O artigo analisa três projetos referentes à organização do Itamaraty e da política externa ao longo do governo Bolsonaro: as reformas propostas na gestão de Ernesto Araújo, a articulação de ex-ministros pela “reconstrução da política externa brasileira” e o programa para uma política externa pós-Bolsonaro proposto por servidores do Ministério das Relações Exteriores. A análise de discursos e documentos revela como, apesar de traços democratizantes, as propostas privilegiam diplomatas como os “formuladores naturais” da política externa.
A melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se
– Antônio Francisco Azeredo da Silveira
Usualmente visto como fator estabilizador da política externa brasileira, sob a liderança de Ernesto Araújo o Itamaraty colocou-se no centro de um projeto de reorientação radical do papel internacional do país (Guimarães & Silva 2021; Saraiva & Costa Silva 2019; Casarões & Flemes 2019). Seguindo a tônica do governo de Jair Bolsonaro, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) passou a propagar visões consideradas “exóticas” à cultura diplomática brasileira.[1]
A postura “pouco diplomática” de Araújo, chanceler entre janeiro de 2019 e março de 2021, levou a imprensa a celebrar a intervenção de outros órgãos estatais em assuntos que tradicionalmente estariam sob sua tutela. Recebida com estranhamento, “chanceleres alternativos”, como a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o vice-presidente, Hamilton Mourão, evidenciariam um “declínio” da Casa de Rio Branco, na medida em que essa intervenção rompe com a imagem do Itamaraty como detentor de um quase monopólio sobre os processos decisórios da política exterior no país.
No campo acadêmico, essa imagem, associada a um insulamento da burocracia diplomática que teria predominado entre os anos 1960 e 1980, já vinha sendo abandonada. Analistas argumentam que, ao menos desde a redemocratização, predomina um padrão decisório comum às demais políticas públicas, com participação ativa de atores políticos e econômicos na política externa. Em comparação com o padrão insulado, hoje haveria uma ampliação da conexão externa com disputas domésticas, a diversificação dos participantes nos processos decisórios e a diminuição do controle de diplomatas sobre sua implementação (Lopes 2020; Milani & Pinheiro 2017). Ainda que esse padrão predomine há tempos, a conjuntura de readequação da posição do Itamaraty e de críticas à política externa bolsonarista fez emergir no debate público brasileiro uma questão subjacente: qual o modelo de gestão das relações exteriores — e do Itamaraty — mais apropriado para o momento político e diplomático atual?
Essa não é uma pergunta nova no debate nacional. Organizações da sociedade civil e acadêmicos (Silva & Klein 2017), empresários (FIESP 2014), políticos e administradores de diversas áreas (Jereissati 2016; Kalout & Degault 2017) mobilizam-se há décadas com o intuito de reformar o Itamaraty, influenciar os rumos da política externa brasileira (PEB) e “democratizá-la”.[2]
Em que pese a relevância desses debates históricos, optamos por analisar as propostas de reformulação da política externa levantadas ao longo do governo Jair Bolsonaro por um grupo específico: os diplomatas brasileiros. Para além da grande influência da burocracia diplomática na definição da política externa no país, o Itamaraty é, historicamente, muito reticente em relação a mudanças e tem dificuldades em lidar com a dinâmica inerente à democracia (Burges 2013; Lopes 2011), o que torna a discussão pública, por diplomatas, de propostas de reorganização diplomática particularmente interessante.
Seguindo esse recorte, ao menos três propostas de reformulação da diplomacia brasileira podem ser observadas: o próprio projeto bolsonarista de reforma, liderado pelo chanceler Ernesto Araújo; a revisão proposta por um grupo de ex-chanceleres; e o Programa Renascença.
O projeto de Araújo, apresentado em seus discursos como uma “nova política externa”, parte de uma crítica ao descolamento entre o Itamaraty e o cidadão comum, chegando a uma defesa radical da responsividade da política externa ao governo de ocasião. Dessa forma, a peculiar interpretação do chanceler sobre os desejos do povo passa a ordenar a PEB — da hierarquia de prioridades ao tipo de comportamento esperado dos servidores na condução da diplomacia. A autonomia diplomática é lida como obstáculo corporativista a ser combatido administrativamente, e a peculiar interpretação do chanceler sobre os desejos do povo passa a ordenar a PEB.
Em reação ao projeto bolsonarista, emergem, a partir do Itamaraty, duas articulações em defesa de outros modelos de gestão das relações exteriores. Em abril de 2020, atores de destaque na política externa em diferentes governos — os ex-ministros Rubens Ricupero e Hussein Kalout, e os ex-chanceleres Celso Lafer, Celso Amorim e Aloysio Nunes — criam uma articulação chamada "Grupo Ricupero". Na semana seguinte, o grupo ganha a adesão de outros três ex-chanceleres — Francisco Rezek, Fernando Henrique Cardoso e José Serra — e publica nos principais jornais do país um artigo clamando por uma “reconstrução da política externa brasileira”. No texto, defendem um retorno à tradição do Itamaraty, remetendo à ideia de política externa como política de Estado.
Meses depois, um grupo anônimo de servidores do ministério lançaria o Programa Renascença, projeto detalhado para a construção de uma “política externa pós-Bolsonaro”. Em meio às suas cem metas e dez objetivos, o programa propõe uma diplomacia mais aberta à sociedade e ao setor privado, embora ainda centrada no Itamaraty.
