Izabella Teixeira é bióloga de formação, mestre em Planejamento Energético e doutora em Planejamento Ambiental pelo Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE/UFRJ). Foi ministra do Meio Ambiente entre 2010 e 2016 e começou sua carreira no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) em 1984, passando por funções no governo estadual do Rio de Janeiro. Atualmente integra o Conselho Consultivo Internacional do CEBRI e é co-chair do Painel Internacional de Recursos Naturais do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (IRP/UNEP/ONU), membro do Conselho Consultivo de Alto Nível do Departamento das Nações Unidas para Assuntos Econômicos e Sociais (UN-DESA) e integra o Conselho Administrativo do BNDES. Reconhecida com o Prêmio “Campeões da Terra” da ONU em 2013, atua também como consultora, membro de conselhos privados e organizações de sustentabilidade.
A seguir, a entrevista concedida à CEBRI-Revista em outubro de 2025.
Como a senhora avalia o papel do Brasil na COP30 e o contexto internacional desse momento?
Izabella Teixeira: A COP30 ocorre em um momento simbólico: dez anos após o Acordo de Paris e em um mundo que enfrenta uma profunda crise de confiança e de cooperação internacional. O sistema multilateral chegou ao seu limite institucional. As COPs, inclusive, atingiram um tipping point – um ponto de inflexão que exige novas normas de negociação, de diálogo e de ação.
Depois do isolamento vivido no último governo, o Brasil reconstrói sua presença internacional. Há hoje uma valorização renovada das questões ambientais, climáticas, de direitos humanos e de uma visão de equidade, solidariedade e democracia. O país quer voltar a exercer o soft power como ativo estratégico e consolidar sua inserção internacional ao presidir grupos como o G20, o BRICS e, agora, a COP30. Essa trajetória resulta de três anos de um processo consistente de reinserção internacional, e a COP30 consolida essa estratégia, reafirmando o compromisso com o meio ambiente, o clima, os direitos humanos e uma visão de país mais solidário com o mundo.
É fundamental consolidar uma visão estratégica sobre o significado desses movimentos e seu impacto na política externa brasileira, um exercício que envolve dimensões econômicas, políticas e diplomáticas. O Brasil defende a democracia, debate o novo sistema multilateral e reposiciona suas relações com o mundo. O país voltou ao cenário internacional, e essa dinâmica não é apenas do chefe de Estado, mas da sociedade e das instituições. O G20 e a cúpula do BRICS mobilizaram o país, e a COP30 deve ser entendida não como um evento, mas como o início de um processo: o da política e da segurança climática, que se conecta aos desafios do desenvolvimento nacional. Prefiro falar em segurança climática, porque ela se torna o eixo que articula clima, política e desenvolvimento. O Brasil, com suas singularidades, voltou a olhar para o mundo e precisa, agora, aprender também a olhar para si mesmo.
Realizada na Amazônia, a conferência é um chamado ao mundo e ao próprio Brasil. Contudo, falta ao país um conceito nacional sobre a Amazônia. Temos uma imagem internacional, mas ainda não construímos uma compreensão interna do que ela representa. É essencial que os brasileiros reconheçam seu papel estratégico, político, econômico e civilizatório. A floresta em pé expressa uma visão de país que inclui os povos tradicionais e indígenas como traço civilizatório. A Amazônia não é apenas natureza, é política, é civilização. Vinte e oito milhões de brasileiros vivem ali, com índices de desenvolvimento muito abaixo da média nacional. A Amazônia não pode ser vista apenas como uma fronteira a ser explorada, essa é uma visão neocolonialista, de um colonialismo subnacional.
Precisamos olhar para a Amazônia como questão de interesse nacional, de um país menos vulnerável, mais inclusivo, justo e desenvolvido. O Brasil tem todas as condições de adotar novos padrões de desenvolvimento: possui recursos naturais, alternativas e um povo criativo. Mas essa transformação depende de uma compreensão profunda do país, e tal compreensão passa necessariamente pela Amazônia. Ainda não temos essa consciência política.
