O ataque do Hamas a Israel demonstrou como a questão palestina é um ponto de disputa entre os dois maiores polos políticos do Brasil. Os conservadores pressionam por um apoio a Tel Aviv, enquanto o governo Lula critica a posição pró-guerra de Netanyahu. Há pouco espaço para a diplomacia brasileira desempenhar um papel no conflito, a menos que a polarização diminua ou a posição norte-americana mude.
Choques ou episódios de grande repercussão podem provocar acomodações, rearranjos e mudanças significativas nas dinâmicas da ordem internacional. O ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023 contra Israel é um desses eventos que prometem novos rumos e, portanto, estimulam reflexões sobre os caminhos mais promissores para a política externa brasileira (PEB), especialmente no atual contexto de conflitos, incluindo novas possibilidades de realinhamentos e alianças. Nesse cenário atual, será que um acontecimento dessa magnitude vai proporcionar mudanças significativas na relação entre Brasília e Tel Aviv, Brasil e países árabes?
Para refletirmos com clareza sobre os desafios que se impõem ao Brasil, tanto no âmbito doméstico como no internacional, é necessário observarmos onde a política externa brasileira se encontrava em relação à questão Palestina-Israel-mundo árabe antes do conflito em Gaza, para avançarmos no pós-guerra e, por fim, delinearmos possíveis alternativas ao posicionamento brasileiro.
Para traçar esse panorama serão observados os protagonistas e elementos que influenciam nas dinâmicas atuais do Oriente Médio. Apesar de ainda haver uma atuação proeminente de presidentes, chanceleres e do próprio corpo de diplomatas do Itamaraty, destacamos a pluralidade de atores, especialmente no âmbito doméstico, que atuaram e atuam no processo decisório da política externa brasileira, o que pode ser bastante desafiador para o analista (Milani & Pinheiro 2016, 279). Aqui ressaltamos o papel proeminente do Executivo, que decide em última análise as orientações diplomáticas em relação ao Oriente Médio. Mas também observamos alguns dos principais atores internos que influenciaram essas decisões, tanto no governo de Jair Bolsonaro (2019-2022) como no primeiro período de Luís Inácio Lula da Silva como presidente (2003-2010), assim como no mais recente (2023-). Na última parte, os atuais constrangimentos externos para uma atuação mais objetiva do Brasil serão sublinhados.
O PERÍODO BOLSONARO
O relacionamento entre Brasil e Israel se transformou durante os quatro anos sob a presidência de Jair Bolsonaro. O que era uma relação entre dois Estados, definida durante a maior parte de sua história como “equidistante” ou “reativa” por parte do Brasil (Santos 2014), passou a ser conduzida por interesses de uma pauta ultraconservadora, que incluía ataques a organizações multilaterais, o “combate ao comunismo” e a defesa dos chamados valores tradicionais cristãos. Esse período foi provavelmente um ponto fora da curva na política externa brasileira, especialmente por ter deixado objetivos estratégicos de lado e visar, em grande medida, a um projeto de poder do ex-presidente brasileiro.
O plano de uma política externa para o país foi substituído por um esforço de aproximação com grupos internacionais de extrema-direita. Crenças que acompanharam os governos anteriores, como universalismo, autonomia e a busca pelo “grande destino” (Saraiva 2011), foram abandonadas. A retórica usada pelo chanceler brasileiro Ernesto Araújo, representante da dita ala “ideológica”, chegou a admitir a possibilidade de nos tornarmos “párias” como forma de defesa do “globalismo”. Essa posição significava atacar a China, que além de ser o maior parceiro comercial do Brasil foi um importante fornecedor de insumos durante a pandemia, e alinhar-se aos Estados Unidos, sob Donald Trump, e a governos de direita como Hungria e Israel.
