

Como o senhor avalia o impacto da guerra em Gaza sobre a comunidade árabe e palestina que vive no Brasil? Quais têm sido os desafios para essa comunidade em meio a este cenário de conflito?

Ualid Rabah: Estamos diante de um “novo” árabe no Brasil (e no mundo), muito influenciado por, ao menos, duas novas realidades. A primeira é que o nacionalismo árabe, expresso na figura icônica de Gamal Nasser (Egito), não existe mais. Não há, portanto, uma comunidade árabe no Brasil embebida do que este nacionalismo representou, ou seja, um claro anti-imperialismo, uma recusa ao colonialismo e, claro, refutação inconteste ao projeto colonial sionista na Palestina. Este árabe atual passou a estar oprimido por um novo cenário no mundo e, especialmente, no Oriente Médio, em que a luta anticolonial – e tudo que ela motivava, da Argélia ao Vietnã – não existe mais; em que os Estados árabes, em boa medida, são justamente aliados declarados e abertos de tudo que significa colonialismo e destruição do mundo árabe, de matança no meio árabe. O que este árabe médio vê, ainda que de maneira muito simplificada, é o apoio dos países árabes a tudo isso, numa subordinação aos EUA que os torna não diferentes, por exemplo, de Israel. Então temos um tremendo mal-estar deste árabe médio, e mesmo de suas lideranças, na diáspora brasileira.

[O] nacionalismo árabe (...) não existe mais. Não há, portanto, uma comunidade árabe no Brasil embebida do que este nacionalismo representou, ou seja, um claro anti-imperialismo, uma recusa ao colonialismo e, claro, refutação inconteste ao projeto colonial sionista na Palestina. Este árabe atual passou a estar oprimido por um novo cenário no mundo e, especialmente, no Oriente Médio, em que a luta anticolonial (...) não existe mais; em que os Estados árabes, em boa medida, são justamente aliados declarados e abertos de tudo que significa colonialismo e destruição do mundo árabe, de matança no meio árabe. (...) Então temos um tremendo mal-estar deste árabe médio, e mesmo de suas lideranças, na diáspora brasileira.

De outro lado, temos a nossa comunidade árabe, que é basicamente levantina, libanesa em maior número e síria em seguida, com os palestinos representando de 2% a 3% desta “arabidade” no Brasil, hoje influenciada por este novo mundo árabe, já aliado do “Ocidente” em praticamente todos os assuntos internacionais, inclusive quando o tema é a Palestina. Este novo “mundo árabe” não apenas calou diante de todos os acontecimentos que cito, mas foi percebido por esta arabidade como um apoiador de todas essas guerras nesta região do mundo e em outras, nas quais muçulmanos foram dizimados às centenas de milhares, senão aos milhões. A realidade no mundo árabe de hoje, que começa a ficar mais evidente a partir da guerra Irã-Iraque, depois com os acontecimentos no Líbano após 1982, hoje agudizada após a guerra contra a Síria, fez a comunidade árabe no Brasil confusa. Ela é cristã ou muçulmana? Os cristãos devem estar com o “Ocidente” por alguma alegada identidade religiosa? Os muçulmanos são xiitas ou sunitas? Devem obedecer à Arábia Saudita ou ao Irã? Há uma luta anticolonial dos povos da região ou uma luta entre xiitas e sunitas e estes tendo por aliados os inimigos dos xiitas, do Irã no caso? Os muçulmanos sunitas e seus líderes comunitários e espirituais no Brasil devem se ocupar da denúncia do sionismo, ou devem lutar contra o “inimigo pior que Israel”, o Irã no caso? E isso afeta a Questão Palestina, por incrível que possa parecer. O árabe comum, subordinado a todas as alienações decorrentes dessas realidades viciosas, fica imaginando se deve apoiar a Palestina, se esta recebe apoio do Irã e do Hezbollah. Ou, ainda, se deve apoiar a Palestina, sendo o Hamas um aliado mais íntimo de um certo “sunismo” que afrontou as lutas nacionais e anticoloniais do nacionalismo árabe.

