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Seção Especial

À sombra do apocalipse: depoimento pessoal sobre 50 anos de causa ambiental

O tempo disponível para alcançar os objetivos da pauta é finito

Resumo

Depoimento pessoal de Rubens Ricupero sobre os 50 anos de seu envolvimento com a causa ambiental, desde a Conferência de Estocolmo em 1972; perpassando as negociações do Tratado de Cooperação Amazônica; o nascimento em 1988 do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática; e a realização da Conferência das Nações Unidas sobre Clima e Desenvolvimento, a Rio-92; abarcando ainda o período da criação do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. O balanço do tema ambiental não se limita a uma análise de perdas e ganhos, mas orienta para uma reflexão sobre o limite de tempo de que se dispõe para alcançar os objetivos da pauta, que não é elástico, mas finito.

Palavras-chave:

meio ambiente; biografia; Conferência de Estocolmo; Rio-92.

Some say the world will end in fire,
Some say in ice.
From what I’ve tasted of desire
I hold with those who favor fire.
But if it had to perish twice,
I think I know enough of hate
To say that for destruction ice
Is also great
And would suffice.

- Robert Lee Frost, Fire and Ice[1] 

Meu envolvimento pessoal com o meio ambiente começou com a Conferência de Estocolmo em 1972. Não teve nada a ver com atividades profissionais, nem com antecedentes de formação intelectual. Eu era na época o chefe da Divisão de Difusão Cultural do Itamaraty (DDC) e trabalhava com a divulgação da cultura e das artes do Brasil no exterior. Como diplomata me interessava pouco sobre os temas das Nações Unidas, que me pareciam abstratos demais, sem contato com as realidades diárias, como me acostumara a tratar nos postos bilaterais em que servira em Viena, Buenos Aires e Quito. 

Não possuía formação nas ciências ditas exatas. Em compensação, havia sido estudante apaixonado de geografia, sobretudo a humana, tal como a ensinava meu saudoso mestre no Instituto Rio Branco em 1959, Fábio Macedo Soares Guimarães, fundador da seção de geografia do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Graças a ele descobri livro que me fascina até hoje, o clássico de geografia humana A Geography of Man, de Preston James (1949), que passa em revista cada um dos habitats que o planeta oferece na sua diversidade, das regiões árticas às florestas equatoriais, e mostra a variedade de adaptação do ser humano às condições físicas do globo. Deve ter vindo daí o interesse pelo clima e a atmosfera, a paixão que o geógrafo tem pelo concreto, de que Antonio Cândido falava a propósito de Caio Prado Júnior, um geógrafo de vocação. 

Quem dirigia a preparação da posição do Itamaraty para Estocolmo era o embaixador Miguel Ozório de Almeida, respeitado pelo pensamento sobre desenvolvimento econômico e herdeiro da tradição científica e positivista de sua família. Acompanhei a definição dessa posição do lado de fora, sem nenhuma influência sobre sua formulação. Devo dizer que, desde o primeiro momento, tive a sensação de que, embora correta em alguns aspectos, a postura adotada dava ênfase muito maior ao desenvolvimento econômico do que à seriedade dos riscos ambientais para o planeta como um todo, inclusive para nós. O Brasil, como alguns outros países em desenvolvimento relevantes, vivia ainda o auge do espírito que conduzira à realização da primeira UNCTAD, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, de 1964, em Genebra.

A conferência traduzia em âmbito internacional o absorvente interesse pelo desenvolvimento econômico que se tornara uma espécie de ideologia nacional do povo brasileiro na presidência de Juscelino Kubitschek (1955-1960) e seria retomada com entusiasmo pelo regime militar, em especial pelo governo do general Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), no apogeu do chamado “milagre econômico brasileiro”. É compreensível, em tal contexto, que Miguel Ozório e seus colaboradores se concentrassem de preferência na elaboração do que veio a se chamar o princípio da “responsabilidade comum, porém diferenciada” pelos problemas climáticos. A diferenciação se daria em função do grau distinto de contribuição histórica dos países industrializados e dos subdesenvolvidos para o acúmulo de gases de efeito estufa desde os primórdios da era industrial. 

O problema não se originava tanto de princípio, cuja justiça seria reconhecida pela comunidade internacional vinte anos depois. Provinha mais de uma atitude de desconfiança de que a prioridade dos ricos ao tema da poluição ambiental poderia gerar entraves ao crescimento das economias que se haviam retardado no processo de industrialização. Esse temor chegava às vezes acompanhado de descaso ou indiferença aos danos causados pela poluição. O ministro do Planejamento João Paulo dos Reis Velloso foi até injustamente acusado de complacência, por dar a impressão de que o governo brasileiro acolheria de braços abertos indústrias altamente poluidoras que sofressem restrições de operação em outros países. De minha parte, pensava já o que acho hoje: devem-se distinguir com clareza questões de natureza diferente. De um lado, estão as relativas ao comércio, às finanças, apropriadas à negociação Norte-Sul na base do interesse nacional de cada parte; e do outro, as que afetam o planeta e a comunidade internacional, sem distinção de níveis de desenvolvimento. 

