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Seção Especial

Inovações na era digital: usos e riscos para a ação do Estado na política internacional

Governança ética e efetiva é necessária para evitar crises permanentes

Resumo

Inovações tecnológicas na era digital fortalecem indivíduos e grupos de poder em detrimento dos Estados nacionais, gerando disrupções que podem levar a ordem global ao colapso. O baixo custo de acesso a recursos de poder relevantes e a lógica de destruição criadora inerente à interdependência global engendram crises e conflitos entre os principais atores no cenário internacional. Na ausência de governança ética e efetiva, as interações desses processos tornarão os Estados reféns de crises permanentes.

Palavras-chave:

governança global; guerra e paz; interdependência na era digital; destruição criadora.
Imagem: Shutterstock

Evoluções tecnológicas produzem múltiplos impactos na política internacional. Suas implicações desdobram-se em processos inter-relacionados: a criação de um espaço cibernético capaz de amalgamar relações entre atores outrora desconectados no tempo e no espaço; o advento da interdependência de economias e sociedades; a necessidade de redefinir a dinâmica das rotinas burocráticas nas agências estatais face à universalização do acesso à informação em tempo real; a redistribuição de recursos de poder entre os soberanos; a emergência de novos atores capazes de interferir decisivamente nas dinâmicas políticas globais; o surgimento de tecnologias disruptivas, como a inteligência artificial (IA), cujas aplicações, ainda parcialmente ignoradas, a um tempo fascinam e aterrorizam a humanidade… 

Cada processo em curso é relevante e, em alguma medida, influencia os demais. Se é assim, há mais perguntas em aberto do que conclusões sobre o futuro dessas dinâmicas. O assunto não é apenas vasto, é também dinâmico. Se é assim, talvez as melhores contribuições de um artigo como este sejam organizar a discussão e aportar ao leitor elementos para melhor fundamentar sua opinião a respeito das implicações mais relevantes das evoluções tecnológicas sobre os processos políticos internacionais. 

Peço-lhe então, leitor, um pouco de atenção ao longo dos próximos minutos, com a esperança de que estas páginas lhe recompensem a generosa disposição a explorar comigo aspectos relevantes dessa complexa relação.

Para facilitar nossa jornada, organizei o texto em duas partes, dois conjuntos de provocações. Na primeira, interagi com as novas tecnologias: perguntei à “inteligência artificial” como as inovações tecnológicas impactam a política internacional. Reproduzo, a seguir, o diálogo com o ChatGPT. A resposta não surpreende; amplia, de modo organizado e instigante, a lista de processos que comecei a enumerar acima. Encontrei um bom ponto de partida para o diálogo que espero estabelecer com você, leitor, a partir deste texto.

...[Como uma provocação,] interagi com as novas tecnologias: perguntei à “inteligência artificial” como as inovações tecnológicas impactam a política internacional. Reproduzo, a seguir, o diálogo com o ChatGPT. (...) Encontrei um bom ponto de partida para o diálogo que espero estabelecer com você, leitor, a partir deste texto.

A segunda parte do texto realça três aspectos relevantes na relação entre tecnologia e política internacional: (1) os impactos das evoluções tecnológicas na relação entre governos e cidadãos; (2) os impactos das novas tecnologias sobre a redistribuição de poder tanto entre os soberanos quanto entre soberanos e grupos de poder (na feliz expressão de Quincy Wright); e (3) as implicações dessas dinâmicas para a governança global e para as democracias contemporâneas.

Dois foram os critérios em que se baseou a escolha dessas relações específicas entre evolução tecnológica e política internacional: (1) são relações suficientemente estabelecidas para que se presuma sua continuidade no futuro previsível; e (2) possuem implicações indefinidas, apontam para futuros imprevisíveis. Por conseguinte, a depender da consciência que tenham as lideranças globais da necessidade de agir para estabelecer parâmetros de governança dessas dinâmicas, as evoluções tecnológicas produzirão quer instabilidades e rupturas capazes de engendrar catástrofes, quer mudanças progressivas que aportem melhorias às condições de segurança e bem-estar de parcelas cada vez mais amplas da humanidade.

Eis porque, leitor, interessa-nos aprofundar essa discussão. Justamente por serem processos não teleológicos, não lhe prometo respostas. Asseguro-lhe, contudo, informação e provocações consideráveis, com a esperança de instigá-lo a elaborar reflexões que o auxiliem a consolidar suas opiniões sobre o tema.

O CHATGPT  RESUME O IMPACTO DAS INOVAÇÕES TECNOLÓGICAS NA POLÍTICA INTERNACIONAL 

 

Pergunta: How do technological innovations affect international politics?

Resposta do ChatGPT:

"Technological innovations have a significant and far-reaching impact on international politics in various ways. These effects can be both positive and negative and can influence the behavior of States, international relations, and the global balance of power. Here are some of the key ways in which technological innovations affect international politics:

1. Military Power and Security: Technological advancements in military capabilities, such as the development of advanced weaponry, cyber warfare tools, and surveillance technologies, can reshape the security landscape. States with superior technology may gain a military advantage, leading to shifts in power dynamics and potential security dilemmas.

2. Cybersecurity and Cyber Conflict: The rise of information technology has introduced new dimensions to conflict, such as cyber warfare and espionage. States use cyber tools to target each other's critical infrastructure, government systems, and even influence elections. This has led to the need for international norms and agreements on cyber behavior.

3. Economic Interdependence: Technological innovations have facilitated greater economic interdependence among nations. The global flow of goods, services, and capital is heavily reliant on digital infrastructure. This economic integration can both promote cooperation and create vulnerabilities, as seen in trade disputes and economic sanctions.

4. Communication and Diplomacy: The internet and social media platforms have revolutionized communication, enabling leaders and diplomats to engage with global audiences instantly. This can enhance diplomatic efforts but also complicate them when information spreads rapidly and uncontrollably.