Em relação a Israel, também houve uma inflexão. Os laços se moldaram por meio de mudanças nas posições históricas brasileiras na Organização das Nações Unidas (ONU) em relação ao conflito com os palestinos. O alinhamento de Bolsonaro, especialmente no período em que Benjamin Netanyahu ocupava o cargo de primeiro-ministro, suscitou a alteração da perspectiva brasileira sobre o assunto na organização. O país tem adotado, tradicionalmente, o respeito às resoluções que reconhecem o direito palestino aos territórios ocupados em 1967. Com Bolsonaro, o Brasil rompeu essa tradição e se alinhou a Israel em votações da Assembleia Geral e do Conselho de Direitos Humanos da ONU (Della Coletta 2022). Além disso, o então presidente brasileiro deixou de condenar a ocupação israelense, diferentemente do que faziam os governos anteriores, e passou a apoiá-la (Grassiani & Müller 2019).
A orientação não favorecia ganhos estratégicos ou econômicos claros para o Brasil, mas benefícios políticos para a base bolsonarista. Um dos grupos mais vocais, os líderes religiosos brasileiros (Saraiva & Silva 2019) que seguem o sionismo evangélico, pregam o reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel, grosso modo, a fim de atender a uma das condições para a volta do messias do cristianismo. Essa corrente abrange um número expressivo de parlamentares, que faz parte da chamada “bancada da Bíblia”. Além dos apoios internos, havia outras forças externas, ainda dentro do mesmo escopo ideológico, que estimulavam a formulação das promessas, em especial o presidente Trump, ele mesmo responsável pela mudança da representação diplomática para Jerusalém, sob os auspícios dos grupos evangélicos norte-americanos e outros pró-Israel. A relação de subordinação do ex-presidente com seu homólogo norte-americano indicava que o Brasil se juntaria a outros países que fizeram o mesmo, como Guatemala, Honduras, Kosovo e Papua Nova Guiné.
Contudo, outras dinâmicas teriam impedido o avanço das ações anunciadas, como a prometida transferência da embaixada brasileira. Entre as promessas não cumpridas também estão a designação do libanês Hezbollah como grupo terrorista e a indicação de Paulo Jorge de Nápolis, diretor de Marketing da empresa Israel Aerospace Industries (IAI), para ocupar o cargo de embaixador brasileiro em Tel Aviv (Gielow 2019). O complexo militar israelense, que congrega empresas estatais e privadas, desempenha um papel relevante na política externa do país (Özşahin & Tekin 2020, 245). Não é por acaso que a IAI tinha um diretor brasileiro e que ele foi cotado para o cargo de interesse da chamada “ala pragmática”, em que se destacavam os militares. Essa foi a área em que houve maior aproximação, graças ao interesse do governo Bolsonaro na aquisição de softwares de vigilância e controle, além de equipamentos pelas Forças Armadas, sem que houvesse transparência (Paes 2023). Há muito, o Brasil se tornou um mercado importante para a indústria bélica de Israel – o primeiro da América Latina – que vende drones, armamentos e tecnologias de segurança (Grassiani & Müller 2019).
Nas contendas entre ideológicos e pragmáticos, os últimos tiveram mais êxitos. O influente setor do agronegócio, bastante dependente das exportações para o mundo árabe e muçulmano, foi um dos freios ao avanço da transferência da embaixada, juntamente com a Câmara de Comércio Árabe-Brasileira e a ministra da Agricultura Tereza Cristina (Karam 2023). As exportações de carnes Halal, cuja certificação envolve práticas e compromissos regulados por entidades islâmicas às quais os frigoríficos brasileiros devem atender, poderiam ser prejudicadas. Um eventual atrito com Arábia Saudita e Egito, além de outros compradores não árabes que fazem do Brasil líder mundial em exportação de alimentos certificados para o consumo de muçulmanos (Abdala 2021), seria um golpe contra outro grupo da base do governo, a “bancada do boi”. Nesse episódio ficou evidente que as dinâmicas do parlamento brasileiro e de grupos de influência, entre outros, agiram de forma fundamental na tomada de decisões no âmbito das relações da administração Bolsonaro com o Oriente Médio.