Na segunda hipótese, o princípio de solidariedade diante da ameaça comum merece prevalecer sobre reivindicações de ganhos de curto prazo em negociações. A solidariedade implica obviamente que as contribuições de cada economia correspondam à responsabilidade histórica pela criação do problema e às capacidades econômico-tecnológicas. Como bem diz a ministra Marina Silva, responsabilidade diferenciada não quer dizer nenhuma responsabilidade.   

Resultado de iniciativa advinda do governo sueco e realizada cinquenta anos atrás, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, ou Conferência de Estocolmo, não passou do começo incerto de longo processo de tomada de consciência da complexidade do problema ambiental em todas suas facetas. Em Estocolmo não se falou de clima e sim de poluição da atmosfera, do ar e da água. O conceito de mudança climática, já em discussão entre cientistas especializados em clima, não tinha chegado ainda ao nível de amadurecimento para entrar na agenda de uma conferência internacional. Nenhum dos 26 princípios aprovados na reunião menciona o clima ou a questão do aquecimento global. 

Em Estocolmo não se falou de clima e sim de poluição da atmosfera, do ar e da água. O conceito de mudança climática, já em discussão entre cientistas especializados em clima, não tinha chegado ainda ao nível de amadurecimento para entrar na agenda de uma conferência internacional. Nenhum dos 26 princípios aprovados na reunião menciona o clima ou a questão do aquecimento global. 

Estocolmo ocorreu em um momento geopolítico difícil. Em plena Guerra Fria, a recusa em admitir a participação da Alemanha Oriental (naquele momento nenhuma das duas Alemanhas fazia parte da ONU) provocou o boicote da conferência pela União Soviética e demais nações comunistas. Recém-admitida às Nações Unidas, a China Popular teve participação de caráter estritamente político-ideológico. Embora se suspeitasse então, somente 30 anos depois a desclassificação de documentos britânicos sigilosos confirmou que um grupo secreto de países avançados (Reino Unido, Estados Unidos, França, Bélgica, Itália e Países Baixos), autodenominado de Grupo de Bruxelas, tinha conspirado para limitar o escopo da reunião e de seus resultados, por temor de que poderiam restringir o comércio e a atividade econômica, inclusive, ironicamente, prejudicando o futuro do fracassado avião supersônico Concorde! 

Levando em conta tantos fatores desfavoráveis, surpreende que Estocolmo tenha conseguido se tornar o divisor de águas a partir do qual os temas ambientais começaram a ganhar corpo nas agendas nacionais e internacionais. O relativo sucesso da iniciativa, vista a princípio como uma espécie de mania de nações nórdicas, se deveu, em boa parte, à obra paciente, inteligente, incansável, do secretário-geral da Conferência, o canadense Maurice Strong (1929-2015), que voltaria a desempenhar papel decisivo similar na Rio-92. Em âmbito multilateral, a Conferência aprovou a criação da primeira agência onusiana especializada em meio ambiente, a princípio limitada apenas a um “programa”, o Programa das Nações Unidas sobre Meio Ambiente (Pnuma ou UNEP em inglês), com sede em Nairobi, Quênia. Paralelamente, muitos países decidiram criar ministérios ou agências nacionais do Meio Ambiente. Um deles foi o Brasil, que instituiu, em 1973, a Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema), vinculada ao Ministério do Interior. 

Chefiou a delegação brasileira a Estocolmo o ministro do Interior, general José Costa Cavalcanti, que foi também ministro de Minas e Energia e presidente da Itaipu Binacional. Miguel Ozório era o subchefe. Coube a outro membro da delegação, Henrique Brandão Cavalcanti (1929-2020), secretário-geral do Ministério do Interior, o papel decisivo na aplicação das decisões do encontro. Não o conhecia na época, mas tornei-me mais tarde amigo próximo dele, de Hazel, sua esposa canadense, e de sua família. Trabalhou comigo como titular da Secretaria de Meio Ambiente do Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e me sucedeu no posto como ministro. Henrique representou a expressão mais nobre e esclarecida dos quadros técnicos que conduziram a administração nacional nos anos 1970/1980. Engenheiro hidrelétrico, com curso na Universidade McGill, de Montreal, Canadá, sua ação marcou a siderurgia e a hidroeletricidade no período. Acima de tudo, tinha alma genuína de ambientalista, o que o distinguia da imensa maioria dos meros burocratas.

Suas impressões digitais se encontram espalhadas pelas grandes realizações administrativas dessa era de rápida expansão econômica, com efeitos mais perduráveis na criação da Sema e no convite para dirigir o órgão ao zoólogo da Universidade de São Paulo Paulo Nogueira Neto (1922-2019). Juntos conduziram em ambiente pouco receptivo a obra notável de criar do zero a primeira instituição governamental de governança ambiental do país e boa parte da legislação ambiental e de proteção que sobrevive até hoje, apesar dos intentos recentes de destruí-la. Paulo permaneceu no cargo de 1973 a 1985, atravessando todos os três últimos governos militares dos generais Médici, Geisel e Figueiredo. Debaixo da simplicidade de zoólogo, escondia a herança e a vocação de homem público de seu antepassado José Bonifácio, bem como a tradição de agricultura progressista dos grandes fazendeiros paulistas. Foi um dos dois únicos latino-americanos que ilustrariam os trabalhos da Comissão Brundtland no final dos anos 1980. Para mim, Henrique Brandão e Paulo Nogueira encarnam o mais alto ideal de servidores públicos, capazes, mesmo em épocas de chumbo, de fazer avançar os melhores ideais da humanidade.

