Alinhando-se com a síntese anunciada no discurso de vitória do terceiro mandato de Lula, a política externa brasileira obteve resultados significativos. Ao adotar uma abordagem diplomática mais positiva, bem recebida interna e externamente, o país retomou uma postura proativa no cenário internacional que reflete um esforço pragmático para reverter a reputação de isolamento deixada pela gestão anterior. No entanto, desafios antigos ainda persistem e novos desafios surgem devido a conflitos geopolíticos inéditos.
– O Brasil está de volta
Lula, discurso de 30 de outubro de 2022
Não é exagero afirmar que, em poucos meses, se cumpriu, ao menos na forma e quantidade, o programa de política externa contido na síntese anunciada por Lula no discurso da noite da vitória. Em qualquer balanço provisório que se faça do primeiro ano do governo Lula 3, a análise deve focar, assim, mais nos resultados e na recepção interna e externa das iniciativas diplomáticas do que na sua rapidez e quantidade.
De acordo com informações do site oficial, o presidente teria visitado no primeiro ano de governo 26 países, passando 75 dias fora do Brasil. Sem contar as duas viagens rápidas em novembro de 2022, na qualidade de presidente-eleito, a Sharm el Sheik, Egito, para a COP 27 e a escala em Lisboa, as três primeiras visitas oficiais tinham o caráter simbólico de assinalar a ordem das prioridades: 1ª) Buenos Aires (22 a 25 de janeiro de 2023), para a reunião da CELAC e encontros bilaterais, sobretudo com o presidente da Argentina, e a Montevidéu (25 de janeiro de 2023); 2ª) Washington (9-11 de fevereiro de 2023), reunião de trabalho com o presidente Biden; 3º) Shangai e Pequim (13-14 de abril de 2023), visita de Estado.
Balizadas as prioridades principais – América Latina, Estados Unidos, China –, seguiram-se, em acelerada sequência, visitas aos Emirados Árabes Unidos; Portugal; Espanha; Reino Unido (coroamento de Charles III); Japão (Cúpula do G7); Itália; Vaticano; França (Pacto pelo Clima); Puerto Iguazú (Cúpula do MERCOSUL); Letícia, (encontro com presidente da Colômbia, Gustavo Petro); Bruxelas (Cúpula CELAC-União Europeia); Cabo Verde; Paraguai (posse do presidente); África do Sul (Cúpula dos BRICS); Angola; São Tomé e Príncipe (Cúpula da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, CPLP); Índia, (Cúpula do G20); Cuba (Cúpula do G77); Nova York, (Assembleia Geral da ONU); Arábia Saudita; Catar; Emirados Árabes Unidos (COP 28); Alemanha.
Muitas dessas viagens se deram em razão de reuniões de cúpula de agrupamentos plurilaterais ou multilaterais – G7, Mercosul, CELAC, UE, BRICS, CPLP, G20, G77, ONU, COP 28. Em paralelo à participação nas reuniões coletivas, o presidente manteve inúmeros contatos bilaterais com chefes de Estado e de governo. Além desses deslocamentos ao exterior, há que se computarem as visitas ao Brasil de personalidades estrangeiras, como o primeiro-ministro da Alemanha e a presidente da União Europeia (há quase dez anos um presidente da UE não visitava o país), entre outras, ademais de reuniões internacionais realizadas no Brasil como a Cúpula da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA), em Belém do Pará, (8-9 de agosto de 2023), bem como encontros preparatórios de diversos grupos dos quais a presidência rotativa coube ou cabe ao governo brasileiro.
A contabilidade das realizações diplomáticas permite incluir na coluna de saldos do balanço uma primeira conclusão positiva. Não tanto devido à quantidade das ações, embora acima de certo nível, a quantidade, como é sabido, se converte em mudança qualitativa. No caso presente, a concentração de iniciativas nos primeiros meses de governo justifica que a diplomacia de Lula aspire ao adjetivo de que gosta de se adornar: “ativa”. E não somente pelo que poderia não passar de hiperativismo sem propósito nem rumo. Cada uma das viagens e de suas etapas se defende facilmente pelo critério da importância bilateral, regional ou multilateral. Não houve desperdício de energia, nem viagens gratuitas, inventadas por razões ideológicas a fim de fugir do isolamento, como as visitas à Hungria de Viktor Orban ou à Polônia de direita, durante a época de Bolsonaro.
Não é corriqueiro acumular tantos feitos internacionais, sobretudo nos primeiros meses de um governo, normalmente o período no qual as atenções e os esforços se dirigem mais à montagem e organização das estruturas do novo poder. Nenhum outro presidente igualou marca parecida em fase tão breve, a não ser o próprio Lula em 2007, ano inicial de seu segundo mandato, mesmo assim com menor intensidade. Levando em conta que, após dezessete anos, o presidente envelheceu e não está nas mesmas condições físicas, a superação do recorde anterior revela o esforço deliberado de apagar no menor prazo possível a penosa impressão legada pela diplomacia de Bolsonaro/Ernesto Araújo.
Isso se tornou possível graças às características da personalidade do presidente: gosto pelos problemas internacionais, autoconfiança no trato com grandes líderes mundiais, convicção de que a diplomacia pode ser um instrumento importante no jogo interno do poder, ao possibilitar aumento do prestígio do governo. Sem falar do objetivo direto de conquistar o reconhecimento e a admiração da comunidade mundial.
Para garantir tais resultados, o simples ativismo voluntarista não é suficiente. Eles dependem, mais que da quantidade, da qualidade da política externa. Esta, por sua vez, é função, primeiramente, da capacidade de identificar e externalizar os valores e interesses nacionais. Em segundo lugar, é preciso saber captar as mudanças do cenário internacional a fim de adequar a mensagem da diplomacia às características do contexto externo.