Apesar de parte das promessas para Israel não terem sido cumpridas, o projeto de estreitamento das relações com o governo Netanyahu não foi abandonado. Para neutralizar o recuo em relação à transferência da embaixada, foi aberto em Jerusalém um escritório de negócios (Saraiva & Silva 2019). Além disso, a representação brasileira em Tel Aviv passou a ser chefiada não por um diplomata, mas por um general de quatro estrelas, Gerson Menandro Garcia de Freitas, próximo aos “pragmáticos” do governo Bolsonaro. A escolha também é mais um indício, ao lado da indicação de Nápolis, do interesse do governo Bolsonaro em aprofundar ainda mais os negócios na área de defesa e segurança entre ambos os países. Essa aproximação, que gera negócios de valores vultosos, também foi uma demonstração de apreço ao país, que não é necessariamente dentro do âmbito diplomático.
Durante o governo Bolsonaro, os EUA também não ficaram para trás. A administração brasileira cedeu a uma antiga reivindicação daquele país: participar como membro do Grupo 3+1 de Segurança sobre a Tríplice Fronteira. A denominação, que demonstrava a excepcionalidade da participação norte-americana ao lado dos três países que compõem a região fronteiriça (Brasil, Argentina e Paraguai), foi substituída pela expressão Mecanismo de Segurança Regional em 2019 (Chapman 2020). Tal fato sugere uma alteração na inserção de Washington no grupo – de convidado a membro permanente, o que concede mais espaço para sua atuação. O interesse norte-americano e israelense no monitoramento da região é conhecido desde a década de 1990, quando o governo argentino associou a comunidade fronteiriça aos atentados contra alvos judaicos em Buenos Aires, apesar da falta de evidências que corroborassem as acusações (Castro 2021).
Os benefícios [das relações do bolsonarismo com Israel], pelo menos do lado brasileiro, se mostraram concentrados nas bases de apoio do governo. Os grupos religiosos e antiglobalistas, que viam a aproximação com Israel como necessária para reafirmar dogmas bíblicos e laços judaico-cristãos, viram seu discurso ser alavancado na mídia e sua influência na PEB valorizada…
Os benefícios dessas relações, pelo menos do lado brasileiro, se mostraram concentrados nas bases de apoio do governo. Os grupos religiosos e antiglobalistas, que viam a aproximação com Israel como necessária para reafirmar dogmas bíblicos e laços judaico-cristãos, viram seu discurso ser alavancado na mídia e sua influência na PEB valorizada, apesar de não terem emplacado sua maior demanda. A “ala pragmática”, por outro lado, que inclui os setores da base econômica e militar do governo, foi a maior beneficiada, com a manutenção do fluxo de negócios e novos contratos na área de defesa e vigilância. Esses desdobramentos sugerem que os interesses ligados ao projeto de poder do ex-presidente, que incluiu disputas na própria base de apoio, conduziram, em grande medida, as relações com o Oriente Médio.
LULA ONTEM E HOJE
Com a ascensão do governo Lula III, o primeiro desafio foi reinserir o Brasil no cenário mundial, após quatro anos de afastamento do histórico apoio brasileiro às instituições multilaterais (Herz 2022). Significou, portanto, tratar de romper o isolamento construído pelo governo anterior, retomar antigas alianças e forjar novas. O próprio retrospecto do petista, que teve destacada atuação na formulação da política externa em seu governo anterior, trazia maior previsibilidade às novas diretrizes, inclusive para o Oriente Médio. Esperava-se, portanto, a retomada da “equidistância” em relação ao conflito entre israelenses e palestinos com a defesa da solução de dois Estados. Mas, mesmo antes dos eventos de 7 de outubro de 2023 e suas consequências, o prognóstico se mostraria equivocado, especialmente pelo imbricamento entre os bolsonaristas e o governo de extrema-direita israelense que ascendeu em dezembro de 2022.
Lula tem um histórico diferente em relação ao Oriente Médio. Ele foi o primeiro mandatário brasileiro a desembarcar na região em visita oficial, o que ocorreu em 2003. O petista defendeu a criação de um Estado Palestino, a desocupação das Colinas de Golã e promoveu a abertura de uma representação brasileira em Ramallah junto à Autoridade Palestina (Amorim 2015, 129). No final de seu mandato, viajou para Israel e para os Territórios Ocupados Palestinos e reconheceu formalmente o Estado Palestino, com base nas fronteiras de 1967 (Santos 2014). Lula também colocou o país como um ator relevante nas conversações durante momentos críticos da guerra entre Israel e Hezbollah, em 2006, e contra Gaza, em2009 (Vagni 2011, 153).
