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Memória

Em memória de José Augusto Lindgren Alves: um diplomata incomum

Homenagem ao diplomata que contribuiu para a promoção dos direitos humanos

Resumo

Memória sobre a atuação diplomática e a contribuição intelectual de José Augusto Lindgren Alves para a promoção dos direitos humanos.

Palavras-chave:

direitos humanos; Nações Unidas; Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial; Conferência de Viena sobre Direitos Humanos.
Foto: José Augusto Lindgren Alves. Por Maria Leonor de Calasans/Mediateca IEA-USP

José Augusto Lindgren Alves foi, durante cinquenta anos, funcionário diplomático de carreira, tendo ingressado no serviço exterior em 1968. Exerceu chefias na Secretaria de Estado, foi embaixador na Bulgária, Hungria e Bósnia-Herzegovina, além de cônsul-geral em São Francisco e Barcelona. Sua trajetória profissional é impecável. Porém, a memória de sua contribuição para a vida pública brasileira, se nasce na carreira, vai muito além do Itamaraty. Lindgren tornou-se uma referência necessária na defesa e na promoção dos direitos humanos no Brasil e no plano internacional. Rever seu trabalho e seu pensamento, além do tributo a um diplomata incomum, serve também para lembrar a permanente necessidade de renovar a causa que defendeu. Ele nos deixou em maio de 2022, vítima da Covid-19[1]

A sua aproximação ao tema dos direitos humanos começa quando é transferido em 1985 para a Missão do Brasil nas Nações Unidas e passa a trabalhar na Terceira Comissão da Assembleia Geral, encarregada das questões sociais. No Brasil, a luta pela democratização saíra vitoriosa, e os direitos humanos foram uma de suas bandeiras inspiradoras. O artigo 4º da Constituição de 1988 os consagrava como princípio orientador das relações internacionais do país. Não obstante, apesar do início do processo de adesão do Brasil em 1985 a pactos regionais e universais na área, a política externa ainda dava passos tímidos ao lidar com o assunto na agenda dos organismos multilaterais. Havia também dificuldade em aceitar o diálogo com as organizações não governamentais, ainda vistas como intrusas quando alertavam para violações dos direitos humanos. E a adesão a convenções não integrava automaticamente a questão no metabolismo da política externa brasileira. Faltava atualizar o discurso e o desempenho diplomático. Aí se desenha o papel crucial que Lindgren vai desempenhar.

Em Nova York, ele descobre a sua afinidade com o tema, certamente reflexo da generosidade que marcava a sua personalidade. Ao voltar para o Brasil, apresenta, em 1989, ao Curso de Altos Estudos (um requisito à promoção na carreira) uma tese pioneira – As Nações Unidas e os Direitos Humanos. Entre 1990 e 1995, comanda a Divisão de Nações Unidas, quando convence a chefia do Itamaraty de que os direitos humanos mereciam um lugar institucional de mais autoridade. Nasce, assim, o Departamento de Direitos Humanos e Temas Sociais, do qual Lindgren foi o primeiro diretor. Nessa função, e com a experiência prévia de ter sido um dos principais negociadores do documento final da Conferência Mundial de Direitos Humanos (ONU 1993), Lindgren teve participação ativa na preparação das posições brasileiras e nos processos negociadores das demais Conferências Globais das Nações Unidas na área social A agenda era, em certa medida, nova para a diplomacia brasileira. Íamos lidar com combate ao racismo, direitos das mulheres, assentamentos urbanos, desenvolvimento social, assuntos de interesse direto e permanente da sociedade civil. Um dos instrumentos que o Departamento de Lindgren usou para reforçar a legitimidade das posições brasileiras foi a criação de comissões que, sistemática e organizadamente, debatiam com as ONGs e os movimentos sociais quais os rumos que deveriam orientar a atuação da diplomacia brasileira nas conferências. A prática havia sido ensaiada na Conferência sobre Desenvolvimento Sustentável de 1992 e, depois de plenamente implantada, serviu para transformar a maneira como o Itamaraty se aproximava da sociedade e respondia aos desafios postos pelo regime democrático. 

Lindgren tem, portanto, papel fundamental para situar a política externa na agenda internacional em que a problemática dos direitos humanos ganhava relevância crescente. Com sua tese e a produção intelectual que se seguiu, explica o tema, mostra suas implicações políticas e sociais, e, especialmente, esclarece porque interessava ao Brasil entrar, de forma aberta, no debate que se abria. A resposta diplomática teria consequências para definir a identidade internacional do país. Com a criação do Departamento, consegue que o argumento intelectual encontre solução institucional adequada. E, ao explorar caminhos novos de diálogo com a sociedade organizada, ganham consistência e legitimidade as posições diplomáticas que o Brasil levaria aos foros multilaterais. 

