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Entrevistas

"O sectarismo que testemunhamos nos últimos anos representa a negação da diplomacia"

Mauro Vieira conversou com os editores da CEBRI-Revista
Mauro Vieira. Fonte: Gabinete do Ministro das Relações Exteriores.

Nascido em Niterói, RJ, Mauro Vieira graduou-se em Direito pela Universidade Federal Fluminense (1973) e Diplomacia pelo Instituto Rio Branco (1974), além de doutorado honoris causa em Letras pela Universidade de Georgetown, em Washington DC (2014).

No Ministério das Relações Exteriores, o embaixador Vieira atuou como coordenador de Atos Internacionais; assessor do secretário-geral; assessor do ministro das Relações Exteriores; chefe de gabinete do secretário-geral; e chefe de gabinete do ministro das Relações Exteriores.

O embaixador Vieira também trabalhou no Ministério da Ciência e Tecnologia, como secretário-geral adjunto de Ciência e Tecnologia, e no Ministério da Previdência e Assistência Social, como secretário nacional de Administração do Instituto de Previdência Social.

No exterior, atuou como segundo-secretário da embaixada do Brasil em Washington D.C. (1978-1982); na Missão Permanente do Brasil junto à Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), em Montevidéu (1982-1985), como primeiro-secretário; na embaixada do Brasil na Cidade do México (1990-1992), como conselheiro; e na embaixada do Brasil em Paris (1995-1999), como ministro conselheiro.

Foi embaixador do Brasil na Argentina (2004-2010); embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América (2010-2015); representante permanente do Brasil nas Nações Unidas em Nova York (2016-2020) e embaixador do Brasil na Croácia (2020-2022). Foi ministro das Relações Exteriores do Brasil entre 2015 e 2016.

Foi indicado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para desempenhar a função de ministro das Relações Exteriores do Brasil, a partir de 1º de janeiro de 2023. (Fonte: Itamaraty).  

Seguem trechos da entrevista concedida por escrito aos editores da CEBRI-Revista. 

 

Em seu discurso de posse, Vossa Excelência sustentou que a ideologia da política externa para a América do Sul seria a “ideologia da integração”. No entanto, em recente viagem de Lula à Argentina e Uruguai, o governo uruguaio reforçou o interesse de negociar um acordo de livre-comércio em separado com a China, o que é proibido pelas regras do Mercosul. É possível que a paralisação do Mercosul tenha forçado os países menores a buscar outras alternativas. Como Vossa Excelência enxerga a posição uruguaia e como evitar que Montevidéu se veja forçada a escolher entre Mercosul e China?

Mauro Vieira: Ao falar em “ideologia da integração”, busquei retomar princípios caros à política externa brasileira que foram deixados de lado nos últimos anos, é disso que se trata. Esses fundamentos foram substituídos, na gestão anterior, por retórica agressiva e por atitudes até infantis em relação a países cujos governantes tinham orientação política e ideológica distinta à do governo anterior. A integração é o objetivo prioritário, e eventuais divergências devem ser tratadas por meio da política e da diplomacia. O sectarismo que testemunhamos nos últimos anos representa a negação da diplomacia, é a antidiplomacia e nada tem a ver com a tradição brasileira. A integração, o foco no interesse nacional e o diálogo com os parceiros voltam, portanto, a ser elementos prioritários da política externa brasileira.

O sectarismo que testemunhamos nos últimos anos representa a negação da diplomacia, é a antidiplomacia e nada tem a ver com a tradição brasileira. 

A visita do presidente Lula a Montevidéu é um bom exemplo dessa volta às boas tradições de diálogo. Como todos sabemos, o presidente Lacalle Pou tem uma orientação político-ideológica distinta, o que em nenhum momento impediu um diálogo franco e de alto nível, inclusive na questão do Mercosul. A negociação dos países do Mercosul como bloco é um dos pilares do Tratado de Assunção, e a posição do Brasil é clara a esse respeito, inclusive com vistas a um futuro diálogo com a China. E não se trata de uma posição somente do Brasil e da Argentina. Há poucos dias estive em Assunção, e o Paraguai também considera fundamental que as negociações externas do Mercosul continuem a ser conduzidas como bloco, como prevê o tratado. Além disso, na visita a Montevidéu o presidente Lula argumentou, com razão, que estamos na reta final de uma negociação de mais de 20 anos com a União Europeia e que o mais prudente agora será concluir esse acordo antes de abrir outra negociação de fôlego com outra potência comercial, como a China. O próprio presidente Lula indicou que há interesse nessa possível negociação do Mercosul sobre a China. Ambos os presidentes mantêm aberto o canal de diálogo não somente sobre o assunto, mas também sobre a agenda bilateral, e prova disso foi a visita de três ministros uruguaios a Brasília no dia 7 de março. Assim se dá forma a esse trabalho em favor da integração. O tempo do sectarismo é uma página virada, felizmente.

Os presidentes Lula e Lacalle Pou concordaram quanto à necessidade de revitalização do Mercosul e de seus mecanismos. Mas é exagerado falar em paralisia. E quando se exagera ao falar em uma suposta paralisia do Mercosul, eu costumo recomendar que olhemos os números. Os agentes econômicos vêm desmentindo essa visão, e todos os países do bloco se beneficiam desses fluxos e da retomada que estamos acompanhando.