O que a princípio pode parecer uma aproximação maior com os palestinos foi a concretização do que historicamente vinha sendo sustentado pelo Brasil no âmbito das Nações Unidas. A defesa da solução de dois Estados e a observação das resoluções aprovadas pela Assembleia Geral que resguardam as fronteiras anteriores a 1967 são posições tradicionalmente estabelecidas. Por outro lado, o governo petista acenou a Israel com um gesto que, além de simbólico, foi tangível. Sob a presidência de Lula, o Mercosul negociou e assinou o Acordo de Livre Comércio (ALC) com Tel Aviv, o primeiro do tipo fora da América Latina. O ALC, que entrou em vigor em 2010, tratou da isenção de tarifas para produtos de ambos os lados e concedeu legitimidade inequívoca a Israel, não somente como parceiro comercial, mas como Estado, especialmente em um período quando a América do Sul surfava a Onda Rosa. Os partidos progressistas da América Latina, assim como o próprio Partido dos Trabalhadores de Lula, sempre demonstraram apoio pela autodeterminação palestina.
O tratado não deixou totalmente clara a controversa questão sobre a inclusão ou não de produtos originários de assentamentos judaicos localizados nos territórios ocupados palestinos. Um outro acordo de livre comércio também foi assinado em 2011 entre o bloco sul-americano e a Autoridade Palestina (AP), a fim de contrabalancear o efeito do anterior. Contudo, esse ainda não evoluiu e segue pendente, pois necessita de ratificação e, mais importante ainda, viabilidade. A AP não tem controle sobre a totalidade de seu próprio território, muito menos sobre suas fronteiras, seja Gaza, Cisjordânia ou Jerusalém Oriental, o que torna a venda da totalidade dos produtos palestinos dependente de muitos outros fatores, grande parte deles relacionados a Israel.
Outro gesto que pode ser considerado pró-Israel durante os governos Lula I e II foi a expansão da cooperação na área de defesa, apesar das críticas de movimentos sociais e de grupos progressistas. Isso se deu em um contexto de ascensão da mobilização em torno da campanha Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS), que prega o bloqueio econômico para pressionar Israel a cumprir a lei internacional em relação aos palestinos. Também houve um incremento das trocas comerciais, cuja balança comercial vem favorecendo Israel. Ainda hoje, o Brasil importa mais do que exporta para o país, especialmente por demandar produtos com maior valor agregado, sem mencionar aqueles com ênfase na área de tecnologia. Mais recentemente, com a invasão russa à Ucrânia, que criou dificuldades de importação de produtos vindos da Rússia, o Brasil também passou a comprar mais fertilizantes dos israelenses (Oliveira 2024).
A “equidistância” em relação ao conflito pode ser considerada uma forma de posicionar o país como um ator moderado nos conflitos mundiais. Para uma nação que reivindica um assento no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), essa caraterística se mostrava desejável. Outra forma mobilizada para demonstrar o capital diplomático brasileiro foi participar ativamente de fóruns multilaterais e articular novas pontes com outros blocos. Nesse contexto, Lula promoveu, por exemplo, o estreitamento de laços com o mundo árabe por meio da criação da Cúpula América do Sul-Países Árabes (Aspa), um fórum inter-regional que congregou 34 países integrantes da União das Nações da América do Sul (Unasul) e da Liga Estados Árabe (LEA). A iniciativa, que levou meses para ser colocada em prática, envolveu várias viagens do então chanceler Celso Amorim e demais esforços diplomáticos para superar divisões nos próprios blocos, o que ajudaria a demonstrar a capacidade brasileira para o diálogo (Castro, no prelo). Os resultados políticos esperados não se cumpriram, sendo que o principal demandaria uma reforma profunda na atual configuração do CSNU. Pelo menos, em termos econômicos, o esforço se revelou um sucesso: em 2010, as exportações para a LEA eram oito vezes maiores do que em 2000 (Milan, Feraboli & Gonçalves 2023, 7-8).