5. Soft Power and Cultural Influence: Technological innovations in media and entertainment have expanded a country's ability to exert soft power and shape global perceptions. Hollywood movies, social media platforms, and streaming services can influence cultures and values worldwide.

6. Human Rights and Privacy Concerns: Technological advancements can either empower or undermine human rights. Surveillance technologies, facial recognition, and online censorship can infringe on privacy and civil liberties, leading to tensions between States that uphold different values.

7. Environmental Impact: Innovations in green technologies and renewable energy can influence international politics by reshaping the global energy landscape. Countries that lead in clean energy innovation may gain geopolitical influence and contribute to international climate agreements.

8. Space Exploration and Resources: Advancements in space technology have opened up new frontiers for international competition. The exploration and potential exploitation of space resources can lead to disputes over territorial claims and resource allocation.

9. Health and Pandemics: The global response to health crises, such as the COVID-19 pandemic, relies heavily on technological innovations in healthcare, vaccine development, and data sharing. The ability to respond effectively to pandemics can impact international cooperation and coordination.

10. Global Governance and Norms: Technological innovations challenge existing international norms and legal frameworks. Issues like data privacy, autonomous weapons, and artificial intelligence require new rules and agreements to govern their use on the global stage.

In summary, technological innovations have a profound impact on international politics by reshaping military capabilities, altering economic and communication dynamics, raising new security and ethical challenges, and influencing global norms and governance structures. As technology continues to evolve, its role in shaping international relations will remain a critical consideration for policymakers and scholars" (ChatGPT, 2 de agosto de 2023)[1].

A síntese impressiona por sua amplitude e complexidade. As possibilidades de aplicação da inteligência artificial são amplas, como vemos. É difícil discordar das assertivas, cada uma das quais poderia ensejar análises abrangentes das implicações das novas tecnologias para dimensões específicas da política internacional. Ademais, o algoritmo resume bem múltiplos processos e aponta possíveis interações, sem propriamente construir uma tese sobre o sentido de sua evolução. Os três aspectos destacados a seguir avançam nessa direção.

A tese a ser discutida é que as inovações tecnológicas favorecem a transferência de poder dos soberanos para os indivíduos, gerando instabilidades e disrupções que podem levar a ordem global ao colapso. Na ausência de arranjos que balizem ética e politicamente a evolução desses processos, veremos ampliarem-se em número e complexidade as crises e os conflitos, tanto na esfera doméstica (em especial nas democracias), quanto na esfera internacional, com elevados custos para o planeta e para a humanidade. 

DO ADVENTO DAS NOVAS TECNOLOGIAS E SEU IMPACTO NA RELAÇÃO ENTRE SOBERANOS E SÚDITOS

Novas tecnologias e riscos para a governança democrática no planeta

Reconhecer que as novas tecnologias da informação transformaram profundamente as nossas vidas já é quase um lugar comum. Às vezes, contudo, o óbvio deve ser dito. É que nos acostumamos facilmente às mudanças, ao ponto de as gerações mais novas terem dificuldade em imaginar a vida em sociedade sem internet, redes sociais e smartphones. A verdade é que nossa interação com essas tecnologias evoluiu muito rapidamente, em contraste com os padrões das relações humanas por elas intermediados. 

Nesse descompasso, as novas tecnologias proveram os indivíduos de recursos cujas aplicações eles não compreendem totalmente, sobretudo em seus dobramentos de longo prazo. Não é de hoje que autores preocupados com "riscos catastróficos" para a humanidade defendem que eles “podem vir não primariamente de governos nacionais, nem mesmo de ‘Estados pária’, mas de indivíduos ou pequenos grupos com acesso à tecnologia cada vez mais avançada” (Rees 2018, 42. Tradução própria).

Entre essas [novas] tecnologias, a IA talvez ilustre, como nenhuma outra, a necessidade de regulação que permita balizar sua rápida evolução assegurando o "significativo controle humano" a suas aplicações. 

Entre essas tecnologias, a IA talvez ilustre, como nenhuma outra, a necessidade de regulação que permita balizar sua rápida evolução assegurando o "significativo controle humano" a suas aplicações. Não por acaso, enquanto especialistas e personalidades globais defendem suspender o desenvolvimento de novas capacidades até que se tenha noção mais clara de suas implicações (Future of Life 2023), outros reclamam a imediata construção de estruturas e regimes de governança global em pelo menos quatro dimensões, tendo em vista que : 

Os sistemas de IA atuais já são capazes não apenas de avançar a descoberta e o desenvolvimento de medicamentos, mas também de (re)inventar produtos químicos perigosos e resolver problemas fundamentais na biologia sintética. Capacidades científicas como essas poderiam ser transformadas em armas por agentes maliciosos para utilização em todo o mundo. A IA também pode ser usada para criar armas cibernéticas potentes que podem gerar código, escanear bases de código em busca de vulnerabilidades e projetar malwares polimórficos de maneiras que ameacem a infraestrutura crítica (Ho et alii. 2023, 5. Tradução própria).

A descrição dos potenciais empregos dessa tecnologia específica levanta duas ordens de preocupação imediatas. A primeira consiste na possível multiplicação de ameaças entre os soberanos e de grupos de poder, organizados como atores não estatais, aos Estados constituídos. As novas tecnologias reduziram significativamente os custos de acesso a capacidades letais, tanto para os soberanos quanto para empreendedores capazes de se organizarem para alcançar objetivos específicos, legítimos ou não. 

Com efeito, adquirir capacidade destrutiva significativa em meados do século XX, por exemplo, custava caro e demandava grande capacidade de organização para colocar a serviço da segurança nacional os melhores recursos humanos e materiais disponíveis, como ocorreu com o Projeto Manhattan. Hoje, o acesso a informações e aparatos cibernéticos com os quais se pode causar dano irreparável a sociedades inteiras e ao planeta é relativamente fácil e barato. Basta observar que firmas legalmente constituídas são capazes de explorar o espaço sideral e de organizar, em "redes sociais", trocas informacionais entre quase 40% da população mundial (Haas 2023), com impactos ainda pouco conhecidos sobre a construção de agendas políticas. 

