Pela centralidade do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) na ordem internacional e na política externa brasileira, analisar como o país se comportou no órgão é um importante termômetro para sua atuação diplomática. Dessa forma, o objetivo do presente texto é examinar aspectos da participação brasileira no CSNU nos anos de 2022-2023. Propomos, como argumento central, que, em 2023, o CSNU foi visto pelo presidente Lula como um espaço privilegiado para realçar características da política externa brasileira e enfatizar os princípios centrais da ação internacional do país em sua administração, em um contexto marcado pela invasão da Ucrânia e a crise em Gaza.
Conquistar um assento permanente no principal órgão multilateral responsável pela manutenção da paz e da segurança internacional é um pleito antigo do Brasil. No pós-Primeira Guerra Mundial, o Brasil defendeu sua adesão ao Conselho Executivo da Liga das Nações como membro permanente. Após a decisão estadunidense de não ratificar o Pacto da Liga, cabia ao Brasil, segundo a narrativa do governo da época, o papel de representante da América. Esse argumento se somava à participação brasileira no conflito que, conquanto modesta, destacou o país entre os demais vizinhos latino-americanos[1].
Quando foi criada a Organização das Nações Unidas (ONU), na esteira da Segunda Guerra Mundial, o Brasil almejou obter um lugar no órgão que seria o pilar central da arquitetura de paz e segurança internacional alicerçada na Carta de São Francisco. A pretensão brasileira, respaldada pela participação no esforço de guerra, era integrar o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) como o sexto membro permanente, ao lado de Estados Unidos, Reino Unido, França, Rússia e China (Garcia 2011). Novamente, a investida não foi bem-sucedida, mas essa intenção não foi abandonada e se reapresentou em períodos posteriores na agenda da política externa brasileira.
O desapontamento com o empreendimento inicial não deve ocultar, porém, que o Conselho de Segurança seguiu sendo um espaço de atuação prioritário para a inserção internacional do país, à exceção durante parte significativa do regime militar. Como membro não permanente, o Brasil esteve representado no órgão por 11 biênios[2], tendo desempenhado, em diversos momentos, papel destacado na busca de consensos e construção do diálogo. Vale destacar que o Brasil é o país do Sul Global que mais exerceu mandatos como membro não permanente no Conselho, seguido da Índia. A busca pela reforma do órgão, que viesse, eventualmente, a incluir o Brasil e outros países em desenvolvimento, também seguiu sendo uma bandeira que atravessa o espectro político-partidário, apesar das variações de ênfase. Pela centralidade do CSNU na ordem internacional e na política externa brasileira, analisar como o país se comportou no órgão ao longo de um dado período histórico é um importante termômetro para balizar as linhas centrais de sua atuação diplomática (Albuquerque 2022).
…o Brasil é o país do Sul Global que mais exerceu mandatos como membro não permanente no Conselho [de Segurança das Nações Unidas (CSNU)], seguido da Índia. A busca pela reforma do órgão, que viesse, eventualmente, a incluir o Brasil e outros países em desenvolvimento, também seguiu sendo uma bandeira que atravessa o espectro político-partidário, apesar das variações de ênfase.
Dessa forma, seguindo contribuições prévias que se debruçaram sobre os mandatos anteriores (Uziel 2012; Viotti, Dunlop & Fernandes 2014; Albuquerque 2022), o objetivo do presente texto é examinar aspectos da participação brasileira no CSNU nos anos de 2022-2023. O período é emblemático, pois nos permite um raro marco teórico analítico: o biênio é dividido por um período eleitoral, que culminou na troca de presidentes e do comando das relações exteriores do Brasil. Em paralelo a identificar se houve mudanças concretas nas posições do país no CSNU entre 2022 e 2023, propomos, como argumento central, que, em 2023, o CSNU foi visto pelo presidente Lula como um espaço privilegiado para realçar características da política externa brasileira e enfatizar os princípios centrais da ação internacional do país em sua administração. Entre os elementos presentes, destacamos o papel histórico do Brasil como construtor de pontes, ator propositivo, defensor da solução pacífica e promotor da busca de consensos, em um contexto marcado pelas contestações à eficácia da ONU em conflitos como a invasão da Ucrânia e a crise em Gaza.
…propomos, como argumento central, que, em 2023, o CSNU foi visto pelo presidente Lula como um espaço privilegiado para realçar características da política externa brasileira e enfatizar os princípios centrais da ação internacional do país em sua administração.
Para cumprir tal objetivo, o texto encontra-se dividido em quatro partes. Na primeira seção, analisamos, como pano de fundo, os questionamentos à capacidade do CSNU de tomar decisões concretas e significativas. De acordo com essa visão, cada vez mais difundida entre os Estados-membros da ONU, há questões estruturais e geopolíticas que limitam a ação do Conselho em situações de crise. Na segunda parte, introduzimos o contexto do mandato 2022-2023 do Brasil, apresentando os temas destacados como prioridade pelo governo. Na terceira seção, dedicamo-nos ao ano de 2022, com ênfase no conflito que, logo em fevereiro, arrebatou a agenda pelos meses seguintes: a invasão da Ucrânia pela Rússia. Na quarta seção, além de identificar eventuais mudanças em relação ao ano anterior, enfatizamos como o Brasil, já no governo Lula, atuou em prol da solução do conflito em Gaza. As considerações finais encerram o texto.
ESTRUTURA E GEOPOLÍTICA: O DÉFICIT DE LEGITIMIDADE E CRESCENTE DIFICULDADE DO CONSELHO DE SEGURANÇA DE TOMAR DECISÕES EFICAZES E EFETIVAS
Criado em 1945, a composição e o poder decisório do CSNU foram o resultado do arranjo de forças entre os vencedores da Segunda Guerra Mundial. Desde as conferências preparatórias, realizadas ainda enquanto o conflito estava em andamento, Estados Unidos, Rússia, China e Reino Unido, os autodenominados “Quatro Policiais”, buscavam garantir que teriam centralidade na tomada de decisão em temas de segurança na nova ordem que se seguiria às tratativas de paz. Com a adesão da França ao seleto grupo após a desocupação nazista, o rascunho do que veio a ser a Carta das Nações Unidas, elaborado na Conferência de Dumbarton Oaks (1944), previa que os cinco seriam os membros permanentes do CSNU. No ano seguinte, a Conferência de Ialta chancelou o que ficou conhecido como poder de veto – a exigência de que os cinco estivessem de acordo com as medidas tomadas pelo Conselho –, uma exigência de Stalin para evitar derrotas para uma maioria capitalista/ocidental.
