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Artigos Acadêmicos

“Aspecto funcional” do planeta e a convenção do Rio 1992: o clima como coisa de ninguém, ou como patrimônio comum?

Definir o estatuto legal do sistema climático

Resumo

O Direito Internacional sempre foi incapaz de distinguir o “aspecto funcional” do sistema terrestre do caráter estático da soberania. Essa distinção, considerada como necessária pela Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas (CDI), permite-nos abordar juridicamente o clima (software-do-planeta) como objeto jurídico intangível, abandonando o estatuto de res nullius – atmosfera e oceanos como lixeira da humanidade. A convenção do Rio 1992 avançou e definiu o sistema climático, e hoje é possível definir o seu estatuto de res communis para evitar a tragédia dos comuns.

Palavras-chave:

clima patrimônio comum; aspecto funcional; bens comuns globais; alterações climáticas.
Imagem: Shutterstock.

UM PROBLEMA GENÉTICO – O ASPECTO FUNCIONAL VERSUS TERRITÓRIO ESTÁTICO

A regulação jurídico-política internacional foi sempre habitada por um desfasamento entre o “aspecto funcional” (CDI 2021, 29) do sistema terrestre e o “caráter estático da soberania” (CDI 2021, 29). A água, pela sua circulação global, contrastava com a lógica da apropriação e segmentação de terras, “(...) ao invés, da água vieram invariavelmente dinâmicas de unidade e integração, sobre as quais assentou boa parte da transformação e mesmo contestação dos pilares ideológicos do sistema interestadual moderno” (Pureza 1998, 87).

A incompatibilidade entre a dinâmica de funcionamento do sistema terrestre e a visão exclusivamente territorial do sistema interestadual moderno continua a ser um dos desafios ainda não resolvidos até hoje. Embora de um ponto de vista do Direito seja possível realizar uma operação de divisão jurídica abstrata sobre territórios marítimos onde a água do mar circula, a ciência demonstra que essa divisão não é válida para a composição bioquímica da água, ou para a sua circulação global. “Na verdade, pode-se dizer que o desafio do Direito Internacional não está tanto enraizado na água a desafiar a soberania, mas sim na soberania a desafiar a realidade” (Brunnée 1998, 53). O mesmo raciocínio é igualmente válido para os “espaços aéreos” soberanos, onde nenhuma divisão jurídica, mesmo que abstrata, pode dividir a composição química do ar ou a dinâmica da sua circulação atmosférica. 

Como Camilleri e Falk (1992) explicam:  

(...) a legitimidade de um discurso reside no seu poder explicativo da realidade, da mesma forma que a legitimidade deste se desgasta na medida em que aumenta a sua inadequação para refletir a situação real do mundo. Em todas as áreas em que o discurso da soberania perdeu a sua capacidade de retratar com precisão os fatos, é precisamente na lacuna entre a teorização da realidade e a realidade factual da dinâmica ecológica da biosfera que esta perda de legitimidade se torna clara. 

A tensão resultante dessa lacuna de teorização tem impedido uma regulação eficiente das muitas coisas que todos compartilhamos para o benefício (ou desgraça) de toda a humanidade, cujo exemplo mais visível são as alterações climáticas. Todos esses sintomas criaram “um momento em que há uma mudança fundamental nas circunstâncias, a necessidade de uma estrutura mundial diferente e de um Direito Internacional diferente” (1983,272).

Um passo decisivo (mas ainda inacabado) da perceção de que é necessário representar juridicamente a dimensão funcional/qualitativa do planeta ocorreu em 1967, quando o então embaixador de Malta junto às Nações Unidas, Arvid Pardo (Pardo 1967), propôs na Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU) o conceito inicial de Patrimônio Comum da Humanidade (PCH). A consulta dos documentos preparatórios demonstra que Pardo percebeu claramente que as características, princípios e objetivos do PCH não se enquadram na visão unidimensional que reduz o planeta a uma área geográfica de 510 milhões km2 e que exclui o aspecto funcional do planeta. Em 1971, Arvid Pardo chegou mesmo a propor um tratado do espaço oceânico, no qual tentava demonstrar “como o conceito de patrimônio comum poderia ser implementado no ambiente marinho como um todo” (Pardo 1975).

Na verdade, nas décadas de 1960/1970 não existia ainda o conhecimento científico necessário para medir, delimitar e definir esse objeto jurídico novo que seria o ambiente marinho. Isto é, naquela altura não existiam os instrumentos científicos que permitiriam fazer uma distinção jurídica entre o sistema e o território onde esse sistema funciona. A inviabilidade técnica desse projeto fez com que o PCH tivesse ficado preso à dimensão territorial e confinado aos fundos marinhos – a área para lá dos limites das zonas econômicas exclusivas, perdendo a essência do seu capital de inovação. Por isso, as várias tentativas de concretização do PCH resultaram na amputação do conceito original, sendo ainda um projeto inacabado. Apesar das falhas e indefinições que existem em torno do conceito de PCH, este continua a ser um objetivo aspiracional atual, como é o caso do Acordo ao Abrigo da Convenção do Direito do Mar sobre a Conservação e Uso Sustentável da Diversidade Biológica Marinha de Áreas Além da Jurisdição Nacional (BBNJ 2023), no seu Artigo 7º, item b), o PCH foi considerado como um dos princípios que deve guiar a aplicação desse acordo.