AS MUDANÇAS NO CONTEÚDO DA POLÍTICA EXTERIOR BRASILEIRA
Quase todo o repúdio que o mundo votava a Bolsonaro se originava de alguns poucos temas correlacionados que constituíam a própria essência e marca do seu governo. Derivavam de uma visão conspiratória de extrema direita alinhada a Trump e a regimes iliberais, antidemocráticos, hostis aos direitos humanos, de inspiração anticientífica e anti-iluminista. Manifestavam-se no negacionismo da mudança climática, na promoção da destruição da floresta amazônica, na hostilidade aos povos originários, na calamitosa orientação durante a Covid-19, na oposição à evolução da consciência contemporânea em matéria de direitos de minorias, aborto, moral sexual, do movimento LGBTQIA+, denunciados como ingerências do “globalismo” de instituições multilaterais.
Era à ampla rejeição internacional a essas posições que se referia Lula no discurso da noite do segundo turno ao afirmar que o Brasil não podia ser relegado ao triste papel de “pária do mundo”. Ou ao dizer que os países estrangeiros sentiam “saudades do Brasil” pré-Bolsonaro. Nesse sentido, a mera vitória nas eleições de um candidato com plataforma antípoda ao bolsonarismo bastaria para criar no exterior uma primeira reação favorável de alívio e esperança. Lula, entretanto, não perdeu tempo em consolidar a impressão positiva inicial por meio de palavras, compromissos e ações.
No mesmo discurso de 30 de outubro, anunciou sua ida à COP 27, em companhia de Marina Silva, prometeu proteger os ecossistemas, comprometeu-se com o desmatamento zero na Amazônia, proclamou o combate às atividades ilegais na região, a defesa dos povos originários e das causas de direitos humanos. Deu começo de cumprimento às promessas ao nomear Marina Silva ministra do Meio Ambiente, ao criar o Ministério dos Povos Indígenas e indicar indígenas para seus principais cargos, ao instituir o Ministério das Mulheres, o dos Direitos Humanos e Cidadania, o da Igualdade Racial, ao escolher mulheres, negros, pardos e indígenas para postos relevantes, ao confiar os Ministérios da Saúde e da Educação a pessoas qualificadas fora do varejo político habitual.
Um gesto de forte simbolismo foi a dramática viagem de Lula, acompanhado de numerosos ministros, a Roraima, logo nos primeiros dias do governo (21 de janeiro de 2023), para montar uma operação de emergência em favor dos Yanomamis, vítimas de grave crise humanitária de fome e doença provocada por invasões de garimpeiros e o descaso do governo anterior. Embora longe de concluído, o combate ao garimpo ilegal continuou durante e além do primeiro ano de governo.
AMAZÔNIA, MEIO AMBIENTE, DIREITOS HUMANOS
Em pouco tempo, a retomada da fiscalização e da luta contra o desmatamento por Marina Silva provocou queda de cerca de 50% no ritmo da destruição na floresta amazônica. Apesar dos retrocessos legislativos impostos pelo Congresso, as ações ambientais tiveram força suficiente para alterar a percepção negativa internacional. Possibilitaram, entre outras medidas, a reativação do Fundo Amazônia e a atração de doações adicionais por parte do Reino Unido, União Europeia, Suíça, Estados Unidos e Dinamarca.
Essas iniciativas se inscrevem no âmbito da política interna. Criaram, no entanto, as condições de credibilidade indispensáveis para o país reassumir postura novamente proativa e relevante no cenário ambientalista multilateral. Em especial, tornaram possível que o governo candidatasse o Brasil a sede da COP 30, a realizar-se em Belém (2025), revertendo simbolicamente a decisão de desistir de sediar a COP 25 em 2019, tomada ainda na fase de transição de 2018 por recomendação do presidente-eleito Bolsonaro sob o pretexto de falta de recursos.
Paralelamente e em coerência com a mudança de orientação, o governo corrigiu a “pedalada climática” efetuada sob a administração precedente. Restabeleceu os valores originais da Contribuição Nacional Voluntária (CNV) no âmbito do Acordo de Paris, desfazendo a manobra de cálculo que permitira absurdamente aumentar e não reduzir o total das emissões até 2030.
Também no domínio multilateral, o governo anunciou, logo em seu início, que se retirava do chamado Consenso de Genebra, agrupamento de países defensores de posições conservadoras em questões de direitos da mulher, reprodutivos e sexuais. No mesmo movimento, aderiu ao Compromisso de Santiago e à Declaração do Panamá, para a promoção da igualdade de gênero, participação política das mulheres, combate à violência, à discriminação e em favor de direitos reprodutivos e sexuais.
Desse modo, quase de maneira instantânea, promoveu-se verdadeira reviravolta nas posições sobre temas globais de meio ambiente e direitos humanos, responsáveis em boa medida pelo status de pária conferido a Bolsonaro. É nesse domínio, com destaque para o meio ambiente, que se concentra o maior porcentual de inovação da atual política exterior em comparação aos dois primeiros mandatos de Lula, quando a questão, apesar de presente, não ocupava, nem de longe, a mesma centralidade no discurso oficial e nas prioridades.
O presidente mostrou-se capaz de identificar as mudanças que nos últimos anos haviam tornado o problema ambiental questão absolutamente prioritária e crucial da agenda internacional. Soube igualmente detectar os sentimentos profundos da população brasileira na matéria, dando expressão adequada aos genuínos valores e interesses nacionais. É difícil quantificar, mas se deve, sem dúvida, à postura em meio ambiente, povos originários, democracia e direitos humanos a quase totalidade do apoio gerado pela diplomacia junto à sociedade brasileira e internacional. A tarefa não se mostrou tão simples e evidente em relação ao desafio de interpretar, em outros domínios, os “sinais dos tempos” que caracterizam as transformações ocorridas no mundo.