Este artigo se propõe a descrever essas três intervenções, interpretando-as como parte de um debate sobre a organização da política externa e do Ministério das Relações Exteriores (MRE) e sua relação com a sociedade e o sistema político brasileiro. Para isso, analisamos documentos, discursos e artigos de opinião[3] e, no caso da gestão Araújo, propostas e ações administrativas. Mais do que discutir o que postulam sobre o conteúdo e a orientação da PEB, o foco recai sobre propostas referentes à organização do sistema de relações exteriores e ao processo de produção da policy.
O artigo divide-se em quatro seções. Inicialmente, discutimos as transformações em curso na PEB desde a redemocratização. Em seguida, apresentamos sequencialmente os três projetos de reforma. Por fim, concluímos, ressaltando a relevância do debate sobre as relações entre a sociedade e o Itamaraty.
A relação do Itamaraty com a produção da política externa brasileira se transformou nas últimas décadas, tendo, na virada da década de 1980 para 1990, um ponto de inflexão. A visão tradicional acerca da atuação do Itamaraty pode ser sintetizada pela contribuição de Cheibub (1985): ao longo do tempo e a partir de fatores como o prestígio, a homogeneidade e a precoce estruturação da carreira diplomática, a burocracia diplomática brasileira fortaleceu-se no interior do Estado brasileiro. Essas características teriam permitido que o MRE, sobretudo a partir da década de 1960, galgasse a responsabilidade de não apenas implementar a política externa nacional, mas também formulá-la.
Em comparação com outras pastas, o Itamaraty é visto como um ministério insulado (Loureiro & Abrucio 1999), ou seja, afastado das pressões advindas do Congresso Nacional, dos demais ministérios e de grupos de interesse da sociedade civil. Ainda que em contraposição à ideia de accountability democrática, isso é frequentemente entendido como positivo, na medida em que garantiria uma política estável e que não fosse distorcida por interesses de ocasião ou particularistas (Lima 2000; Nunes 1997). Resguardando as funções de implementador e formulador da política externa brasileira no Itamaraty, portanto, teríamos uma política direcionada para o “verdadeiro” interesse nacional — uma política de Estado, e não de governo.
Na virada das décadas de 1980 para 1990, porém, três processos distintos contribuíram, cada um à sua maneira, para uma transformação nesse modelo: a diversificação temática do debate internacional com o fim da Guerra Fria; o aumento dos impactos econômicos das relações exteriores com a globalização; e a ampliação da mobilização e do acesso da sociedade civil ao sistema político a partir da redemocratização (Faria 2012). Como consequência, os atores interessados em política externa e envolvidos com questões internacionais multiplicaram-se e diversificaram-se (Milani & Pinheiro 2012), obrigando o Itamaraty a repensar tanto sua relação com a sociedade quanto sua posição no interior do Estado (Lopes 2011; Faria 2012).
Diante dessa pluralidade de atores e agendas, o processo decisório torna-se crescentemente complexo, sendo difícil “localizar com precisão o lócus institucional e o agente par excellence da decisão” (Milani & Pinheiro 2012, 18). Nesse cenário, a concepção de que a política externa deve ser analisada e discutida não como uma política de Estado, mas como uma política pública ganha força. A política exterior não estaria, portanto, “associada a supostos interesses nacionais autoevidentes e/ou permanentes, protegidos das injunções conjunturais de natureza político-partidária”, mas sim inserida nas dinâmicas próprias da politics (Milani & Pinheiro 2012, 24). Sendo assim, a responsabilidade pela política externa seria do governo que a implementa e, naturalmente, as visões do governante deveriam ser relevantes em sua formulação. Progressivamente, o modelo do Itamaraty autônomo e monopolista, ainda que nunca concretizado de forma completa (Farias & Ramanzini Júnior 2015), tornou-se insustentável, tanto de um ponto de vista empírico quanto normativo.
A conjuntura atual também é marcada por transformações no Estado brasileiro e no Sistema Internacional. No entendimento de Lopes (2020), o momento atual marca uma fase “pós-diplomática” da PEB: haveria uma desconexão entre os formuladores da policy e seus implementadores tradicionais, os diplomatas. Esse processo torna a diplomacia mais responsiva para com a sociedade, mas, por outro lado, a torna menos previsível. Nesse contexto, o Itamaraty teria se reposicionado como articulador intragovernamental, coordenando os interesses de diversos atores; em paralelo, a presidência passaria a ter objetivos internacionais mais definidos, que teriam primazia sobre os do MRE. A “indecisão” e a reticência a mudanças do Itamaraty (Burges 2013), em um contexto de transição do eixo de poder em direção à Ásia, por sua vez, facilitariam a ascensão de outros atores com posições mais assertivas, como o empresariado e setores da agropecuária (Lopes 2020).