Desde então, demandas pela reforma dessa estrutura se avolumam. No contexto do Grupo de Trabalho Aberto sobre a Questão da Representação Equitativa e do Aumento do Número de Membros do Conselho de Segurança, estabelecido no âmbito da Assembleia Geral, é corrente o argumento de que o órgão tem baixa legitimidade, pois não representa mais a distribuição de poder mundial. Em 1945, havia 51 Estados-membros na organização, dos quais 11 ocupavam assentos no Conselho de Segurança. Hoje, são 193 membros, e apenas 15 sentam-se no Conselho simultaneamente – dos quais cinco como membros permanentes. O déficit de representatividade é absolutamente evidente.
O Conselho, entretanto, mesmo com claro déficit de representatividade, ainda reflete as disputas geopolíticas entre os P3 – Estados Unidos, Reino Unido e França – de um lado, e China e Rússia, de outro. Essa dinâmica tem inclusive tornado o processo decisório mais difícil e ineficaz, uma vez que a polarização dentro do Conselho tem contaminado o tratamento de boa parte dos temas que constam de sua agenda. Esse não é um fenômeno novo, mas que se agravou sobremaneira durante os dois anos em que o Brasil exerceu o seu 11º mandato como membro não permanente, que praticamente se iniciou em conjunto com o conflito na Ucrânia.
Para poder compreender o atual estado de semiparalisia do Conselho, é preciso recuar a 2011, ano em que o Brasil também ocupava uma das dez cadeiras não permanentes naquele órgão. Os eventos da chamada Primavera Árabe reverberam em diversos países, entre eles a Líbia de Muammar Gaddafi, que enfrentava uma guerra civil.
A Resolução 1973, aprovada sob o Capítulo VII da Carta da ONU, em 17 de março de 2011, continha vários dispositivos, entre eles: o estabelecimento de um cessar-fogo; a imposição de zona de exclusão aérea na Líbia; o reforço de embargo de armas contra o país; a extensão da proibição de ativos de autoridades líbias; e o congelamento de ativos no exterior, conforme já tinham sido determinados pela Resolução 1970 do Conselho, aprovada dias antes. O parágrafo operativo 4º da Resolução 1973 autorizava (Nações Unidas 2011a, 3):
os Estados-Membros que tivessem notificado o Secretário-Geral, atuando de forma individual ou por meio de arranjos ou organizações regionais, e atuando em cooperação com o Secretário-Geral, usar todas as medidas necessárias (grifo nosso) (….) para proteger civis e áreas civis populadas que estivessem sob a ameaça de ataque da Libyan Arab Jamahiriya, inclusive Benghazi, excluindo a possibilidade de ocupação territorial pela força de qualquer parte do território líbio (...).
Para além do texto da resolução, que indica de forma relativamente clara os contornos de sua implementação, o processo negociador e sua eventual aprovação envolveram um acordo tácito entre os membros do Conselho: o de que a expressão o “uso de todas as medidas necessárias” não significava o uso da força nem uma intervenção militar na Líbia.
Cabe aqui uma nota explicativa de procedimento. No Conselho de Segurança, antes do voto de uma resolução em uma sessão formal, há, de antemão, em grande parte dos casos, consultas informais quanto ao quadro parlamentar entre as delegações. Isso confere certa previsibilidade sobre as chances de um texto de resolução prosperar e auxilia também as delegações a prepararem suas explicações de voto que, eventualmente, quiserem proferir.
No caso em tela, a interpretação, sobretudo do que não englobaria a tomada de todas as medidas necessárias, foi o que possibilitou a aprovação do texto com os votos afirmativos dos P3, África do Sul, Bósnia Herzegovina, Colômbia, Gabão, Líbano, Nigéria e Portugal. Alemanha, Brasil, China, Índia e Rússia se abstiveram. Mesmo tendo votado a favor, a África do Sul, em sua explicação de voto, reiterou aquilo que parecia ter sido o entendimento comum: aquela resolução não deveria ser interpretada como uma autorização para uma intervenção militar na Líbia (Nações Unidas 2011b, 10):
Por uma questão de princípio, apoiamos a resolução, com as ressalvas necessárias para preservar a soberania e a integridade territorial da Líbia e rejeitar qualquer ocupação estrangeira ou intervenção militar unilateral sob o pretexto de proteger civis. Esperamos que essa resolução seja implementada com total respeito à sua letra e ao seu espírito (tradução nossa).
Por sua vez, o Brasil indicou que não estava convencido de que o uso da força tal como determinado no parágrafo operativo 4º, da forma em que estava disposto, levaria ao fim imediato da violência e à proteção dos civis. A delegação brasileira foi mais além e assinalou que, segundo especialistas, a Primavera Árabe se constituiria de forma espontânea e local, e que a autorização do uso da força teria, como de fato teve, implicações para além da Líbia (Nações Unidas 2011b, 6):
Muitos comentaristas atenciosos observaram que um aspecto importante do movimento popular no norte da África e no Oriente Médio é sua natureza espontânea e local. Também estamos preocupados com a possibilidade de que o uso da força militar, conforme previsto no parágrafo 4º da resolução de hoje, possa mudar essa narrativa de forma a ter sérias repercussões para a situação na Líbia e em outros lugares (tradução nossa).
A despeito do que parecia ter sido o entendimento tácito no CSNU, em 19 de março, ou seja, dois dias depois da aprovação da resolução, uma coalizão de países sob o guarda-chuva da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), começando com Bélgica, Canadá, Dinamarca, França, Itália, Noruega, Qatar, Espanha, Reino Unido e Estados Unidos, participou de intervenção militar que terminou apenas em outubro daquele ano.
A invasão da Líbia, que levou à derrubada do regime político do país, representou a quebra de confiança, sobretudo entre os membros permanentes. Foi um divisor de águas na atuação do Conselho e contribuiu ao clima de confronto e desconfiança que apenas vem se agravando há mais de uma década. Como consequência, logo em seguida, na crise aberta na Síria, foi impossível coordenar uma ação conjunta do Conselho pelo receio, sobretudo de China e Rússia, de que o que aconteceu com a Líbia poderia se repetir na Síria.