AS MUDANÇAS NO CONTEXTO INTERNACIONAL
O Brasil está de volta ao mundo, mas de que mundo se trata? Certamente, muito mais inóspito do que o prevalecente de 2003 a 2010, os oito anos dos dois primeiros mandatos de Lula. A começar pelo número e gravidade dos conflitos internacionais. Na primeira década de 2000, não existia ainda a hostilidade sistemática entre Estados Unidos e China, marca principal do sistema mundial de nossos dias. A Rússia de Putin não dera início à agressiva política de restauração imperial que começaria com a anexação da Crimeia e a violência separatista no Donbass (2014), culminando com a invasão e a guerra da Ucrânia (2022). Parecia haver espaço para a negociação com o Irã de um acordo geral englobando as questões nucleares e de outra natureza. As relações de Israel com os palestinos seguiam conflitivas, longe, contudo, da extraordinária violência do ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023 e o revide israelense em curso.
Não foi menor a transformação na América Latina e na do Sul. Nesta última, em meados da primeira década, dizia-se que três quartos dos 350 milhões de habitantes eram governados por presidentes de esquerda: Chávez-Maduro, Lula, os Kirchner, Ricardo Lagos-Michelle Bachelet, Tabaré Vásquez-José Mujica, Fernando Lugo, Rafael Correa, Alan García e Evo Morales. Falava-se então de “maré” ou “onda” vermelha. O ambiente era propício a iniciativas de coordenação puramente sul-americanas como a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL). Hoje, pouco restou dessa convergência ideológica até mesmo entre governos em tese de esquerda, mas com visão própria, às vezes discordante, em relação aos acontecimentos, como se viu entre Lula e Gabriel Boric na questão ucraniana e outras.
CONTRASTES GEOPOLÍTICOS ENTRE ONTEM E HOJE
Não só por uma questão ética e humanitária, mas também por razões práticas, um sistema internacional de paz e cooperação favorece muito mais o florescimento da diplomacia do que um marcado por guerras, divisões e antagonismos. Essa verdade óbvia se aplica com mais força a uma potência intermediária como o Brasil, dotada apenas do soft power da palavra e do gesto da diplomacia, sem os meios militares e econômicos de ação para pesar diretamente sobre guerras e conflitos. Ao contrário do que se costuma ouvir, o sistema fragmentado e violento de hoje, cada vez mais centrado no poder duro e puro, é bem menos propício ao pluricentrismo do que o anterior. Ao menos se, com pluricentrismo, se pretende afirmar a possibilidade de potências medianas, por meio de iniciativas diplomáticas autônomas, intervirem em graves problemas de natureza global antes reservados aos poderosos.
Não só por uma questão ética e humanitária, mas também por razões práticas, um sistema internacional de paz e cooperação favorece muito mais o florescimento da diplomacia do que um marcado por guerras, divisões e antagonismos. Essa verdade óbvia se aplica com mais força a uma potência intermediária como o Brasil, dotada apenas do soft power da palavra e do gesto da diplomacia, sem os meios militares e econômicos de ação para pesar diretamente sobre guerras e conflitos.
Esse tipo de policentrismo diplomático, expresso, por exemplo, na tentativa brasileiro-turca sobre a questão nuclear iraniana em 2010, é diferente do policentrismo armado da Turquia, do Irã, da Arábia Saudita, em áreas conflagradas da Síria, do Iêmen, do Líbano, no apoio em armas, dinheiro e orientação a atores não governamentais como o Hezbollah e o Hamas. Nessas zonas “quentes” de conflito, como o Oriente Próximo e a África do Sahel, a dissolução ou o enfraquecimento da ordem hegemônica imposta pelas grandes potências criou um vácuo de insegurança permanente, onde vicejam não só choques entre Estados, mas atores violentos não estatais como o ISIS ou os movimentos jihadistas africanos. É sintomático da dissolução da antiga ordem hegemônica que, em vários países africanos do Sahel, a França, potência que encarnou o intervencionismo neocolonialista das últimas décadas, esteja sendo expulsa devido à ação do grupo mercenário Wagner, teoricamente um ator não estatal, apesar de amparado nos recursos e na estratégia russa. Em tais áreas, as potências intermediárias atuantes possuem interesses específicos reais e diretos nos conflitos, não como o Brasil, somente um interesse indireto e genérico de preservação do sistema.
No mundo de ontem, parecia viável ao Brasil e à Turquia tentarem a sorte onde haviam falhado os Grandes. Mesmo assim, como se sabe, não deu certo por motivo basicamente de questões de poder, demonstrando que o espaço para o pluricentrismo puramente diplomático não era tão amplo como se pensava. O que na realidade existia – e a diplomacia de Lula soube bem aproveitar – era o espaço para iniciativas pluri ou multilaterais que dependem exclusivamente de capacidade de formulação diplomática e vontade de protagonismo, ou, se se preferir, da preocupação altruísta pelo aprimoramento do sistema internacional. Foi esse o caso da participação da diplomacia de Lula na criação de novos agrupamentos permanentes de países como o BRIC (antes do ingresso da África do Sul) para influir, mediante a coordenação de posições, na melhoria da governança global. Em grau mais modesto e com objetivo parecido, outros foros de contato resultaram da iniciativa brasileira: Ibas (Índia, Brasil e África do Sul), Afras (Cúpula África-América do Sul), Aspa (Cúpula América do Sul-Países Árabes), Cúpula Brasil-Caricom (Caricom: Mercado Comum e Comunidade do Caribe).