Entretanto, apesar de tudo isso, a Questão Palestina segue sendo unificadora no seio da arabidade fixada no Brasil. E se antes havia incapacidade de mobilização devido às confusões fabricadas, desta vez houve quase unanimidade em favor da Palestina. Mas faltou – e segue faltando – uma visão unificadora, da qual alguns atores ardilosos se aproveitam para criar cizânia, divisão, desmobilização e, de certa forma, abandono da Palestina enquanto causa comum da arabidade.

As pessoas não tinham nenhuma instituição visível à qual se reportar, razão pela qual não sabiam muito bem o que seguir. Essa situação as levou a não compreender seu real papel no Brasil, ou seja, se de defesa do direito à luta armada, algo que não comoveria a opinião pública, ou se de denúncia objetiva do genocídio. E, também, a não compreender o que deveriam fazer no Brasil, seja enquanto capacidade de mídia, seja quanto à intervenção junto a formadores de opinião e formuladores que dirigem as instâncias de poder, seja público ou privado.

Por fim, sentimos, especialmente na comunidade brasileiro-palestina, um forte impacto psicológico nas subjetividades. As pessoas não acreditavam que seria possível uma ação tão violenta, nitidamente voltada ao extermínio, à limpeza étnica, a uma nova Nakba. Elas ficaram horrorizadas com a Nakba 2 acontecendo ao vivo, televisionada, sem reações à altura, seja do mundo, seja do chamado mundo árabe. Os membros da comunidade sempre ouviram falar da Nakba, mas nunca acreditaram que ela poderia se repetir. Logo, entenderam o que ela foi antes e o que é, de fato, um genocídio. Chegaram a nós diversos relatos de pessoas que estavam em tratamento para suportar a visão desse genocídio. Muitas, mas muitas mesmo, estão, ainda hoje, sob medicamentos para conseguirem dormir, ou mesmo para seguirem suas vidas de trabalho, estudo e familiar. O impacto foi poderoso e ainda haverá consequências disso.

A guerra em Gaza tem gerado debates intensos no meio político, nas redes sociais e nas universidades brasileiras. Na condição de presidente da FEPAL, como sua entidade está lidando com a disseminação de desinformação e promovendo uma compreensão mais equilibrada e informada entre os brasileiros sobre a situação do conflito?

UR: A FEPAL se notabilizou, já no dia 7 de outubro de 2023, por ousar afirmar que se tratava de genocídio, inclusive previamente planejado, cuja execução contava com apoio ostensivo da mídia corporativa e ocidental, no que definimos como o primeiro genocídio midiatizado que, por meio de uma avassaladora propaganda de guerra, preparava a opinião pública para demonizar o povo palestino como um todo e aceitar uma ação bélica destrutiva contra ele. Dissemos mais, na mesma linha de raciocínio, que este seria o primeiro genocídio televisionado da história, o que foi imediatamente adotado, globalmente, como compreensão, algo de que nos orgulhamos. Dissemos, na sequência, que o papel da propaganda de guerra visava entorpecer até mesmo a opinião pública, a priori favorável à Palestina, especialmente aquela do campo democrático e popular, aí incluídos os veículos de comunicação não hegemônicos. Tudo isso visava paralisar as ações desses importantes atores sociais, políticos e comunicacionais e, assim, deixar livre a narrativa a favor de Israel, de seu genocídio e, claro, de haver ações internas de perseguição a todos que fizessem diferente. Denunciamos isso também, muito rapidamente, como a construção de um totalitarismo de novo tipo, em que Israel é o modelo, no qual se destaca a perseguição a artistas, políticos, ativistas, escritores, jornalistas, e intelectuais, das academias ou não. Fizemos tudo isso em menos de 24 horas, entre os dias 7 e 8 de outubro. Muitos estudiosos de mídia nos disseram que a FEPAL havia dado um exemplo de comunicação e que havíamos “furado a bolha”.

O passo seguinte foi informar diariamente sobre o genocídio, trazendo ao público brasileiro informações inéditas, que não viriam de outra forma, e perenizar este trabalho, isto é, não agir como fogo de palha, apagar semanas depois. Pelo contrário, escalamos cada vez mais a quantidade e qualidade da informação, sempre oferecendo, junto dela, opinião qualificada. Nossas notas públicas sempre foram interpretativas, buscando dar ao nosso público uma visão crítica dos acontecimentos, de modo a favorecer visão crítica e capacidade de interpretação.