O governo Biden passou por contestações similares ao governo Lula em relação ao resultado eleitoral. Ambos os países sofrem com a ascensão de grupos de extrema-direita que não aceitam os resultados eleitorais quando perdem. Vossa Excelência acredita que o tema da defesa da democracia pode aproximar os governos Biden e Lula? Vossa Excelência acredita que o relacionamento bilateral entre EUA e Brasil pode atingir um novo patamar de cooperação por conta desse desafio comum?

MV: A visita do presidente Lula a Washington e as conversas mantidas na Casa Branca com o presidente Biden sobre a realidade internacional e esses fenômenos desagregadores não deixam dúvidas sobre esse desafio comum. Há plena consciência de que ambos os países têm um amplo espaço de cooperação nessa área e que a experiência brasileira de combate à desinformação em massa, por exemplo, oferece lições a compartilhar com as democracias do mundo, inclusive a norte-americana. Nos meus contatos desde a posse, percebo grande respeito e admiração pela resiliência das instituições brasileiras diante do forte teste de estresse que o país superou pela via eleitoral e com um sistema de votação e apuração que é modelo. Que esse sistema tenha sido posto em dúvida, a partir de mentiras, demonstra a gravidade dos perigos que enfrentamos como sociedades.

Nos meus contatos desde a posse, percebo grande respeito e admiração pela resiliência das instituições brasileiras diante do forte teste de estresse que o país superou pela via eleitoral e com um sistema de votação e apuração que é modelo. Que esse sistema tenha sido posto em dúvida, a partir de mentiras, demonstra a gravidade dos perigos que enfrentamos como sociedades.

Mas esse é apenas um dos aspectos de uma agenda bilateral muito rica e que está sendo retomada rapidamente a partir da visita, com reuniões e visitas de alto nível não somente na diplomacia, mas também em áreas de grande visibilidade, como comércio, meio ambiente e mudança climática. O engajamento de Washington no Fundo Amazônia, por exemplo, foi um gesto positivo que deve levar à participação de outros países. Acredito que já estamos devolvendo a relação bilateral ao nível de parceria estratégica que ela merece, com trabalho e diálogo em várias áreas. Esse diálogo, aliás, começou no mesmo dia da visita do presidente Lula, com reuniões técnicas de equipes de ambos os países ainda na Blair House, onde estava hospedada a delegação. O trabalho começou ali e tem sido intenso nas últimas semanas.

Esse dado não quer dizer, no entanto, que estamos obrigados a concordar sempre. Brasil e Estados Unidos são países relevantes, soberanos e que dialogam de igual para igual. Aprendemos, ao longo da história, a tratar eventuais divergências com respeito e com maturidade. Divergências são normais, e não há qualquer problema nisso. 

Em março, o presidente Lula visitará a China. Em diversas ocasiões, o presidente sinalizou que deseja incrementar o perfil das trocas comerciais e tecnológicas com a China. Recentemente, o governo chinês sinalizou que deseja negociar um acordo comercial com o Mercosul. Como Vossa Excelência enxerga um potencial acordo de livre-comércio entre Mercosul e China? Em seu discurso de posse, Vossa Excelência ressaltou a necessidade de finalizar os acordos do Mercosul com Israel e Egito. Um novo acordo com a China estaria dentro desse contexto de Mercosul mais ativo na arena comercial global?

MV: Em primeiro lugar, como lembrou o presidente Lula em Montevidéu, o passo prioritário é o que envolve a negociação pendente de assinatura com a União Europeia. Depois, é preciso saber se há interesse da China em negociar com o bloco e qual o alcance de uma futura negociação, o que, naturalmente, envolve também diálogo estreito com o setor privado e com os demais sócios. Temos o objetivo de que o Mercosul desempenhe um papel mais ativo no campo das negociações comerciais, mas não ignoramos problemas como o da paralisia da Organização Mundial do Comércio, dado que fortalece tendências protecionistas no interior dos países e na própria atuação internacional deles em matéria de comércio. É preciso dedicar esforços também a resolver os problemas do sistema multilateral de comércio, porque esses problemas têm freado avanços na direção de uma liberalização comercial mais equilibrada e justa. 

Durante a visita do chanceler federal alemão Olaf Scholz ao Brasil, o presidente Lula reafirmou o desejo de o Brasil finalizar o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia ainda neste semestre. Em outra ocasião, o presidente sinalizou certa insatisfação do governo brasileiro com o tema das compras governamentais, com a baixa amplitude das cotas agrícolas e com o acordo automotivo negociado. Com a perspectiva de uma política ativa de reindustrialização nacional do novo governo, como Vossa Excelência enxerga esse acordo? E como percebe os interesses dos europeus em finalizar o acordo?