Ao mesmo tempo, a política externa de Lula lançava na época propostas de grandes desígnios internacionais, como a campanha para erradicar a fome e a pobreza extrema, utilizando como exemplo o reconhecido êxito do programa do Bolsa Família. Levou adiante também, após compromisso com a União Europeia, talvez a última tentativa séria de concluir a Rodada Doha da Organização Mundial de Comércio em meados de 2008. Embora sem resultados concretos, o esforço foi geralmente bem apreciado. Iniciativas do gênero, da mesma forma que a campanha em favor da reforma e modernização do Conselho de Segurança da ONU, do Fundo Monetário e do Banco Mundial, tinham em comum o caráter mais ou menos consensual de objetivos de equilíbrio e justiça social. Apesar da dificuldade de concretização, essas aspirações a metas em princípio desejáveis não afrontavam ou contrariavam interesses nacionais das grandes potências pois não visavam a tomar partido em conflitos geopolíticos graves.
OS DESAFIOS GEOPOLÍTICOS DE NOSSOS DIAS
Agora, ao retornar ao poder pela terceira vez, após afastamento de doze anos, a diferença encontrada por Lula é que as profundas divisões atuais eliminaram praticamente o espaço para consensos internacionais. Com isso, propostas de grandes desígnios ou reivindicações do Sul Global, por mais justas que sejam, caem no vazio e são ignoradas. A agenda passou a ser dominada pela tendência a uma polarização sistemática Estados Unidos versus China. Os conflitos militares de larga escala que retornaram com força tendem a ser encarados através do prisma da rivalidade entre os dois Grandes, mesmo que possuam causas específicas. Apesar de não ser mais a velha Guerra Fria de antigamente, são evidentes as analogias com ela, sobretudo no que se refere à divisão e hostilidade entre os dois atores principais do sistema internacional. Da mesma forma que ocorria então, algumas potências médias ou pequenas, entre elas o Brasil, se esforçam em manter não alinhamento entre os dois polos. Tal como sucedia naquela época, essa atitude nem sempre obtém compreensão externa ou interna.
Com efeito, as questões mais explosivas da atualidade, as guerras em curso na Ucrânia ou na faixa de Gaza, dividem os atores relevantes em lados opostos e definidos. Quem não deseja se definir, enfrenta dificuldade para, sem romper a neutralidade, dizer ou fazer, em relação a tais conflitos, alguma coisa útil ou construtiva. Ao contrário, as situações apresentam tamanha delicadeza e complexidade, que facilmente se arrisca ferir sensibilidades ao esboçar alguma declaração ou proposta que fuja à banalidade. Um exemplo que demonstra claramente o que quero dizer reside nas tribulações passadas por Lula ao tentar opinar sobre a guerra na Ucrânia.
A TORTUOSA EVOLUÇÃO DA POSIÇÃO BRASILEIRA SOBRE A UCRÂNIA
Seja qual for a opinião que se tenha sobre as causas do conflito, não se pode ignorar a gravidade da maior e mais destrutiva guerra terrestre em pleno coração da Europa, nos mais de setenta e cinco anos decorridos após o fim da Segunda Guerra Mundial. Desde a invasão russa de fevereiro de 2022, o sistema de segurança europeu e o mundo deixaram de ser o que eram antes. O problema tem implicações de tamanha seriedade para a paz mundial que exige cuidado extremo nas formulações, que devem ser de preferência escritas e comedidas, não se admitindo atitudes improvisadas ou irrefletidas.
Pois justamente em relação a esse tema, que revelou conhecer de maneira muito superficial, Lula multiplicou declarações contraditórias e desgastantes. Abriu com pé esquerdo a série de pronunciamentos, quando se preparava para disputar a presidência, em maio de 2022. Declarou na ocasião à revista Time (Nugent 2022): “esse cara (Zelensky) é tão responsável quanto o Putin. (...) Porque numa guerra não tem apenas um culpado”. Na mesma entrevista, afirmou que Biden deveria ter usado sua influência para evitar a guerra, não para incitá-la, que poderia ter voado até Moscou para falar com Putin, atitude que se esperaria de um líder.
Inaugurando padrão que repetiria inúmeras vezes, contradizia-se na mesma entrevista ao dizer que Putin não deveria ter invadido a Ucrânia. Prosseguindo a sentença, asseverava que “não é só o Putin que é culpado, são culpados os Estados Unidos e é culpada a União Europeia. Qual é a razão da invasão da Ucrânia? É a OTAN? Os Estados Unidos e a Europa poderiam ter dito: ‘A Ucrânia não vai entrar na OTAN’. Estaria resolvido o problema”. Já presidente eleito e empossado, ao receber em Brasília o chanceler alemão Olaf Scholz (em janeiro de 2023), voltou a declarar que a invasão havia sido um “erro”, logo aduzindo: “mas continuo achando que quando um não quer, dois não brigam”.
Ao clicar no Google “declarações de Lula sobre guerra na Ucrânia”, depara-se com relação interminável de opiniões destoantes umas das outras. Diante do ziguezague de posições, o observador sente-se tentado a minimizar-lhes a importância, dada a irrelevância da influência do Brasil no conflito. Ou dizer que o que conta é a posição oficial do país nos debates e votos do Conselho de Segurança e da Assembleia Geral das Nações Unidas, não os improvisos de Lula, atribuíveis a suas limitações de conhecimento e espontaneidade de reações. Ainda se fosse só isso, não se pode negar que o prestígio do presidente e, por extensão, de sua política externa, sai arranhado da sucessão de incoerências.
Nem tudo, porém, é tão sem consequências como gostaríamos que fosse. Em abril de 2023, ao falar com jornalistas durante sua visita oficial à China, Lula novamente insistiu: “é preciso, sobretudo, convencer os países que estão fornecendo armas e incentivando a guerra a pararem”, [...] “é preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz”.
Coincidindo dessa vez com visita a Brasília do ministro do Exterior da Rússia, Serguei Lavrov, que agradeceu a “excelente compreensão” brasileira da “gênese” da situação, as declarações de Lula provocaram reação ácida pouco usual do porta-voz oficial de segurança da Casa Branca. John Kirby afirmou que os comentários eram “profundamente problemáticos”, “simplesmente errados”, “neste caso, o Brasil está repetindo como papagaio (“parroting”) a propaganda russa e chinesa, sem de nenhuma maneira olhar os fatos”. Os europeus reagiram de modo semelhante.
