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Editorial

As novas Áfricas e o Brasil

Política e desenvolvimento no continente em ascensão
Imagem: Estúdio Marijaguar

A história da África é importante para nós, brasileiros, porque ajuda a explicar-nos (...). Não pode continuar o seu estudo afastado de nossos currículos, como se fosse matéria exótica. Ainda que disto não tenhamos consciência, o obá do Benim ou o angola a quiluanje estão mais próximos de nós do que os antigos reis da França.

– Alberto da Costa e Silva (2011, 231)

[No Brasil] A África aparece associada mais à questão identitária do que à oportunidade de relacionamento econômico. (...) Isso cria dificuldades porque a questão identitária no Brasil é um problema que leva a uma visão da África muito abstrata e distante da realidade”

– Carlos Lopes (2022)

Esta edição da CEBRI-Revista tem como seção especial a África, sua política, economia, seu presente e futuro – uma abordagem que privilegia as diversas Áfricas do presente e as oportunidades econômicas e políticas; uma seção que mostra o enorme dinamismo populacional e as mudanças econômicas estruturais pelas quais o continente atravessa; um continente com a maior população jovem do mundo e de franco crescimento econômico. Após a leitura dos textos ficará evidente para os internacionalistas de plantão que não estudar estas Áfricas de hoje será um erro de formação e uma chance desperdiçada.  

Nesse contexto, é preciso dizer que a editoria sonhava com uma edição sobre a África por quatro razões. Primeira, pela importância crescente do continente tanto do ponto de vista político quanto econômico. Como os artigos aqui publicados mostram, o tempo do “pessimismo africano” passou. É tempo de uma nova África, mais estável politicamente e com um importante crescimento econômico e populacional. É importante contextualizar que o crescimento da população acelerado na África e lento na América do Sul transforma o continente africano em um parceiro necessário ao Brasil. A América do Sul representa 5% e a África, 10% da população mundial. Em conjunto, África e América do Sul terão um peso muito maior no desenho de um mundo multipolar. A presidência do Brasil do G20, por exemplo, é uma oportunidade única para desenvolver uma visão comum.

Segunda razão, pela mudança de orientação de política externa no Brasil com o governo Lula. Ainda que, neste momento, uma nova política externa para a África não esteja delineada pelo governo, não há dúvidas de que, pelo histórico da política externa de Lula, a África voltará a ser uma região relevante para o Brasil. O aumento da competição das grandes potências por influência no continente africano, em especial a crescente ascendência chinesa, mostra que o continente importa para o mundo. O Brasil não tem, obviamente, a capacidade econômica ou política da França, EUA ou China, mas não pode perder oportunidades. O nosso relacionamento com os países africanos, em especial com a enorme África Subsaariana, pode e deve ser feito em um plano mais igualitário e inclusivo.

Em artigo publicado na edição passada, o embaixador Marcos Azambuja (2023) defendeu que a língua portuguesa se torne cada vez mais uma ferramenta de aproximação do Brasil com a África Lusófona. Mas os países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), embora fundamentais para o nosso relacionamento com o continente, são apenas uma parte da região. Os artigos da presente edição mostram que a relação do Brasil com Angola, Moçambique ou Guiné-Bissau deve servir de ponte para um crescente relacionamento com as outras Áfricas. O próprio embaixador várias vezes salientou, em conversas informais no CEBRI, que precisamos de uma visão moderna da África e de uma atualização do discurso sobre a relação Brasil-África, que é por vezes muito focado na recuperação de um passado folclórico. Segundo ele, é preciso falar do futuro sem deixar de exaltar o passado, focando em uma relação que não negligencie uma África que está nascendo, moderna, pós-Mandela, por vezes contrafeita à memória voltada exclusivamente a "orixás e escravidão". 