Algo parecido, apesar da escala incomparavelmente mais modesta, me sucedeu quando voltei a Brasília em 1977, chamado pelo então ministro das Relações Exteriores, Antonio Francisco Azeredo da Silveira (1917-1990), para levar avante a ideia de um tratado de cooperação que reunisse todos os países amazônicos. Durante os três anos em que havia servido como conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington, nunca me desligara da temática ambiental. Assim, acompanhei como delegado a reunião que se efetivou no Departamento de Estado, em meados dos anos 1970, do programa da Unesco Man and the Biosphere. Mais ou menos de modo simultâneo com o programa, James Lovelock (v. 1982) desenvolvia sua hipótese ou teoria Gaia, o conceito de que os organismos vivos interagiam com os elementos inorgânicos da Terra para formar um sistema complexo sinergético e autorregulado que ajuda a manter as condições de vida no planeta. 

Nomeado para chefiar a Divisão da América Meridional II (DAM-II), que se ocupava das relações com todos os países amazônicos, da Bolívia à Venezuela e às Guianas, a missão principal que me confiaram consistia em dar partida efetiva à negociação do Tratado de Cooperação Amazônica (TCA) e levá-la a bom termo. O Brasil havia circulado a ideia do tratado, mas alguns países, sobretudo a Venezuela, mostravam reticência e desconfiança. Uma das minhas funções era representar o Itamaraty nas reuniões do Conselho da Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), em geral em Belém ou Manaus. Logo me dei conta de que, com exceção do Brigadeiro Ottomar Pinto, que governaria várias vezes Rondônia, e eu mesmo, todos os integrantes se mostravam maciçamente impermeáveis à questão ambiental. Ainda dominava o debate o abominável slogan da era Médici “é a pata do boi que vai conquistar a Amazônia”.  

Não obstante esse fatídico legado, conseguiu-se inserir no tratado, negociado e aprovado em tempo recorde, o princípio de que, para lograr um desenvolvimento integral dos territórios da Amazônia, é necessário manter o equilíbrio entre o crescimento econômico e a preservação do meio ambiente. A estrita igualdade dos dois objetivos pode soar natural hoje em dia. Naquele tempo, contudo, tínhamos instruções para resistir a toda menção de direitos humanos e meio ambiente em qualquer documento diplomático. A anuência relutante dos militares só foi obtida com o argumento de que quase todos os nossos parceiros insistiam na inclusão como condição para aderir ao instrumento. 

Depois de Estocolmo, abriu-se uma etapa de duas décadas marcadas, na fase inicial, pelos esforços para enfrentar as ameaças resultantes do buraco na camada de ozônio, o melhor exemplo de êxito até agora da capacidade humana de lidar com um problema ambiental.

Depois de Estocolmo, abriu-se uma etapa de duas décadas marcadas, na fase inicial, pelos esforços para enfrentar as ameaças resultantes do buraco na camada de ozônio, o melhor exemplo de êxito até agora da capacidade humana de lidar com um problema ambiental. O encaminhamento de solução para a questão da camada de ozônio se efetivou em duas conferências, a Conferência de Viena de 1985, e, dois anos depois, a que resultou no Protocolo de Montreal. Esse continua a ser um exemplo inspirador do que se pode conseguir quando cientistas e governos se juntam para adotar políticas recomendadas pela evidência científica. 

Um segundo progresso marcante procedeu dos trabalhos da Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, estabelecida pela Organização das Nações Unidas em 1987, presidida pela primeira ministra da Noruega Gro Harlem Brundtland. O produto principal das deliberações, o relatório Nosso Futuro Comum (1987), introduziu avanços conceituais que modificaram para sempre a maneira de encarar o desenvolvimento. Entre eles destaca-se a noção de sustentabilidade ou de desenvolvimento sustentável. Inspirada na responsabilidade solidária entre gerações sucessivas no tempo, o conceito de sustentabilidade postula o dever de cada geração humana de satisfazer suas necessidades de maneira a não comprometer a possibilidade de gerações futuras fazerem o mesmo.  

Como uma espécie de coroamento de todos esses avanços, vai emergir em 1988 o Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática, ou IPCC (Intergovernamental Panel on Climate Change), a cujo nascimento assisti em Genebra como representante do Brasil junto à Organização Meteorológica Mundial (OMM), uma das duas organizações onusianas fundadoras (a outra foi o Pnuma). Participei das primeiras reuniões em que se desenhou o IPCC como órgão intergovernamental, formado por cientistas indicados pelos governos, mas que atuam com independência científica. A função do painel não é realizar pesquisas novas. Sua missão consiste em reunir e avaliar as pesquisas realizadas nos centros de investigação. Periodicamente, o IPCC elabora relatórios que espelham o “estado da arte” do conhecimento da ciência climática naquele momento, tanto em relação aos elementos físicos quanto às consequências para a sociedade. Basicamente, quase tudo que se vem fazendo em matéria de políticas ambientais de mitigação e adaptação tem origem nas recomendações do IPCC. 