Ao longo dos 13 anos que se sucederam à invasão da Líbia, as clivagens no Conselho de Segurança apenas aumentaram e atingiram patamar ainda mais elevado após o conflito na Ucrânia. As hostilidades russo-ucranianas – que serão objeto de análise em seção à parte – permeiam todo o mandato brasileiro no biênio que acaba de se encerrar e constituíram complicador adicional para os trabalhos do Conselho em ambiente de alta tensão geopolítica, tornando o processo decisório e a formação de consensos ainda mais difíceis sobre a maioria dos dossiês sob análise do órgão.
Ao contexto geopolítico desafiador, adicionam-se ainda as dificuldades derivadas da heterogeneidade entre os dez membros não permanentes (E10). Em 2022, além de Brasil, Albânia, Emirados Árabes Unidos, Gabão, Gana, Índia, Irlanda, México, Noruega e Quênia compunham o E10; em 2022, entraram Equador, Malta, Suíça, Moçambique e Japão, com a saída de México, Irlanda, Noruega, Quênia e Índia.
Embora tenha sido possível, em casos pontuais, como na crise israelo-palestina que será analisada mais adiante, foi um exercício complexo manter a unidade do E10, em razão das prioridades estabelecidas nas respectivas políticas externas e nas alianças bilaterais e regionais daqueles países. Não se pode dizer, portanto, que havia uma identidade do grupo, como alguns analistas ou membros do grupo poderiam sugerir ou mesmo aspirar a ela. As clivagens derivadas do contexto de disputa geopolítica e as rivalidades entre os P5 foram elementos preponderantes e divisivos nos trabalhos do Conselho no biênio 2021-2022.
Do ponto de vista da diplomacia brasileira, houve, sim, maior convergência, como por exemplo, com a Índia, em 2022, em função das afinidades das agendas externas e a identidade construída dentro de grupos como o G4, o IBAS e o BRICS, ou, muito especificamente, com a Suíça por ser penholder[3] com o Brasil no dossiê de questões humanitárias na Síria e de conflito e fome, que deriva da implementação da Resolução 2417 do Conselho (Nações Unidas 2018). Nesse contexto de alianças mais restritas, notou-se uma articulação bem concertada entre os membros não permanentes africanos, o chamado A3. Além de, em diversas ocasiões, realizarem intervenções conjuntas proferidas pelo coordenador de turno do grupo, os membros africanos lograram manter a articulação em relação ao tratamento sobretudo dos temas e países africanos sob análise do Conselho.
No que tange aos A3, vale observar, ainda, sobretudo nos temas regionais africanos, reverberações da perspectiva denominada nos contextos acadêmicos de “decolonial”. O ano de 2023 foi paradigmático nesse sentido, quando Sudão, Mali e República Democrática do Congo comunicaram às Nações Unidas que, mesmo em meio a crises domésticas complexas, queriam terminar com a presença das missões da ONU em seus territórios – no caso sudanês, a missão política especial (UNITAMS), e as missões de manutenção da paz no Mali (MINUSMA) e na República Democrática do Congo (MONUSCO). Os três países reiteraram o interesse de continuar a receber apoio da organização por meio de seus fundos, programas e agências, e com a manutenção dos escritórios do coordenador residente. Entretanto, foram categóricos quanto à determinação de deixarem de ser objeto de mandatos do Conselho de Segurança. Tem crescido a percepção, sobretudo no continente africano, de que o CSNU exerce alguma espécie de tutela sobre os países que hospedam as missões de paz ou missões políticas especiais que se alargam no tempo, sem efetivamente ter uma estratégia de saída e da passagem para uma fase de construção da paz. Em junho de 2022, em meio a um processo de convulsão interna que se arrasta até hoje, o governo sudanês declarou o enviado especial do Secretário-Geral das Nações Unidas para o país, o alemão Volker Perthes, como persona non grata.
Tendo esse contexto de instabilidade como pano de fundo, as próximas seções examinam detidamente os temas e desafios do mandato brasileiro.
PROPOSTAS DO BRASIL PARA O MANDATO 2021-2022 NO CONSELHO DE SEGURANÇA DAS NAÇÕES UNIDAS
Após onze anos de ausência, o maior hiato de participação brasileira desde 1988, o Brasil obteve a possibilidade de exercer o mandato 2022-2023 após acordo diplomático de permuta com Honduras, que postergou sua postulação a ser membro não permanente do CSNU para 2033-2034[4]. Logo após a confirmação desse entendimento bilateral, iniciou-se processo de reflexão sobre a plataforma de diretrizes que viriam guiar a atuação brasileira no órgão no biênio 2022-2023 (Brasil 2021).
Prevenir e Pacificar
Na esteira da melhor tradição diplomática brasileira, o Brasil defendeu a importância dos mecanismos de solução pacífica de conflitos previstos no capítulo VI da Carta da ONU. Esses instrumentos, tais como mediação, negociação e arbitragem, são fundamentais para evitar que crises escalem para conflitos e para contribuir para a consolidação da paz em acordos monitorados pelas Nações Unidas. De acordo com o país, a construção de diálogo e a diplomacia preventiva deveriam ser privilegiadas antes de qualquer decisão sobre o uso da força.
Com o objetivo de suscitar esse debate, o Brasil promoveu, na presidência do CSNU, em outubro de 2023, debate aberto de alto nível intitulado Paz através do diálogo: a contribuição dos acordos regionais, sub-regionais e bilaterais para a prevenção e resolução pacífica de disputas. O aporte do Brasil e da maioria dos demais Estados-membros que participaram da discussão foi, justamente, apresentar diversas experiências alternativas de soluções de conflitos que não passaram pelo Conselho de Segurança. O debate foi presidido pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira.