A aspiração de atuar como mediador em conflitos levou o Brasil de Lula II a buscar um acordo entre o Irã e os EUA. O Oriente Médio era e ainda é um palco singular para demonstrar a capacidade de um país ser um ator eficiente na resolução de conflitos. A partir dessa premissa, o governo Lula buscou negociar um acordo com os iranianos na questão nuclear. Apesar do sucesso da intermediação com Teerã, ao lado da chancelaria da Turquia, o compromisso nuclear alcançado em 2010 foi rejeitado pela administração de Barack Obama. O próprio presidente dos EUA havia encorajado os esforços dos dois mediadores, apesar de se mostrar cético de que iniciativas diplomáticas surtiriam efeito (Parsi 2017, 107). Cinco anos depois, o próprio Obama e demais países do P5 chegaram a um acordo com o Irã por meio do Joint Comprehensive Plan of Action (JCPOA) – que acabou por ser abandonado unilateralmente por Trump em 2018.
A recusa americana em corroborar a intermediação no caso iraniano arrefeceu o entusiasmo do Brasil, que vinha demonstrando ser um candidato a mediador com boas credenciais diplomáticas e as qualificações desejadas por ambos os lados do conflito. Esse seria um passo importante para retomar a ideia de realizar uma conferência de paz para a questão palestina, que teria surgido após o Brasil aceitar, ao lado dos outros parceiros do Fórum de Diálogo Índia-Brasil-África do Sul (IBAS), o convite para participar da Conferência de Anápolis, em 2007 (Amorim 2011). Um dos principais argumentos usados pela chancelaria brasileira era que a coexistência pacífica entre as comunidades árabe e judaica no país demonstrava a aptidão nacional para encaminhar uma resolução para o conflito (Brun 2016, 44). Além da pouca adesão, o projeto de mediação se esvaiu de vez com a saída de Lula do governo e a falta de continuidade do governo Dilma da política externa “ativa e altiva”.
No terceiro mandato do petista, um novo complicador a ser considerado surgiu em relação ao Oriente Médio: o alinhamento do atual governo israelense com o bolsonarismo. Israel, especialmente Netanyahu, foi e ainda é um aliado de primeira ordem do ex-presidente e adversário político de Lula.
No terceiro mandato do petista, um novo complicador a ser considerado surgiu em relação ao Oriente Médio: o alinhamento do atual governo israelense com o bolsonarismo. Israel, especialmente Netanyahu, foi e ainda é um aliado de primeira ordem do ex-presidente e adversário político de Lula. O governo liderado pelo primeiro-ministro é o mais conservador da história de Israel: além do Likud, a coalizão conta com dois partidos de religiosos ultraortodoxos e três de extrema-direita (Shotter 2022). Portanto, mesmo antes do ataque do Hamas em outubro de 2023, reconstruir a relação com uma parte que está tão associada ao governo brasileiro anterior – e que se mostra tão radical – já seria um desafio complexo.
Desde os primeiros meses após assumir, o governo Lula III voltou às diretrizes esperadas ao seu perfil. Houve declarações conjuntas com outros países latino-americanos de apoio a uma solução de dois Estados, que considerasse o direito de Israel viver em paz, e a condenação da construção de assentamentos judaicos em terras palestinas, que contrariam as leis internacionais (Huland 2024). O ambiente, apesar de comprometido, se mantinha dormente. A série de episódios que se seguiram ao ataque do Hamas em outubro de 2023 trouxe à tona o mal-estar, graças à disputa entre os dois espectros da política brasileira.