Em 2 de janeiro de 2019, tomou posse como chanceler Ernesto Araújo. Relativamente desconhecido e promovido há apenas alguns meses a ministro de primeira classe, colecionou polêmicas. As críticas não vieram apenas por sua visão de mundo ultraconservadora, mas também por sua falta de experiência e suas medidas administrativas — flexibilizou os requisitos da hierarquia da carreira para a chefia de departamentos administrativos, aventando-se a nomeação de não diplomatas como assessores do ministro (Jornal Nacional 2019).[4]
Embora as excentricidades de seu discurso de posse tenham saltado aos olhos, já ali é possível vislumbrar como o projeto articulado por Araújo parte de uma crítica ao isolamento do Itamaraty em relação à sociedade. Essa crítica perpassa os vários discursos e artigos de Araújo ao longo de sua gestão, vinculando a ideia de política externa como política pública, o projeto bolsonarista de destruição do sistema político brasileiro e a ideia de uma política externa que expresse os “valores conservadores do povo brasileiro”.
Ficamos nos olhando um pouco no espelho e dizendo que nós somos o máximo, e dizendo que os governos não nos entendem, mas que o Itamaraty está acima dos governos. Nós nos tornamos diplomatas que fazem coisas que só são importantes para outros diplomatas (Araújo 2020, 23).
O projeto de Ernesto Araújo parte de uma crítica direta à forma como o MRE se relaciona com a sociedade. Para ele, o Itamaraty tornou-se “ensimesmado” e perdeu contato com o povo brasileiro, passando a viver em uma espécie de “câmara de eco”, ouvindo elogios do próprio Itamaraty e do establishment de política externa do Brasil e do mundo (Araújo 2020, 23, 89, 424–25, 450–51). “Apaixonado” por uma autoimagem, o MRE teria passado a fazer política não para o povo, mas para os demais diplomatas, desprezando os assuntos socialmente relevantes e preocupando-se mais em “ser convidado para as festas” (Araújo 2020, 177, 495–96).
Como resultado, ter-se-ia uma política inócua e uma instituição que se julga superior àqueles que deveria representar, entendendo que seu papel seria “disciplinar massas ignorantes”. Atuando como um “escritório da ONU no Brasil”, o Itamaraty veria a si mesmo como uma entidade acima dos governos e a política externa como algo autônomo, distinto das demais políticas públicas — o governo é que deveria se adaptar à política externa, não a política externa se adaptar aos governos (Araújo 2020, 23, 75, 78, 204, 493–94). É desse “ensimesmamento”, portanto, que derivaria a ideia da política externa como política de Estado.
Para Araújo, a própria noção de política de Estado é perniciosa, uma vez que o Estado se relaciona com a sociedade por meio do governo. Araújo reconhece a existência de interesses permanentes do Estado, mas enfatiza que as relações se dão entre governos, os quais, sendo “instrumentos da nação”, devem interpretar seus interesses a cada momento para agir. A ideia de um Itamaraty à parte, implementando princípios imutáveis, seria, nesse sentido, contra o processo democrático.
Para Araújo, a própria noção de política de Estado é perniciosa, uma vez que o Estado se relaciona com a sociedade por meio do governo. Araújo reconhece a existência de interesses permanentes do Estado, mas enfatiza que as relações se dão entre governos, os quais, sendo “instrumentos da nação”, devem interpretar seus interesses a cada momento para agir. A ideia de um Itamaraty à parte, implementando princípios imutáveis, seria, nesse sentido, contra o processo democrático.
A noção de política de Estado seria um processo de despolitização, petrificando determinadas posições e impedindo que a comunidade pense sobre seu lugar no mundo (Araújo 2020, 78–79; 2021, 145–47). Essa concepção remete à análise de Milani e Pinheiro (2013, 24–25) da política externa como política pública, que enfatiza que “mesmo as políticas públicas consideradas como políticas de Estado não nasceram como tais (...) [e] podem, igualmente, deixar de sê-lo”.
Embora defenda a necessidade de um povo que pense e discuta seus rumos, o chanceler mantém a ideia de um papel privilegiado ao Itamaraty: cabe ao governante interpretar a vontade popular, entendida não como maioria ou consenso, mas como “unidade viva e palpitante” (Araújo 2020, 496; 2021, 145–47). O apego a “posições petrificadas” e genéricas seria reflexo de uma fuga ao dever do diplomata de pensar, uma busca por soluções fáceis, evitando a tensão e contradição inerentes ao exercício de interpretar a vontade do povo. Nota-se, aqui, o peso dado ao diplomata: apesar das menções ao governante, é ao diplomata que cabe “formular a noção dos objetivos e para eles apontar” (Araújo 2020, 89, 180, 239; 2021, 145–47).
Nessa narrativa, ao abandonar a “tradição de se renovar”, a política externa tornou-se irrelevante, inerte e estática. Sem objetivos ou valores que a guiem, passou a pautar-se por um comercialismo sem resultados, voltada mais para a forma do que para o conteúdo.[5] Esse consenso seria mantido por “temor e preguiça” (temor das críticas internas e externas, de ousar, de pensar, de “ser quem se é”; preguiça por comodismo, inércia burocrática, corporativismo), sob pretexto de “manter as tradições” (Araújo 2020, 23, 77, 135, 153; 2021, 500).