As intenções de Lula eram certamente construtivas, assim como sincero, embora pouco realista, seu desejo de mediação, contribuindo para a formação de um ainda mais irrealista “clube de paz” de países mediadores. Seus comentários, no entanto, além de contraditórios, revelam da guerra na Ucrânia interpretação em conflito com a dos Estados Unidos e da OTAN. Não é de admirar assim que, para os europeus, que se sentem mortalmente ameaçados de agressão pela Rússia, Lula tenha se tornado uma “decepção” (assim em português) e “falso amigo do Ocidente”, como o descreveu em reportagem de capa a publicação de esquerda Libération (2023).
Sem ser exaustiva, esta amostragem é suficiente para provar o que se disse acima: a dificuldade, no mundo conflitivo de nossos dias, de manter, em relação aos conflitos, uma diplomacia “ativa” de alguma utilidade. Impossível seguramente não é; exige, entretanto, um nível de profissionalismo incompatível com improvisações ou meros bons desejos de pregar a paz e voluntariar mediações não solicitadas. Chamuscado pelos episódios descritos, o governo Lula parece haver, nos últimos meses, espaçado e moderado os comentários gratuitos. Também deu mostras de ter aprendido a lição sobre a conveniência de tratamento mais profissional e institucional dos novos conflitos. O que não garante, de forma alguma, que divisões e polêmicas não surjam em torno da atitude que o Brasil vier a tomar sobre assuntos de tamanha sensibilidade.
A POSTURA SOBRE A FAIXA DE GAZA
É o que já vem ocorrendo no intrincado conflito entre Israel e os palestinos. Com efeito, a primeira fase do recrudescimento da violência, provocada pelo ataque do Hamas de 7 de outubro de 2023, coincidiu com a presença do Brasil no Conselho de Segurança das Nações Unidas e com a presidência rotativa exercida em outubro pela nossa delegação. Tais circunstâncias asseguraram que o tema fosse o tempo todo publicamente controlado pelo ministro Mauro I. Vieira e o embaixador Sérgio F. Danese em Nova York. O empenho de redigir e negociar com os demais membros do Conselho um projeto de resolução consensual sobre a suspensão dos combates resultou em texto equilibrado, praticamente inobjetável, apesar do veto dos Estados Unidos por razões políticas. O Brasil emergiu do episódio prestigiado da perspectiva do profissionalismo diplomático e da preocupação humanitária com as vidas inocentes sacrificadas.
Posteriormente, a situação se agravou com a ampliação chocante de mortes de civis não combatentes em Gaza, a grande maioria dos quais mulheres e crianças. Aumentou sobre o governo Netanyahu a pressão internacional, até de aliados ocidentais de Israel e do próprio governo norte-americano, por meio da multiplicação de visitas de altas autoridades (secretário de Estado, secretário de Defesa, assessor de Segurança Internacional da Casa Branca) e de declarações até do presidente Biden no sentido geral de que a reação militar se revelava desproporcional e indiscriminada. Culminou essa pressão com a iniciativa do governo sul-africano junto ao Tribunal Internacional de Justiça de Haia (TIJ), em 29 de dezembro 2023, em que acusou Israel de cometer atos de genocídio e solicitou a imposição de imediato cessar-fogo. Em 26 de janeiro de 2024, o Tribunal emitiu “medidas de emergência”, pelas quais, sem impor cessar-fogo imediato, instruiu o governo israelense a “prevenir seus militares de cometerem atos que possam ser considerados genocidas, evitar e punir a incitação ao genocídio e possibilitar assistência humanitária ao povo de Gaza”.
A Corte estatuiu igualmente que possui competência legal para prosseguir no exame da questão de genocídio, o que pode levar vários anos. As decisões do Tribunal Internacional de Justiça, órgão jurídico supremo da ONU, são legalmente obrigatórias para os países que aceitaram sua jurisdição – caso da África do Sul e de Israel. Na prática, a Corte não possui condições de aplicá-las, conforme ocorreu em 2022 com a determinação dirigida à Rússia de cessar os atos de hostilidade contra a Ucrânia. Audiências públicas a respeito da ocupação de territórios palestinos foram marcadas para o período entre 19 e 26 de fevereiro. Manifestaram intenção de participar dos procedimentos orais 52 países, entre eles o Brasil (20 de fevereiro). A inscrição brasileira para falar dá sequência ao apoio expresso a outro lema ligado ao problema, a ação sul-africana em 10 de janeiro de 2024, em nota oficial, na qual se afirmava que:
À luz das flagrantes violações ao Direito Internacional Humanitário, o presidente manifestou seu apoio à iniciativa da África do Sul de acionar a Corte Internacional de Justiça para que determine a Israel cessar imediatamente todos os atos e medidas que possam constituir genocídio ou crimes relacionados nos termos da Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio (Brasil 2024).
Na mesma nota, constava que: “O presidente Lula recordou a condenação imediata pelo Brasil dos ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro de 2023. Reiterou, contudo, que tais atos não justificam o uso indiscriminado, recorrente e desproporcional de força por Israel contra civis” (Brasil 2024).
O potencial da questão para provocar divisões internas se manifestou de imediato: o ex-chanceler Celso Lafer dirigiu ao atual ministro Mauro I. Vieira, na mesma data da nota, carta aberta e divulgada publicamente na qual dizia ser
[U]m deslize conceitual de má-fé valer-se da imputação de genocídio para discutir as controvérsias jurídicas relacionadas à aplicação do direito humanitário e aos problemas da situação humanitária prevalecente em Gaza – que são graves problemas, de generalizada preocupação [...], a iniciativa da África do Sul não se propõe discutir o jus in bello e seus princípios. É uma instrumentalização do Direito Internacional. Tem como propósito, mediante a invocação do genocídio, contribuir para a deslegitimação do Estado de Israel no plano internacional. Reforça o antissemitismo. Está em discutível sintonia com os que almejam minar o direito à existência de Israel, que é uma explícita intenção da estratégia e da conduta do Hamas, de seus apoiadores e simpatizantes (Lafer 2024).