O primeiro grande relatório do IPCC foi publicado em 1990 e causou grande impacto. O relatório confirmava, com alto grau de certeza científica, que o clima mundial estava se tornando cada vez mais quente, sobretudo como produto da ação humana. A partir de então, consolidou-se algo de totalmente inédito: a ideia de que a atividade dos seres humanos, desde a Revolução Industrial de meados do século XVIII, tinha sido capaz de alterar a atmosfera e o clima do planeta pela primeira vez na história de milênios do aparecimento do homem sobre a Terra. Daí a denominação de Antropoceno que o Prêmio Nobel de Química de 1985, Paul J. Crutzen (v. 2002), deu à atual era geológica. O choque causado pelo relatório abriu caminho à grande negociação que culminaria na Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (conhecida pela sigla em inglês UNFCCC). Paralelamente, desenvolvia-se, de modo complementar, outro esforço de negociação, o da Convenção das Nações Unidas Sobre Diversidade Biológica (conhecida pela sigla em inglês CBD). 

Nesse contexto é que se vai realizar a grande conferência Rio-92, cujo nome oficial foi Conferência das Nações Unidas sobre Clima e Desenvolvimento, refletindo na denominação a reação ao temor manifestado em Estocolmo de que a preocupação ambiental se convertesse em obstáculo ao desenvolvimento dos mais pobres. Em contraste com Estocolmo, a Rio- 92 ocorreu em clima geopolítico excepcionalmente propício, que não voltaria a se repetir no futuro. Pouco mais de dois anos antes da conferência, a queda do Muro de Berlim em 1989 havia dado o sinal para a dissolução, em uma rápida sucessão, de todos os regimes comunistas na Europa Central e Oriental, culminando na desintegração da União Soviética em dezembro de 1991. 

Pela primeira vez desde a Revolução de Outubro de 1917, desaparecia a divisão do mundo em dois blocos ideologicamente antagônicos, que até então havia paralisado todos os esforços significativos de colaboração internacional. Em meados de 1992, quando a conferência se reúne no Rio de Janeiro, o fim da Guerra Fria inaugurava fase extraordinariamente favorável à cooperação, que vai durar pelo menos até os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001. Eliminada a dualidade de polos – URSS e EUA –, instaura-se uma espécie de quase unipolaridade norte-americana, em um cenário em que a China ainda engatinhava no começo da sua trajetória ascendente. Tinha-se a impressão nesses anos de que tudo se tornara possível, que a solução de problemas intratáveis ficava de repente ao alcance da mão: a divisão de Berlim, da Alemanha, da Europa, a dissolução relativamente pacífica da União Soviética dando origem a 15 novos países, até o regime do apartheid da África do Sul, questões encruadas que se pensava iam permanecer por séculos!

O contexto de unificação do planeta e de globalização (...) tornou possível o êxito incontestável da conferência do Rio de Janeiro, que entrou para a história como o ponto mais alto atingido pelas negociações sobre meio ambiente. A impactante cerimônia de abertura com a assinatura das duas convenções por mais de 100 chefes de Estado e de governo gerou a dinâmica que permitiria aprovar a Agenda 21 (...).

O contexto de unificação do planeta e de globalização impulsionou o consenso em torno das duas grandes convenções (com exceção dos Estados Unidos em relação à Convenção sobre Biodiversidade). Acima de tudo, tornou possível o êxito incontestável da conferência do Rio de Janeiro, que entrou para a história como o ponto mais alto atingido pelas negociações sobre meio ambiente. A impactante cerimônia de abertura com a assinatura das duas convenções por mais de 100 chefes de Estado e de governo gerou a dinâmica que permitiria aprovar a Agenda 21, os Princípios sobre Manejo de Florestas, a criação da Comissão de Desenvolvimento Sustentável, os 27 Princípios do Rio. 

Coube a mim dirigir a Comissão de Finanças, que elaborou o capítulo 33 da Agenda 21 sobre as fontes de financiamento. Redigi na época uma “crônica das negociações” do grupo de finanças, creio que o único documento do gênero sobre a conferência. Publicado originariamente na Colorado Review of Environmental Law (Ricupero 1993), o texto apareceu em português sob o título História de uma Negociação: o capítulo financeiro da Agenda 21 durante a Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento (Ricupero 2012).

Continuei em Washington como embaixador até que, em meados de 1993, a chacina dos índios Ianomâmis na região fronteiriça Brasil-Venezuela subitamente pôs em marcha uma cadeia de acontecimentos que colocaria fim prematuro à minha missão em Washington. Não sabendo bem o que fazer diante do clamor público, o presidente Itamar Franco resolveu criar um ministério, o da Amazônia Legal. Ignoro se em função de meu passado de responsável pelos assuntos amazônicos no Itamaraty ou por outra razão misteriosa, fui chamado para dar existência ao novo órgão. Desse modo, um episódio do interminável extermínio dos povos originários pela ganância criminosa transtornaria meu destino, desviando-o para rumos inesperados. 