Manutenção eficiente da paz
O Brasil defende, historicamente, que a manutenção da paz seja eficiente e que haja o aprimoramento das operações de manutenção da paz da ONU. Com base em sua larga experiência nesse tema, foram priorizados, tanto nas discussões conceituais quanto nas negociações dos mandatos específicos, três aspectos transversais das operações de manutenção da paz: treinamento; proteção e segurança dos capacetes azuis; e comunicação estratégica. Na primeira presidência brasileira do Conselho, em julho de 2022, o Brasil organizou debate temático de alto nível sob o título Operações de paz das Nações Unidas: o papel fundamental das comunicações estratégicas para a manutenção da paz eficiente. Na ocasião, o Conselho aprovou a Declaração Presidencial do órgão sobre o tema da Comunicação Estratégica dentro da missões da ONU, para, entre outras diretrizes, informar as populações locais sobre os objetivos e propósitos da sua presença e combater a desinformação e as fake news nos contextos de manutenção da paz.
Resposta humanitária e promoção dos direitos humanos
Para o Brasil, o Direito Internacional Humanitário (DIH) constitui arcabouço fundamental para proteção da dignidade humana dos combatentes e, sobretudo, dos mais vulneráveis em situações de conflito, como mulheres e crianças civis. A sua efetiva implementação garante a proteção necessária dos atores que executam ações humanitárias em zonas conflagradas. Para o Brasil, o DIH tem sido um referencial de primeira grandeza na negociação de mandatos das operações de paz. Na perspectiva brasileira, as ações autorizadas pelo Conselho devem estar alicerçadas no respeito ao DIH, não apenas na atuação de operações de paz ou forças multinacionais, como também na definição de regimes de sanções e da adoção de outras medidas coercitivas. Também na primeira presidência brasileira, em julho de 2022, o Brasil organizou debate aberto do Conselho sobre Crianças e Conflitos Armados, que tratou dessa dimensão específica da promoção dos direitos humanos e do respeito ao Direito Internacional Humanitário.
Promoção da agenda de Mulheres, Paz e Segurança
A Resolução 1325 (Nações Unidas 2000) do Conselho de Segurança trata do impacto dos conflitos nas mulheres, da participação feminina plena igualitária em soluções de conflito, na manutenção da paz, na construção da paz, na ajuda humanitária e nos contextos de pós-conflito. O Brasil tem buscado defender, de forma transversal, a agenda de Mulheres, Paz e Segurança (MPS) nos trabalhos e deliberações do Conselho. Nesse sentido, o Brasil tem sido cioso no tratamento da agenda de Mulheres, Paz e Segurança, tanto no contexto das missões de paz quanto nas negociações dos seus mandatos no Conselho, no combate ao abuso e à exploração sexual.
Em outubro de 2023, o Brasil teve a oportunidade de organizar o tradicional debate do Conselho de Segurança sobre a agenda de MPS, no mês de comemoração da aprovação da Resolução 1325. Houve participação expressiva dos Estados-membros, briefers da sociedade civil, e a reunião foi presidida pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, o que ilustrou a importância que o governo brasileiro atribui ao tema.
Coordenação com a Comissão de Consolidação da Paz
Desde o processo negociador que levou ao seu estabelecimento em 2005, o Brasil esteve comprometido e apoiou os trabalhos da Comissão de Consolidação da Paz (Peacebuilding Commission - PBC). Além disso, desde 2007, o país preside a sua configuração para a Guiné-Bissau. O Brasil sempre defendeu a abordagem integrada da manutenção e consolidação da paz e, em 2023, atuou dentro do Conselho de Segurança como coordenador informal entre o Conselho e a PBC, com o objetivo de incrementar a sinergia entre os dois órgãos. Procurou incentivar o aumento das “contribuições escritas” (written advices) da PBC ao Conselho e que o presidente da Comissão viesse, sempre que possível e oportuno, participar de suas reuniões. Defendeu ainda a necessidade de melhorar o papel de assessoramento da PBC ao CSNU, especialmente nas negociações de renovação e de encerramento de operações de manutenção da paz e missões políticas especiais. Nesse espírito de fomentar a cooperação entre os dois órgãos, o Brasil promoveu, em dezembro de 2023, reunião do Conselho de Segurança no formato Fórmula Arria[5] para discutir formas de aperfeiçoar o diálogo e o relacionamento entre os dois órgãos.
No início de fevereiro de 2024, logo ao fim do biênio 2022-2023, o Brasil assumiu a presidência da Comissão de Consolidação da Paz para mandato de um ano. Além dos trabalhos preparatórios para a revisão quinquenal prevista para 2025, das obrigações de conduzir a agenda da PBC e da presidência da configuração da Guiné-Bissau, é também ensejo brasileiro promover a atuação da Comissão junto aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPS). Ademais, é intenção do Brasil dar continuidade à perspectiva de incrementar a articulação e coordenação com o Conselho de Segurança.
Articulação entre organizações regionais
O Brasil tem encorajado o aprimoramento da colaboração e do planejamento conjunto entre a ONU, inclusive seu Conselho de Segurança, e organizações regionais e sub-regionais relevantes, em linha com as diretrizes da Carta das Nações Unidas. Também foi nesse espírito que o Brasil promoveu o debate temático de alto nível mencionado anteriormente, realizado durante a presidência de outubro de 2023. Em particular, no caso do continente africano, o mote “solução africana para problemas africanos” deve nortear as discussões do Conselho para questões relativas àquele continente.
O Brasil tem encorajado o aprimoramento da colaboração e do planejamento conjunto entre a ONU, inclusive seu Conselho de Segurança, e organizações regionais e sub-regionais relevantes, em linha com as diretrizes da Carta das Nações Unidas.
É fundamental, portanto, para o Brasil, a parceria entre o CSNU e a União Africana (UA) em temas de paz e segurança internacional. Foi nesse contexto, que o representante permanente do Brasil junto à ONU, embaixador Sérgio Danese, na qualidade de presidente do Conselho de Segurança, copresidiu a reunião anual desse órgão com o Conselho de Paz e Segurança da União Africana, em Addis Abeba, no início de outubro de 2023.
Por um Conselho de Segurança mais representativo e eficaz
A sétima prioridade atribuída pelo Brasil ao seu mandato se insere em uma perspectiva mais ampla e diz respeito à defesa de que o Conselho atue de forma eficiente, transparente e responsável, com métodos de trabalho aprimorados, que reflitam os propósitos e princípios da Carta da ONU e os interesses do conjunto dos Estados-membros. Durante o mandato 2022-2023, tornou-se ainda mais evidente que, diante da polarização e do reflexo das tensões geopolíticas, apenas avanços incrementais nos métodos de trabalho, embora importantes, são insuficientes por si só para tornar o Conselho de Segurança mais representativo, legítimo, transparente e eficaz. Essa prioridade converge com o argumento histórico do Brasil de que é urgente a reforma mais ampla do órgão, e mesmo da ONU, para atualizar sua composição e torná-la mais eficiente e representativa na configuração da ordem internacional do século XXI.