Ainda nesta fase, é preciso sublinhar a atuação de Lindgren, ao lado do embaixador Gilberto Saboia, outro diplomata notável, na Conferência de Viena sobre Direitos Humanos de 1993. Foram decisivos para  superar a distância de visões dos grupos que se formaram. Como lembra Benoni Belli, em expressivo depoimento, Lindgren, na delegação chefiada por Saboia, ajudou a “salvar do naufrágio a conferência” ao  encontrar fórmulas de equilíbrio aceitáveis para todos os países. E acrescenta, “a noção de legitimidade da preocupação internacional com a situação dos direitos humanos em qualquer país, um dos princípios consagrados na Declaração e Programa de Ação de Viena, tem as digitais inconfundíveis de Lindgren” (Belli 2022). A parceria se repete em 2001 na Conferência de Durban contra o racismo, que se origina de uma proposta de Lindgren, feita em 1994, na condição de membro (perito independente) da antiga Subcomissão para a Prevenção da Discriminação e Proteção de Minorias, principal órgão subsidiário da então Comissão de Direitos Humanos da ONU. A proposta foi aprovada por consenso.

Depois de Viena, a sua trajetória intelectual se consolida. Em 1994, publica Direitos humanos como tema global, prefaciado por Celso Lafer. O livro tem repercussão positiva nos meios acadêmicos e é recebido por elogio entusiasmado da professora Maria Victoria Benevides (1994) em uma resenha para a revista Lua Nova (da qual, aliás, ele se torna colaborador frequente). Nessa fase, suas reflexões são especialmente voltadas para a dimensão multilateral do debate. Livros como Arquitetura internacional dos direitos humanos (Alves & Bicudo 1997) e Relações Internacionais e temas sociais: a década das conferências (2001) se tornam, pela combinação de conhecimento, rigor e sensibilidade diplomática, textos de consulta obrigatória para quem estuda a evolução da diplomacia brasileira de direitos humanos. A partir dos anos 2000, Lindgren amplia o horizonte de seus interesses para além da dimensão diplomática. Começa a olhar para os direitos humanos como uma questão civilizacional, envolvendo escolhas que definiram os rumos da  modernidade. Impressiona a maneira como Lindgren dialoga com os clássicos, como Weber, Marx e Hannah Arendt, e os pensadores modernos, como Bobbio, Zizek, Lyotard, Alain Badiou, Derrida, Amartya Sen, Bernard-Henry Levy e, entre os brasileiros, Abdias Nascimento, Flávia Piovesan, Celso Lafer e Paulo Sergio Pinheiro. Dois livros marcam o período – Os direitos humanos e a pós-modernidade (2005) e É preciso salvar os direitos humanos! (2018)[2]. 

A participação em reuniões e comitês das Nações Unidas deu a ele prestígio pessoal e respeito internacional. Assim, entre 2002 e 2017, foi eleito e reeleito para sucessivos mandatos como perito do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial (CERD), o órgão formado por especialistas independentes encarregado de monitorar a implementação, pelos Estados-parte, de suas obrigações sob a Convenção para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, em vigor desde 1968. Entre 2018-2020, Lindgren foi designado secretário-executivo do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos do Mercosul (IPPDH). A presença no CERD ofereceu um lugar privilegiado para acompanhar e opinar sobre as transformações na pauta de direitos humanos e suas implicações para as instituições multilaterais. Viu por dentro como funciona um órgão multilateral e escreveu artigos notáveis sobre os limites das instituições para aplicar as normas e resoluções na área de direitos humanos e as dificuldades para lidar com os conflitos de interpretações sobre o seu alcance. 

A coletânea de artigos que selecionou para o seu último livro abrange um amplo arco temporal, 1996 a 2018, e, por isso, é um registro valioso do balanço que faz Lindgren da história da luta pelos direitos humanos que começa em 1948 com a Declaração Universal. Ele sublinha as conquistas visíveis. Os direitos da mulher foram reconhecidos como integrantes dos direitos humanos universais; impôs-se o respeito aos homossexuais (e agora à comunidade LBGTQIA+); a escravidão foi equiparada aos crimes contra a humanidade; a expressão afrodescendentes se firmou nos foros internacionais. No âmbito do direito brasileiro, os crimes contra a honra deixaram de ser aceitos; aboliram-se conceitos de filhos bastardos e adulterinos; o próprio adultério deixou de ser crime; a união homoafetiva foi reconhecida como entidade familiar, regida pelas mesmas regras que se aplicam à união estável de casais heterossexuais; iniciaram-se as ações afirmativas para compensar desigualdades históricas. Cada uma dessas conquistas tem uma história própria, singular. Porém, a inspiração universalista dos direitos humanos, ao criar uma moldura ideológica consistente em defesa da dignidade individual, está presente em todas. 

A história de conquistas não iludiu o sentido realista das percepções de Lindgren, e os mais recentes escritos trazem uma medida de desencanto. Não por acaso, o título do último livro soa como um apelo: “é preciso salvar os direitos humanos!”. 