Essa “falsa tradição”, sustentada por um consenso de diplomatas e comentaristas, mas distante dos sentimentos e anseios populares, teria perdido o sentido. Da mesma forma como o povo votou pela mudança e transformação do sistema na política doméstica, o sistema da PEB tradicional, que faz parte desse sistema político, deve ser transformado (Araújo 2020, 69, 71, 82, 91, 134–35; 2021, 450–51, 685). Apesar das críticas, a ideia de “falsa tradição” sugere a reivindicação de uma tradição “autêntica” (e.g., a renovação, o conservadorismo, o nacionalismo e mesmo a aproximação com os EUA), a qual, como costuma ocorrer no Itamaraty (Vedoveli 2010), é remetida à figura do Barão do Rio Branco.
É no sentido de efetivar os anseios de mudança que podemos enquadrar algumas das medidas administrativas de Araújo: a flexibilização da hierarquia na nomeação das chefias de departamento e a possibilidade de nomeação de não diplomatas para cargos relevantes no ministério, afinal “um sistema nunca se reformará a partir de dentro”. Conforme as tentativas de nomeação de Gerald Brant como assessor do ministro[6] e Eduardo Bolsonaro como embaixador sugerem, a medida permitiria aumentar a responsividade do ministério ao presidente, viabilizando o uso de estratégias mais diretas de politização como forma de controle da burocracia (Moe 1993).[7] A livre nomeação retiraria obstáculos corporativistas e facilitaria a “renovação”, “arejando os fluxos de carreira” (Araújo 2020, 22, 134). Vale notar que Araújo não é o primeiro a propor a flexibilização da hierarquia e da pertença à carreira diplomática para chefias administrativas. Combinando esses argumentos com a necessidade de uma maior capacidade técnica, Roberto Campos e Santiago Dantas defenderam essa medida na década de 1950 (Farias 2017).
Apesar dessas medidas, foi o uso em larga escala de expedientes associados à estrutura hierárquica e piramidal do MRE — o controle sobre o fluxo das carreiras a partir de promoções e remoções, punindo ou marginalizando críticos e premiando adesistas — que permitiu a Araújo executar seu projeto de redirecionar o Itamaraty (Oliveira 2022).
Na concepção de Araújo, a política externa deve responder diretamente às capacidades, prioridades e políticas do governo. É isso que garantiria a coerência da política externa e das demais políticas públicas, atuando em unidade como parte de um projeto nacional, não como algo externo ao país. É preciso atender a “tudo aquilo que acreditamos ser a vontade do povo como foi expressa nas urnas” (Araújo 2020, 84, 151, grifo nosso; 2021, 685).
Nesse sentido, o chanceler conclama os diplomatas a olhar pela janela e “sair à rua para o Brasil verdadeiro” — isto é, a romper, institucional e individualmente, o isolamento do Itamaraty em relação à sociedade. Por isso, propõe que se diversifiquem os contatos do ministério, ouvindo “ideias novas”, e destaca o papel das redes sociais como meio de comunicação direta (Araújo 2020, 23, 30, 94, 242; 2021, 507). Nota-se uma rejeição à mediação, destacada por Cooper (2019) como um dos desafios postos para a diplomacia por líderes populistas e recorrente nas críticas de Araújo à ideia de que o MRE governaria para o establishment. Ao observar reações e comentários nas redes sociais, o chanceler seria capaz de entender os temas relevantes, as preocupações das pessoas e suas visões de política externa.
Transparece, porém, uma visão do papel do ministro menos como “ouvinte” e mais como intérprete do povo, remetendo às tensões entre a postura “tutelar” do Itamaraty e o discurso democrático identificados por Lopes (2011) em falas de outros chanceleres. Para Araújo (2020, 88; 2021, 503), o povo brasileiro tem uma identidade muito clara: é profundamente conservador, marcado pela fé cristã e pertencente à “aventura da civilização ocidental”. O tradicional pragmatismo diplomático responderia aos “formadores de opinião materialistas”, ignorando as “claras opções morais” da sociedade. Se “para o povo brasileiro a fé está presente em tudo que se faz”, uma política externa que responda ao povo deveria levar seus valores conservadores e fé cristã em consideração (Araújo 2020, 88, 104, 143–44, 496).
É nesse sentido que Araújo (2020, 19) propõe que o Brasil volte a “ser ele mesmo”. A política externa deveria responder à identidade do Brasil — refletir o caráter conservador, ocidental e cristão de seu povo, independentemente de eventuais divergências de minorias. Nesse sentido, não seria a eleição de Bolsonaro que legitima a defesa de valores ultraconservadores na política externa, mas sim a “redescoberta” pelo povo brasileiro de seus próprios valores e a “retomada” do governo por esse povo, da qual a eleição de Bolsonaro seria mera expressão (Araújo 2021, 685).
Em reação à gestão de Ernesto Araújo, não tardou a emergir um “novo consenso” na comunidade estabelecida de política externa: o rechaço à política externa bolsonarista, com seus valores excludentes, narrativas delirantes e diplomacia conflituosa. A expressão mais clara dessa unanimidade se deu pela articulação de ex-chanceleres e figuras de destaque na história da política externa brasileira na Nova República, materializada no artigo conjunto A reconstrução da política externa brasileira, publicado nos jornais de maior circulação do país e assinado por seis ex-chanceleres e dois ex-ministros de Estado (Cardoso et al. 2020).
Em reação à gestão de Ernesto Araújo, não tardou a emergir um “novo consenso” na comunidade estabelecida de política externa: o rechaço à política externa bolsonarista, com seus valores excludentes, narrativas delirantes e diplomacia conflituosa.