Como na composição de Vinícius, o Ministério da Amazônia era uma casa engraçada “que não tinha teto, não tinha nada”. Sem funcionários, sem verbas, sem cadeira para sentar, fiquei à mercê do presidente. Para surpresa geral, ele me destinou o conjunto de salas da antiga vice-presidência que ocupara no Anexo do Palácio do Planalto e recusara destinar a outros solicitantes. Com uns poucos colegas do Itamaraty que já tinham trabalhado comigo no Departamento das Américas – Sérgio Danese, Débora Vainer Barenboim, mais tarde Sérgio Amaral – fingimos que éramos um ministério de verdade. 

Por sorte, algum tempo depois, o ministro do Meio Ambiente, o senador paraense Fernando Coutinho Jorge, deixou o governo. Aproveitou-se a oportunidade para juntar os dois ministérios apenas esboçados (tinha sido Itamar que elevara a Secretaria Especial de Meio Ambiente a ministério) para formar o Ministério do Meio Ambiente e da Amazônia Legal. Com a aprovação posteriormente pelo Congresso da lei de organização do novo ministério, herdamos uma estrutura inicial e, sobretudo, os recursos humanos e financeiros do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (Ibama), com representações em todos os estados. 

Trabalhar com meio ambiente combinava alegria com aprendizado. Não tinha nada a ver com o que eu fazia antes. Minha experiência na área se limitava até então aos aspectos diplomáticos do assunto. Quando tive de lidar com o meio ambiente “real”, as questões de florestas, oceanos, áreas de proteção, animais ameaçados, descobri um universo inesgotável. Tive de me socorrer com pessoas que conheciam o tema e me orientaram nesse processo de descoberta. A cada dia a gente se deslumbrava com um lugar novo que deveria visitar a serviço: o Jardim Botânico do Rio, a Floresta da Tijuca, o Parque da Serra dos Órgãos, o do Iguaçu, as estações do Projeto da Tartaruga Marinha (Projeto Tamar), a velha usina de fundição de ferro da fazenda Ipanema, perto de Sorocaba, em São Paulo, da qual foi diretor o pai de Varnhagen e onde se fabricaram canhões para a Guerra do Paraguai.

Ainda se ganhava de lambuja a revelação de seres humanos apaixonados por bichos, pássaros, peixes, flores, árvores. Gente que nos ensina o nome das plantas, os hábitos do peixe-boi nos rios amazônicos, da ararinha azul praticamente extinta nas caatingas da Bahia, das melhores técnicas para reintroduzir na natureza a onça pintada, o mico-leão dourado, os primatas da Mata Atlântica. É o universo da variedade infinita, o museu de todas as coisas. 

Seria quase o emprego dos sonhos de administrador do paraíso terrestre, se já não tivessem entrado no jardim o predador de motosserra para aniquilar árvores centenárias de madeira de lei, o trator de corrente para arrastar hectares de floresta virgem antes de serem queimados, o jato d’água para demolir barrancas dos rios na busca do ouro, separado de impurezas pelo mercúrio que envenenará gerações de peixes e ribeirinhos. 

No domínio mais tradicional da atuação ambiental, encontrei no Ibama uma estrutura razoável herdada da experiência acumulada ao longo de mais de dez anos pelo trabalho de organização de Paulo Nogueira Neto e seus colaboradores. O Ibama abrigava servidores oriundos do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF), da Superintendência de Desenvolvimento da Pesca (Sudepe) e da Superintendência da Borracha (SUDHEVEA). Nascido da fusão desses organismos, o Instituto sofria do processo incompleto de integração e unificação de seus componentes em uma cultura institucional comum. 

 Apesar dessas imperfeições, existia aí pelo menos uma base sobre a qual se poderia obter atuação mais efetiva. Onde, no entanto, faltava tudo a fazer era no tratamento da Amazônia, tema vastíssimo que passara a adquirir visibilidade inédita devido à criação do ministério. Já no tempo do Tratado Amazônico, me impressionara verificar que nem o Brasil nem nossos vizinhos possuíam ideias claras sobre o que fazer com a Amazônia. 

A partir do regime militar, as iniciativas e obras de desenvolvimento se haviam multiplicado: a Zona Franca de Manaus, a Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia, o Banco da Amazônia, rodovias como a Transamazônica, projetos como a Perimetral Norte, usinas hidrelétricas como a de Tucuruí. Alguns grandes centros urbanos, Manaus principalmente, tinham se convertido em polos de atração que esvaziaram a população do interior. Pior ainda tinha sido a concessão de imensas extensões de florestas a grandes empresas para criação extensiva de gado. A fronteira agrícola avançara sobre a periferia meridional, Rondônia, Mato Grosso, Tocantins, Sul do Pará. 

Depois de décadas de esforço e bilhões investidos, o resultado líquido tinha sido instalar na região um processo insustentável, que passou a gerar desequilíbrios de modo contínuo e cada vez mais graves. De um lado, os métodos predatórios ameaçavam a longo prazo a sustentabilidade até do mero ponto de vista econômico. Do outro, o processo aprofundou a concentração de propriedade e renda, fracassou na inclusão social com redução da desigualdade. 