Nos últimos anos, o advento integrador das Earth System Sciences como uma meta-ciência integradora de todo o planeta, que nos apresenta o conceito de sistema terrestre como um sistema interconectado, complexo e em permanente evolução – muito além de uma mera coleção de ecossistemas ou processos globais isolados –, permite-nos ultrapassar as limitações técnicas dos anos 1960, por meio de uma descrição e quantificação dos fatores que condicionam esse aspecto funcional, mas também nos permite uma conceitualização autônoma do funcionamento do Sistema Terrestre, independentemente da situação jurídica dos territórios por onde esse sistema se manifesta e opera.

Nos últimos anos, o advento integrador das Earth System Sciences como uma meta-ciência integradora de todo o planeta, que nos apresenta o conceito de sistema terrestre como um sistema interconectado, complexo e em permanente evolução – muito além de uma mera coleção de ecossistemas ou processos globais isolados –, permite-nos ultrapassar as limitações técnicas dos anos 1960, por meio de uma descrição e quantificação dos fatores que condicionam esse aspecto funcional, mas também nos permite uma conceitualização autônoma do funcionamento do Sistema Terrestre, independentemente da situação jurídica dos territórios por onde esse sistema se manifesta e opera. Até hoje, a ausência de uma conceitualização racional capaz de distinguir território e sistema, e de a refletir juridicamente, resulta neste conflito entre uma realidade dinâmica reconhecida e explicada pela ciência e uma visão que considerasse que o reconhecimento dos fatos científicos implicaria a desconstrução do conceito de Estado-Nação: 

A atual comunidade internacional de Estados-Nação não se pode permitir reconhecer a atmosfera e os oceanos como bens comuns globais (usando critérios científicos), porque fazê-lo destruiria imediata e irrevogavelmente a terra como propriedade privada, uma vez que a terra se qualificaria como um bem comum global. Não há como escapar desta conclusão; ou os bens comuns globais são todos inter-relacionados num único sistema, ou não. (...) Além disso, uma vez que todo o paradigma dos Estados-Nação se baseia na aceitação de territórios delimitados e excludentes, é provável que não possamos construir bens comuns globais sem desconstruir o sistema do Estado-Nação (Hartzog 2003, 23).

CONSIDERAR O QUE É DISTINTO DE FORMA DISTINTA

O primeiro passo para ser possível ultrapassar essa falsa contradição entre soberania dos Estados e PCH consiste em perceber que estamos perante uma lacuna de teorização. Importa por isso abordar de modo diferenciado, e não homogêneo, os diversos componentes do sistema terrestre, distinguindo-os uns dos outros. Trata-se, no essencial, de considerar que o que possui um caráter funcional deve ser considerado de forma distinta do que possui um carácter estático. Essa possibilidade permitiria a aplicação de diferentes regimes jurídicos a diferentes componentes que, embora constituindo um problema para o Direito, são fisicamente complementares e simbióticos entre si.

O primeiro passo para ser possível ultrapassar essa falsa contradição entre soberania dos Estados e PCH consiste em perceber que estamos perante uma lacuna de teorização. Importa por isso abordar de modo diferenciado, e não homogêneo, os diversos componentes do sistema terrestre, distinguindo-os uns dos outros. (...) Essa possibilidade permitiria a aplicação de diferentes regimes jurídicos a diferentes componentes que, embora constituindo um problema para o Direito, são fisicamente complementares e simbióticos entre si.

No último relatório da Comissão de Direito Internacional das Nações Unidas (CDI) para o período de 2021-2029, é afirmado:  

A atmosfera e o espaço aéreo são dois conceitos diferentes, que devem ser distinguidos. (...) A atmosfera, como um ‘envelope de gases’ que rodeia a Terra, é dinâmica e flutuante, com gases que se movem constantemente sem ter em conta as fronteiras territoriais dos Estados. A atmosfera é invisível, intangível e indivisível (CDI 2021, 17).  

O espaço aéreo refere-se a “uma instituição estática e espacial sobre a qual o Estado, dentro do seu território, tem uma soberania completa e exclusiva”. Mas como “o movimento atmosférico tem características dinâmicas e flutuantes”, deve ser distinguido como o “aspecto funcional” (CDI 2021, 17) que envolve o movimento do ar em grande escala. Por raciocínio análogo, a mesma distinção se deve fazer entre, por um lado, a composição bioquímica da água do mar e a circulação global dos oceanos e, por outro lado, os espaços marítimos sob soberania ou jurisdição dos Estados. 