Recentes desdobramentos da guerra na Ucrânia, como a contratação de uma rede privada de satélites para comunicação estratégica, o emprego de mercenários em larga escala e o recurso a aparatos civis como telefones celulares, veículos e drones para cumprir missões militares, ilustram diuturnamente as redistribuições de recursos entre atores públicos e privados no campo da política internacional. As mesmas possibilidades de emprego tecnológico abrem-se a grupos criminosos interessados em traficar armas, drogas, biodiversidade, pessoas, riquezas etc., encontrando em inovações disruptivas facilidades impressionantes para "lavar o dinheiro" adquirido ilegalmente.

A segunda preocupação aponta vulnerabilidades a que estamos sujeitos coletivamente em decorrência da crescente autonomia inerente às novas tecnologias. Livres de controles humanos efetivos, os arranjos tecnológicos existentes produzem resultados que podem inadvertidamente colocar em risco vidas humanas. Podem-se destacar, entre essas vulnerabilidades: a difusão de organismos sintéticos cujas interações biológicas com seres vivos e com o meio ambiente são ignoradas; a falência de controle sobre sistemas de informação que asseguram, por exemplo, o acesso a água e saneamento em grandes cidades; e a autoprogramação de sistemas de armas autônomas com capacidade cinética.

O problema não reside propriamente nas novas tecnologias, mas nas implicações socioeconômicas de seu emprego. Os mesmos gadgets usados para colher informações científicas ou literárias, para aprender sobre o mundo e desenvolver habilidades pessoais servem a espalhar mentiras, desinformar, promover campanhas de ódio e erodir instituições políticas. As mesmas redes sociais que "encurtam distâncias" entre entes queridos permitem a organizações criminosas conduzir suas complexas operações em âmbito global a baixo custo, preservando sigilo, efetividade e eficácia. 

O problema não reside propriamente nas novas tecnologias, mas nas implicações socioeconômicas de seu emprego. Os mesmos gadgets usados para colher informações científicas ou literárias, para aprender sobre o mundo e desenvolver habilidades pessoais servem a espalhar mentiras, desinformar, promover campanhas de ódio e erodir instituições políticas. As mesmas redes sociais que "encurtam distâncias" entre entes queridos permitem a organizações criminosas conduzir suas complexas operações em âmbito global a baixo custo, preservando sigilo, efetividade e eficácia. 

Na boa síntese de Franke (2021,7), “Ao longo da história, a tecnologia transformou economias e sociedades, redistribuiu o poder (militar) entre os Estados, capacitou novos atores e moldou as relações internacionais” (Tradução própria). As inovações tecnológicas das últimas décadas fizeram mais: transformaram estruturalmente as dinâmicas políticas globais, dado que se havia logrado estabelecer certo grau de governança planetária por meio das instituições e regimes criados a partir de Bretton Woods e ampliados no pós-Guerra Fria.

Além de ter viabilizado produzir recursos abundantes a custos relativamente baixos, o emprego dessas tecnologias vem transformando, progressivamente, as relações de poder. Afinal, “os recursos são os meios através dos quais o poder é exercido” (Giddens 1979, 91. Tradução própria). O advento dessa estrutura que organiza os fluxos globais de informação, pessoas, bens, serviços e ativos financeiros permite redefinir as relações de poder entre agentes no ambiente internacional e no interior das sociedades. E foi o que ocorreu.

O impacto mais óbvio desse processo consiste no potencial fortalecimento dos indivíduos, que hoje têm mais e melhores oportunidades de se informar e de se organizar para levar adiante seus interesses, em relação aos seus governos. Isso ocorre no plano político e social. No âmbito econômico, observa-se, como contrapartida desse processo, a progressiva substituição dos indivíduos por máquinas ou sistemas autônomos, pelo menos no que concerne a tarefas específicas, que implicam menor grau de complexidade ou encerram risco elevado. 

Em geral, esse processo é visto positivamente pelos economistas, que enxergam ganhos sistêmicos de produtividade. Com efeito, pelo menos desde a Revolução Industrial, resta claro que a humanidade muito se beneficiou do emprego da ciência e da sistemática inovação em processos produtivos, praticamente dobrando a longevidade dos seres humanos, pelo menos sextuplicando a população global, que passou a contar com numerosas melhorias nas condições materiais e de bem-estar, a despeito das inegáveis contradições intrínsecas nesse processo, a começar pelo acelerado aumento das desigualdades no interior das sociedades e entre elas (Johnson 2021; Chancel et alii. 2022).

Em outras palavras, o aprofundamento da globalização a um tempo expandiu a capacidade produtiva global, integrando-a, sem ter logrado estabelecer sistemas de governança capazes de reduzir assimetrias e legitimar a ordem estabelecida. Relatórios de riscos globais como o do Eurasia Group (2023) e o do Fórum Econômico Mundial (WEF 2023), assim como coletâneas de especialistas (Beard et alii. 2023), registram as contradições e ambiguidades desse processo, bem como suas implicações disruptivas da ordem global.

Para além dos riscos e vulnerabilidades acima apontados, as possibilidades de emprego das novas tecnologias carecem de claros limites éticos. Não houve tempo para se criar uma moral capaz de promover harmonia nesse novo ambiente: inovações tecnológicas sistêmicas estão em descompasso com o advento de padrões aceitáveis de interação em um contexto inteiramente criado pelo ser humano, como é o digital.

Para além dos riscos e vulnerabilidades acima apontados, as possibilidades de emprego das novas tecnologias carecem de claros limites éticos. Não houve tempo para se criar uma moral capaz de promover harmonia nesse novo ambiente: inovações tecnológicas sistêmicas estão em descompasso com o advento de padrões aceitáveis de interação em um contexto inteiramente criado pelo ser humano, como é o digital.