Os israelenses consideraram que o presidente brasileiro não havia sido enfático o bastante em condenar o Hamas, enquanto Bolsonaro se mostrava totalmente engajado em demonstrar total apoio a Israel. O Brasil, então membro rotativo, se encontrava na presidência do CSNU. A diplomacia brasileira se colocou como articuladora de uma resolução que demandava um cessar-fogo. A iniciativa, contrária à aspiração pró-guerra do governo Netanyahu, acabou por ser vetada pelos EUA. Na mesma época, houve a suspeita de que a demora na liberação por parte de Israel de brasileiros e familiares que se encontravam em Gaza seria uma retaliação a essa medida.
Para piorar a situação, o embaixador israelense Daniel Zonshine compareceu a um encontro na Câmara dos Deputados que incluía Bolsonaro, seu filho Eduardo, além de outros congressistas da oposição, em novembro de 2023. O episódio foi interpretado pelo governo brasileiro como uma quebra de protocolo, pois o representante de Israel no Brasil estaria interferindo em assuntos domésticos (Chade 2023). Além da carta em que acusa Lula de ter tido uma posição “branda” em relação aos ataques contra Israel, Zonshine se indispôs com o Partido dos Trabalhadores ao afirmar que a sigla teria perdido a “visão de humanidade” (Éboli 2023).
A relação, que já estava esgarçada, se deteriorou de vez com os comentários de Lula em viagem a Addis Abeba, em fevereiro de 2024. Disse ele: “O que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existiu em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu. Quando Hitler resolveu matar os judeus”. O ministro das Relações Exteriores, Israel Katz, escalou o tom ao declarar que Lula seria “persona non grata” em Israel até que se desculpasse pelo comentário. Os protestos israelenses incluíram uma reprimenda pública ao embaixador brasileiro Frederico Meyer, interpretada como uma forma incomum de lidar com a questão (Fernandes et al. 2024). O Brasil, por sua vez, convocou Meyer e, posteriormente, transferiu-o para Genebra, deixando a embaixada sob a chefia do encarregado de negócios, atitudes que dentro da linguagem diplomática demonstram contrariedade. Outra ação significativa por parte do governo petista foi a suspensão da compra de 36 blindados israelenses para o exército brasileiro (Seabra & Feitoza 2024).
Tais trocas de indelicadezas demonstram que as relações entre os dois governos chegaram a um ponto de não retorno a curto prazo. Dadas as condições atuais, Israel tende a ter seus contratos com o país questionados e congelados, como já ocorreu. No momento em que precisa de apoios, Israel está cultivando o isolacionismo, principalmente entre os latino-americanos, depois de anos de investidas diplomáticas do próprio Netanyahu na região (Özşahin & Tekin 2020, 244) Por outro lado, a deterioração das relações entre Brasil e Israel, estimulada pela polarização da política interna, também evidencia que a aspiração brasileira de se tornar mediador do conflito na atual gestão está totalmente descartada. O principal conselheiro de Lula, Celso Amorim (2011), reconhece que é necessário haver um balanço nas ações entre as duas partes para qualificar o Brasil como um interlocutor entre ambos os lados. Por isso, é certo que esse anseio foi, pelo menos neste momento, abandonado e uma nova abordagem para a região é necessária. Mas mesmo que essas relações estivessem em um patamar mais estável, haveria espaço para alguma atuação brasileira?
O CENÁRIO EXTERNO
É necessário reconhecer que o cenário mundial é mais volátil e desafiador do que quando Lula foi chamado de “o cara” por Barack Obama. A atual configuração parece sugerir que nos aproximamos de uma ordem internacional multipolar com fortes traços de bipolaridade, ou bipolar com profundas características multipolares. Seja o que for, uma potência média como o Brasil terá de navegar pelos turvos mares que separam EUA e China nos próximos anos, sem considerar a tempestade que uma eventual vitória de Trump nas eleições de novembro pode trazer – ou não, lembrando da conhecida imprevisibilidade do ex-presidente.