Dessa constatação, nasceu a ideia de que o primeiro passo para tornar possível controlar racionalmente as ações federais na região seria criar uma estrutura de coordenação. Sugeri, e o presidente Itamar acatou, a ideia de um Conselho Nacional da Amazônia Legal, cuja finalidade maior seria a de reunir e coordenar a ação dos órgãos federais na área. Parece algo simples; infelizmente, na tradição burocrática brasileira, coordenar é sinônimo de subordinar. Ninguém aceita ser coordenado por iguais. Daí a necessidade de que o Conselho fosse dirigido pelo próprio presidente da República. Só ele tem o poder de convocar os ministros, que, do contrário, enviam representantes de segundo ou terceiro escalão sem poderes para decidir e engajar seus órgãos. 

Criado e instalado o Conselho, passamos ao segundo objetivo: tentar conferir um sentido racional às atividades econômicas, já em pleno desenvolvimento por meio da definição do zoneamento ambiental e econômico com base na vocação das sub-regiões. Embora nosso hábito seja falar em uma só Amazônia, como se ela apresentasse perfeita homogeneidade, a verdade é que existem muitas Amazônias distintas em termos de solo, vegetação, microclimas, regimes de precipitação de chuvas, áreas inundáveis de várzeas ou elevações de terra firme, flora, fauna, condições sanitárias, facilidades de transporte, comunicações e incontáveis outros aspectos. 

A falta de continuidade de políticas é justamente o que sempre impossibilitou a formulação e consolidação de uma estratégia coerente de longo prazo para a Amazônia. O próprio Conselho da Amazônia teve duração efêmera na sua conceituação original. No governo Fernando Henrique Cardoso, decidiu-se livrar a presidência da República dos órgãos e conselhos dependentes. Nesse movimento de ordem geral, transferiu-se o Conselho da Amazônia para o âmbito do Ministério do Meio Ambiente. Lá começou ele a definhar, porque o ministro obviamente jamais terá autoridade para convocar e muito menos coordenar ministérios mais fortes e empresas poderosas como a Petrobrás. 

Com o tempo, o ministério perdeu a perna da Amazônia Legal, virou capenga, apenas Meio Ambiente, o Conselho apagou-se na irrelevância. Só agora, diante do recrudescimento das queimadas e da destruição, e em boa parte como gesto para aplacar o clamor universal, viu-se o Conselho ressuscitado, mas de maneira inepta, desvirtuado na essência e desprovido de autoridade e meios de ação. Como todo órgão colegiado, é evidente que o Conselho da Amazônia não tem vocação executiva. Sua natureza é de coordenação e deliberação, devendo a execução caber a ministérios e órgãos competentes para tal, basicamente o Ministério do Meio Ambiente e seus braços de ação, o Ibama e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). 

Ora, na situação atual, recriou-se o Conselho para fazer o trabalho sabotado exatamente pelo único órgão capaz de levá-lo adiante, o Ministério do Meio Ambiente! A tarefa impossível de presidi-lo foi conferida a um vice-presidente marginalizado do núcleo do poder, notoriamente encarado com desconfiança pelo presidente. Tudo indica que só lhe deram a missão para desmoralizá-lo. Não surpreende assim que, mês após mês, se registre aumento recorde das queimadas e alastramento alarmante da devastação. Cumpriu-se a profecia de Antonio Callado, em artigo no qual comentava minha saída do ministério como uma espécie de deserção que deixaria órfã a Amazônia.

Callado estava com a razão, não no sentido de me atribuir poderes e qualidades imaginárias (o que não era o caso do artigo), mas sim em perceber que a saída punha em perigo uma visão ainda recente, não consolidada. Essa visão consistia fundamentalmente na necessidade de contar, no seio do governo, com um ponto focal para o tratamento conjunto de todos os problemas de uma região diferente das demais. Na prática, goste-se ou não, o mundo inteiro vê o Brasil através do prisma da Amazônia. 

A especificidade incomparável da região, as características ecológicas que a tornam caso único, mal conhecido cientificamente, a diferenciam de zonas mais familiares, de desafios manejáveis. Tudo ali se complica, a começar pela presença rarefeita do Estado, a precariedade dos sistemas de educação e saúde, a aguda falta de transportes e comunicações, a ignorância sobre vastíssimos aspectos regionais. 

Tudo isso exige tratamento unificado de problemas afetos a órgãos e ministérios distintos, mas que no fundo são inextricáveis uns dos outros. Como separar a questão dos povos originários, concentrados maciçamente na Amazônia e dependentes da Funai, dos problemas de meio ambiente, de preservação da floresta, da ameaça de invasão de grileiros, de madeireiros e de mineradores, temas atribuídos a outras competências? Os governos estaduais e municipais, na melhor das hipóteses, são limitados por suas perspectivas paroquiais, sem visão do conjunto. No extremo oposto, representam o que de pior existe no Brasil de atividade política na fronteira da bandidagem. 