Ademais, a evolução tecnológica das últimas décadas tem funcionado como instrumento e veículo da globalização, aprofundando a integração de economias e sociedades. Esse processo favorece a emergência de conflitos sociais, desafiando os sistemas políticos a produzir respostas aceitáveis pelas sociedades, especialmente no Ocidente, onde as liberdades individuais estão mais consolidadas, e os indivíduos mais facilmente encontram meios com que resistir às opressões disciplinadoras dos governos. 

Entretanto, as democracias contemporâneas não têm logrado produzir respostas aceitáveis pelas populações, fenômeno que está na raiz das intolerâncias e polarizações observadas em toda parte, bem como na redefinição dos tempos políticos. Cada vez mais, com efeito, as populações reclamam soluções imediatas para problemas complexos, o que abre espaço a aventuras populistas, cujas consequências são historicamente negativas.

Ato contínuo, os dilemas emergentes no interior de cada comunidade política transbordam para a esfera internacional, "mundializando" dinâmicas outrora restritas a cada Estado nacional. Nesse contexto de "hiperglobalização", autores como Rodrick (2011) enxergam a emergência de um "trilema político da economia internacional", manifesto na impossibilidade de conciliar a velocidade e intensidade dos fluxos econômicos globais, a autonomia dos Estados nacionais e a democracia. Não por acaso, após as crises sistêmicas de 2008 e 2019, ganharam força respostas nacionalistas que apontam para a redução do ritmo e da intensidade da interdependência, expressas na substituição do just in time (na hora certa) pelo just in case (caso se).

As manipulações populistas que ampliam polarizações políticas estão na superfície desse processo. Sua raiz alimenta-se de inovações disruptivas, particularmente importantes na transição da economia industrial para a da informação, que facilitaram a transferência de poder dos Estados nacionais para indivíduos organizados em grupos que visam atingir objetivos particulares, legais e legítimos ou não. Os efeitos desestabilizadores desse processo são captados por vários documentos de cenários, a exemplo do mencionado Relatório de Riscos Globais do Fórum Econômico Mundial (WEF 2023, 9): “A crescente frustração dos cidadãos face às perdas no desenvolvimento humano e ao declínio da mobilidade social, juntamente com um fosso cada vez maior nos valores e na igualdade, representam um desafio existencial para sistemas políticos no mundo inteiro” (Tradução própria).

O hiato entre o ritmo das inovações e a compreensão de seus impactos para a vida em sociedade afeta distintamente governos autoritários e democracias e impõe desafios políticos extraordinários a governantes acostumados a pensar no curto prazo, a partir das experiências pregressas e no marco de ritos e regras previamente assentados para uma realidade radicalmente distinta da que prevalece hoje em dia. 

Nesse contexto, compreender a maneira pela qual esse processo evolui é crucial para vislumbrar as possíveis respostas dos governos a essa mudança política radical, especialmente no que concerne à construção de elementos de consenso tanto no interior das sociedades quanto no ambiente global integrado por redes de informações, produção e consumo, mas também pelos fluxos naturais, inclusive de vírus e bactérias, que impõem vulnerabilidades a todos e colocam em risco a própria diversidade da vida no planeta Terra.

Inovações tecnológicas disruptivas e a governança da globalização

A estabilidade conferida ao ambiente internacional pela Guerra Fria permitiu aprofundar a interdependência de economias e sociedades, consolidando a fase mais avançada do processo de globalização por meio da construção de cadeias produtivas globais. Ao que tudo indica, esse processo atingiu seu ápice há cerca de uma década, mas ainda é muito cedo para se falar em "desglobalização". A despeito da inefetiva governança global, a interdependência foi longe demais para ser revertida em função de interesses conjunturais, como indicam as dificuldades enfrentadas pelo decoupling (desacoplamento) promovido pelos EUA em relação à China (Brown & Wang 2023) e os dramáticos custos e desafios associados ao Brexit.

Com efeito, as múltiplas crises deste início de século impuseram ônus à intensidade da interdependência, tornando provável a reorganização dos espaços produtivos com base em princípios distintos da simples redução dos custos de produção, tais como redundância, resiliência e segurança, mas não se vê no horizonte um conjunto de blocos econômicos autocentrados nem mercados apartados por rígidas barreiras aos fluxos de ideias e informações, insumos e produtos finais, ativos financeiros e empreendedores bem educados. É mais provável, com efeito, que se instaure lógica semelhante à sugerida por Brunnermeier (2021), especialmente se houver atenção às dinâmicas econômicas de longo prazo.

Integrados pelo comércio, facilitados pela relativa estabilidade nos campos da segurança e das finanças internacionais, esses processos produtivos redistribuíram tarefas e responsabilidades entre distintos atores, reconfigurando paisagens, ressignificando os espaços, criando estruturas globais de valor em permanente evolução – em geral, visando reduzir custos e ampliar a produção de bens e serviços. Como bem apontou Ruggie (1982) a lógica liberal embutida nas estruturas de governança global, embora tenha reservado margens de manobra para intervenções estatais, favoreceu a universalização de lógica produtiva baseada na redução de custos e na busca de crescente eficiência produtiva.

Inovações tecnológicas induziram a construção de infraestruturas conducentes a progressivos ganhos de escala, como ilustram a conteinerização e a integração de modais amparados nas tecnologias de informação, que facilitaram simplificar processos e reduzir os tempos de produção e estoque, ensejando o que ficou conhecido como o modelo produtivo just in time. Arbitragens de custos trabalhistas e fiscais, por seu lado, combinadas com reduções no ciclo de vida de produtos e fábricas, estimularam relocalizações produtivas, facilitando a mundialização das estruturas de produção, consumo, propaganda e serviços permanentes.