Terceira razão, os editores e editoras desta revista nunca tiveram a oportunidade de estudar a política africana. Somos de uma geração em que era mais importante estudar o sistema feudal europeu do que a formação nacional da Nigéria. Nada contra conhecer por que a Espanha é a Espanha, mas por que pouco sabemos sobre a Guerra Civil Angolana? A escolha do currículo escolar muda a orientação política e os interesses dos jovens. Desde 2003, o estudo da história africana e o da cultura afro-brasileira são obrigatórios no Brasil. Para os amantes da história, estar nas bancas escolares do Brasil hoje em dia é uma grande oportunidade de aprender não apenas sobre a influência africana na formação do Brasil, mas sobretudo uma chance de conhecer estas várias Áfricas modernas. Para o economista bissau-guineense Carlos Lopes (2022), citado na epígrafe deste texto, um olhar essencialmente identitário sobre a África no Brasil é muito distante da realidade africana. Ao contrário do que geralmente se imagina, isso pode gerar mais distanciamento do que proximidade. Se há várias Áfricas, então é importante aumentar a complexidade do entendimento sobre o continente no Brasil. Além disso, a “África” no singular sempre nos pareceu uma categoria genérica demais, tanto quanto “Ásia”. Se o Sudeste Asiático é muito diferente do Leste Asiático, por que a África Austral seria igual ao Magreb? Estudar os africanos é, portanto, estudar as várias Áfricas.  

[A escolha do tema desta edição tem também] um caráter afetivo. (...) Uma seção sobre África feita por uma revista brasileira não podia deixar de render homenagens a Alberto da Costa e Silva, nossa grande inspiração.

A quarta razão tem um caráter afetivo. Há um bom tempo sonhamos em homenagear o embaixador Alberto da Costa e Silva, o maior africanista do Brasil. Não precisamos aqui reforçar o papel do Itamaraty para a cultura nacional, muito menos para a historiografia. Mas uma seção sobre África feita por uma revista brasileira não podia deixar de render homenagens a Alberto da Costa e Silva, nossa grande inspiração. Em artigo pungente da historiadora Marina de Mello e Souza da Universidade de São Paulo (USP) sobre a obra e vida de Costa e Silva, fica manifesta a contribuição do embaixador para o estudo da África no Brasil e pela revolução intelectual produzida pela sua vasta obra. Costa e Silva nos mostrou a relação simbiótica entre Brasil e África. Como diz a epígrafe deste texto: “Ainda que disto não tenhamos consciência, o obá do Benim ou o angola a quiluanje estão mais próximos de nós do que os antigos reis da França” (Costa e Silva 2011, 231).

Finalmente, em relação à guerra na Ucrânia, tema fundamental nos dias de hoje, vários países africanos e o Brasil coincidem em sua visão. O embaixador do Quênia nas Nações Unidas, Martin Kimani, expressou sua opinião em um importante discurso no Conselho de Segurança em 22 de fevereiro do corrente ano, que é também a posição brasileira. Para o embaixador, as fronteiras dos países africanos foram desenhadas pelos países colonizadores. O resultado desagradou a todos, deixando povos antigos e famílias separados. No entanto, para evitar guerras infindáveis, os africanos decidiram aceitar as fronteiras coloniais, mesmo a contragosto, e optaram pela paz. Diversos países do continente, assim como o Brasil, condenam a invasão da Ucrânia, mas apoiam uma iniciativa de paz e não uma vitória de qualquer uma das partes, ou uma correção de erros do passado que poderá levar a uma catástrofe nuclear.     

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A seção especial sobre a África possui nove textos. Trata-se da maior seção especial entre todas as edições já publicadas. Além disso, tivemos diversos artigos submetidos sobre a temática e que não puderam ser publicados por diversas razões, uma delas por espaço. Isso mostra o grande interesse brasileiro pela região. O primeiro texto, escrito pelo professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) Pio Penna Filho, apresenta  essa nova África sobre a qual discorremos, tecendo um excelente e realista panorama das Áfricas do século XXI. O segundo texto, de Alexandre dos Santos, professor e doutorando do Instituto de Relações  Internacionais da PUC-Rio, discorre sobre a necessidade de uma nova diplomacia literária nas relações Brasil-África. Especialista no tema, Santos argumenta que o resgate da literatura africana pode ser encarado como um poderoso instrumento pós-colonial no Brasil. Ou seja, o espraiamento da literatura africana no Brasil mostrará uma África para além dos estereótipos. O importante texto de Pedro Matos, professor da Universidade de Santiago em Cabo Verde, trata do enorme crescimento populacional pelo qual a África vem passando e suas consequências políticas e econômicas, apostando na juventude para o futuro do continente. Esse é um texto que mostra bem as oportunidades das novas Áfricas que aqui defendemos. O artigo de André Guzzi, professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV), e Letícia Andrade, da Universidade Paulista (UNIP), mostra a capacidade de vários países africanos em influenciar o desenho e a implementação de projetos de cooperação internacional. Chegaram ao fim os projetos de cooperação top-down em que os países e populações africanos são meros receptores, dando lugar a projetos em que ambas as partes são parceiras na sua construção e consecução. O texto de Danilo Marcondes, professor da Escola Superior de Guerra, trata deste novo momento do relacionamento brasileiro com o continente. O texto da pós-doutoranda da Universidade de Coimbra Roberta Maschietto delineia o estado atual da política de Moçambique. Para a autora, os desafios da democracia moçambicana passam pelo papel central e controverso da Frente pela Libertação do Moçambique (Frelimo) que há décadas centraliza o poder, a despeito das diversas eleições. O texto de Antonio Augusto Martins Cesar, que foi embaixador na Tanzânia entre 2019 e 2022 e encarregado de negócios no Sudão em 2023, mostra como uma estrutura prévia e forte das instituições políticas tem impacto na estabilidade de países africanos. Ao comparar a Tanzânia e o Sudão, o embaixador demonstra como resiliência institucional é fundamental para a estabilidade política e para evitar a eclosão de conflitos. O já mencionado artigo da historiadora da USP Marina de Mello e Souza, conforme apontamos acima, tece uma bela trajetória da vida e obra de Alberto da Costa e Silva, maior africanista brasileiro. Por fim, o artigo de Felix U. Kaputu, professor visitante do Bard College, discorre sobre a necessidade de entendermos a África contemporânea por meio de outros imaginários, mais centrados na experiência concreta e atual dos países e não por meio de estereótipos antigos. 