As próximas seções irão detalhar como tais prioridades se traduziram em ações concretas a partir de conjunturas críticas não previstas, como a invasão da Ucrânia e a crise em Gaza.
2022: O IMPACTO DA INVASÃO À UCRÂNIA NA AGENDA DE TRABALHO DO CSNU
Em fevereiro, a eclosão do conflito entre Rússia e Ucrânia condicionou toda a agenda prevista para o ano de 2022 no CSNU. A ação unilateral da Rússia e o uso do veto para evitar respostas coordenadas fizeram com que o próprio valor da Carta da ONU passasse a ser um tema central nas intervenções de muitos membros, embora alguns deles também a tivessem violado em um passado não tão distante. A invasão exacerbou o déficit de confiança entre os membros, dificultando a busca de pontos em comum – inclusive em temas que costumavam não causar objeção, como renovação de operações de paz, mecanismos de tribunais internacionais e mandatos de sanções –, e aumentou a atenção para questões de reforma.
De acordo com dados do Security Council Report[6], em 2022 o Conselho adotou 54 resoluções, três a menos do que em 2021. Das resoluções adotadas, 18, ou 33%, não foram unânimes, enquanto, em 2021, 16% das resoluções não foram unânimes. O órgão realizou 273 reuniões públicas em 2022, das quais 46 estavam relacionadas ao conflito na Ucrânia, incluindo seu impacto humanitário, o uso de armas químicas e a segurança das usinas nucleares. Em julho de 2022, durante a primeira presidência brasileira no biênio 2022-2023, estavam na agenda o exame das situações na Ucrânia, Síria, África Ocidental, Sahel, Colômbia, Líbano, Sudão, Oriente Médio, Haiti, Iêmen, Chipre, Haiti e República Centro-Africana, além do recebimento do relatório anual da Comissão de Construção da Paz.
A Rússia vetou dois projetos de resolução sobre a Ucrânia em 2022, um em fevereiro, condenando sua invasão, e um segundo em setembro, declarando a ilegalidade das consultas feitas em Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia. Outro veto da Rússia foi dado em conjunto com a China em um projeto sobre desarmamento e sanções à Coreia do Norte, reforçando a tendência dos dois países de coordenarem posições para evitar ações em seu perímetro regional (Valente & Albuquerque 2015).
Em termos procedimentais, os vetos da Rússia acenderam o alerta sobre a necessidade de a ONU desenvolver mecanismos para desbloquear paralisias no CSNU. Pela primeira vez em 40 anos, foi invocado o "Uniting for Peace", um instrumento utilizado sobretudo durante a Guerra Fria para encaminhar uma situação à Assembleia Geral quando os membros permanentes do Conselho estão em um impasse. Além disso, a Assembleia Geral aprovou resolução proposta por Liechtenstein para se reunir e discutir, no prazo de dez dias, um veto interposto por um membro permanente do CSNU (Nações Unidas 2022).
Desde o início do conflito, passou a haver um esforço sistemático, tanto dos P3 quanto da Rússia, para manter o tema com destaque na agenda do Conselho. Em geral, o padrão que se estabeleceu foi de que os países ocidentais, com algum membro não permanente, como Albânia ou México, solicitavam à presidência de turno a organização de um briefing do Conselho sobre algum aspecto ou evento relacionado ao conflito. Na sequência, a Federação Russa, igualmente, pedia a realização de outra reunião na qual teria a oportunidade de discutir o assunto do seu ponto de vista do conflito. O resultado dessa dinâmica, como os dados do Security Council Report confirmam, foi que o tema dominou a agenda do Conselho, sendo as reuniões um espaço para a “disputa de narrativas” entre os principais envolvidos, direta ou indiretamente, no conflito, inclusive em detrimento do tratamento de outras crises internacionais de grande envergadura e impacto, como as tensões no Sudão, que vieram a se agravar ainda mais em 2023.
De forma geral, a posição do Brasil no CSNU, tomando a questão ucraniana como exemplo, é uma boa ilustração da política externa do país. O Brasil votou favoravelmente às resoluções que condenavam a agressão russa e a consideram uma violação do direito internacional. O país, no entanto, manteve-se fiel a seus princípios diplomáticos e não cedeu a pressões para adotar um envolvimento mais ativo no conflito. Além disso, o Brasil sistematicamente criticou o uso de sanções unilaterais por conta de seu impacto sobre a população civil, em linha com a posição tradicional da diplomacia brasileira de apenas apoiar esse tipo de medidas que sejam aprovadas no âmbito multilateral. O Brasil também assinalou reconhecer que qualquer solução para a crise deve levar em consideração as legítimas preocupações de segurança das partes.
A análise preliminar do ano de 2022 nos mostra que, no Conselho de Segurança, o Brasil manteve as linhas gerais de sua política externa no tratamento do conflito entre Rússia e Ucrânia, apesar de, domesticamente, ter havido polarizações no governo e na sociedade. A constância no comportamento brasileiro no Conselho pode ser explicada por um conjunto de variáveis, a exemplo do papel "estabilizador" da diplomacia profissional (o que também podemos chamar de inércia burocrática ou path dependence), da distância entre os temas tratados no órgão e aqueles considerados prioritários pelo governo, e/ou foco do governo em outras instâncias da ONU, no qual havia maior interesse em agendas com enfoque em costumes e direitos. Exemplo são as posturas disruptivas no Conselho de Direitos Humanos, no qual o Brasil reverteu posicionamentos históricos sobre direitos reprodutivos e religião.
Mudanças também foram visíveis na Assembleia Geral, com destaque para os debates da IV Comissão, na qual o Brasil mudou padrão tradicional de votos, demonstrando convergência com o Estado de Israel e com os Estados Unidos, desvirtuando a defesa histórica e institucional que, entre outras questões, sempre propugnou a solução de dois Estados.