O destinatário da carta aguardou a decisão da Corte para comentar que:
As críticas à posição do Brasil já foram respondidas pela própria Corte Internacional de Justiça, que definiu sua competência e admitiu a pertinência de julgar o caso com base na convenção de genocídio, além de determinar uma série de medidas cautelares dirigidas a Israel para que tome, com urgência, providências para que esse cenário seja evitado (Folha de S. Paulo 2024).
Seguiram-se manifestos de empresários e personalidades de diversos setores contra e a favor da postura do governo brasileiro, bem como editoriais de grandes jornais, estes últimos sempre críticos do posicionamento oficial. Declarações de Lula comparando a reação israelense a atos de terrorismo do Hamas ou afirmando “o que está acontecendo na Faixa de Gaza não é guerra, é praticamente um genocídio” se viram imediatamente contestadas por diversas entidades vinculadas à comunidade judaica brasileira, entre elas a Confederação Israelita do Brasil (CONIB), que anteriormente já havia lamentado “profundamente declarações do presidente Lula comparando as ações de defesa de Israel a genocídio. É uma acusação falsa que, vinda do presidente da República, ganha dimensões ainda mais graves” (CONIB 2023).
A polêmica deve manter-se viva, com desdobramentos prováveis no momento em que o Brasil se pronunciar nas audiências públicas da Corte ou por efeito de novas atitudes do presidente (lembre-se de que este artigo já tinha sido finalizado quando se registrou o incidente causado pelas declarações de Lula na coletiva de imprensa em Adis Abeba, 18 de janeiro de 2024). Ainda que se trate de um processo em andamento, o breve resumo acima não poderia faltar num balanço da primeira fase da política externa de Lula. O registro objetivo das várias tomadas de posição esboçado aqui se destina, em primeiro lugar, a dar a palavra aos próprios envolvidos, permitindo ao leitor tirar suas conclusões.
Em contraste com o contexto mundial durante os dois primeiros mandatos de Lula, a atual conjuntura representa um desafio extremo à capacidade do governo de interpretar o sentido das mudanças e adotar perante elas postura que reúna o maior apoio doméstico possível.
Em seguida, a insistir no que já deve ter ficado evidente, que a “volta do Brasil”, isto é, o desejo de manter diplomacia ativa num sistema internacional conflitivo, será inevitavelmente acompanhado de divisões, controvérsias, desgaste interno e externo. Em contraste com o contexto mundial durante os dois primeiros mandatos de Lula, a atual conjuntura representa um desafio extremo à capacidade do governo de interpretar o sentido das mudanças e adotar perante elas postura que reúna o maior apoio doméstico possível.
O PROCESSO DECISÓRIO NA ATUAL POLÍTICA EXTERNA
Seria recomendável, nesse sentido, que as decisões de política externa em geral e as atinentes a conflitos graves em particular se tomem em processo mais aberto ao diálogo e atento às sensibilidades legítimas de setores relevantes da população brasileira. Em quase todos os domínios da vida nacional – desenvolvimento econômico, meio ambiente, direitos humanos, racismo –, o governo teve o mérito de restabelecer e fortalecer conselhos e mecanismos de consulta, dentre os quais as Conferências Nacionais em Saúde e Educação. Por que não tentar algo parecido na área das relações internacionais? O próprio PT, em 2010, chegou a considerar proposta de sua Secretaria de Relações Internacionais para a criação de um Conselho Nacional de Política Externa definido como “organismo consultivo com participação social”. A ideia deveria ter sido apresentada ao IV Congresso Nacional do PT; o mesmo documento sugeria a convocação também de uma “conferência nacional de relações exteriores” (ver Franco 2010).
Haveria, sem dúvida, dificuldade de dar forma a esse processo devido à índole de algumas questões de política externa, problema que poderia ser contornado dando preferência nesses casos a consultas informais. Um processo consultivo, misto de formal e informal, permitiria refletir a diversidade de visões ideológicas e interesses de sociedade complexa como a nossa. Uma vantagem adicional seria concorrer para que a identidade internacional do Brasil se torne de fato a expressão de todas as forças que se mostraram decisivas na conquista da difícil vitória contra o retrocesso bolsonarista, não se restringindo à base mais estreita do partido presidencial.
RESULTADOS DA POLÍTICA EXTERNA
Quais foram até agora os resultados colhidos pela diplomacia de Lula 3 pelo que se pode julgar da recepção externa e interna dessa política? É indiscutível que, graças em boa parte ao meio ambiente e à Amazônia, a imagem externa do Brasil mudou para melhor de forma rápida e radical, sepultando por completo a reputação de pária. Nessas questões, o Brasil voltou a assumir papel proativo como ator relevante do cenário internacional. A visão positiva do mundo exterior é largamente partilhada dentro do país, mostrando que a parcela mais admirada e aplaudida da diplomacia provém, não por acaso, da área do governo que se abriu à participação e influência de forças novas, como as ambientalistas, simbolizadas pela ministra Marina Silva. O apoio é quase unânime, excetuados os setores mais retrógrados e negacionistas do agro. Com essa exceção, o governo Lula 3 ampliou consideravelmente a aprovação de que antes desfrutava.
É indiscutível que, graças em boa parte ao meio ambiente e à Amazônia, a imagem externa do Brasil mudou para melhor de forma rápida e radical, sepultando por completo a reputação de pária. Nessas questões, o Brasil voltou a assumir papel proativo como ator relevante do cenário internacional.