Fig. 1 – Distinguir a instituição territorial estática da soberania – o hardware – do aspecto funcional, o software (Magalhães, Steffen, Aragão & Soromenho-Marques 2016).

Fig. 1 – Distinguir a instituição territorial estática da soberania – o hardware – do aspecto funcional, o software (Magalhães, Steffen, Aragão & Soromenho-Marques 2016).

A enorme relevância dessa verificação funda-se no fato de ela tornar possível uma abordagem jurídica autônoma a um fenômeno natural de relevância vital para a humanidade: o clima. Se identificarmos o modo de circulação atmosférica e oceânica observado durante o período do Holoceno, podemos identificar um determinado padrão de circulação relativamente estável, um “software” (Magalhães 2013, 5). Este software foi variando ao longo dos 4,54 bilhões de anos da existência do planeta, mas foi precisamente nos últimos 11.700 anos (época geológica do Holoceno) que encontrou uma fórmula única e relativamente estável de funcionamento, do qual resultou um clima estável (Figura 2). Na verdade, foi esse padrão de dinâmica estável de funcionamento do sistema terrestre que gerou as condições biofísicas favoráveis ao florescimento das civilizações humanas. 

Fig.2 – O último ciclo glacial (com um indicador de temperatura) e eventos selecionados na história da humanidade. O Holoceno corresponde aos últimos 10.000 anos. Adaptado de Young & Steffen (2009).

Fig.2 – O último ciclo glacial (com um indicador de temperatura) e eventos selecionados na história da humanidade. O Holoceno corresponde aos últimos 10.000 anos. Adaptado de Young & Steffen (2009).

Este programa de software do sistema terrestre é um fenômeno natural com características globais, indivisíveis, funcionais e intangíveis, muito distintas do caráter estático e tangível do território – o hardwaresobre o qual é possível realizar operações jurídicas abstratas de divisão. Essa distinção, realizada com base nas diferentes características essenciais dos bens em causa, a saber, um funcional dinâmico, o outro territorial estático, torna possível a criação de um objeto jurídico autônomo per si, isto é, o clima, como “um objeto intangível não se restringe aos bens comuns globais, mas também abrange áreas sujeitas a jurisdições nacionais” (Borg 2007,1).

DEFINIR, DELIMITAR E REPRESENTAR O ASPECTO FUNCIONAL – UM OBJETO JURÍDICO INTANGÍVEL

O aspecto funcional do nosso planeta é hoje cientificamente definível e mensurável através dos chamados “limites do planeta” (Rockstrom 2009; Steffen 2015). Esses limites demonstram uma combinação de variáveis, relações e parâmetros que, juntos, descrevem o funcionamento do sistema terrestre e os limites à degradação desses processos. Com a identificação detalhada dos elementos que integram e definem a vertente funcional do sistema terrestre, permite-se a compreensão do papel da interação entre processos químicos, biológicos e físicos na manutenção de um estado favorável de funcionamento para a humanidade (ou seja, o Holoceno), bem como o perigoso papel da humanidade na atual crise global do ambiente, que continua a empurrar o funcionamento do sistema terrestre para fora deste estado estável e desejável numa perspetiva da própria continuidade da história humana.

Fig.3 – Os limites do planeta e a definição do patrimônio comum. Imagem: Azote for Stockholm Resilience Centre, baseado em análise de Richardson et al. (2023); Esquema: Casa Comum da Humanidade (2024).

Fig.3 – Os limites do planeta e a definição do patrimônio comum. Imagem: Azote for Stockholm Resilience Centre, baseado em análise de Richardson et al. (2023); Esquema: Casa Comum da Humanidade (2024).

Dessa forma, as condições biogeofísicas favoráveis que correspondem a um bom funcionamento do sistema terrestre são definidas qualitativa e quantitativamente, dando origem ao espaço de operação seguro para a humanidade (Rockstrom 2009). Dentro dos limites desse espaço não territorial e qualitativo, o sistema é resiliente – ou seja, tem a capacidade de absorver choques mantendo a sua forma de funcionamento. Quando esses limites são excedidos, o sistema é projetado para fora da sua “identidade” original, tendendo a um período de desordem até se reequilibrar em uma configuração diferente.

Se é já hoje possível medir, delimitar o bem em causa – um determinado modo de funcionamento do sistema terrestre que resulta em um clima estável –, há também que definir o seu caráter, classificá-lo e perceber como este se relaciona com o caráter territorial estático da soberania. 

Quando nos referimos ao padrão da dinâmica funcional relativamente estável do sistema terrestre que corresponde a um clima estável, não nos estamos a referir à “matéria” ou ao planeta físico, mas sim à forma como a matéria e a energia se movem e circulam pelo planeta. A matéria está sempre em transformação através de reações químicas e processos físicos – e, a longo prazo, através da evolução biológica. Mas os padrões e taxas dessas mudanças e as suas interações que formam estruturas de ordem superior, como ecossistemas, seguem padrões bem definidos de organização e estabilidade. Em escala planetária, as formas como a matéria e a energia se movem ao redor do planeta, criando vários padrões de circulação atmosférica e oceânica, seguem as leis da termodinâmica e resultam em um clima estável. Um clima global estável é algo que só pode ser legalmente classificado como um bem natural intangível (Magalhães & Steffen 2021). 