O Brasil precisa compreender sua própria realidade e perceber que as agendas estão interconectadas. É um processo de mudança nacional que exige olhar para o futuro. Ilegalidade, desmatamento e segurança pública são partes do mesmo desafio civilizatório. A liderança brasileira nos últimos anos mostrou que o mundo voltou seu olhar para nós, está vindo até aqui; agora, é o Brasil que precisa olhar e conhecer o mundo. O Brasil precisa ter o futuro como aliado: temos que ter a ousadia de firmar alianças com o futuro, mas só poderemos fazer isso se o país tiver também uma identidade com a Amazônia. A Amazônia é parte essencial do Brasil, e o país deve ter ousadia para propor novas formas de cooperação, reposicionando-se como articulador entre o poder político e o poder climático.
De que maneira a Amazônia e o Tratado de Cooperação Amazônica se relacionam com essa visão de futuro?
IT: A Amazônia é o coração da segurança hídrica do país e o eixo da segurança climática global. Mas ainda falta ao Brasil uma consciência política sobre o significado da floresta. Precisamos de um conceito nacional de Amazônia, não apenas uma visão ecológica ou internacional. A floresta em pé expressa uma visão de país, de civilização e de soberania.
O Tratado de Cooperação Amazônica é o primeiro espaço multilateral regional que deveria estar sendo utilizado para construir convergências de interesses e compreender como trabalhar regionalmente a vulnerabilidade climática, para além dos cenários globais. É fundamental entender a realidade brasileira, em especial a da Amazônia: não apenas em relação ao desmatamento e à dimensão transnacional do crime organizado, mas também pelo papel central da região na segurança hídrica do país e na segurança climática global.
Esse tratado, de natureza multilateral, foi atualizado em um momento de crise do sistema multilateral. O Brasil convocou os chefes de Estado para uma conferência em Belém, elevando o nível político das decisões. Nessa reunião, foi pautada uma visão inédita sobre a Amazônia, reconhecendo pela primeira vez no mundo o tipping point. O Brasil teve papel central ao colocar em debate a ameaça à estabilidade da floresta e sua capacidade de sustentar a vida.
No entanto, esse avanço não se traduziu em ação política efetiva. O reconhecimento do tipping point deveria ter fortalecido o debate da COP30, mas acabou ficando à margem. Ainda assim, o encontro em Belém foi um passo importante para recriar foros regionais e repactuar a integração sul-americana. O desafio agora é transformar o reconhecimento científico em compromissos políticos regionais. Na ambição política do Brasil, a conservação deve ser o terceiro pilar da segurança climática, ao lado da eletrificação e da descarbonização.
A Amazônia é o único tipping point ao qual o Brasil está diretamente exposto. O país iniciou essa conversa política há dois anos, mas não avançou. Como já mencionei, falta um conceito nacional sobre o significado da Amazônia. O Brasil precisa se ver como provedor de soluções, pactuando suas realidades com os países vizinhos e compreendendo as vulnerabilidades regionais.
A questão climática exige entendimento político. A China é um exemplo: define metas e entrega resultados. O Brasil, por sua vez, assume compromissos, mas não define o caminho. É preciso transformar a ambição política em compromissos concretos com os vizinhos e em uma visão estratégica regional. O tipping point deve estar presente nas NDCs [Contribuição Nacionalmente Determinada], nas políticas setoriais e nos planos climáticos.
O debate sobre o petróleo na Amazônia, o crime organizado e o papel da floresta na segurança hídrica e climática revela que o grande desafio é transformar ambição política em execução. A agenda climática deixou de ser apenas ambiental, ela é também econômica, tecnológica e geopolítica. O jogo, agora, é sobre poder político e desenvolvimento.
Como a senhora enxerga a transição energética e os desafios da segurança climática e econômica?
IT: A crise climática revelou a necessidade de uma nova matriz energética e econômica. A transição energética é, portanto, uma transformação geopolítica. O Brasil era um país que não tinha dólar para investir em petróleo. Então desenvolveu o etanol há cinquenta anos como solução para o transporte e hoje tem uma matriz energética equilibrada, baseada em biocombustíveis e eficiência energética. O grande desafio é que mudar uma matriz energética significa mudar também a matriz econômica, que está inteiramente associada a ela. É uma transformação geopolítica, porque as relações de poder entre os países foram definidas a partir dessa estrutura. A transição energética é, antes de tudo, uma transição de poder global.