O autodenominado “Grupo Ricupero” — nome dado como forma de desagravo ao embaixador Rubens Ricupero, atacado anteriormente por Araújo — emergiu de um evento que uniu, no final de abril de 2020, os ex-chanceleres Aloysio Nunes, Celso Amorim e Celso Lafer, além dos ex-ministros Rubens Ricupero e Hussein Kalout, com o intuito de discutir a política externa do governo Bolsonaro (Estado de São Paulo 2020). Unânimes no repúdio às políticas perseguidas por Araújo, identificaram pontos de convergência e a necessidade de, independentemente de divergências políticas, trabalhar em uma “política de reconstrução” capaz de devolver a “racionalidade” ao Itamaraty. Na semana seguinte, com a adesão de outros três ex-chanceleres — Francisco Rezek, Fernando Henrique Cardoso e José Serra — o grupo publicou um artigo propondo caminhos para essa reconstrução.
Nesse contexto de união entre atores de diferentes colorações políticas e partidárias, não surpreende que seja enfatizada a ideia de um “mínimo denominador comum” em torno do qual a política externa brasileira deveria ser construída. O artigo ressalta o simbolismo dessa condenação unívoca e procura enquadrar suas críticas à política bolsonarista a partir de “interesses amplos” da sociedade, que conformariam uma política de Estado — em particular, mobilizando a ideia de que a Constituição Federal estabelece limites às políticas de governo.
Nesse sentido, podemos pensar o artigo como uma forma de, sem discutir abertamente, rebater o argumento de Araújo de que a política externa deve responder diretamente à mudança de governo e de que as críticas a ela não respeitariam o processo democrático. A questão central não seria relativa à liberdade do governante de implementar seu programa: os princípios constitucionais o limitam e, portanto, certas políticas correspondem a uma violação dos acordos básicos que fundam o Estado brasileiro. Mesmo quando se constroem as críticas mais substantivas (apontando que a orientação adotada é, mais que ilegal, ruim e danosa), a ênfase recai sobre o fato de os custos serem “de difícil reparação”.
Há, nitidamente, um cuidado na escrita do texto, que visa separar aquilo que corresponde ao “caráter permanente” da política externa daquilo que seria legítima expressão dos valores de um governante, evitando uma acusação de que os autores trabalhariam em uma chave tecnocrática ou antidemocrática. Esse esforço reflete a própria composição do grupo, composto tanto por políticos como por diplomatas de carreira, participantes de variados governos. Os consensos construídos de forma propositiva assumem, assim, a forma de um “programa mínimo”, uma “plataforma básica” para a reconstrução do Itamaraty após a política desestruturadora de Araújo.
Efetivamente, no evento da Brazil Conference, os autores do artigo reconhecem suas divergências, mas identificam pontos em comum que permitem que essas divergências sejam compreendidas como variações legítimas, em oposição àquelas operadas por Bolsonaro. Para além do respeito aos princípios da Constituição e da boa prática diplomática, Celso Amorim destaca que “todos nós partimos daquilo que poderia se dizer que é um discurso racional, com o qual é possível debater. (...) há uma linha de continuidade(...) Eu posso discordar de algumas coisas, mas não me envergonho de nada” (Estado de São Paulo 2020).
Esse programa mínimo, como apontado, consiste na condenação da política de Araújo com base nos princípios constitucionais e na defesa de um patrimônio do Itamaraty — uma tradição concebida aqui de forma ampla, focada mais na forma do que no conteúdo da política externa. Dessa maneira, o que chamamos aqui de “tradição do Itamaraty” não é concebido em termos de posições e linhas seguidas pelo país em sua orientação internacional, mas sim como uma forma básica de se construir e desenvolver uma política externa efetiva: com racionalidade, de forma pragmática, equilibrada, construtiva e moderada, tendo por base a “realidade efetiva das coisas”. O governo Bolsonaro romperia com esses padrões não só por calcar ações em delírios conspiracionistas, mas também por desobedecer à técnica diplomática básica, gerando “antagonismos gratuitos”.
As críticas mais diretas ao conteúdo, isto é, à orientação dada por Araújo à política externa — como o alinhamento e subordinação aos EUA de Donald Trump — se dão a partir dos princípios constitucionais, em particular o da independência nacional. Questões mais pontuais, como a temática ambiental e a atuação na pandemia, são levantadas a partir da ideia dos “custos de difícil reparação”. As tradições de pragmatismo e autonomia e a “vocação universalista” da PEB aparecem, nesse sentido, como representantes de um “amplo consenso” na sociedade brasileira.
Apesar de não discutir diretamente o problema da relação entre MRE e sociedade, o Grupo Ricupero parece operar a partir da noção de que a política externa deve mobilizar amplos consensos sociais. Mesmo que não haja um consenso completo (prioridades, ênfases e iniciativas variam conforme o governo), a política exterior “precisa contar com amplo respaldo na opinião pública e a colaboração na sua concepção de todos os setores da sociedade”[8] (Cardoso et al. 2020, grifo nosso), desenvolvendo medidas com relativa continuidade em um ambiente de racionalidade. Isso é contrastado com a política bolsonarista, que, ao contrário do discurso oficial, não trabalharia para a sociedade brasileira, mas sim a interesses facciosos, estando voltada para animar uma base militante extremada.