É exatamente a questão israelo-palestina que irá dominar a pauta do CSNU no final de 2023, no qual o retorno do Brasil ao seu padrão histórico de engajamento com o tema servirá de exemplo para a análise da política externa do primeiro ano do terceiro governo do Presidente Lula.
É exatamente a questão israelo-palestina que irá dominar a pauta do CSNU no final de 2023, no qual o retorno do Brasil ao seu padrão histórico de engajamento com o tema servirá de exemplo para a análise da política externa do primeiro ano do terceiro governo do Presidente Lula.
2023: NOVA PRESIDÊNCIA E OS DESAFIOS TRAZIDOS PELO CONFLITO EM GAZA
Em 2023, o CSNU foi novamente testado pela incapacidade de acordo entre seus membros. Para além da permanência de desafios do ano anterior, como os efeitos contínuos da invasão russa na Ucrânia e da resistência contra a renovação das operações de manutenção da paz da ONU (a exemplo do Mali e do Sudão) e dos regimes de sanções da ONU, a eclosão do conflito em Gaza colocou, novamente, a legitimidade do órgão em xeque.
O conflito na Ucrânia continuou a fazer parte das discussões do órgão, geralmente pela solicitação ad hoc de organização de reuniões pelos Estados-membros, com debates variando da responsabilidade sobre o conflito à liberdade religiosa e à situação das crianças, apesar de um certo esfriamento da pauta e da difícil dinâmica do Conselho. O Brasil manteve sua posição constante, voltando a defender a necessidade de primazia do direito internacional, mas sustentando a oposição às ações realizadas à margem do CSNU. O Brasil também passou a colocar mais ênfase na sua disposição de ser partícipe em esforços que levassem à convocação de uma conferência de paz.
Em 2023, a presidência brasileira do CSNU se iniciou de forma tranquila e auspiciosa, com a viagem do Conselho de Segurança para o diálogo anual com o Conselho de Paz e Segurança da União Africana, em Addis Abeba, na primeira semana do mês, e com a aprovação, no dia 2 de outubro, da resolução 2699, que acatou o envio de missão multinacional de apoio à segurança do Haiti, em razão do agravamento da já aguda crise socioeconômica, política e de segurança pela qual atravessa o país.
O ataque totalmente inesperado do Hamas a Israel, em 7 de outubro, adicionou carga de tensão e volume de trabalho a um mês já particularmente pesado na agenda regular do Conselho. O conflito tornou-se ponto central no último trimestre do ano. No dia 9 de outubro, a presidência brasileira convocou reunião de emergência para avaliar a questão. Na pauta, estavam consultas sobre alternativas para desescalar o conflito e implementar um cessar-fogo. Havia, ainda, a preocupação com a possível expansão do conflito para a Cisjordânia e o envolvimento de outros países, como o Líbano e o Irã.
No dia 12, o Brasil convocou um novo encontro, dessa vez presidido pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira. A solicitação principal era a proteção de civis e o estabelecimento de um corredor humanitário para Gaza, uma vez que o Egito já havia disponibilizado passagem pelo seu território. Nesse meio tempo, alguns membros permanentes do CSNU apresentaram publicamente visões conflitantes, o que, de resto, refletia a divisão profunda que existe dentro do Conselho. Enquanto os Estados Unidos defenderam o direito de Israel, seu aliado tradicional, à legítima defesa, a Rússia culpou os EUA pela escalada de tensões no Oriente Médio.
Nesse contexto de divergências, o CSNU se reuniu em 16 de outubro para votar dois projetos de resolução diferentes, um da Rússia e outro do Brasil. O projeto de autoria da Rússia demandava um cessar-fogo humanitário imediato, a libertação e evacuação segura de todos os reféns e civis, e a prestação desimpedida de assistência humanitária. Durante consultas fechadas, membros do Conselho, permanentes e não permanentes, pediram ao Brasil, na qualidade de presidente, para coordenar uma proposta alternativa, em uma aparente tentativa de reduzir a politização associada à iniciativa russa e aumentar as possibilidades de o Conselho adotar um resultado. Associado a esse pedido, está o reconhecimento do papel do país enquanto um articulador de consensos. Com isso, o projeto brasileiro, apresentado formalmente em 18 de outubro[7], mencionava “pausas humanitárias” para permitir o acesso de ajuda humanitária e incluía condenação ao Hamas e demandava a soltura dos reféns. Segundo muitos membros do Conselho, o projeto de resolução brasileiro foi o que alcançou melhor equilíbrio na linguagem para tratar das diversas dimensões complexas da questão.
O projeto russo não foi adotado porque não obteve o quórum mínimo de nove votos para a aprovação. Por sua vez, mesmo tendo obtido 12 votos afirmativos (Albânia, Brasil, China, Emirados Árabes Unidos, Equador, França, Gabão, Gana, Japão, Malta, Moçambique e Suíça) e duas abstenções (Rússia e Reino Unido), o projeto brasileiro também não prosperou, devido ao veto dos EUA. As justificativas norte-americanas foram de que o texto não mencionava explicitamente o direito de Israel à legítima defesa e também que, justo no dia em que a resolução estava sendo colocada à consideração do Conselho, o presidente Joe Biden estava em visita a Israel e procuraria chegar pessoalmente a um acordo para a questão dos reféns e sobre um cessar-fogo. Tal acordo não foi alcançado.
Na negociação do projeto de resolução brasileiro, houve efetivamente unidade do E10 em torno da proposta. Ainda que membros do grupo mantivessem relações bilaterais muito estreitas com os EUA que, por sua vez, resistiram a sequer se engajar na negociação do texto, o Brasil foi capaz de galvanizar o apoio de todos os membros não permanentes em torno de sua proposta, o que resultou na obtenção dos votos favoráveis de todos do grupo. Ademais, durante o próprio processo negociador, os E10 atuaram construtivamente em favor do texto apresentado pelo Brasil.
Ainda sob a presidência brasileira, o debate trimestral sobre a situação no Oriente Médio, incluindo a questão palestina, foi convertido em reunião de Alto Nível, realizada em 24 de outubro. O encontro contou com a participação de mais de vinte ministros e vice-ministros das Relações Exteriores. O ministro Mauro Vieira presidiu a sessão. Em seu discurso, afirmou que (Brasil 2023):
o uso recorrente do veto e as dificuldades para que o Conselho desempenhe suas funções adequadamente, como exemplificado durante a presidência brasileira, confirmam a necessidade de reforma para tornar o Conselho mais representativo, legítimo e eficaz (tradução nossa).