O futuro dependerá dos novos combustíveis e mercados. O país precisa ser sócio das inovações, trazendo o passado para o presente e desenhando novas visões de negócio. O petróleo continuará relevante, mas a transição deve ser guiada pela segurança energética, pelo reflorestamento e por tecnologias de captura e armazenamento de carbono. O Brasil pode se tornar um protagonista em soluções de mineração e fixação de carbono.
O desafio é articular setores econômicos – energia, mineração e agro – em torno da neutralização das emissões. A questão climática é hoje tema de poder político, econômico e tecnológico. A natureza já mudou, e os eventos extremos são uma realidade. É preciso preparar-se para riscos regulatórios e buscar soluções de longo prazo. Nenhuma transição será possível sem a natureza como aliada: os recursos naturais, os minerais estratégicos e os novos materiais são a base dessa transformação.
Há anos o mundo tem se organizado em torno da ideia de transição energética, por meio da qual se defende uma mudança estrutural na matriz energética, substituindo-a por renováveis. É chegada a hora – e essa ambição pode e deve ser nossa – de termos um conceito de transição no uso de recursos e da terra, promovendo uma mudança estrutural na maneira como a terra, os recursos materiais e os recursos naturais, da água à biomassa, são usados. Essa questão envolve não somente a defesa da adoção de práticas mais sustentáveis, mas também uma melhor compreensão sobre a distribuição desses recursos ao redor do globo, o volume e a velocidade da sua demanda, os impactos advindos da sua extração e as mudanças tecnológicas que devem ser estimuladas para usos mais eficientes e suficientes.
O Brasil deve evitar o novo extrativismo e o novo colonialismo disfarçado de transição verde. A transição não pode reproduzir desigualdades. É essencial compreender os impactos das soluções e suas inter-relações ambientais, sociais, econômicas e tecnológicas. O mundo vive novas dependências: de minerais estratégicos, das big techs e das cadeias de suprimentos. A natureza pode ser aliada ou inimiga, dependendo da capacidade de apropriação e da inteligência política.
Diferentemente da ideia de que o Brasil já é uma potência, acredito que o país ainda não está pronto para exercer plenamente essa posição. Como na física, potência é trabalho realizado. O país tem potencial, mas precisa realizar. A natureza oferece as condições para não repetirmos os erros do passado e fazermos diferente. Não se transforma o mundo apenas por ter ativos e saber o que fazer com eles, e sim por compreender a nova dinâmica global, construir novas parcerias e reconhecer nossa vulnerabilidade diante da ordem política internacional e da questão climática.
A rastreabilidade, o mercado e a produtividade precisam caminhar juntos. O Brasil deve manter a competitividade e pactuar visões e processos. A transformação leva tempo. Assim como o país se tornou um grande produtor de alimentos e erradicou doenças após décadas de esforço, o mesmo deverá ocorrer com a transição climática.
Quais são, em sua visão, os principais desafios políticos e institucionais que a COP30 deve enfrentar?
IT: A COP30 acontece em um mundo em movimento, marcado pela disputa de poder e por novas dinâmicas geopolíticas. A questão climática é uma variável determinante nesse contexto. Vivemos uma crise de prosperidade e uma sensação de impotência diante da incapacidade global de coordenar interesses. O sistema multilateral, criado após a Segunda Guerra, está em exposição: enfrenta guerras, fomes, epidemias e desafios institucionais. Chegamos a um tipping point institucional: as COPs parecem ter atingido seu limite, ou seja, a saturação de um modelo de negociação que precisa ser reinventado.
Identifico três problemas centrais: trust (confiança), accountability (responsabilização) e, o mais sensível para mim, a capacidade de comunicação sobre a questão climática. Reconstruir a confiança é essencial. Falta responsabilização e métricas confiáveis. Além disso, a comunicação sobre o clima está contaminada pela tragédia e pelo medo. E você não mobiliza ninguém pela tragédia, você não constrói nada com base no medo. Precisamos construir narrativas inclusivas, democráticas e justas, substituindo o tom de tragédia por um otimismo pragmático que mobilize as sociedades. A defasagem entre políticas públicas e riscos climáticos revela a urgência de preparar o país para decisões estratégicas. O timing político da humanidade não dialoga com o timing das mudanças impostas pela natureza.