Gradualmente, não apenas se estendeu uma rede produtiva que integra, por diferentes meios, espaços geográficos outrora apartados, mas se criou uma economia de serviços que permite aos indivíduos acesso imediato a informações, bens e serviços praticamente em qualquer ponto do globo. Há quem veja nisso um processo de "redução do espaço", que teria tornado o mundo uma "vizinhança global", para usar o termo da Comissão sobre Governança Global (GGC 1995). A verdade, porém, é que os espaços não "encurtaram"; mudou a forma com que se lida com eles. Mudaram os tempos necessários para mover insumos e produtos através das economias nacionais, ao ponto de, até há pouco, se julgar que os Estados nacionais haviam se tornado "disfuncionais": grandes e custosos demais para resolver os problemas locais; pequenos e inefetivos para enfrentar as ameaças e vulnerabilidades enfrentadas por seus cidadãos.

Em outras palavras, ao redefinirem processos produtivos, as inovações tecnológicas promoveram transformações na percepção e no manejo do tempo, na organização e no controle do espaço, afetando as relações de poder entre súditos e soberanos, como se mencionou acima. Agora, outras inovações tecnológicas produzem mudanças igualmente profundas, por exemplo, no que concerne ao uso de impressoras 3D nas indústrias de construção civil, roupas e calçados. Ao facilitar a customização de produtos e reduzir o custo de sua produção local, essas inovações colocam em risco as cadeias logísticas desenvolvidas para as indústrias de massa.

Por ser dinâmico, esse processo induz mudanças nas cadeias globais de valor, redefinindo a organização geográfica da economia global por meio da destruição criativa de que falava Schumpeter (2008) e das suas implicações na gestão da globalização contemporânea (Aghion et al. 2021). As mudanças nas estruturas produtivas globais reconstroem cadeias produtivas, que foram “securitizadas” desde as crises financeiras de 2008 e a pandemia de 2019 (Ayar et al. 2023), desafiando o multilateralismo na sua capacidade de balizar a evolução das relações internacionais contemporâneas. 

Inovações são disruptivas não apenas por originarem novas indústrias, deslocando modos de produção e trabalhadores que precisarão ser amparados no curso das sucessivas destruições criadoras, mas também porque esse processo implica redistribuir poder entre os atores por ele afetados, bem como dos soberanos para indivíduos e grupos organizados, evidenciando o grau de disfuncionalidade dos Estados.

Inovações são disruptivas não apenas por originarem novas indústrias, deslocando modos de produção e trabalhadores que precisarão ser amparados no curso das sucessivas destruições criadoras, mas também porque esse processo implica redistribuir poder entre os atores por ele afetados, bem como dos soberanos para indivíduos e grupos organizados, evidenciando o grau de disfuncionalidade dos Estados. Inovações tecnológicas a um tempo instrumentalizam esse processo e ampliam a capacidade dos indivíduos de obter informações e de se organizar, potencializando sua produtividade. Além disso, reduzem os custos de entrada em mercados específicos, inclusive na produção de armas e outros instrumentos de destruição.

Além disso, o acesso a determinadas tecnologias impõe vulnerabilidades aos indivíduos e aos Estados, podendo engendrar custos sistêmicos, ampliando as desigualdades e colocando em risco as democracias contemporâneas (O'Neil 2017). Especialmente no campo da informação, as novas tecnologias favorecem criar mercados que estabelecem padrões originais de interação entre os atores internacionais. Empregadas por indivíduos e grupos de poder com agendas próprias, essas tecnologias desestabilizam os arranjos institucionais vigentes, permitindo que as interações ocorram em ambiente não regulado. 

Nesse contexto, multiplicam-se as oportunidades tanto de emprego maligno de recursos já disponíveis quanto os riscos de crises sistêmicas resultantes de regulação inadequada ou insuficiente. Talvez o exemplo contemporâneo mais eloquente do alcance disruptivo de inovações tecnológicas esteja nos mercados financeiros, em especial na proliferação de criptoativos. 

Com efeito, em 2022 o Financial Stability Board (FSB 2022, 19), junto com o Fundo Monetário Internacional (FMI), alertava que: “Os mercados de criptoativos estão em rápida evolução e poderão chegar a um ponto em que se tornem uma ameaça à estabilidade financeira global devido à sua escala, a vulnerabilidades estruturais e à crescente interligação com o sistema financeiro tradicional” (tradução própria). Além de sua escalabilidade aportar intensa volatilidade ao sistema financeiro internacional (Boissay et alii. 2022), a crescente complexidade desses ativos e a expansão de seu emprego favorecem seu uso na lavagem de dinheiro decorrente de atividades criminosas e impõem monumentais desafios regulatórios às autoridades competentes, que hoje lutam para compreender a evolução dos ecossistemas em que criptoativos se combinam com redes sociais de forma pervasiva e mutante. 

O excelente diagnóstico produzido pelo FMI e FSB (IMF & FSB, 2023) para o encontro do G-20 sobre o tema dá conta da enorme complexidade regulatória que esse ecossistema requer, bem como dos riscos que os criptoativos aportam à estabilidade macroeconômica e à integridade financeira das economias contemporâneas. Para dar-lhe ideia da complexidade do tema, leitor, a simples identificação dos hiatos de informação sobre o uso desses ativos em distintas jurisdições financeiras e a proposta de um mapa que permita organizar a cooperação internacional sobre o assunto resultaram em duas dezenas de recomendações de alto nível a serem adotadas para permitir às autoridades supervisionar o funcionamento desses mercados e definir medidas regulatórias a serem adotadas universalmente. 

 Observe, ainda, que semelhantes diagnósticos partem da premissa de que as autoridades constituídas são legítimas e compartilham o interesse em disciplinar o funcionamento desses mercados, visando ordenar esses ecossistemas financeiros a fim de ampliar a estabilidade macroeconômica global e a higidez do sistema financeiro internacional. As dificuldades enfrentadas pelos governos para decidir se pretendem lançar suas respectivas moedas digitais, ou Central Bank Digital Currency (CBDC), sinalizam a complexidade da tarefa, mas também apontam oportunidades promissoras com base em intensa cooperação internacional (Carstens 2021; Heckel & Waldenberger 2022). A despeito dos desafios, os soberanos precisam concertar instrumentos regulatórios que favoreçam o emprego legítimo e produtivo dessas inovações financeiras, aprimorando a alocação de capital e agregando eficiência à produção econômica global.