As tentativas seguintes de consensuar ações no Conselho encontraram obstáculo na discordância entre os membros permanentes. O Conselho realizou 14 reuniões entre outubro e o final de dezembro sobre o tema, além das reuniões mensais regulares sobre o assunto. Três projetos de resolução foram vetados: um pelos EUA, em outubro (o projeto brasileiro supracitado), um segundo pela China e pela Rússia (Nações Unidas 2023a), também em outubro, e um terceiro novamente pelos EUA, em dezembro. Os vetos de outubro de 2023 levaram o tema para a Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU), culminando na Sessão Especial de Emergência da Assembleia Geral sobre o Oriente Médio e na aprovação de duas resoluções, também da AGNU (Nações Unidas 2023b). Duas emendas da Rússia em um projeto de resolução sobre a situação de Gaza também não foram adotadas por falta de votos.
Em 15 de novembro, o Conselho conseguiu adotar uma resolução proposta inicialmente por Malta sobre as pausas humanitárias em Gaza, com foco especial nas crianças. Após intensas negociações, o Conselho adotou uma segunda resolução sobre Gaza, de autoria dos Emirados Árabes Unidos (EAU), em 22 de dezembro, que solicitava ao Secretário-Geral a nomeação de um Coordenador Sênior Humanitário e de Reconstrução, e que o Coordenador estabelecesse um mecanismo da ONU para acelerar as remessas de ajuda humanitária para Gaza.
Ainda sob a presidência do Brasil em outubro, o Conselho de Segurança adotou sete resoluções: duas sobre a situação no Haiti; duas sobre a situação na Líbia; uma sobre a situação no Saara Ocidental; uma sobre a situação na Colômbia; e uma sobre a situação na Somália. Nesse ponto, há a retomada de um argumento que, apesar de presente em outros governos, mostrou-se caro ao presidente Lula: a defesa inequívoca da reforma do Conselho de Segurança. O ponto central da reforma é a sua composição, para que haja uma adaptação à realidade do século XXI, mas também há a demanda de revisão de questões estruturais e normativas, como a limitação do poder de veto, o aumento da transparência dos métodos de trabalho e a maior articulação entre o CSNU e os demais órgãos da ONU – evitando, por exemplo, a "securitização" de temas que possam ser tratados em âmbitos mais representativos, como no caso da questão da mudança do clima.
CONCLUSÃO
As duas principais crises internacionais que dominaram os debates do Conselho de Segurança em 2023 prosseguem sem solução à vista em 2024. Parece, entretanto, que quaisquer encaminhamentos para os conflitos na Ucrânia e em Gaza dificilmente passarão pelo Conselho de Segurança. Os impedimentos hoje existentes para que o principal órgão multilateral responsável pela paz e segurança internacional delibere sobre as questões entendidas como as mais prementes na sua agenda reforçam o argumento de que o seu atual status quo tornou o seu processo decisório ineficaz e em descumprimento de suas obrigações consignadas na Carta das Nações Unidas.
Além da situação da Ucrânia e da guerra em Gaza, existem tantos outros focos de tensão no mundo, como a situação no Sudão, no Haiti e no Sahel, que deveriam requerer efetiva ação do Conselho de Segurança. Além disso, o Conselho deveria entabular discussões robustas sobre o futuro das operações de manutenção da paz, além de incrementar sua cooperação com as organizações regionais, particularmente com a União Africana. O encerramento das missões no Mali, na República Democrática do Congo e no Sudão requererá que os membros do Conselho estejam atentos aos processos de transição, o que também implicaria maior sinergia com a PBC. As eleições em ambientes frágeis, como o Sudão do Sul, também merecem atenção, assim como as contínuas crises humanitárias em muitas situações na agenda do Conselho. Negociações complicadas sobre sanções são prováveis e podem levar a mais ajustes nos atuais regimes de sanções, inclusive na República Centro Africana e em Darfur, Sudão.
Nada disso, entretanto, será suficiente para suprir seu déficit de legitimidade, em razão de não mais refletir a atual distribuição de poder na ordem internacional contemporânea. A ausência de atores como o Brasil, que podem dar contribuição efetiva para a paz e segurança internacional, que atuam de forma independente da polarização paralizante vigente entre os cinco membros permanentes e que podem construir pontes entre posições tão apartadas, terá efeitos negativos sobre o processo decisório do Conselho. Esses são alguns dos desafios com os quais a ONU terá que lidar de forma direta e objetiva ainda em 2024, quando acontecerá a realização da Cúpula do Futuro, que almeja promover uma reavaliação ampla dos projetos de reforma e revitalização da organização.
A despeito do contexto muito desafiador em razão das disputas geopolíticas, pode-se fazer balanço positivo da atuação do Brasil como membro não permanente. O Brasil foi capaz de atuar de forma propositiva, atenta e responsável no tratamento de todos os temas que foram levados à consideração do Conselho. Além disso, promoveu ações e debates em relação a todos os temas que foram estabelecidos como prioridades à atuação brasileira na plataforma de campanha para eleição para o mandato, conforme ilustrado na segunda seção deste artigo.
É preciso reconhecer, em particular, que, em 2023, o reengajamento do Brasil com a comunidade internacional e o empenho pessoal do presidente Lula de restabelecer as pontes com chefes de Estado e governo repercutiram de forma extremamente positiva na atuação brasileira no Conselho de Segurança…
É preciso reconhecer, em particular, que, em 2023, o reengajamento do Brasil com a comunidade internacional e o empenho pessoal do presidente Lula de restabelecer as pontes com chefes de Estado e governo repercutiram de forma extremamente positiva na atuação brasileira no Conselho de Segurança, em particular durante a presidência em outubro de 2023, quando eclode a crise sem precedentes entre Israel e Palestina.
O presidente, ainda, ressaltou, em diversas ocasiões, o papel central que o multilateralismo deve ocupar na política externa brasileira. Se o mandato no CSNU foi um primeiro indicativo do papel de protagonismo que o Brasil voltou a ocupar nos fóruns multilaterais, as expectativas para outros espaços que terão a liderança brasileira durante o mandato do presidente Lula, como o G20, o BRICS e a COP 30, são, sem dúvidas, renovadas e otimistas.