O Brasil tem ciência e excelência, mas a decisão política ainda não coloca a questão climática no centro da estratégia nacional. O país já tomou grandes decisões no passado: erradicou a fome, estabilizou a moeda, conquistou a autossuficiência em petróleo. E agora precisa decidir sobre o clima com a mesma determinação. A COP30 deve servir para preparar o país para escolhas de longo prazo, e não apenas para organizar um evento. É preciso engajamento real, pois a adesão social ainda é baixa.
A conferência deve ser usada para definir o modelo de desenvolvimento do país, suas parcerias e suas vulnerabilidades. A governança precisa envolver o governo federal, o Congresso, o Judiciário e os entes federativos. Os extremos climáticos mostram a importância do papel de prefeitos e governadores. A COP30 não pode ser apenas uma entrega; deve ser um ponto de inflexão.
O que a senhora espera como legado da COP30 para o Brasil e para o mundo?
IT: Espero que a COP30 deixe como legado a capacidade do Brasil de alinhar o tempo da política com o tempo da natureza. Que sejamos capazes de transformar crises em oportunidades e construir alianças com o futuro. A COP30 deve ser vista como um processo de reorganização de interesses. O presidente da COP representa interesses globais, não apenas nacionais. Por isso, é fundamental conectar as dimensões diplomática, econômica e social. A conferência será palco de anúncios e compromissos. As florestas tropicais – além da Amazônia, as do Congo e da Indonésia – concentram minerais críticos e estratégicos. Não se trata apenas de conservação: a floresta em pé é essencial para as soluções climáticas. Precisamos dela, mas também dos materiais, recursos naturais e minerais estratégicos que estão nesses ecossistemas. As relações geopolíticas desses países também vão pautar o debate. A conservação é fundamental, mas os recursos naturais e minerais também definem o futuro. O Brasil deve construir alianças regionais e parcerias de longo prazo, baseadas em afirmação e solidariedade.
O setor privado tem papel político relevante, pois as grandes empresas pertencem a países e exercem poder global. As big techs, por exemplo, têm enorme poder de convocação, e representam interesses de potências como Estados Unidos e China. Esses países influenciam e controlam a agenda climática por meio do setor privado. A governança climática deve incluir esses atores, mas com clareza de propósito e responsabilidade.
Após a conferência, o Brasil precisa organizar seus interesses e preparar o caminho para as próximas COPs. Países com recursos naturais devem estruturar poder político, tecnológico e econômico, assim como a OPEP fez com o petróleo. O Brasil busca trazer a conservação como pilar das soluções climáticas e precisa desenvolver estrutura e logística para a bioeconomia. A COP abrirá espaços de debate estratégico sobre desenvolvimento, e o país – junto à sociedade – deve estar preparado para ocupá-los.
O Brasil não pode perder a oportunidade de liderar uma visão voltada para as soluções. As soluções são coletivas, enquanto a abordagem apenas dos problemas fragmenta e cria bolhas de debate. É necessário envolver todos os poderes e utilizar instrumentos, como as emendas parlamentares, para fortalecer a defesa civil e impulsionar novos modelos de negócios locais. Embora o esforço inicial do presidente Lula tenha sido um sinal importante, ainda há muito dever de casa após a COP30.
Precisamos construir uma agenda regional e nacional, além de alianças e parcerias que permitam ao Brasil transitar pelos próximos cinco ou dez anos de maneira afirmativa. A questão climática está, de fato, na agenda do poder político. E o Brasil é um país de paz, com uma sociedade solidária e criativa, capaz de definir uma nova forma de prosperidade – uma prosperidade que ofereça ao mundo uma nova visão de futuro.
A COP30 deve ajudar o Brasil a ter o futuro como aliado. É necessário convocar novos agentes, especialmente as novas gerações, que não têm medo de errar. Precisamos viver de soluções, ser resilientes e unir mitigação e adaptação. A meta é construir um futuro menos vulnerável, sustentado por desenvolvimento e cooperação.
O Brasil pode oferecer ao mundo uma nova visão de prosperidade, baseada em alianças e não em bolhas. A sociedade deve ser protagonista, e a ciência precisa responder às perguntas que orientam as decisões e não apenas a si mesma. É hora de transformar a crise em soluções, ser ousado com o futuro e construir um país capaz de ter o futuro como aliado. A natureza já mudou; agora nós precisamos mudar.
Seleção de trechos editados de entrevista gravada concedida em 8 de outubro de 2025.
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