Riscos maiores e mais graves estão associados ao controle desses ativos e tecnologias por organizações criminosas, cujo interesse é fazer dinheiro explorando atividades insuficientemente reguladas e limitações dos soberanos para prosperar. Esses grupos de poder não pretendem tomar o poder ou substituir os soberanos, mas se aproveitar das disfuncionalidades dos Estados nacionais para conduzir negócios rentáveis, inclusive explorando a população marginalizada pelas sucessivas destruições criadoras que marcam a evolução do sistema capitalista global.

Nas mãos desses atores, as inovações tecnológicas disruptivas trazem implicações desafiadoras para a política internacional em pelo menos duas dimensões: por um lado, ensejam dinâmicas sociais e econômicas distintas daquelas que caracterizam as disputas entre soberanos no ambiente internacional, favorecendo a entrada de novos atores movidos por sistemas de valores incompatíveis com os que presidem a política internacional negociada entre soberanos.

No passado, com efeito, esses atores não tinham capacidade para se imporem aos Estados nacionais, cuja cooperação permitiu estabelecer arcabouços regulatórios capazes de enquadrar as atividades desses grupos de poder. Milícias foram controladas, movimentos independentistas legitimados, firmas incorporadas ao sistema produtivo global, ao tempo em que os governos cooperaram para combater a delinquência internacional organizada. Atualmente, em contraste, as novas tecnologias dotam esses grupos de capacidades superiores às de muitos Estados nacionais, como demonstram organizações como a Al Qaeda, o Estado Islâmico, o Grupo Wagner e a BlackWater/Academi. 

Para completar, essa dinâmica produz medo e gera sentimentos de exclusão em parcelas importantes da população global, em meio à evolução de um sistema concentrador de renda marcado por amplo acesso à informação. Como resultado, as disparidades de renda e riqueza são conhecidas por todos, ensejando legítimos sentimentos de injustiça e revolta, que não têm sido atendidos apropriadamente pelas democracias contemporâneas. Nesse contexto, abrem-se espaços à manipulação dessas frustrações por ativistas políticos interessados em usar o aparato do Estado para alcançar interesses privados, colocando em risco a própria existência das democracias.

Já se podem observar consequências desse processo na forma de retrocessos na interdependência das economias e sociedades. Não é fácil medir a globalização e interpretar a sua dinâmica (Vujakovic 2010), mas, se o comércio global servir como indicador, fica evidente que o seu valor sobre o PIB global se fixou em cerca de 60% (Banco Mundial 2020), reduzindo-se em 15% desde a crise de 2008. Indicadores financeiros, migratórios e tecnológicos apontam para a retração das trocas a partir de então, numa dinâmica que se acelerou a partir de 2019 (García-Herrero & Tan 2020; Dover 2022). 

Nesse contexto, a pergunta em aberto é: poderiam esses processos colocar em risco a própria globalização? A seção final deste artigo recapitula o argumento apresentado à luz dessa questão.

Inovações disruptivas: desafios e riscos para a globalização

A esta altura, leitor, concordamos em que inovações tecnológicas engendram processos disruptivos nas sociedades contemporâneas. Novas formas de produzir bens e serviços deslocam trabalhadores, substituindo-os por máquinas, sem que se lhes deem condições adequadas de reposicionarem-se no mercado de trabalho. Esse processo evolui em contextos urbanos, marcados pela ausência de redes de proteção social tradicionais e pela prevalência de valores liberais, que atribuem a cada indivíduo a responsabilidade por sua própria sobrevivência, quer quando jovem e produtivo, quer quando o tempo e os excessos lhe esgotaram as forças e a disposição ao trabalho.

Os governos dos Estados nacionais enfrentam o complexo desafio de fomentar sentimentos de empatia e solidariedade entre suas elites econômicas e a maior parte da população, cujas necessidades precisam ser financiadas, em alguma medida, pelas autoridades constituídas. Entretanto, as mesmas tecnologias que substituem indivíduos por máquinas permitem aos operadores dessas máquinas relacionarem-se à distância com seus interlocutores em outros espaços geográficos. Ato contínuo, essas elites tendem a ver mais sentido em facilitar o relacionamento com suas contrapartes localizadas em outros ambientes internacionais do que em financiar condições de vida digna para os concidadãos vitimados pelos sucessivos processos de destruição criadora. Sua ação política tende a privilegiar a implantação de arcabouço regulatório favorável a promover suas liberdades, mais do que equilíbrios sociais.

Nessas condições, como criar um mínimo de harmonia nas sociedades contemporâneas, em especial nos países emergentes? Mais ainda, e por causa das implicações das crises financeira e sanitária vividas neste século, como conciliar a necessidade de governança global com pressões neomercantilistas e o fomento a sentimentos nacionalistas, para não mencionar o estímulo à intolerância e à xenofobia? Em um mundo marcado pela possibilidade de acesso a informações em tempo real e a baixo custo, bem como pela enorme mobilidade, a relação entre as políticas domésticas e os arranjos de governança global passa a ser intermediada não apenas pelas vontades políticas dos atores relevantes, mas também pelas tecnologias que viabilizam essas trocas.

No que concerne à segurança internacional, em particular, [as implicações das inovações tecnológicas para a política internacional] são apenas parcialmente conhecidas. Criou-se, na verdade, um novo teatro de operações, na forma do ambiente cibernético que organiza um enorme conjunto de processos simultâneos. Isso é muito diferente das interações tradicionais, em que os governos dos Estados nacionais interagem mutuamente nos teatros de operação tradicionais (terra, mar e ar). (...) Em contraste, o ambiente cibernético opera segundo lógica distinta. As interações são intermediadas por algoritmos cada vez mais autônomos em relação aos seus programadores iniciais, especialmente depois do advento do machine learning. As recentes inovações criaram uma zona de incerteza com relação a como atuar nesse ambiente, sendo difícil até mesmo distinguir capacidades ofensivas e defensivas.