No início do século XVIII, o Direito teve de evoluir e encontrar soluções que permitissem reconhecer no plano jurídico a enorme relevância dos bens intangíveis, tão essenciais na organização das sociedades humanas. Ainda hoje o caso mais relevante é o da proteção da propriedade intelectual, sem a qual a sociedade do conhecimento dos nossos dias não seria possível. Mas os bens jurídicos intangíveis não ficaram pelas criações intelectuais humanas e alargaram-se já a fenômenos naturais como a órbita geoestacionária ou frequências rádio-magnéticas, no âmbito do Direito Espacial. Por que não será então possível reconhecer um determinado padrão de circulação atmosférica e oceânica, que corresponde a um clima estável, como bem natural intangível?

O PROBLEMA DE NÃO PERTENCER A NINGUÉM

Quando se colocou a possibilidade de os impactos das atividades humanas poderem gerar alterações no clima e este assunto entrou na agenda de discussão internacional, era ainda impossível definir e quantificar indicadores que permitissem traduzir o estado de funcionamento do aspecto funcional, isto é, a sua estabilidade ou instabilidade. Apesar dessas dificuldades, mas fundada em uma correta interpretação dos objetivos, a 12 de setembro de 1988, Malta propôs a integração do clima como parte deste regime jurídico de PCH (AGNU 1988, 2). Mas na ausência de instrumentos de definição e operacionalização, com a Resolução 43/53 de 6 de dezembro de 1988, a AGNU tomou opção de não reconhecer a existência de um verdadeiro bem comum (o clima) que deveria ser gerido de forma conjunta, mas antes abordar o problema considerando as “alterações climáticas como Preocupação Comum da Humanidade” (AGNU, 1988). Ao se reconhecerem as “alterações como uma preocupação”, o clima – ou, mais concretamente, o sistema climático – continuou em uma situação jurídica indefinida, sem que lhe seja reconhecido um estatuto próprio, isto é, continuou a ser de ninguém. Ora, o Direito Internacional trata os domínios que não pertencem a ninguém como res nullius: “O ‘estado de natureza’ para os bens comuns globais é res nullius” (Vogler 1995,17).

Ao não pertencer a ninguém, está criada a primeira condição estrutural para a Tragédia dos Comuns (Hardin 1968). 

Os oceanos e a atmosfera tornaram-se lixeiras da era industrial, e o fenômeno do aquecimento global, apenas recentemente validado pelos regimes científicos, ainda não encontrou um instrumento jurídico eficaz para reconhecer a seriedade da sua ameaça. Legalmente descritos como espaço não estatal, fora da soberania territorial, os bens comuns globais não são protegidos como domínios que pertencem a todos, res communis. Em vez disso, o Direito Internacional trata-os como domínios que não pertencem a ninguém, res nullius (...). Dada a sua estrutura de bens comuns no Direito Internacional, os bens comuns globais parecem estar corrompidos para além da nossa capacidade de corrigir esta fatalidade (Milun 2018,5). 

A atual incapacidade de representar a dimensão funcional do planeta e a disfuncionalidade resultante de abordar, de forma estática, um objeto profundamente dinâmico estão na origem da criação de conceitos sucedâneos, como a Preocupação Comum da Humanidade – que foi a solução encontrada para contornar a lacuna de teorização existente e que perpetua os problemas genéticos identificados desde a sua conceção: 

É muito importante que o conceito de Preocupação Comum da Humanidade seja mais elaborado para tornar o seu conteúdo e alcance compreensíveis e claros; também é importante verificar como este conceito pode ser interpretado em termos de direitos e obrigações dos Estados no processo da sua implementação (Tolba 1991, 237-246). 

A própria CDI recusou a utilização desse conceito com base no argumento de que “o conceito era vago e controverso, e o seu conteúdo não só era difícil de definir, mas também sujeito a diversas interpretações” (CDI 2015). O problema é que uma vez que o único objeto a partir do qual esses direitos e deveres poderiam emergir — o sistema climático— não pertence a ninguém – é res nullius – logo, nem os direitos que deviam resultar da realização de benefícios nesse bem, nem os deveres que deveriam resultar do uso/depreciação do bem comum clima são reconhecidos.

A POSSIBILIDADE DE RECONHECER O ASPECTO FUNCIONAL, SEM DESCONSTRUIR O ESTADO-NAÇÃO

Uma análise mais detalhada da disfunção existente entre o sistema funcional global e indivisível e a instituição estática territorial da soberania aponta mais para um paradoxo do que para uma situação de incompatibilidade: se é verdade que os Estados exercem uma soberania completa e exclusiva sobre os territórios, é igualmente verdade que nenhum Estado pode exercer, de forma isolada, qualquer poder soberano sobre os componentes do sistema terrestre que circulam por todo o planeta, no interior e exterior de todas as soberanias. No entanto, todos os Estados influenciam, e são influenciados, por esses componentes que determinam o estado de funcionamento do sistema, porque esse sistema é o suporte biofísico de todas as soberanias, do qual todas dependem. Estamos perante uma situação de profunda interdependência ainda não estruturada, que urge harmonizar.