MV: Nos contatos que mantivemos desde a posse com líderes de países europeus e com autoridades da União Europeia, o interesse tem sido demonstrado de modo claro. No entanto, aguardamos passos do bloco europeu que indiquem como seria o processo de ratificação de um eventual acordo, bem como mais detalhes sobre o que a UE pretende com a “side letter” com exigências adicionais para os países do Mercosul na área ambiental. Negociadores de ambos os blocos tiveram uma primeira reunião em Buenos Aires no início do mês, e estamos avaliando os resultados dessa primeira troca de informações.

O compromisso do Brasil com a sustentabilidade ambiental é claro e tem sido reiterado na prática pelo governo Lula, desde o primeiro dia de gestão, com o combate à criminalidade ambiental, seja por meio do garimpo ilegal ou do desmatamento. Esse combate revelou a tragédia na área dos ianomâmis em Roraima. É preciso sempre lembrar esse fato.

Pela importância que tem, é natural que o acordo seja revisado por diferentes áreas de um governo que acaba de assumir e que também seja objeto de diálogo com o setor privado, que já está acontecendo. Mas o presidente Lula já manifestou um claro interesse em avançar.

O ministro da Fazenda Fernando Haddad declarou em Davos, na Suíça, que o governo havia criado um grupo de trabalho para avaliar o processo de acessão do Brasil à OCDE. Várias associações de classe, como CNI e CNA, registram seu apoio ao processo de acessão do Brasil. O presidente Lula declarou que o Brasil tem interesse de tornar-se membro pleno da organização, mas não como “país menor”. No entanto, há países pequenos da OCDE que têm receio de o Brasil se tornar membro pleno, porque o Brasil terá grande peso, uma vez que o país é conhecido pela sua diplomacia ágil e capaz. Assim, como Vossa Excelência percebe o processo de acessão do Brasil à OCDE? O Brasil poderá ser o único país membro da OCDE e dos BRICS simultaneamente. Esta posição é positiva ou negativa para o país?

MV: Não acredito nesses temores, já que a tradição da diplomacia brasileira sempre foi a de dialogar e buscar incluir todos na busca de soluções, e os países sabem disso. Portanto, na OCDE esse perfil se manterá.

Quanto ao processo de acessão, aberto no ano passado, é preciso não gerar expectativas exageradas: em primeiro lugar, Colômbia e Costa Rica, os últimos países latino-americanos a ingressar como membros plenos da organização, demoraram sete anos no processo de acessão. Não há solução rápida, no caso, e é preciso ter paciência e uma estratégia definida, até porque, em determinadas áreas, a entrada na OCDE requer mudanças legislativas. É um processo complexo.

A outra expectativa que considero desmedida é sobre esse rótulo de “clube dos ricos”. Ingressar em uma organização não tem o poder de mudar o “status” de desenvolvimento econômico de um país, e a própria composição da OCDE demonstra esse fato. A organização é um foro importante de coordenação e de compartilhamento de boas práticas, e o Brasil participa dela há décadas, com bons resultados setoriais. Ser aceito como membro pleno é uma consequência natural desse processo histórico de aproximação, e a OCDE também tem muito a ganhar com o ingresso de um país com o peso do Brasil.

A visita do presidente eleito ao Egito para participar da COP 27 foi um marco da retomada da política ambiental internacional do Brasil. Em paralelo à reafirmação de compromissos pelo governo federal, também estiveram presentes na conferência outros atores como governadores, parlamentares, representantes do setor privado e da sociedade civil. Como Vossa Excelência avalia o potencial e os desafios de incluir na política externa ambiental e climática do país os interesses e percepções dessas outras partes interessadas que, nos últimos anos, ganharam relevância no sistema multilateral?

MV: A frase do presidente Lula “O Brasil voltou”, dita no Egito, foi acompanhada de uma repercussão altamente positiva sobre a superação das ameaças antidemocráticas, com a alternância de poder no Brasil. E ela reflete a realidade da nossa atuação externa neste início de gestão. Nossos interlocutores na comunidade internacional têm sido claros em acolher, de forma calorosa, essa volta. As agendas de contatos do presidente e a minha própria nos primeiros dois meses falam por si. A política ambiental é um pilar dessa atuação externa e vem acompanhada por políticas e ações internas que respaldarão a posição brasileira e tratarão de reverter o desmonte das estruturas de Executivo e dos organismos de controle verificado na gestão anterior.

A frase do presidente Lula “O Brasil voltou”, dita no Egito, foi acompanhada de uma repercussão altamente positiva sobre a superação das ameaças antidemocráticas, com a alternância de poder no Brasil.

A sociedade brasileira acompanhou esse processo destrutivo de perto e recentemente indignou-se com as imagens da tragédia dos ianomâmis, que somente foi possível em virtude de uma clara omissão governamental. A retomada da participação dos atores da sociedade não é apenas bem-vinda, representa um elemento tradicional de formulação da política externa brasileira no regime democrático. Dialogar com esses atores no plano interno, seja na área ambiental, seja na área comercial, ou em tantas outras, sempre foi parte indissociável do trabalho cotidiano do diplomata brasileiro. E esse diálogo sempre ofereceu um forte respaldo às nossas equipes negociadoras no plano multilateral, como tem de ser com países democráticos relevantes no debate.

 

Entrevista enviada por mídia escrita em 15 de março de 2023.

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