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Editorial

Os Estados Unidos e a erosão da ordem internacional

Ruptura ou reconfiguração?

O mundo passa por uma acelerada transformação, marcada por competição desenfreada, fragmentação profunda e crescente instabilidade geopolítica. A rivalidade entre EUA e China está permeando, gradualmente, os múltiplos temas da agenda internacional. Como superpotência dominante, os Estados Unidos sob a presidência de Donald Trump são cada vez mais percebidos – tanto internamente quanto no exterior – como uma força predatória cujo objetivo se ancora no desmantelamento da Ordem Liberal Internacional, edificada sobre regras e normas.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, Washington e seus aliados lideraram a construção de um sistema baseado na estabilidade, previsibilidade e cooperação. Essa ordem repousava em pilares como livre mercado, interdependência econômica, primazia do Direito Internacional, proteção dos direitos humanos e a criação de instituições cuja finalidade era centrada em mediar disputas e facilitar a governança global. Durante décadas, esses princípios sustentaram a liderança norte-americana, o equilíbrio de poder entre as potências e o arcabouço global baseado na racionalidade como fio condutor no trato da diplomacia global.

A política externa de Trump – marcada por guerras tarifárias, diplomacia transacional e coerção unilateral – está enfraquecendo a posição dos EUA no hemisfério ocidental e em outras regiões vitais como, por exemplo, na Ásia e na América Latina. A postura diplomática da Casa Branca, tem vilipendiado o softpower americano e, de quebra, vem minando a confiança no país e na sua legitimidade global em múltiplos tabuleiros geoestratégicos. A primazia do poder norte-americano caminha a passos consistentes rumo a um desgaste que, ao fim, somente irá servir para fortalecer os rivais estratégicos de Washington no mundo. 

Uma das principais vítimas dessa postura tem sido o sistema multilateral. Trump atacou e enfraqueceu instituições como as Nações Unidas, a Organização Mundial do Comércio e a Organização Mundial da Saúde – reduzindo financiamento, ignorando mecanismos coletivos e privilegiando acordos bilaterais ad hoc. Ao paralisar os fóruns criados para gerir crises de forma conjunta, Washington diminuiu sua própria influência e abriu espaço para que China e Rússia redesenhem essas instituições de acordo com seus interesses.

Não menos danosa foi a rejeição de Trump à agenda climática. Ao retirar os EUA do Acordo de Paris e desmontar regulações ambientais domésticas, sua administração negou o consenso científico sobre o aquecimento global e abandonou a liderança em um dos maiores desafios do século XXI. Essa postura enfraqueceu iniciativas internacionais, atrasou a ação coletiva e transmitiu a mensagem de que ganhos imediatos podem se sobrepor à sobrevivência do planeta no longo prazo. Em um momento em que as mudanças climáticas definem não apenas o futuro ambiental, mas também a legitimidade da governança global, a abdicação americana a esse tema, em particular, é corrosiva a um pilar estrutural e vital na ordem global.

A fragilidade da diplomacia norte-americana ficou novamente exposta no recente encontro de cúpula entre Trump e Vladimir Putin no Alasca. A frase de Stephen Walt (2025), em artigo publicado na Foreign Policy é lapidar: “Trump has no idea how to do diplomacy; even when he is partly right, he is wrong”. Segue Walt em sua análise sobre o encontro entre os dois líderes: 

The combination of that weird summit in Alaska with Vladimir Putin and the only slightly less bizarre gathering of NATO leaders in Washington was the latest reminder that U.S. President Donald Trump is a terrible negotiator, a true master of the “art of the giveaway.” He doesn’t prepare, doesn’t have subordinates lay the groundwork beforehand, and arrives at each meeting not knowing what he wants or where his red lines are. He has no strategy and isn’t interested in the details, so he just wings it.

Durante o encontro, Trump não logrou obter nenhuma concessão de Moscou. Muito pelo contrário, dispôs-se a oferecer tudo ao presidente da Rússia, Vladimir Putin, em matéria de concessão territorial e colocou-se como agente capaz de convencer o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e os líderes europeus a aceitarem, praticamente sem ressalvas, a exigência de Moscou. Putin saiu como vencedor no campo de batalha e na esfera da diplomacia. Já os EUA, perderam preciosos recursos no campo de batalha e entregaram tudo que poderiam na esfera da diplomacia.

A mesma imprevisibilidade abalou a relação transatlântica. Sob Trump, os laços entre os EUA e a Europa foram corroídos por disputas sobre os encargos da Organização do Tratado do Atlântico Norte, compromissos climáticos e comércio. Sua hostilidade aberta à União Europeia, combinada a tarifas protecionistas e sinais diplomáticos erráticos, reduziu a confiança a níveis mínimos em décadas. Em resposta, líderes europeus buscam alternativas: maior autonomia estratégica, aprofundamento da cooperação em segurança dentro da própria União Europeia e aproximação cautelosa com a China. A erosão da confiança transatlântica enfraquece ainda mais o poder normativo de Washington e acelera a transição rumo à multipolaridade.