De qualquer forma, os EUA são o principal ator nas negociações ocorridas no Oriente Médio desde os acordos de Camp David, em 1978, quando o processo de paz entre Israel e a Palestina passou a ser conduzido fora do âmbito das Nações Unidas (Santos 2014, 194). As iniciativas são quase exclusivamente lideradas por Washington, que dificilmente ficaria de fora de qualquer plano para uma retomada de conversasde paz. O problema é que Israel é seu principal aliado na região desde a revolução que ensejou a criação da República Islâmica do Irã, um ano após a assinatura dos acordos que levaram ao tratado que retomou as relações entre Israel e Egito. Portanto, a proximidade entre norte-americanos e israelenses compromete o papel dos Estados Unidos como mediador do conflito e, por isso, tem sido criticado.
Com a incapacidade da ONU de se envolver na resolução do conflito e a grande assimetria que a proximidade dos Estados Unidos com Israel traz, ficou claro que novos atores seriam necessários para reativar a mesa de negociações. Isso ocorreu em 1991, na conferência de Madri, na Espanha. Seguiu-se ainda a intermediação da Noruega, patrocinadora das conversas secretas entre as duas partes, que resultariam nos acordos de Oslo em 1993 (Smith 2016). Foi o primeiro passo para uma futura implementação da propalada solução de dois Estados, com uma autonomia limitada para Gaza e Cisjordânia através de uma Autoridade Palestina. Contudo, as negociações se mostraram bastante restritas, e o desempenho da Noruega recebeu, posteriormente, muitas críticas. Entre elas, de ser “um prestativo menino de recados” de Israel, o que não pode ser totalmente comprovado pelo sumiço dos documentos e anotações dos oficiais noruegueses (Waage 2008). De qualquer forma, a ingerência norte-americana na reta final das negociações também teria colaborado para colocar pressão nos palestinos a aceitarem o acordo.
Os Acordos de Abraão, promovidos por Trump em 2020, embaraçaram ainda mais a busca por uma resolução do conflito entre palestinos e israelenses. Durante a presidência do republicano foi costurada a normalização das relações bilaterais entre países árabes e Israel. A ideia seria contornar a questão palestina e formalizar os contatos que já vinham ocorrendo, especialmente por causa do interesse de ambos os lados em ativar relações comerciais e, da parte árabe, em acessar a compra de tecnologias de controle e vigilância. Marrocos, Sudão, Bahrein e Emirados Árabes aderiram, e, pouco antes do ataque de 7 de outubro de 2023, esperava-se a anuência da Arábia Saudita. A normalização das relações diplomáticas deixava claro para os palestinos que não somente os norte-americanos, mas os árabes também estavam abandonando a busca pela paz.
Após o ataque do Hamas houve uma série de tentativas no âmbito do CSNU para pedir um cessar-fogo. Os vetos americanos concederam a Israel carta branca para agir enquanto o mundo assistia à barbárie que ocorria em Gaza. Mesmo com a resolução que passou em maio de 2024, tudo se manteve como antes. Por isso, ficaram claras a obsolescência e a incapacidade do órgão em influir na demanda básica de interrupção de conflito (idem em relação à Ucrânia). Tendo em vista esse contexto, haveria espaço para outros países de fora do Oriente Médio e sem tradição de envolvimento com o conflito atuarem? Parece que sim. Grande parte do Sul Global passou da posição de somente apoiar iniciativas pró-palestinas nas instituições internacionais para tomar iniciativas dentro dessas instituições (Huber 2024). Uma delas foi a votação massiva (mais de 80%) por um cessar-fogo imediato na Assembleia Geral das Nações Unidas em dezembro de 2023.
Contudo, quem assumiu o protagonismo do Sul Global não foi o Brasil, mas a África do Sul. Com seu histórico de luta contra o apartheid, o governo do país arrogou para si o papel de liderança moral e tomou a medida mais radical contra a letargia da comunidade internacional, quando entrou como parte interessada e não como candidato a mediador no conflito. A ação rompeu a velha dinâmica e constrangeu Israel. Os sul-africanos argumentam na Corte Internacional de Justiça que Tel Aviv pratica genocídio em Gaza.