Basta considerar a corrupção generalizada, que não se deteve nem diante da pandemia; basta recordar como Manaus e o estado do Amazonas se converteram em certo momento no epicentro da catástrofe sanitária com manchetes em todos os jornais do mundo. Em nenhuma outra região do país se encontra concentração similar de atentados ambientais em larga escala, apropriação criminosa de terras públicas, massacres repetidos em prisões, invasões de terras indígenas, assassinatos impunes de índios e líderes rurais, intervenções constantes de forças federais. São sinais evidentes da falência dos mecanismos de governo, de dissolução do Estado: o sonho do Eldorado do regime militar converteu-se na expressão mais cabal do faroeste caboclo.

Não sei o que teria sido minha vida se tivesse continuado no Ministério do Meio Ambiente. Tinha pela frente quase um ano, tempo insuficiente para grandes realizações, mas talvez o bastante para tentar firmar orientações apenas esboçadas. Não cheguei a descobrir, pois as coisas logo tomaram rumo diferente com minha designação para suceder a Fernando Henrique Cardoso como ministro da Fazenda em fins de março de 1994. 

Estas reminiscências estão longas demais. Não tenho energia para continuar, nem terão paciência os eventuais leitores para prolongar a leitura. O essencial está dito. Depois disso, fui ministro da Fazenda, fugaz embaixador em Roma, secretário-geral da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) em Genebra por quase uma década. Uma ou outra vez voltei a me ocupar com temas ambientais, quase sempre de forma periférica, ancilar. O que não se extinguiu, antes cresceu, tem sido a paixão pelo meio ambiente que hoje me define na maneira de me situar diante do Brasil e do mundo. 

Comecei este artigo com intenção de dar balanço na evolução do tema ambiental desde a Conferência de Estocolmo meio século atrás. Ou melhor, mais do que um balanço em boa e devida forma, queria discutir as dificuldades de fazer isso, a especificidade da temática, aquilo que faz do meio ambiente assunto que exige critérios próprios. Habitualmente, ao avaliar processo tão longo, a tendência natural leva a adotar abordagem contábil: ganhos e perdas, déficits e superávits, luzes e sombras, a imagem estereotipada do copo meio cheio, meio vazio. 

Tal método se aplica bem a quase todos os grandes temas das Nações Unidas que têm balizado o avanço da consciência moral da humanidade a partir do fim da Segunda Guerra Mundial: direitos humanos, promoção da igualdade entre mulheres e homens, realização da maioria dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) que sucederam e ampliaram os Objetivos do Milênio. Em todos esses casos, é possível desenhar em um gráfico curvas ascendentes ou descendentes, avanços e recuos, partindo da suposição de que haverá tempo para recuperar lá na frente o que não se logrou agora, no pressuposto de que o tempo pode não ser infinito, mas é elástico.  

Nesse particular, o que torna o meio ambiente diferente consiste na limitação do tempo disponível. Se, dentro de poucos anos, não formos capazes de reduzir substancialmente a quantidade de emissões de efeito estufa, não haverá mais tempo humano ou biológico, porque a elevação da temperatura atingirá níveis nos quais a maior parte das espécies animais e vegetais desaparecerá. Ao passar revista em tudo o que sucedeu desde Estocolmo, não se pode negar o avanço expressivo, em primeiro lugar na conscientização do problema, na gradual construção de impressionante regime de tratados e convenções, na criação de instituições especializadas. Teria sido talvez humanamente irrealista esperar progressos maiores. Só que não foram suficientes.

…o que torna o meio ambiente diferente consiste na limitação do tempo disponível. Se, dentro de poucos anos, não formos capazes de reduzir substancialmente a quantidade de emissões de efeito estufa, não haverá mais tempo humano ou biológico, porque a elevação da temperatura atingirá níveis nos quais a maior parte das espécies animais e vegetais desaparecerá. Ao passar revista em tudo o que sucedeu desde Estocolmo, não se pode negar o avanço expressivo, em primeiro lugar na conscientização do problema, na gradual construção de impressionante regime de tratados e convenções, na criação de instituições especializadas. Teria sido talvez humanamente irrealista esperar progressos maiores. Só que não foram suficientes.

Foi por isso, entre outros motivos, que me dispensei de descrever tudo o que aconteceu depois da Rio-92: o Protocolo de Quioto (1997), a Rio+10 em Johanesburgo (2002), a Rio+20 no Rio de Janeiro (2012), as 26 conferências das Partes Contratantes da Convenção sobre o Clima, o Acordo de Paris (2015). Se morrermos na praia, nada disso importa. Escrevo no dia 28 de outubro de 2022. Dias atrás, o Pnuma (2022) divulgou relatório que confirma a insuficiência do realizado até aqui. Não obstante todas as conquistas, ainda continuamos a aumentar as emissões. Sem compromissos mais ambiciosos, o mundo chegará ao fim do século com uma elevação da temperatura média de 2,4 °C a 2,6 °C, muito além do limite de 1,5 °C fixado no preâmbulo do Acordo de Paris. Como disse a diretora executiva do Programa, Inger Andersen (UNEP 2022):  

Este relatório nos diz em termos científicos frios o que a natureza nos vem dizendo o ano todo através de inundações mortais, tempestades e incêndios devastadores: temos de parar de saturar nossa atmosfera com gases-estufa e temos de parar depressa.