[S]e é verdade que os Estados exercem uma soberania completa e exclusiva sobre os territórios, é igualmente verdade que nenhum Estado pode exercer, de forma isolada, qualquer poder soberano sobre os componentes do sistema terrestre que circulam por todo o planeta, no interior e exterior de todas as soberanias. No entanto, todos os Estados influenciam, e são influenciados, por esses componentes que determinam o estado de funcionamento do sistema, porque esse sistema é o suporte biofísico de todas as soberanias, do qual todas dependem. Estamos perante uma situação de profunda interdependência ainda não estruturada, que urge harmonizar.

O problema de conciliar interesses aparentemente opostos – privados e comuns – não é novo nas ciências jurídicas. Foi estruturado através de uma figura de direito privado que define a situação em que uma coisa materialmente indivisível, ou uma coisa com estrutura unitária, pertence a vários coproprietários, cada um dos quais tem direitos privados ou exclusivos de propriedade sobre determinadas frações e, ao mesmo tempo, é coproprietário das partes do edifício que constituem a sua estrutura e funções comuns. Essa figura jurídica é conhecida como “condomínio”. É precisamente por meio da distinção entre diferentes tipos de propriedade sobre o mesmo bem materialmente indiviso que esta forma de “propriedade complexa” pode harmonizar os diferentes interesses privados e comuns, tornando essa sobreposição de propriedades perfeitamente simbiótica. A operação jurídica não é apenas uma mera divisão de espaços, mas existe previamente uma divisão baseada em critérios qualitativos e funcionais, que identifica estruturas e sistemas comuns (sistemas de eletricidade, água, escadas, telhado, etc.) que são imprescindíveis ao bom funcionamento do prédio e ao uso pleno das propriedades privadas. Portanto, primeiro realiza-se uma operação que identifica os elementos funcionais, que, por desempenharem funções vitais, sem as quais nenhuma fração pode usufruir da propriedade privada, são inevitavelmente comuns. Só depois dessa operação funcional, se realizam as divisões dos espaços. O resultado é uma sobreposição entre “espaço” correspondendo a propriedade privada, e “sistema funcional” que corresponde à propriedade comum. Dessa operação, resulta igualmente a existência de componentes do prédio que desempenham funções de interesse comum ficarem localizados dentro de espaços privados, mas que mesmo assim ficam sujeitos ao regime jurídico de res communis.

Isto quer dizer que o aspecto funcional é determinante na definição do regime jurídico dos vários componentes do prédio e que as funções de interesse comum são compatíveis com o exercício da propriedade privada, mesmo que de forma sobreposta. Mais do que isso, não só são compatíveis, como essenciais: isto é, sem um adequado funcionamento do sistema comum, não é possível exercer plenamente os direitos de propriedade.

Essa análise funcional operada pelo instituto do condomínio pode igualmente ser da maior relevância para sermos capazes de mais adequadamente descrever os fatos que resultam da sobreposição entre o aspecto funcional do planeta e o caráter territorial estático da soberania. Tendo em conta a unidade funcional sistema terrestre, cujo funcionamento é influenciado por todas as infraestruturas naturais que existem no interior e exterior das soberanias, bem como por todas as atividades humanas, parece-nos necessário inverter o ponto de partida de análise: o bem que é verdadeiramente comum não é nunca um determinado componente do sistema terrestre/ecossistema localizado no interior de um Estado, sobre o qual se exercem poderes soberanos ou direitos de propriedade privada, mas será sempre o sistema propriamente dito, no seu todo – o software intangível.

Dessa forma, a abordagem de um modelo de Condomínio da Terra (Magalhães 2007) permitiria tornar juridicamente visíveis e economicamente contabilizáveis as funções de interesse comum que as infraestruturas ecológicas realizam no funcionamento do sistema climático e que estão localizadas no interior dos Estados. Atualmente, esses “serviços de ecossistemas” desaparecem no vazio jurídico global que resulta do fato de o sistema climático ser coisa de ninguém – res nullius –, tornando impossível reconhecer e internalizar nas economias a verdadeira criação de riqueza vital que os serviços de ecossistema representam para as sociedades humanas.

Se o software que corresponde a um clima estável for reconhecido como patrimônio da humanidade, quer dizer que a dimensão funcional do nosso planeta passa a ser reconhecida como um objeto jurídico de Direito Internacional que pertence a toda a humanidade e que o aspecto funcional do planeta deixa de ser a lixeira da humanidade. Como Alexander Kiss (1982, 103-256) muito bem explica: “Como pode um bem que não pertence a ninguém poder estar sujeito a um regime jurídico?”