A história de conquistas não iludiu o sentido realista das percepções de Lindgren, e os mais recentes escritos trazem uma medida de desencanto. Não por acaso, o título do último livro soa como um apelo: “é preciso salvar os direitos humanos!”. Ele explica as razões essenciais da necessidade e da urgência de agir. Mostra como os consensos de Viena se tornaram frágeis e há sinais de retrocesso em conquistas que pareciam garantidas. Sublinha que a criação de uma frondosa burocracia multilateral no campo dos direitos humanos torna difícil acompanhar o que fazem os muitos órgãos e agências e, sobretudo, cobrar-lhes eficácia. Examina como emergem sinais e práticas de intolerância e xenofobia em sociedades que estiveram na vanguarda da promoção dos direitos humanos. O episódio das torturas em Guantánamo é analisado e suas consequências, medidas. A isto se soma o essencialismo multiculturalista, que traz o risco de fragmentar a perspectiva essencialmente universalista que Lindgren defendia como a plataforma necessária para organizar a melhor defesa dos direitos humanos. Ele oferece contribuições significativas para mostrar como as pautas identitárias, válidas em si, devem ter a abrangência para fertilizar e reforçar a luta que seria essencialmente universal. Teve a coragem intelectual para enfrentar questões conceituais intrincadas e socialmente polêmicas. São sempre equilibradas e sensíveis as respostas que sugere.

A soma de experiências de Lindgren é única; não houve outros brasileiros que tenham atuado em tantas frentes na luta pelos direitos humanos. Como diplomata, foi pioneiro para compreender o tema e formular a política externa brasileira de direitos humanos. Percebeu a necessidade de mudanças institucionais e liderou a sua implantação. Formou diplomatas. Negociou textos fundamentais que tecem os padrões contemporâneos da legitimidade internacional. Colaborou ativamente para a redação do I Plano Nacional de Direitos Humanos. O que aprendeu como diplomata é elaborado em reflexões conceitualmente sólidas que ficaram registradas em livros e artigos, sempre lidos com proveito. Tornou-se, por mérito pessoal, perito de órgão das Nações Unidas e olha por dentro o sistema multilateral e suas limitações. Divulga o que sabe em dezenas de intervenções em seminários, entrevistas, palestras e, recentemente, webinars.  O reconhecimento público se exprime quando recebe o Prêmio Nacional Heleno Fragoso de Direitos Humanos em 2001 e a Medalha Sergio Vieira de Mello, de Direitos Humanos e Direito Humanitário, em 2013. 

É exatamente a diversidade da experiência e a maneira como a viveu que o tornam um diplomata incomum. Foi além do Itamaraty, serviu à política externa e serviu ao país. Teve autoridade quando falava de direitos humanos. Deixa uma obra intelectual importante, mas deixa sobretudo um exemplo de integridade na dedicação a uma causa necessária quando se pensa em mundo mais igual, mais tolerante, melhor. Seu legado fica “à disposição da cidadania para a obtenção do avanço social com justiça (Alves 2018, 11).”  

Notas

[1] Agradeço os comentários de Celso Lafer, Benoni Belli e Silvio Albuquerque, que enriqueceram o texto. Eram amigos de Lindgren e, cada um à sua maneira, contribuiu para a história da promoção dos direitos humanos no Brasil. 

[2] Parte desta memória é baseada no prefácio que fiz para o livro.

Referências Bibliográficas

Alves, José Augusto Lindgren. 1989. As Nações Unidas e os direitos humanos. Tese apresentada no Curso de Altos Estudos do Instituto Rio-Branco. 

Alves, José Augusto Lindgren. 1994. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Editora Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren. 2001. Relações internacionais e temas sociais: a década das conferências. Brasília: Instituto Brasileiro de Relações Internacionais (IBRI). 

Alves, José Augusto Lindgren. 2005. Os direitos humanos na pós-modernidade. São Paulo: Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren. 2018. É preciso salvar os direitos humanos! São Paulo: Perspectiva. 

Alves, José Augusto Lindgren & Hélio Pereira Bicudo. 1997. Arquitetura internacional dos direitos humanos. São Paulo: FTD Educação.  

Belli, Benoni. 2022. “José Augusto Lindgren Alves: diplomata e intelectual público”. International Law Agendas, 6 de janeiro de 2022. http://ila-brasil.org.br/blog/jose-augusto-lindgren-alves/ 

Benevides, Maria Victoria de Mesquita. 1994. “Os direitos humanos como valor universal”. Lua Nova 34: 179-195. https://doi.org/10.1590/S0102-64451994000300011 

Nações Unidas. 1993. Vienna Declaration And Programme Of Action. World Conference On Human Rights, Vienna, 14 a 25 de junho de 1993. https://www.ohchr.org/en/about-us/history/vienna-declaration 

Recebido: 26 de outubro de 2022

Aceito para publicação: 11 de novembro de 2022 

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