Na medida em que os ex-chanceleres procuram organizar os limites da discricionariedade do governante na política externa — e, por isso, mais que às “tradições” e ao “prestígio da diplomacia brasileira”, recorre-se à Constituição —, apelam também aos demais poderes constituídos do país. Afinal, se o presidente efetivamente detém a legitimidade de um mandato popular, também o Judiciário e o Legislativo têm sua legitimidade para atuar no tema.
Nesse sentido, conclamam que Judiciário e Congresso Nacional exerçam seu dever e o “papel que lhes cabe no controle de constitucionalidade das ações diplomáticas” — isto é, que enfrentem o desmonte promovido por Araújo e Bolsonaro a partir de sua própria legitimidade.[9] Efetivamente, o Senado parece ter tomado esse papel de controle para si, atuando no bloqueio à nomeação de Eduardo Bolsonaro à Embaixada de Washington e pressionando pela demissão de Ernesto Araújo (Lopes, Carvalho & Santos 2022). Significativamente, em evento que reuniu o grupo na Brazil Conference 2021, a senadora Kátia Abreu foi incluída entre os palestrantes e, em uma brincadeira de Hussein Kalout, nomeada “presidente do Grupo Ricupero” (Brazil Conference 2021).
No dia 8 de setembro de 2020, o Instituto Diplomacia para Democracia realizou o lançamento oficial do Programa Renascença, em um evento do qual participaram Celso Amorim e Rubens Ricupero. Apesar da presença dos ex-ministros, contudo, o Programa Renascença não é mera reprodução do Grupo Ricupero. De acordo com o Instituto, o Programa é resultado da conjugação de ideias de vários diplomatas, servidores do Itamaraty, acadêmicos e especialistas. Mais do que uma obra fechada, o Programa apresenta-se como um ponto de partida para fomentar o debate público. Efetivamente, após a sua publicação, o Instituto inaugurou um ciclo de debates públicos organizados por acadêmicos e membros da sociedade civil.
Em sintonia com as transformações contemporâneas, o Programa reconhece como pressuposto básico a ideia de que a política externa é uma política pública, não tendo fim em si mesma e devendo apoiar a consecução de políticas nas demais áreas do governo. Entretanto, o Renascença circunscreve o Itamaraty como foco exclusivo de suas propostas, abdicando de pensar o sistema de relações exteriores em uma chave mais ampla (Diplomacia para Democracia 2020a, 1).
O Programa Renascença propõe não apenas um debate crítico acerca da política externa executada pelo governo Bolsonaro, como também a construção de um projeto a ser implementado em momento futuro. No entender dos autores, porém, um projeto como esse só pode ser pensado a partir da constatação dos “graves danos à reputação e aos interesses do Brasil” (Diplomacia para Democracia 2020b) causados pelo governo. Defende-se que a política externa bolsonarista estaria “descolada (...) dos interesses concretos do país, dos princípios constitucionais e de noções básicas de racionalidade e decoro” (Diplomacia para Democracia 2020c, 3). O próprio nome “Renascença”, nessa lógica, deve-se à constatação de que a política externa deve renascer após Bolsonaro, resgatando tais valores.
O Programa Renascença propõe não apenas um debate crítico acerca da política externa executada pelo governo Bolsonaro, como também a construção de um projeto a ser implementado em momento futuro. (...) Se, por força de suas divergências ou estratégia de debate, o Grupo Ricupero articulou um programa mínimo, o Renascença reflete o esforço de construir um programa robusto.
Se, por força de suas divergências ou estratégia de debate, o Grupo Ricupero articulou um programa mínimo, o Renascença reflete o esforço de construir um programa robusto. Ressaltando seu caráter propositivo, o Programa evita elencar suas críticas à política bolsonarista. Contudo, quando observamos as metas elencadas ao longo do documento, percebemos que algumas são contraposições diretas às ações administrativas de Araújo e às políticas de Bolsonaro em relação à China, aos Estados Unidos e à Venezuela (Diplomacia para Democracia 2020a, 10–11).
O Programa indica que uma das saídas seria reavivar as “melhores tradições” da política externa nacional. O adjetivo “melhores” aqui é significativo: o Programa Renascença lida com a tradição de forma crítica, e várias das propostas observadas em seu documento fundador atacam diretamente questões estabelecidas no Itamaraty há muito tempo, buscando “modernizá-lo”.
As principais críticas e propostas nesse sentido dizem respeito não a posturas de política externa, mas a questões internas e administrativas. Rechaçando argumentos referentes à excepcionalidade da política externa, o Renascença propõe a “normalização” do MRE no interior da administração pública, atualizando a gestão e os processos de trabalho e obedecendo aos princípios de impessoalidade e publicidade (Diplomacia para Democracia 2020a, 4).
O Programa levanta, ainda, discussões sobre ponto frequentemente ignorado nas discussões de política externa: as carreiras no interior do MRE.
Um primeiro ponto destacado diz respeito à defesa de medidas visando ao aumento da representatividade de gênero e raça no Itamaraty, um déficit recorrentemente apontado no debate público e acadêmico (Gobo 2018; Velasco Molina 2017).