Notas
[1]O artigo foi escrito a título pessoal e não representa a posição oficial do Ministério das Relações Exteriores.
[2]São eles: 1946-1947, 1951-1952, 1954-1955, 1963-1964, 1967-1968, 1988-1989,1993-1994, 1998-1999, 2004-2005, 2010-2011 e 2022-2023.
[3]Dada a multiplicidade de temas sob exame do órgão, o CSNU adotou a prática de distribuir os temas de sua agenda entre os seus membros, que ficam responsáveis por acompanhar, compilar informações e redigir versões iniciais dos textos dos projetos de resolução. Há, historicamente, uma concentração nos P3, que são penholders (sozinhos ou em parceria com um E10) da grande maioria dos temas.
[4]Dentro do grupo regional pelo qual o Brasil é eleito para os órgãos da ONU – o Grupo da América Latina e Caribe (GRULAC) –, não tem havido, desde meados dos anos 2000, eleições competitivas para o Conselho de Segurança. Os países interessados em pleitear uma vaga para mandato de membro não permanente têm sido "indicados" pelo grupo regional. Honduras era o país cuja posição na lista previa a nomeação para o biênio, mas, após negociações com o governo brasileiro, cedeu a posição. Tal prática de “indicação” pelo GRULAC sem disputa, além de recente e não escrita, difere daquela de outros grupos regionais nos quais há, regularmente, eleições competitivas.
[5]As reuniões de Fórmula Arria, prática iniciada em 1992 pelo então embaixador venezuelano Diego Arria, não são reuniões formais do Conselho de Segurança. Elas são convocadas por iniciativa de um membro ou membros do Conselho de Segurança para ouvir as opiniões de indivíduos, organizações ou instituições sobre assuntos de competência do órgão. Como não há registro das opiniões expressadas no encontro, as reuniões permitem troca franca de opiniões e "sondagens" para verificar apoio ou objeção a determinada proposta.
[6]Ver: https://www.securitycouncilreport.org/monthly-forecast/2023-01/in-hindsight-the-security-council-in-2022.php.
[7]A Rússia havia proposto duas emendas ao projeto brasileiro, que tiveram de ser analisadas antes de o texto do Brasil ser integralmente levado à consideração do órgão.
Albuquerque, M.R.A. 2022. Brasil e Índia no Conselho de Segurança das Nações Unidas (1946-2012). Curitiba: Editora Appris.
Brasil. 2021. “As 7 prioridades do Brasil no Conselho de Segurança – 2022-2023.” Ministério das Relações Exteriores, 22 de setembro de 2021. https://www.gov.br/mre/pt-br/sites-antigos-retirados-do-ar/Brasil-CSNU/7-prioridades-do-brasil/as-7-prioridades-do-brasil-no-conselho-de-seguranca-2013-2022-2023.
Brasil. 2023. “End of the Brazilian Presidency of the United Nations Security Council”. Ministério das Relações Exteriores, 1 de novembro de 2023. https://www.gov.br/mre/en/contact-us/press-area/press-releases/end-of-the-brazilian-presidency-of-the-united-nations-security-council.
Garcia, E. V. 2011. O sexto membro permanente: o Brasil e a criação da ONU. Rio de Janeiro: Contraponto.
Nações Unidas. 2011a. “Resolução 1973 – S/RES/1973 (2011)”. Conselho de Segurança das Nações Unidas, 17 de março de 2011. https://digitallibrary.un.org/record/699777.
Nações Unidas. 2011b. “S/PV.6498 (2011)”. Conselho de Segurança das Nações Unidas, 17 de março de 2011. https://www.securitycouncilreport.org/atf/cf/%7B65BFCF9B-6D27-4E9C-8CD3-CF6E4FF96FF9%7D/Libya%20S%20PV%206498.pdf.
Nações Unidas. 2018. “Resolução 2417 – S/RES/2417 (2018)”. Conselho de Segurança das Nações Unidas, 24 de maio de 2018. http://unscr.com/en/resolutions/doc/2417.
Nações Unidas. 2000. “Resolução 1325 – S/RES/1325 (2000)”. Conselho de Segurança das Nações Unidas, 31 de outubro de 2000. https://www.gov.br/mre/pt-br/media/1325-2000-pt.pdf.
Nações Unidas. 2022. “General Assembly. Standing Mandate for a General Assembly Debate When a Veto is Cast in the Security Council. A/RES/76/262”. Conselho de Segurança das Nações Unidas, 28 de abril de 2022.
Nações Unidas. 2023a. “Gaza Crisis: Deadlock Deepens as Security Council Rejects Competing Resolutions by US and Russia”. UN News, 25 de outubro de 2023. https://news.un.org/en/story/2023/10/1142817.
Nações Unidas. 2023b. “Statement – UN General Assembly 10th Emergency Special Session on Illegal Israeli Actions in Occupied Jerusalem and the Rest of the Occupied Palestinian Territory: 40th Plenary”. Assembleia Geral das Nações Unidas, 12 de dezembro de 2023. https://www.un.org/en/ga/sessions/emergency10th.shtml.
Uziel, E. 2012. “O voto do Brasil e a condição de membro eletivo no Conselho de Segurança das Nações Unidas”. Política Externa 21 (1): 131-161. https://www.researchgate.net/publication/301497007_O_voto_do_Brasil_e_a_condicao_de_membro_eletivo_no_Conselho_de_Seguranca_das_Nacoes_Unidas.
Valente, L. & M. R. A. Albuquerque. 2015. “Da discrição ao ativismo: o novo papel da China no Conselho de Segurança da ONU”. Contexto Internacional 37 (2): 693-726. https://doi.org/10.1590/S0102-85292015000200012.
Viotti, M. L. R.; R. M. C. Dunlop & L. L. G. Fernandes (orgs.). 2014. O Brasil no Conselho de Segurança 2010-2011. Brasília: Funag.
Recebido: 11 de março de 2024
Aceito para publicação: 19 de março de 2024
Copyright © 2024 CEBRI-Revista. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença de Atribuição Creative Commons, que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o artigo original seja devidamente citado.