 A passagem do atual estatuto de res nullius para um estatuto res communis significaria que todos os impactos que todos os Estados realizam nesse bem intangível – benefícios ou danos – deveriam corresponder a direitos e obrigações entre todos os Estados. Por outras palavras, a soberania territorial estática sobre o território de cada um dos Estados não só se mantinha, como se alargaria ao sistema funcional global, sendo esta exercida de forma multilateral e partilhada. Este exercício reflete-se na possibilidade de se criar uma plataforma jurídica geradora de direitos e deveres, em que cada Estado passa a ter uma palavra a dizer sobre os componentes que circulam por todo o sistema terrestre e que afetam a sua soberania, bem como a criação de um sistema que permita assegurar de forma conjunta o restauro e a manutenção do bom estado de funcionamento do sistema comum. 

AS IMPLICAÇÕES DA DEFINIÇÃO DO SISTEMA CLIMÁTICO NA CONVENÇÃO DO RIO 1992

O “aspecto funcional” do planeta e a Convenção do Rio 1992

Embora a Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas (UNFCCC) (ONU 1992), na sua própria denominação, determine que “o objeto da Convenção é o problema – as alterações climáticas” – essa convenção não deixa de dar uma enorme contribuição para a definição do “bem funcional” que pretende assegurar a sua conservação e manutenção.

No Artigo 1º, alínea 3), da Convenção-Quadro de 1992, o sistema climático é definido como “o conjunto da atmosfera, hidrosfera, biosfera e litosfera e suas interações”. Esse texto define de forma abstrata um conjunto de componentes com diferentes características, excluindo dessa abordagem a dimensão territorial desses componentes e os seus respectivos estatutos jurídicos concretos. Dessa forma, essa abordagem é baseada em critérios exclusivamente científicos, em que a definição do conjunto, através do elencar dos seus componentes, serve de suporte para o aspecto de maior relevância: as suas interações. Ora, o clima é precisamente um fenômeno emergente das interações entre esses componentes, e é aqui que assenta em grande medida a atualidade científica deste documento jurídico: 

Os fenômenos emergentes podem ser vistos como um processo no qual a ordem “espontânea” emerge dentro do sistema. Eles ocorrem quando da combinação de diferentes elementos resulta a formação de padrões de interação entre eles. Quando se perde a ordem estabelecida, entrando numa situação de caos não estruturado, uma nova estrutura pode surgir (Miller & Swinney 2001).  

No caso particular do clima, a ordem estabelecida refere-se ao padrão de circulação da matéria e a energia em torno do planeta formado após a última glaciação, que, seguindo os padrões bem definidos de organização das leis físicas, resultou em um clima relativamente estável. Quando esses padrões de estabilidade termodinâmica são perdidos, altera-se a circulação atmosférica e oceânica, entrando-se nessa situação de caos não estruturado: as alterações climáticas. “O clima e, em particular, a temperatura média global de superfície são uma propriedade emergente das dinâmicas do sistema terrestre, que afeta todo o planeta” (Steffen 2021, 1-13). O fato de um clima estável corresponder a um determinado padrão de funcionamento de todo o sistema terrestre e de esse padrão ser um fenômeno emergente das interações entre todos os seus componentes transforma o clima estável num proxy do estado de funcionamento do próprio sistema terrestre.

O fato de um clima estável corresponder a um determinado padrão de funcionamento de todo o sistema terrestre e de esse padrão ser um fenômeno emergente das interações entre todos os seus componentes transforma o clima estável num proxy do estado de funcionamento do próprio sistema terrestre.

Mas se na alínea 3) do Artigo 1º se divide e elenca, para se definir os diferentes componentes e explicar as funções que resultam das suas interações, na alínea 7) é abordado um outro conceito central das ciências do sistema terrestre, remetendo-nos para a integração de todos os componentes e das suas respetivas funções. Nessa alínea, define-se o “Reservatório como o conjunto desses componentes do sistema climático, onde os gases de efeito estufa são armazenados”, onde tudo se integra em um único conceito – onde as funções estão interligadas e interconectadas em um “único sistema complexo que existe em estados bem definidos” (Steffen 2015, 2).

O fato de esta visão sistêmica e unitária da Convenção de 1992 estar plasmada logo no seu Artigo 1º – Definições, refletiu-se na estrutura e nos objetivos da própria Convenção: “o objetivo final da Convenção (...) é a estabilização das concentrações na atmosfera de gases de efeito estufa a um nível que evite uma interferência antropogênica perigosa com o sistema climático” (ONU 1992), definindo desta forma que o seu objeto será a manutenção em estado de equilíbrio do funcionamento do sistema climático, tendo como critério para a concretização desse objetivo a regulação dos níveis totais de concentração de gases de efeito estufa (GEE) na atmosfera, isto é, stock acumulado, e não apenas o total dos fluxos. 

O total de concentrações da Convenção Rio 1992 ou o limite de emissões do Acordo de Paris?