É relevante, também, a atenção dispensada às carreiras de Oficial e Assistente de Chancelaria, que ocupam historicamente posições subalternas no ministério, defendendo a possibilidade de que chefiem divisões administrativas e consulares. Nesse sentido, ainda que não abra tais posições a atores externos ao ministério, aproxima-se da proposta de Ernesto Araújo, flexibilizando a hierarquia e a primazia dos diplomatas no órgão.
A carreira diplomática é também objeto de discussão. Defende-se um sistema transparente, objetivo e automático para promoções e remoções. O objetivo seria tornar a ascensão menos arbitrária e mais clara, contornando eventuais perseguições e dando mais autonomia aos diplomatas em relação a seus superiores hierárquicos, hoje responsáveis pelas promoções. Como ressalta Oliveira (2022), essas medidas facilitariam a renovação do pensamento no interior do ministério, reduzindo o conservadorismo institucional criticado por Burges (2013).
Enquanto Ernesto Araújo defende uma política externa alicerçada em sua interpretação da "alma do povo”, o Programa Renascença defende uma série de ações para institucionalizar a aproximação entre o MRE e a sociedade. Nessa lógica, propõe que a definição do interesse nacional seja entendida como um processo, cabendo ao MRE situar-se como “articulador de redes, a fim de ampliar a coerência e a intersetorialidade das ações nas várias áreas” e ampliar “a permeabilidade do Ministério a demandas sociais que requeiram ação externa do Estado” (Diplomacia para Democracia 2020a, 3).
Nesse sentido, são elencadas uma série de medidas, como consultas institucionalizadas a empresas e sindicatos, e a criação do Conselho Nacional de Política Externa (CONPEB) — proposta impulsionada na década de 2010 por ONGs, movimentos sociais e acadêmicos agrupados no GR-RI (Grupo de Reflexão sobre Relações Internacionais) e aventada durante a gestão de Antonio Patriota no MRE, entre 2011 e 2013 (Silva & Klein 2017).
Apesar das propostas de institucionalização da participação da sociedade civil organizada, a participação pela via eleitoral parece ser desconsiderada. Em meio à centena de metas elencadas pelo Programa, muitas seriam, na realidade, diretrizes presidenciais (como, por exemplo, a escolha dos acordos internacionais que o país deve ou não assinar). De certo modo, isso é esperado em um programa que defende posições substantivas sobre os rumos da política externa. Não obstante, o fato de essas posições aparecerem associadas a um esforço de “manter-se circunscrito ao Ministério das Relações Exteriores” e às “melhores tradições” do Itamaraty sugere certa permanência da visão do MRE como formulador natural da política externa.
De acordo com a célebre frase do chanceler Azeredo da Silveira, “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se”. Embora a frase ressalte a importância da mudança, subentende-se que o agente das transformações no ministério deve ser o próprio ministério. As drásticas mudanças implementadas por Ernesto Araújo durante seu período como chanceler tiveram grande impacto, motivando que ex-ministros, diplomatas e servidores do MRE se propusessem a indicar novos caminhos. Embora a política bolsonarista tenha servido de estopim para esse debate, não podemos afirmar que a “renovação” se restringe aos pontos modificados por Araújo. A tradição do Itamaraty e sua relação com a sociedade ocupam espaço central nas propostas. Cada qual à sua maneira, os três projetos pensam em renovar essa relação. De uma ou outra forma, também cada uma das propostas garante um lugar privilegiado ao Itamaraty, seguindo a máxima de Silveira.
De acordo com a célebre frase do chanceler Azeredo da Silveira, “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se”. Embora a frase ressalte a importância da mudança, subentende-se que o agente das transformações no ministério deve ser o próprio ministério. (...) Cada qual à sua maneira, os três projetos pensam em renovar [a relação do MRE com a sociedade]. De uma ou outra forma, também cada uma das propostas garante um lugar privilegiado ao Itamaraty, seguindo a máxima de Silveira.
Após a demissão de Ernesto Araújo e a posse de Carlos França, de estilo mais contido, os debates sobre a gestão da política externa no país esfriaram. Ainda que o conteúdo — os rumos da política externa — siga sendo discutido, há pouca reflexão sobre a forma — a organização do MRE, sua relação com a sociedade, a presidência e demais órgãos públicos. Os desafios de adequação às transformações no cenário internacional e o déficit de representatividade do Itamaraty se mantêm, mas as propostas, críticas e análises seguem, ainda, fortemente dominadas pela influência do Itamaraty.
No governo que se inicia, a tensão entre uma transformação mais profunda, como a proposta no Programa Renascença, e a reconstrução da tradição, defendida pelo Grupo Ricupero, emergiu ainda durante a transição de governo e deve sobreviver caso não ocorram reformas no sistema. A composição inicial do Grupo de Trabalho (GT) de Relações Exteriores foi criticada pela ausência de representantes da sociedade civil, tendo sido posteriormente expandida para incluir parlamentares e membros vinculados à academia, a ONGs e aos movimentos sociais.[10] Em que pese a realização de encontros sobre a ampliação da participação social na área de Relações Exteriores, nenhuma proposta sobre o tema foi incluída no relatório final da transição de governo (Gabinete da Transição, 2022a; 2022b).