Uma das consequências da errática política do governo Trump incide sobre como o Brasil vai reorganizar os vetores de sua política exterior. Cauteloso e preocupado em não romper pontes, o governo brasileiro tem mantido o equilíbrio e a prudência necessários para não romper o diálogo diplomático com Washington. Contudo, desde o início da administração Trump, o governo norte-americano fez a opção deliberada de congelar ou de diminuir o grau de interação das relações com o Brasil.  Uma escolha binária entre Washington e Pequim nunca foi uma opção estratégica considerada por Brasília. Porém, diante das circunstâncias que se impõem, é natural que o Brasil busque aprofundar as suas relações com a China em detrimento dos EUA.  

Cabe sublinhar ainda que, mesmo nos setores conservadores, cresce o ceticismo em relação aos Estados Unidos sob Trump. Os EUA estão sendo vistos como um parceiro pouco confiável, enquanto a China se consolida como ator pragmático e previsível. O setor privado brasileiro reforça essa tendência de demandar do governo Lula a ampliação da corrente de comércio com Pequim. O movimento da China de se oferecer para comprar parte da produção brasileira pesadamente sancionada pelo tarifaço americano remodela a relação bilateral e reajusta a forma como parte do setor empresarial brasileiro, e importante espectro de partidos políticos de direita no Brasil, percebem a importância da China como parceiro estratégico diante de toda essa circunstância imposta ao país. 

Adicionam-se a isso o valor e a crescente importância dos BRICS diante desse cenário de fragmentação internacional. O que antes era uma escolha contestada em certos espectros intelectuais e círculos estratégicos do establishment de política externa agora tornou-se amplamente aceito como plataforma essencial para a defesa dos interesses nacionais em uma ordem multipolar. A postura hostil do governo Trump em relação a importantes aliados como Europa, Canadá, Japão e Austrália consagra, em definitivo, a convicção brasileira de que uma aposta exclusiva na relação bilateral com Washington é uma opção descartada. Essa convicção realça e fortalece ainda o princípio da autonomia e do não alinhamento como vetores inegociáveis da política externa brasileira em qualquer governo minimamente democrático e comprometido com a Constituição Federal. 

A visão brasileira do mundo encontra-se cada vez mais consubstanciada na tese de que a hegemonia ocidental está em declínio. Uma ordem multipolar emerge com força ascendente dos países do Sul Global. Essa mudança, na visão de Brasília, é vista como uma oportunidade e um imperativo estratégicos para o Brasil ampliar sua influência global e lutar para a materialização de seus interesses. 

Cabe realçar que o Brasil não define suas parcerias sob a dicotomia democracia versus autocracia. Em vez disso, adota uma abordagem pragmática e orientada por interesses concretos e tangíveis, engajando-se com Estados Unidos, China, Rússia, Índia, Arábia Saudita, África do Sul, França, Alemanha e México, entre outros, independentemente de seus regimes políticos. A exemplo do Brasil, muitos dos países ocidentais ignoram esse framework e sedimentam suas relações com China, autocracias médio-orientais, ditaduras africanas e regimes não democráticos – e em muitos casos se silenciam diante de graves violações do Direito Humanitário Internacional, como em Gaza, quando, por outro lado, denunciam violações de menor gravidade em países latino-americanos. 

Aliás, em nenhum lugar a perda de influência dos EUA é tão evidente quanto na América Latina. A política norte-americana para a região colheu poucos êxitos ao longo das últimas três décadas, minando a confiança no país e enfraquecendo a cooperação hemisférica. A postura do presidente Donald Trump em relação à migração e suas medidas coercitivas no campo comercial contra México, Brasil, Colômbia e outros ampliaram o ceticismo em relação a Washington. No vácuo dos EUA, a China, que já vinha expandindo sua presença econômica e estratégica na América do Sul, agora encontrará um campo fértil para estabelecer laços irreversíveis de confiança e onde a força de Washington não terá capacidade aparente de enfraquecer a expansão de Pequim. 

Como dizia John Mearsheimer “The pursuit of hegemony is a formula for endless conflict.” Os Estados Unidos já foram os principais arquitetos de uma ordem que projetava estabilidade, equilíbrio e prosperidade. Hoje, sob a postura disruptiva do presidente Donald Trump, essa ordem está se desfazendo. 

Esta 14a edição da CEBRI-Revista trata exatamente deste contexto internacional enormemente influenciado pela política externa de Trump. O foco dos artigos é, de fato, o Brasil e sua inserção internacional. O relacionamento bilateral chegou a um de seus pontos mais baixos da história. Os artigos aqui reunidos problematizam as causas e consequências deste novo momento.

Referências Bibliográficas

Walt, Stephen M. 2025, “Trump Has No Idea How to Do Diplomacy with Putin or Europe.” 2025. Foreign Policy, 19 de agosto 2025. https://foreignpolicy.com/2025/08/19/trump-diplomacy-putin-ukraine-europe/

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