Contudo, quem assumiu o protagonismo do Sul Global não foi o Brasil, mas a África do Sul. Com seu histórico de luta contra o apartheid, o governo do país arrogou para si o papel de liderança moral e tomou a medida mais radical contra a letargia da comunidade internacional, quando entrou como parte interessada e não como candidato a mediador no conflito. A ação rompeu a velha dinâmica e constrangeu Israel. Os sul-africanos argumentam na Corte Internacional de Justiça que Tel Aviv pratica genocídio em Gaza. O tribunal de Haia admitiu a “plausibilidade” da acusação, mas ainda não julgou o mérito. Outros 11 países, entre eles Espanha, Chile, México e Turquia, entraram no caso ou anunciaram sua entrada, demonstrando a impaciência de parte do mundo, principalmente dos países em desenvolvimento, com o padrão duplo com que as nações são tratadas.
O caminho encontrado pelos sul-africanos se mostrou promissor e parece ter sido endossado pela Procuradoria do Tribunal Penal Internacional, que solicitou uma ordem de prisão para Netanyahu, para o ministro da Defesa israelense, Yoav Gallant, e três líderes do Hamas. O mesmo tribunal que emitiu a ordem de prisão contra Vladimir Putin após a invasão da Ucrânia não poderia ficar de fora da discussão sobre crimes de guerra e contra a humanidade praticados por outras partes, à custa de perder a credibilidade por julgar somente opositores de europeus e/ou norte-americanos. De qualquer forma, mesmo que a ordem de prisão seja emitida, seria somente uma questão simbólica, apesar de ser bem mais importante do que a resolução pelo cessar-fogo do CSNU e colocar ainda mais pressão sobre Netanyahu.
A decisão sul-africana seguida por outras nações também foi uma consequência do fracasso da retomada das negociações de paz entre palestinos e israelenses antes mesmo de 7 de outubro de 2023. Revela ainda como os caminhos ou mapas para a paz costurados nas últimas décadas se tonaram armadilhas que só postergaram o conflito. Grande parte do Sul Global parece ter consciência da necessidade de um pacto efetivo pela solução de dois Estados, ao mesmo tempo que sua implementação seja acompanhada não somente de um calendário, mas de medidas de coerção para sua implementação.
Depois de 7 de outubro, as tensões que já estavam postas tanto no Brasil como em relação a Israel se intensificaram e, por isso, há pouco espaço para mudança. Sem a troca dos principais atores externos ou alterações mais profundas nas condições atuais, é pouco provável que se destrave o impasse. No contexto doméstico, a aliança da oposição com o governo extremista de Netanyahu dificulta a volta das boas relações anteriores. Os governos brasileiro e israelense avançaram várias casas além do que é ortodoxo na diplomacia e demonstram não ter disposição nem espaço para retroceder. O grande apoio evangélico, grupo que se tornou um calcanhar de Aquiles eleitoral de Lula, parece impedir uma atuação ainda mais veemente do presidente.
…ao designar as ações de Israel como sendo genocídio, Lula coloca-se na categoria de crítico aberto da atuação israelense. O problema é que, ao contrário da África do Sul, o posicionamento parece somente retórico. Demonstra debilidade ao se evitarem ações mais contundentes.
Da mesma forma, ao designar as ações de Israel como sendo genocídio, Lula coloca-se na categoria de crítico aberto da atuação israelense. O problema é que, ao contrário da África do Sul, o posicionamento parece somente retórico. Demonstra debilidade ao se evitarem ações mais contundentes. Dessa forma, o impasse está posto: por um lado, o governo Lula perde o protagonismo almejado dentro do Sul Global; por outro, evita mais cobranças e conflitos com grupos que têm relações umbilicais com Israel. Infelizmente, resta somente ao governo brasileiro se colocar como um anteparo à ascensão da extrema-direita, manter o discurso contra o massacre de palestinos e defender o diálogo. O episódio de 7 de outubro de 2023 provocou alguns rearranjos nas relações entre Brasil e Israel e quase nenhuma alteração com os parceiros árabes. Aparentemente, no contexto atual, não vai resultar em nenhuma mudança significativa nas dinâmicas do conflito e nem entre seus principais atores a curto e médio prazos.
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Recebido: 17 de junho de 2024
Aceito para publicação: 28 de junho de 2024
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