O objetivo da Convenção, definido no Artigo 2º, centra o seu eixo estratégico na composição química da atmosfera e na concentração total de GEE, incluindo não apenas os fluxos atuais, mas também o stock já acumulado na atmosfera pelas emissões históricas de GEE, iniciadas com a Revolução Industrial. Por outro lado, o objetivo previsto no Acordo de Paris consiste em atingir o “limite máximo mundial de emissões de GEE”, isto é, limita-se a uma estratégia centrada nos fluxos. Embora essa diferença possa parecer irrelevante, ela é absolutamente estrutural na estratégia de combate às alterações climáticas. Para todos os efeitos, a opção do Acordo de Paris centrou a sua estratégia em um sistema voluntário de controle de emissões – fluxos – esquecendo que a atmosfera e os oceanos, como componentes centrais do Reservatório definido na Convenção de 1992, já estão perto do ponto de saturação. O Acordo de Paris pretende limitar os fluxos das emissões de GEE, mas é omisso perante o fato de, na perspetiva do stock, já estarmos acima da margem de segurança. Pelo contrário, qualquer estratégia que pretenda ser efetiva e relevante tem de ter em conta a relação entre stock e fluxos, como nos explica Elinor Ostrom (1999,47): 

Os problemas de apropriação estão centrados com a alocação do fluxo, os problemas de abastecimento dizem respeito ao stock. Problemas de apropriação são independentes do tempo; os problemas de provisão dependem do tempo. (...) Ambos problemas estão sempre presentes na gestão de um bem comum, em maior ou menor grau, e, portanto, as soluções para um problema devem ser congruentes com as soluções para o outro. 

Gerar uma ação coletiva positiva à escala global é um problema de gestão de um bem comum e de provisão de um bem público. Traduz-se em aumentar o stock do bem público, como, por exemplo, reduzir a concentração de CO2 na atmosfera. Ter como eixo central de atuação o stock – o Reservatório da atmosfera que é onde o CO2 se acumula inicialmente – implica repensar o que é realmente a geração de um bem público global e/ou dos benefícios inerentes.

 Reduzir fluxos é positivo. Trata-se de uma condição necessária, mas não suficiente, para alcançar o equilíbrio climático. A condição suficiente está relacionada com o stock total de CO2 acumulado no componente do sistema climático – atmosfera – que tem vindo a aumentar, como resultado do efeito acumulado das emissões atuais e históricas. O referido stock não só não pode aumentar, como tem de diminuir, até se situar abaixo do limiar máximo de CO2 na atmosfera que garante o clima estável (350 ppm). Esse indicador, ignorado no Acordo de Paris, era central na Convenção Quadro de 1992.

Quando nos encontramos em uma situação na qual a concentração de CO2 já ultrapassou há muito o limite de segurança, um sistema de redução das emissões nunca é suficiente. “O mundo deve, portanto, comprometer-se com uma combinação de reduções e remoções brutas de emissões que permaneça dentro de um orçamento de carbono de 500 Gt CO2” (CTE 2022, 8). O problema é que “atualmente não existem mecanismos econômicos destinados a pagar as emissões negativas” (E&CIT 2018) de CO2 e, portanto, a remoção de CO2 tem servido essencialmente para neutralizar emissões atuais e manter indústrias altamente emissoras de CO2 a funcionar. Esses fatos são já reconhecidos pelo European Scientific Advisory Board on Climate Change (ESABCC 2023, 81) que afirma que a remoção de CO2 da atmosfera: 

representa um dilema para os formuladores de políticas, uma vez que precisam encontrar formas de incentivar o aumento sustentável da remoção de carbono, evitando o risco de desincentivar as reduções de emissões de gases de efeito estufa em diferentes setores por meios mais convencionais.  

Assim, a “mensagem central é a de que as remoções de carbono devem desempenhar um papel nas estratégias de mitigação das mudanças climáticas além de, e não em vez de, esforços rápidos de descarbonização, começando hoje” (CTE 2022, 8, grifo nosso).

Para ultrapassar esse dilema e ser possível começar a realizar de forma ativa remoções de CO2 é necessário tornar possível a remoção sem ligação direta à compensação da emissão, limpando a atmosfera. Para isso ser possível, teremos de distinguir redução, neutralização e remoção no contexto de fluxo e stock. 

Redução e Neutralização de Emissões Correntes (fluxo)

Remoção de Co2 acumulado

A distinção, entre fluxos e stock é absolutamente fundamental para ser possível diminuir e controlar de forma permanente a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera. Fazer essa distinção reside, na sua essência, na forma como uma qualquer remoção de CO2 é contabilizada: isto é, se é contabilizada como um crédito que neutraliza uma emissão atual (fluxo), ou se, por outro lado, é considerada como abatimento ao CO2 já em excesso acumulado no stock, isto é, no Reservatório (ONU 1992). Isto quer dizer que, para se realizarem emissões negativas, é necessário um estatuto legal atribuído ao bem onde as emissões são acumuladas – o sistema climático – para que, dessa forma, sobre este novo objeto de Direito Internacional possam emergir direitos e deveres. 