E tudo isso foi possível porque formamos uma equipe de comunicação em que, pela primeira vez na história, descendentes de palestinos, muito jovens, coordenam e divulgam a informação. A atual direção da FEPAL constrói as relevâncias da agenda palestina no Brasil e da FEPAL como a entidade que faria sua locução, para que jamais se falasse da Palestina ou de sua luta nacional sem que a FEPAL fosse voz a ser escutada.

O senhor acredita que o Brasil pode colaborar para a paz entre israelenses e palestinos e minorar o impacto e a divisão no tecido social brasileiro entre as duas comunidades?

UR: Bem, nós não acreditamos que haja uma divisão entre “comunidades” no Brasil. Há, de um lado, os palestinos e seus descendentes, que reagem à supressão de seus direitos nacionais, civis e humanitários e que, para tanto, se organizam nesta diáspora. Agora mesmo apenas reagimos e denunciamos um genocídio escancarado, que já está no 77º ano, e o apontamos como ação continuada de um projeto colonial baseado na limpeza étnica. Como não poderia deixar de ser, denunciamos o regime estatal que o promove, bem como seus apoiadores. Este regime é, também, de apartheid, como incontáveis relatórios oficiais meticulosamente descrevem.

Nós não lutamos contra os que professam o credo religioso judaico. Nossa luta é contra o sionismo. Nossa luta é pela libertação nacional frente a uma ocupação colonial. Defendemos o máximo respeito aos professantes do judaísmo e nos recusamos a confundir o sionismo com esta fé religiosa. A prova de que as coisas não se confundem são os cada vez mais presentes judeus antissionistas.

Assim, que divisão ou animosidade poderia haver? Suponho que a referência seja quanto à comunidade brasileiro-judaica. Bem, se for essa, nos opomos a que se fale nessa suposta divisão. Para nós ela não existe, apenas é fabricada. Nós não lutamos contra os que professam o credo religioso judaico. Nossa luta é contra o sionismo. Nossa luta é pela libertação nacional frente a uma ocupação colonial. Defendemos o máximo respeito aos professantes do judaísmo e nos recusamos a confundir o sionismo com esta fé religiosa. A prova de que as coisas não se confundem são os cada vez mais presentes judeus antissionistas. Nossa tarefa é, exclusivamente, libertar a Palestina e, com isso, favorecer que todas as pessoas que hoje estão naquela terra – tenham a fé religiosa que tiverem, ou nenhuma – vivam em paz e segurança, sem supremacismo ou apartheid, sem limpeza étnica e genocídios. Isso livrará os palestinos e os israelenses (a parte judaica) do sionismo. É isso o que queremos, o que não ofende ninguém nem divide o Brasil.

Qual seria a sua mensagem para a comunidade judaica no Brasil?

UR: A de que, malgrado o pântano em que querem nos colocar, manipulando o judaísmo para tanto, somos iguais em humanidade. As dificuldades que enfrentamos hoje não devem derrotar nosso desejo de derrotar o imperialismo e seu colonialismo. Devemos dar as mãos para derrotar todas as formas de racismo e discriminação, intolerância e ódio. E não devemos temer o debate sincero, pois a verdade não vem das tergiversações. Somente enxergando a tragédia palestina como tal é que haverá evolução libertária para todos na Palestina. Nós seremos, enquanto palestinos, um freio ao antijudaísmo, inclusive na Palestina. Se um dia, por alguma desgraça, houver dos nossos quem queira revidar com vingança, fazendo para com judeus o que o sionismo fez para conosco, vandalizando seus velhos, suas mulheres, suas crianças, seus civis, nossos corpos serão anteparo. Já afirmei isso incontáveis vezes e sigo afirmando. Nossa autoridade enquanto causa deixa de existir se resvalarmos para a desumanização do outro. Não faremos isso. E para que não façamos, devemos ter temperança agora em nossa luta, inclusive aqui no Brasil.

Entrevista enviada por mídia escrita em 30 de julho de 2024.

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