A conclusão do balanço é clara: ainda estamos no vermelho, e o tempo corre contra nós. O jogo da vida tem hora para terminar. Só não sabemos quando soará essa hora. Para alguns, já passa da meia-noite e ingressamos em terreno no qual o dano possivelmente será irreversível. Isso é verdade, por exemplo, em relação ao desaparecimento de geleiras, à extinção de animais e plantas, ao derretimento da calota polar, à elevação do nível dos oceanos, ao aumento de mais de um grau centígrado registrado na temperatura média da Terra. A fim de evitar o pior, não sabemos exatamente de quanto tempo dispomos, apenas sabemos que é pouco e está acabando.  

Aqui nos encontramos no domínio dos acontecimentos do fim do mundo, do fim da humanidade, daquilo que os antigos chamavam de escatologia, descrita nas visões do Apocalipse. Ou na magnífica peroração do Apóstolo Paulo alertando: “o tempo se fez curto”. E exortando “aqueles que choram, como se não chorassem; [...] aqueles que usam deste mundo, como se não usassem verdadeiramente. Pois passa a figura deste mundo” (Bíblia de Jerusalém,  Coríntios 7: 29-31).    

Para terminar com a mesma nota poética do Apocalipse com que comecei, evoco um de meus escritores favoritos, o velho Johann Peter Hebel dos ingênuos almanaques do início do século XIX, e a sua descrição do cometa de 1811 como se ele prefigurasse a morte da Terra desfigurada pela violência: 

Durante a noite toda, ele foi como uma santa bênção vespertina, como quando um padre percorre a casa de Deus e espalha o incenso, digamos como uma boa e nobre amiga da Terra que se enternece por ela como se quisesse declarar: Um dia, fui também uma terra, cheia como tu de borrascas de neve e nuvens de tempestade, de asilos, de sopas populares e de sepulturas ao redor de pequenas igrejas. Mas minha hora derradeira passou e eis-me transfigurada em celeste claridade, e eu gostaria muito de juntar-me a ti, mas não tenho esse direito, para não ser de novo manchada pelo sangue de teus campos de batalha”  (Hebel apud Sebald 2005, 21. Tradução pessoal).

O cometa de Hebel lembra-nos de que, um dia, a Terra passará e não será mais do que uma estrela luminosa. Antes, porém, passaremos nós, nossas civilizações brilhantes e pretensiosas, nossas querelas vãs, nossos políticos corruptos e mesquinhos. Se não queremos chegar tão cedo a essa transformação da risonha Terra em um gigantesco rochedo inanimado, temos de nos apressar para aproveitar o tempo que resta.

São Paulo, 28 de outubro de 2022

Notas

[1] Uns dizem que o mundo acaba em fogo,/Outros dizem que em gelo./Pelo que já provei da paixão/Fico com os que preferem o fogo./Mas se tiver de morrer em dobro,/Acho que conheço tanto o ódio/Para poder afirmar: destruir com gelo/Também é ótimo/E tem bastante apelo. (tradução pessoal)

Referências Bibliográficas

Crutzen, Paul J., 2002, “Geology of mankind”.  Nature 415: 23. https://doi.org/10.1038/415023a 

Hebel, Johann Peter Apud W. G. Sebald. 2005. “Une Comète Dans Le Ciel Note D’Almanach En L’Honneur De L’Ami Rhénan”. In Séjours A La Campagne, de W. G. Sebald, p. 21. Arles: Actes Sud. 

IPCC. 1990. IPCC First Assessment Report Overview and Policymaker Summaries. Intergovernmental Panel on Climate Change. https://www.ipcc.ch/report/climate-change-the-ipcc-1990-and-1992-assessments/ 

James, Preston Everett. 1949. A Geography of Man. Londres: Ginn. 

Lovelock, James. 1982. Gaia: Um Novo Olhar sobre a Vida na Terra. 1a Edição. Edições 70.  

Nações Unidas. 1992. Nosso futuro comum. 2ª ed. Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas. 

PNUMA. 2022. Emissions Gap Report 2022: The Closing Window – Climate crisis calls for rapid transformation of societies. Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Nações Unidas.  

Ricupero, Rubens. 1993. “UNCED and Agenda 21: Chronicle of a Negotiation”. Colorado Journal of International Environmental Law and Policy 4 (1): 81-95. 

Ricupero, Rubens. 2012. “História de uma Negociação: o capítulo financeiro da Agenda 21 durante a Conferência de Meio Ambiente e Desenvolvimento”. Política Externa (Documentos) 20(4): 255-267. https://ieei.unesp.br/portal/wp-content/uploads/2012/04/Politica-Externa-20-04-Rubens-Ricupero1.pdf 

UNEP. 2022. “Inadequate progress on climate action makes rapid transformation of societies only option - UNEP”. UNEP.org, 27 de outubro de 2022. https://www.unep.org/news-and-stories/press-release/inadequate-progress-climate-action-makes-rapid-transformation

Recebido: 29 de outubro de 2022

Aceito para publicação: 23 de novembro de 2022

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