Sem minimizar o mérito dessa evolução, é preciso admitir que resulta de evolução relativamente recente, não a presença do tema ambiental na ação do governo, mas a compreensão da centralidade e premência adquiridas pelo problema da mudança climática e da Amazônia. Nos dois primeiros mandatos e sob o governo de Dilma Rousseff, essas questões desempenharam papel de relativa importância, como mostram os índices de redução do desmatamento alcançados na época; no início (entre 2003 e 2008) por efeito do trabalho de Marina Silva como ministra, continuados depois em menor ritmo. Na época, porém, a preocupação ambiental nem sempre conseguiu impor-se contra a pressão de interesses econômicos e a abordagem que privilegiou projetos controvertidos de desenvolvimento, como o de Belo Monte. Afinal de contas, Marina teve de deixar o governo em 2008, vencida por tais fatores. Mesmo hoje, não desapareceu por inteiro a ambiguidade na matéria. Ela reaparece na polêmica sobre a exploração petrolífera na foz do Amazonas e na adesão à Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), anunciada publicamente, num claro deslize diplomático, na última COP, sinais da dificuldade de equilibrar as imposições climáticas com a realidade da dependência ainda existente do petróleo e os interesses compreensíveis das regiões potencialmente produtoras.
A IMAGEM DA DIPLOMACIA NO SEU CONJUNTO
Não obstante, o desempenho do governo na Amazônia e em meio ambiente continua a ser o fator principal da transformação da imagem internacional do país em sentido nitidamente favorável. Não foi fácil a Lula proceder a essa reviravolta na política que vinha sendo seguida pelo governo de extrema-direita de Bolsonaro. A mudança encontrou e encontra resistências consideráveis no setor do agro, na sua poderosa bancada no Congresso, nas decisões retrógradas da Câmara e do Senado. O que facilitou, mesmo assim, interpretar corretamente os sinais da evolução mundial? Em parte, o caráter praticamente universal da evidência da gravidade e urgência da mudança climática, em parte a existência de interesses fortes e concretos do Brasil na questão. Em outras palavras, o país tem muito a ganhar com o avanço da pauta ambiental e ainda mais a perder com a volta da desastrosa orientação bolsonarista. Esses elementos nem sempre estão presentes para ajudar o governo a captar o sentido de outras mudanças globais e de agir em consequência.
O “UNFINISHED BUSINESS”
Nem todos os desafios à política externa se originam nas recentes transformações do mundo em curso. Eles devem talvez ser divididos em duas categorias de diferente importância e complexidade: o que se poderia chamar de “unfinished business” do passado de Lula e seu partido, isto é, o resíduo de velhos problemas herdados e não resolvidos, de um lado, e os desafios nascidos dos inéditos conflitos geopolíticos dos últimos anos, do outro. Como este artigo pretende focalizar a atenção nos desafios novos, não vai desenvolver a discussão da posição do governo em relação aos antigos, já suficientemente debatidos ao longo de mais de uma década. Quais são eles? Apenas para registro: a relutância em condenar violações da democracia e direitos humanos na Venezuela, na Nicarágua e em Cuba; o uso de medidas e critérios distintos para julgar esses problemas, conforme a ideologia dos regimes em exame; a aposta equivocada na suposta evolução democrática de Maduro, desmentida pela exclusão de opositores das futuras eleições, o recrudescimento da repressão, a expulsão de funcionários de direitos humanos da ONU e a reabertura do problema limítrofe com a Guiana; a insistência em ressuscitar a União de Nações Sul-Americanas (UNASUL); o difícil equilíbrio entre não ingerência e a defesa da democracia e dos direitos humanos.
Assemelham-se ao legado do passado algumas questões de política econômica e comercial internacional, como o acordo entre Mercosul e União Europeia, ou a adesão plena à Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Um mecanismo de consulta e debate como o sugerido acima se prestaria de maneira particularmente útil para examinar esses assuntos no conjunto dos seus aspectos positivos e negativos, o que não será objeto deste limitado ensaio.
O desejo e o gosto de ser protagonista da história e da grande política internacional trazem para o Brasil inegável projeção, mas acarretam, ao mesmo tempo, inevitáveis riscos e potenciais prejuízos. Lula, em outras palavras, tem a qualidade de seus defeitos; sem eles, não seria mais Lula. O problema, inseparável de qualquer diplomacia presidencial, se exacerba devido à complexidade dos atuais desafios geopolíticos.
Ao evitar assim multiplicar declarações improvisadas e emotivas em conferências de imprensa ou ocasiões semelhantes, se minimizaria o risco de desgastes como os que estamos assistindo. A orientação se chocaria, no entanto, com a propensão do presidente para a diplomacia presidencial e protagônica. O desejo e o gosto de ser protagonista da história e da grande política internacional trazem para o Brasil inegável projeção, mas acarretam, ao mesmo tempo, inevitáveis riscos e potenciais prejuízos. Lula, em outras palavras, tem a qualidade de seus defeitos; sem eles, não seria mais Lula. O problema, inseparável de qualquer diplomacia presidencial, se exacerba devido à complexidade dos atuais desafios geopolíticos. Afeta não somente o presidente brasileiro, mas outros desejosos de desempenhar papel ativo como, por exemplo, Macron; não poupando o próprio Biden.
A PERCEPÇÃO DA IDENTIDADE INTERNACIONAL DO BRASIL
Uma das consequências indesejáveis dos deslizes consequentes à diplomacia presidencial reside no espaço que abre para percepções que distorcem as intenções originais. Membro eminente e influente do Sul Global, o Brasil de Lula 3 se apresenta, no discurso diplomático oficial, como empenhado em manter posição de estrito não alinhamento e imparcialidade diante do maior problema de nossos dias, a crescente clivagem entre Estados Unidos/Ocidente versus China e Rússia. Contudo, as críticas ao fornecimento de armas à Ucrânia fizeram com que um dos lados, o dos norte-americanos e europeus, considerasse equivocada e parcial a postura brasileira, como se viu das palavras dos porta-vozes da Casa Branca e de países europeus tempos atrás.