Fluxos e stock, e o princípio das responsabilidades comuns, mas diferenciadas 

A conjugação dos fluxos correntes e stock acumulado, criando regras congruentes entre a apropriação e provisão do bem comum (Ostrom 1999, 181), é uma questão incontornável, porque a questão climática conduz-nos à inevitável “discussão sobre desigualdades que devem ser levadas em conta para articulação de uma resposta efetiva” (Oliveira 2019, 155-180).

Como explicou Ostrom,“os problemas de provisão dependem do tempo”, o stock está relacionado com o tempo, e o primeiro princípio da Convenção de 1992, Artigo 3º, 1), é um espelho dessa realidade: 

As partes Contratantes devem proteger o sistema climático para benefício das gerações presentes e futuras da humanidade, com base na equidade e de acordo com as suas responsabilidades comuns, mas diferenciadas, e com as respectivas capacidades. Assim, as Partes constituídas por países desenvolvidos devem tomar a liderança no combate à alteração climática e aos seus efeitos adversos. 

A origem da questão das alterações climáticas é realmente um problema de acumulação em excesso de CO2, o que também significa que essa acumulação tem inevitavelmente responsáveis históricos que estiveram na origem dessas emissões. Da mesma forma, existem outros países que possuem no seu território soberano ecossistemas com um enorme impacto positivo no funcionamento do sistema terrestre e para a manutenção do clima estável. Só que, mais uma vez, essas contribuições positivas não são reconhecidas e valorizadas, uma vez que os benefícios que realizam no sistema climático correspondem a benefícios realizados em uma coisa de ninguém, uma res nullius, e portanto não geram o direito a ser compensados.

A aproximação de um tipping point climático pode desencadear mudanças comportamentais nesse processo: “A humanidade precisa da natureza para sobreviver, nomeadamente a economia e os bancos que a financiam. A nossa economia depende da natureza. Assim, destruir a natureza significa destruir a economia (Elderson 2023, grifo nosso). Começa-se hoje a perceber que as parcelas dos custos futuros que vão caber a cada um, pela inexistência de uma verdadeira base jurídica para as políticas de ambiente e clima, serão muito maiores que os benefícios de curto prazo. Mais do que isso, o que a magnitude dos números que sustentam essas afirmações revelam é que a única maneira de continuar a produzir riqueza implica restaurar o sistema climático. Implica intervir também no stock acumulado de CO2 na atmosfera, e não apenas nos fluxos. As responsabilidades históricas dos responsáveis pela colocação dessas quantidades de CO2 na atmosfera não podem continuar a ser adiadas. Chegamos a um momento em que a única forma de defender os interesses nacionais de soberania dos Estados, segurança e prosperidade para todos, é através da prossecução do restauro e futura manutenção permanente do sistema climático.

Por isso, e no cenário em que as tecnologias agora disponíveis nos países desenvolvidos para captura de CO2 na atmosfera e nos oceanos se encontram em um momento de desenvolvimento exponencial, para além da necessária redução de emissões, é fundamental assegurar que essas novas tecnologias sejam colocadas a funcionar para benefício de toda a humanidade, removendo CO2 sem que isso gere perversos créditos colocados no mercado para perpetuar uma economia de carbono intensivo.

O trágico paradoxo em que nos encontramos consiste em verificar que o atual estatuto jurídico das alterações climáticas como “preocupação da humanidade”, na verdade, mantém e prolonga a condição do sistema climático como coisa de ninguém, o status de res nullius, a lixeira da humanidade.

O trágico paradoxo em que nos encontramos consiste em verificar que o atual estatuto jurídico das alterações climáticas como “preocupação da humanidade”, na verdade, mantém e prolonga a condição do sistema climático como coisa de ninguém, o status de res nullius (Vogler 1995), a lixeira da humanidade (Milun 2018). Esse estatuto condiciona e limita todos os esforços de remoção de CO2 da atmosfera (através das soluções da base natural ou utilização das novas tecnologias) à neutralização e manutenção das atuais emissões ou à geração de direitos para realizar ainda mais emissões. Isto é, não permite o desenvolvimento de uma atividade econômica de remoção do CO2 já em excesso e o restabelecimento do funcionamento do sistema climático.

Um passo relevante no processo de alterar este quadro atual foi a consagração no Artigo 15º, alínea f) da Lei de Bases do Clima portuguesa (Portugal 2021), que, ao estabelecer o objetivo de reconhecer o clima estável como Patrimônio Comum da Humanidade junto das Nações Unidas, permite o início de um processo internacional de multilateralismo em torno da necessidade de construir um quadro jurídico internacional que permita representar a realidade funcional do planeta – o suporte da vida – como um bem comum, que deve ser gerido no interesse de toda a humanidade e das próximas gerações.   

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Recebido: 17 de abril de 2024

Aceito para publicação: 26 de junho de 2024

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