Eis aqui, leitor, outra implicação das inovações tecnológicas para a política internacional. No que concerne à segurança internacional, em particular, essas implicações são apenas parcialmente conhecidas. Criou-se, na verdade, um novo teatro de operações, na forma do ambiente cibernético que organiza um enorme conjunto de processos simultâneos. Isso é muito diferente das interações tradicionais, em que os governos dos Estados nacionais interagem mutuamente nos teatros de operação tradicionais (terra, mar e ar). Nesses domínios, sempre houve esforços de autoproteção, por exemplo, mediante distanciamento que oferecesse a cada ator profundidade estratégica suficiente para preservar suas condições operacionais. 

O emprego de Veículos Aéreos Não Tripulados (VANT) ilustra a capacidade de um soberano manter seus combatentes a distância segura de seus inimigos. Essa dinâmica é conhecida, mas sofreu importante aceleração no ritmo das inovações, reduzindo a vida útil dos artefatos e mesmo das indústrias que os produzem. Mas a lógica de interação nos ambientes tradicionais de operação não se transformou através do tempo. 

Em contraste, o ambiente cibernético opera segundo lógica distinta. As interações são intermediadas por algoritmos cada vez mais autônomos em relação aos seus programadores iniciais, especialmente depois do advento do machine learning. As recentes inovações criaram uma zona de incerteza com relação a como atuar nesse ambiente, sendo difícil até mesmo distinguir capacidades ofensivas e defensivas (Valeriano 2022).

Diante da necessidade de estabelecer arcabouço normativo que regule e confira previsibilidade às ações desenvolvidas nesse contexto, os governos recorrem a analogias a sistemas de normas empregados para disciplinar o emprego de tecnologias de destruição em massa já reguladas, a exemplo das químicas, biológicas e nucleares. Contudo, estamos diante de tecnologias inteiramente novas, cujos desdobramentos são difíceis de antecipar, já que envolvem, ao menos em tese, a possibilidade de participação de máquinas capazes de processar informações que lhes permitam atuar com autonomia em relação aos seres humanos. Se é assim, no limite, a tecnologia pode operar à margem da cadeia de comando e controle dos Estados nacionais.

Ocorre que essa dinâmica não possui teleologia, o processo está aberto. Ao consolidar-se a transferência de poder dos soberanos para os súditos, as interações destes poderão vir a influenciar as dinâmicas globais mais intensamente do que as daqueles, desafiando também as tradicionais teorias das Relações Internacionais. 

Com efeito, o ambiente cibernético potencializa os demais teatros de operação e cria possibilidades não antecipadas pelos indivíduos, ampliando a lista de vulnerabilidades que afligem a humanidade. Incentivados a se associarem em função de agendas globais excludentes ou das agendas nacionais, os indivíduos tendem a incentivar dinâmicas que corroem a lógica da precária governança construída pelo arranjo multilateral vigente, que, bem ou mal, foi capaz de matizar as dinâmicas de poder durante a Guerra Fria, evitando catástrofes.

Mais ainda, e também em função da prevalência de valores liberais, esse arranjo favoreceu o surgimento de uma agenda global centrada na segurança humana, hoje organizada nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e na sustentabilidade Ambiental, Social e Governança (ESG na sigla em inglês). Na feliz síntese de Kofi Annan (2005), tratava-se de assegurar a cada ser humano ter respeitadas suas liberdades fundamentais: “freedom from fear, freedom from want” (liberdade de medos, liberdade de necessidades). Seu chamamento continua atual e hoje é ainda mais relevante. O fracasso coletivo em viabilizar objetivos contra os quais ninguém é capaz de se posicionar talvez explique a angústia em relação à precariedade da governança global, tão bem explorada pela extrema-direita mundo afora. Afinal, sua narrativa é excludente, baseada na negação do direito à igualdade de oportunidades e de justiça social.

A verdade é que as democracias contemporâneas não estão aparelhadas para responder a essas dinâmicas globais. A lógica que fundamenta a autoridade dos representantes do povo está calcada em conceitos relacionados com a sociedade industrial, tais como sindicatos e partidos políticos, que já não fazem sentido em sociedades fragmentadas e fluidas, segundo Baumann (2006). Entretanto, "a distribuição dos benefícios das relações globais depende não só das políticas internas, mas também de um leque de arranjos sociais internacionais" (Sen 2009,  444), em linha com a ideia rawlsiana (1971) de justiça e com a proposta habermasiana de criação de um espaço público global.

Ainda que precariamente, nas últimas décadas a humanidade avançou nessa direção. Nas brechas encontradas entre os interesses das grandes potências, vicejaram conceitos como o da responsabilidade de proteger e os objetivos de desenvolvimento sustentável. Embora imperfeito, criou-se um espaço de convivência paralelo ao que faculta às grandes potências perseguir seus interesses estratégicos. Em parte, isso foi possível devido à transferência de poder dos soberanos para os súditos, como vimos ao longo deste texto. 

É um começo. A solução dessa encruzilhada ética reclama liderança política capaz de criar pontes entre agendas aparentemente desconexas, como são os objetivos de desenvolvimento sustentável, de um lado, e, de outro, a criação de ambiente favorável a inovações permanentes. Semelhante esforço permitiria canalizar as energias criativas para respostas que envolvam algum grau de solidariedade, imprimindo às sociedades e ao ambiente internacional um mínimo grau de estabilidade política que favoreça evitar crises no futuro previsível. Aprimorar as condições de governança global, especialmente pelo fortalecimento do multilateralismo, muito contribuiria para esse processo.