A resenha desta edição, escrita pelo professor do IBMEC e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pesquisador da Fundação Alexandre Gusmão (Funag) Pablo de Rezende Saturnino Braga, discorre sobre o poderoso livro Brazil-Africa Relations in the 21st Century: From Surge to Downturn and Beyond, de Mathias Alencastro & Pedro Seabra (2021). Na visão dos editores, essa é a principal obra contemporânea sobre o relacionamento Brasil-África, leitura obrigatória para os interessados e muito bem resenhada pelo professor Braga. 

A entrevista desta edição traz uma referência para o pensar da África no Brasil. Convidamos a presidente do Geledés – Instituto da Mulher Negra, a professora Antonia Aparecida Quintão. Com foco no imaginário da África no Brasil, a professora discorre sobre as mudanças necessárias ao Brasil no seu entendimento sobre o continente, os africanos e o racismo, e o papel do Geledés neste processo. Por um motivo de agenda não conseguimos incluir a entrevista com Amina J. Mohammed, secretária-geral adjunta das Nações Unidas e ex-ministra do meio ambiente da Nigéria. Essa entrevista será publicada na próxima edição. 

Toda edição também traz textos gerais sobre temas de Relações Internacionais. Porém, o ensaio escrito pelo ex-ministro das Relações Exteriores Antonio de Aguiar Patriota tem um sentido histórico para o Brasil. Para além da qualidade do texto em si, o relato do ex-ministro sobre seu período à frente do ministério no governo Dilma Rousseff será usado por pesquisadores e interessados anos a fio. Testemunha ocular de um momento áspero da história do Brasil, o ex-ministro disseca o período e as várias iniciativas e dificuldades encontradas pelo caminho. Texto de leitura obrigatória para os interessados na política externa brasileira. 

Por fim, os textos de Roberto Bisang, professor da Universidade de Buenos Aires, e Marcelo Regúnaga, ex-secretário da Agricultura da Argentina, sobre a importância da bioeconomia para o Mercosul; e Joseph Dellatte e co-autores sobre o clube do clima fecham os artigos de temas diversos.  

Referências  Bibliográficas

Alencastro, Mathias & Pedro Seabra (orgs.). 2021. Brazil-Africa Relations in the 21st Century: From Surge to Downturn and Beyond. New York: Springer Cham https://doi.org/10.1007/978-3-030-55720-1

Azambuja, Marcos. 2023. “O lugar do Brasil”. CEBRI-Revista 2 (5): 16-30. https://doi.org/10.54827/issn2764-7897.cebri2023.05.03.01.16-30.pt

Costa e Silva, Alberto da. 2011. Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África. 5ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.  

Lopes, Carlos. 2022. “Questão racial no Brasil gera visão abstrata da África, diz ex-embaixador da ONU”. Entrevista. Folha de São Paulo, 30 de setembro de 2022. https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2022/09/questao-racial-no-brasil-gera-visao-abstrata-da-africa-diz-ex-embaixador-da-onu.shtml

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