Pode-se questionar se essa percepção é correta ou distorciva da realidade, mas não é possível negar a existência de discrepâncias na maneira de interpretar a política externa de Lula 3 da parte tanto de observadores internos quanto externos. Essas visões serão, em alguns casos de má-fé, inspiradas por ideologias de extrema-direita, como as de setores da oposição bolsonarista, que buscam utilizá-las para fins de política interna. Em outras situações, porém, provêm de sinais ambíguos originados de insuficiente clareza ou excessos verbais como os apontados. Uma possibilidade única de dissipá-las surge agora da preparação e realização da reunião de cúpula do Grupo dos 20 (G20). Não se prestando facilmente ao enquadramento nos conflitos geopolíticos, a reunião deve dominar diplomaticamente o corrente ano de 2024. Oferece a Lula uma trégua dos conflitos e uma bem-vinda ocasião de voltar aos temas que lhe foram tão propícios sob os dois primeiros mandatos.
O governo compreendeu a visibilidade internacional que lhe fornece a presidência rotativa do G20. Teve a sabedoria de abrir um amplo processo de diálogo e consulta com extensos setores da sociedade, dentre os quais a comunidade acadêmica e os meios empresariais. Os resultados confirmam o valor da abordagem, que possibilitou, em coordenação com os demais governos, a definição consensual da agenda. Ela dá ênfase à luta contra a fome e a desigualdade; à premência no enfrentamento da mudança climática; à modernização e atualização dos mecanismos de governança global. Da mesma forma que sucedia durante a primeira década de 2000, trata-se de assuntos de apelo universal, embora de difícil concretização, cujas metas de justiça e equilíbrio atendem, em princípio, ao interesse de todos. Criaram a possibilidade para Lula de anunciar desígnios grandiosos como a Aliança Global contra a Fome e a Pobreza, apresentada na Cúpula de Chefes de Estado e de Governo da União Africana, em Adis Abeba, e a Mobilização Global contra a Mudança do Clima.
É claro que os conflitos geopolíticos não vão desaparecer durante a preparação e a realização da Cúpula do G20. Poderão até assumir formas mais graves, dependendo, por exemplo, da possibilidade de que Trump e o Partido Republicano ganhem as eleições norte-americanas, poucas semanas antes da Cúpula. A simples hipótese projeta sombras inquietantes sobre o que se pode esperar da reunião, além de provavelmente acarretar complicações imprevisíveis para o governo Lula. O quadro internacional sugere um futuro de riscos e incertezas – razão a mais para que a política externa brasileira aproveite as lições do processo de preparação do G20 e o utilize igualmente a fim de bem afrontar testes novos, entre eles os que virão com a presidência dos BRICS em 2025.
As diferenças na maneira de perceber a política externa atual felizmente não bastaram para comprometer as esperanças despertadas pela “volta do Brasil” a papel proativo em meio ambiente, Amazônia e outros assuntos. As luzes ainda dominam o quadro geral, animando a esperança de que o presidente e seu governo se inspirem, na formulação e conduta da política externa, no espírito e na prática da união das forças democráticas que, nas eleições e depois, permitiu ao Brasil superar divisões e exorcizar o fantasma do retrocesso e da ditadura.
Nota
Este artigo foi concluído em 16 de fevereiro de 2024, dois dias antes das declarações de Lula sobre as operações na faixa de Gaza, realizadas na conferência de imprensa de Adis Abeba no domingo, dia 18 de fevereiro de 2024. O autor julgou preferível não reabrir o texto para incluir o episódio por considerar que ele se enquadra nas situações descritas no texto como pronunciamentos de improviso, emotivos, desmedidos, evitáveis e contraproducentes.
São Paulo, 16 de fevereiro de 2024.
Brasil. Ministério das Relações Exteriores. 2024. “Ações em favor da cessação de hostilidades em Gaza”. Gov.br, 10 de janeiro de 2024. https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/acoes-em-favor-da-cessacao-de-hostilidades-em-gaza.
CONIB. 2023. “CONIB lamenta declaração do presidente Lula sobre Israel”. CONIB, 07 de dezembro de 2023. https://conib.org.br/noticias-conib/38130-conib-lamenta-declaracao-do-presidente-lula-sobre-israel.html.
Folha de S. Paulo. 2024. “Vieira diz que decisão da Corte de Haia sobre Israel responde a críticas de Lafer”. Folha.uol, 2 de fev de 2024. https://www1.folha.uol.com.br/colunas/painel/2024/02/vieira-diz-que-decisao-da-corte-de-haia-sobre-israel-responde-a-criticas-de-lafer.shtml.
Lafer, Celso. 2024. “Carta ao Chanceler Mauro Vieira”. CEBRI, 14 de janeiro de 2024. https://cebri.org/br/midia/466/carta-ao-chanceler-mauro-vieira-por-celso-lafer.
Libération. 2023. “LULA. Le faux ami des Occidentaux”. Libération, 23 de junho de 2023. https://journal.liberation.fr/liberation/liberation/2023-06-23.
Franco, Bernardo de Mello. 2010. “PT planeja criar conselho de política externa”. O Globo, 08 de fevereiro de 2010, p. 4.
Nugent, Ciara. 2022. “Lula conversa com TIME sobre Ucrânia, Bolsonaro e a frágil democracia Brasileira”. Time, 4 de maio de 2022. https://time.com/6173104/lula-da-silva-transcricao/.
Recebido: 16 de fevereiro de 2024
Aceito para publicação: 1 de março de 2024
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