A escolha de Mauro Vieira como ministro frustrou expectativas de movimentos que, como o Renascença, defendiam a nomeação de uma mulher como chanceler, mas a nova gestão incorporou as críticas sobre a necessidade de diversidade no ministério. O novo chanceler destacou em sua posse o problema da sub-representação feminina, negra e indígena no MRE (Vieira 2023) e nomeou mulheres para dois dos principais postos do ministério — a Secretaria-Geral e a Embaixada em Washington.
Na posse, Vieira sinalizou também preocupação com questões organizacionais, enfatizando a proteção das “prerrogativas constitucionais do Itamaraty” por meio da valorização da memória do ministério e da hierarquia como reflexo da experiência na carreira. Nesse sentido, a gestão aponta para uma organização da política externa calcada nas tradições do MRE, que conferem aos diplomatas — em particular àqueles do topo da hierarquia — um lugar privilegiado de ação.
Esse caminho, porém, demanda cautela. A estrutura corporativa da diplomacia brasileira cria pontos cegos e a torna particularmente avessa a alguns tipos de mudança, sobretudo àquelas que dizem respeito à sua própria organização. Em discussões sobre a estrutura da carreira, a autonomia do MRE, ou seu papel no sistema de política exterior, por exemplo, seria ingênuo tratar diplomatas como árbitros neutros ou isentos de interesses, ainda que sejam certamente bem informados e interlocutores centrais sobre o tema.
Nesse sentido, é importante que a diplomacia reconheça suas próprias limitações, mas é ainda mais importante que a sociedade civil, o Congresso e outros atores governamentais e políticos se envolvam ativamente na discussão não só do conteúdo da política externa, mas da própria organização do sistema de relações exteriores. Somente com maior participação seremos capazes de criar instituições que garantam a responsividade democrática, evitando a captura da política externa por interesses particularistas, sejam eles privados, políticos ou corporativistas.
Notas
[1] Ainda que haja uma tendência a ressaltar a dimensão de mudança na política externa de Bolsonaro, há também continuidades significativas em relação a governos anteriores e características estruturais da diplomacia brasileira (Moreira 2020; Oliveira 2022; Lopes, Carvalho & Santos 2022).
[2] Uma das mais longevas propostas nesse sentido é a da institucionalização da participação social nessa área de políticas por meio de um Conselho Nacional de Política Externa (Silva e Klein 2017). Outra discussão recorrente diz respeito à separação entre estruturas voltadas ao comércio exterior e à corporação diplomática, conforme adotada em países como México e EUA (para um exemplo recente, Folha de S. Paulo 2019).
[3] Foram analisados todos os discursos e artigos de Ernesto Araújo compilados pela FUNAG (Araújo 2020; 2021). Para as intervenções dos ex-chanceleres, foram consultadas, além do artigo de opinião (Cardoso et al. 2020), gravações de debates ocorridos entre 2020 e 2021 (Estado de São Paulo 2020; CEBRI 2020; Brazil Conference 2021). O Programa Renascença foi analisado a partir do documento de propostas, de seu press-release e do texto inicial da coluna Diplomacia para Democracia no UOL (Diplomacia para Democracia 2020a; 2020b; 2020c). Tendo em vista o foco na visão de diplomatas, não foram incluídos os debates públicos e livros subsequentes organizados em torno do Programa.
[4] Apesar da discussão na imprensa, Araújo não chegou a nomear atores externos ao Itamaraty para assessorá-lo. Para um detalhamento das medidas organizacionais, ver Brasil (2019).
[5] Araújo (2020, 239) destaca que afirmar “queremos diplomacia” não significa nada, pois “diplomacia não proporciona um objetivo”. O resultado seria “uma política que multiplicava por um. Não fazia muita diferença [para o Brasil]” (2021, 326).
[6] A possibilidade de nomeação de assessores externos voltou à baila em junho de 2020, com rumores da nomeação de Gerald Brant, empresário associado a Steve Bannon, como assessor especial (Éboli 2020).
[7] Não queremos, com isso, insinuar que as nomeações no Itamaraty não sejam politizadas, apenas ressaltar que o fato de as nomeações estarem restritas a membros da carreira diplomática limita seu potencial como estratégia.
[8] Ainda que não seja possível aferir com precisão o que os autores entenderiam como a forma adequada de participação da sociedade, a escolha do termo “colaboração” sugere que o corpo diplomático tem certa primazia no processo de formulação.
[9] Coincidência ou não, na semana anterior à publicação do artigo, o Supremo Tribunal Federal suspendera uma ordem de Araújo pela expulsão de representantes da Venezuela no Brasil. Lopes e coautores (2022) detalham essa e outras medidas do Judiciário e Legislativo nesse contexto.
[10] O primeiro anúncio do GT incluía sete membros: Aloysio Nunes, Celso Amorim, Audo Faleiro, Cristovam Buarque, Pedro Abramovay, Romênio Pereira e Mônica Valente. O GT foi posteriormente expandido a vinte membros, ampliando a quantidade de mulheres e incluindo representantes da sociedade civil, mas o grupo inicial, mais restrito, se manteve na coordenação dos trabalhos.
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Recebido: 16 de janeiro de 2023
Aceito para publicação: 2 de fevereiro de 2023
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