CONCLUSÃO

Inovações tecnológicas disruptivas vêm redefinindo a política internacional contemporânea em praticamente todas as suas dimensões. Do advento de novas tecnologias de destruição à emergência de novos atores no cenário estratégico; dos desequilíbrios políticos no interior das sociedades à reorganização de cadeias produtivas globais; da redefinição de estruturas de governança global às dificuldades de assegurar o respeito aos direitos humanos; do manejo das transformações climáticas à regulação do espaço cibernético, não há aspecto relevante da vida contemporânea alheio tanto às evoluções tecnológicas disruptivas quanto às suas implicações para processos políticos internacionais.

A boa síntese dos impactos das inovações tecnológicas sobre a política internacional feita por um recurso de inteligência artificial ilustra, por si só, a complexidade do tema. O fato de esses processos influenciarem uns aos outros, ademais, torna praticamente impossível prever o sentido de sua evolução. 

Entre as poucas constatações possíveis, está a de que as inovações tecnológicas favorecem a transferência de poder dos soberanos para os indivíduos, gerando instabilidades e disrupções que podem levar a ordem global ao colapso. O fato de o custo de acesso a novos artefatos ter-se reduzido significativamente e a lógica de destruição criadora inerente ao sistema produtivo global apontam para a contratação de crises futuras, cujas implicações para a política internacional cedo ou tarde precisarão ser enfrentadas.

Resta aos governos dos Estados nacionais trabalhar conjuntamente na construção de regimes e instituições que orientem, ética e politicamente, a evolução desses processos, a partir de consensos mínimos sobre valores a proteger. Um bom começo disponível encontra-se já na combinação das agendas expressas nos ODS e na ESG. Omitir-se em relação às responsabilidades atinentes à governança de economias e sociedades interdependentes, em constante fluxo, implicará enfrentar sucessivas crises e conflitos, tanto na esfera doméstica (em especial nas democracias), quanto na esfera internacional, com elevados custos para o planeta e para a humanidade.  

Nota

[1] Tradução da conversa com o ChatGPT:

 Tradução da conversa com o ChatGPT:

Pergunta: Como as inovações tecnológicas afetam a política internacional?

Resposta do ChatGPT:

“As inovações tecnológicas têm um impacto significativo e de longo alcance na política internacional de várias maneiras. Esses efeitos podem ser positivos e negativos e podem influenciar o comportamento dos Estados, as relações internacionais e o equilíbrio global de poder. Aqui estão alguns dos principais maneiras pelas quais as inovações tecnológicas afetam a política internacional:

1. Poder Militar e Segurança: Os avanços tecnológicos nas capacidades militares, tais como o desenvolvimento de armamento avançado, ferramentas de guerra cibernética e tecnologias de vigilância, podem remodelar o panorama da segurança. Os Estados com tecnologia superior podem obter uma vantagem militar, conduzindo a mudanças na dinâmica do poder e a potenciais dilemas de segurança.

2. Cibersegurança e conflitos cibernéticos: A ascensão da tecnologia da informação introduziu novas dimensões nos conflitos, como a guerra cibernética e a espionagem. Os Estados utilizam ferramentas cibernéticas para atingir infraestruturas críticas, sistemas governamentais e até mesmo influenciar eleições. Isto levou à necessidade de normas e acordos internacionais sobre comportamento cibernético.

3. Interdependência Econômica: As inovações tecnológicas facilitaram uma maior interdependência econômica entre as nações. O fluxo global de bens, serviços e capital depende fortemente da infraestrutura digital. Esta integração econômica pode promover a cooperação e criar vulnerabilidades, como se verifica nos litígios comerciais e nas sanções econômicas.

4. Comunicação e Diplomacia: A Internet e as plataformas de redes sociais revolucionaram a comunicação, permitindo que líderes e diplomatas interajam instantaneamente com públicos globais. Isto pode melhorar os esforços diplomáticos, mas também complicá-los quando a informação se espalha rápida e incontrolavelmente.

5. Soft Power e Influência Cultural: As inovações tecnológicas nos meios de comunicação social e no entretenimento expandiram a capacidade de um país exercer um poder brando e moldar as percepções globais. Os filmes de Hollywood, as plataformas de redes sociais e os serviços de streaming podem influenciar culturas e valores em todo o mundo.

6. Preocupações com direitos humanos e privacidade: Os avanços tecnológicos podem capacitar ou minar os direitos humanos. As tecnologias de vigilância, o reconhecimento facial e a censura online podem infringir a privacidade e as liberdades civis, conduzindo a tensões entre Estados que defendem valores diferentes.

7. Impacto Ambiental: As inovações em tecnologias verdes e energias renováveis podem influenciar a política internacional ao remodelar o panorama energético global. Os países que lideram a inovação em energias limpas podem ganhar influência geopolítica e contribuir para acordos climáticos internacionais.

8. Exploração e Recursos Espaciais: Os avanços na tecnologia espacial abriram novas fronteiras para a concorrência internacional. A exploração e potencial exploração de recursos espaciais pode levar a disputas sobre reivindicações territoriais e alocação de recursos.

9. Saúde e Pandemias: A resposta global às crises sanitárias, como a pandemia da COVID-19, depende fortemente de inovações tecnológicas nos cuidados de saúde, no desenvolvimento de vacinas e na partilha de dados. A capacidade de responder eficazmente às pandemias pode ter impacto na cooperação e coordenação internacionais.

10. Governança e Normas Globais: As inovações tecnológicas desafiam as normas e quadros jurídicos internacionais existentes. Questões como a privacidade dos dados, as armas autônomas e a inteligência artificial exigem novas regras e acordos para reger a sua utilização em nível global.

Em resumo, as inovações tecnológicas têm um impacto profundo na política internacional, remodelando as capacidades militares, alterando a dinâmica econômica e de comunicação, levantando novos desafios éticos e de segurança e influenciando as normas globais e as estruturas de governança. À medida que a tecnologia continua a evoluir, o seu papel na formação das relações internacionais continuará a ser uma consideração crítica para os formuladores políticos e acadêmicos.”

 

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Recebido: 13 de setembro de 2023

Aceito para publicação: 15 de setembro de 2023

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