A Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) brasileira estabeleceu metas ambiciosas de redução de emissões de gases de efeito estufa. Este artigo avalia os desafios para cumprimento da NDC na redução do desmatamento e restauração florestal no bioma Amazônia. O diagnóstico inédito considera a extensão do desmatamento ilegal e os déficits e excedentes de reserva legal por tamanho de propriedade e tipo de uso da terra.
O desmatamento na Amazônia brasileira reduziu a cobertura florestal original de 402,7 milhões de hectares (Mha) em 85,3 Mha, de acordo com dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe 2022). Houve um corte de 21,2% da floresta, que se acentuou dos anos 1980 até o presente. As taxas de desmatamento variam muito desde o início da medição em 1988, com os maiores valores em 1995 (2,91 Mha) e 2004 (2,77 Mha). De 2004 a 2012, devido a fortes medidas de comando e controle do governo federal, o corte da floresta caiu em 84%. Essa queda motivou o Brasil a apresentar metas ambiciosas na área de uso da terra em sua Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) apresentada em 2015 à Convenção-Quadro das Nações Unidas para Mudanças Climáticas (UNFCCC) como parte do Acordo de Paris. O Brasil prometeu “alcançar, na Amazônia brasileira, o desmatamento ilegal zero até 2030 e a compensação das emissões de gases de efeito de estufa provenientes da supressão legal da vegetação até 2030”. Além disso, o país comprometeu-se a “restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares de florestas até 2030, para múltiplos usos”. De 2018 a 2022, devido à inação deliberada do governo Bolsonaro, os cortes florestais tiveram um aumento significativo. Para recuperar o controle sobre a região e cumprir compromissos de sua NDC de 2015, o Brasil necessitará de informação detalhada sobre o bioma Amazônia para orientar políticas públicas sólidas. Este documento contribui para esse fim, ao fornecer uma avaliação detalhada dos desafios para alcançar as metas de desmatamento ilegal zero e de restauração florestal na Amazônia.
A base jurídica da política fundiária no Brasil é a Lei 12.651/2012 (Código Florestal). O Código regula o uso privado da terra, determinando a proporção de área da propriedade que pode ser utilizada para agropecuária. Para proteger a vegetação natural, estabelece que uma proporção das propriedades rurais, denominada reserva legal, tem de ser preservada. O Código também veda a remoção de vegetação natural em topos de morros e perto de bacias hidrográficas; essas são áreas de proteção permanente (APP), necessárias para preservar os recursos hídricos e proteger o solo. A dimensão da reserva legal depende do bioma; no bioma Amazônia, a reserva legal é de 80% da propriedade, exceto casos previstos na Lei. Os donos de imóveis devem assinar termos de ajuste de conduta para restaurar suas APPs e as áreas de reserva legal cortadas até 22 de julho de 2008. Remoções de vegetação nativa dentro da reserva legal posteriores a julho de 2008 são proibidas e sujeitas a penalidades e multas.
Quando sua reserva legal é inferior ao prescrito, o proprietário incorre em um déficit. Áreas de vegetação nativa maiores do que a reserva legal acumulam excedentes para o dono. Os donos de terra com déficits podem compensá-los comprando excedentes de outras propriedades dentro do mesmo bioma; essa disposição cria um mercado para créditos florestais.
O cumprimento do Código Florestal é essencial para o Brasil atingir as metas de emissões e de uso da terra estabelecidas pelo país na sua NDC de 2015 (Soterroni et al. 2018). O estudo indica que a aplicação integral do Código contribui com a maior parte da prometida redução de 0,90 GtCO2eq das emissões de gases de efeito estufa (GEE) do Brasil em 2030 em relação a 2005, indicada na NDC brasileira. Garantir desmatamento ilegal zero e restaurar a floresta Amazônica são assim partes essenciais da redução das emissões brasileiras. Sem a aplicação do Código para alcançar desmatamento ilegal zero e restauração florestal, o Brasil não conseguirá cumprir sua NDC na parte relativa ao uso da terra.
...precisamos de informação atualizada sobre a situação das propriedades rurais em relação às normas do Código Florestal. Uma medida fundamental é saber a quantidade da recuperação de vegetação nativa exigida pela Lei para cada propriedade.
Para restaurar a floresta e cumprir a NDC, precisamos de informação atualizada sobre a situação das propriedades rurais em relação às normas do Código Florestal. Uma medida fundamental é saber a quantidade da recuperação de vegetação nativa exigida pela Lei para cada propriedade. Para tal fim, a Lei estabelece que todos os donos de terra façam sua autodeclaração no Cadastro Ambiental Rural (CAR). A inscrição do imóvel rural no CAR requer a identificação do proprietário e a apresentação das coordenadas do imóvel, das áreas de preservação permanente e da reserva legal. A partir do CAR, é possível identificar os proprietários em desacordo com o Código Florestal.
Para identificar áreas de desmatamento ilegal, comparamos mapas do Inpe com propriedades nas bases de dados do CAR e do Incra. Para cada propriedade, calculamos seu déficit ou excedente de reserva legal. Agregamos os déficits por tamanho de propriedade e tipo de uso da terra para indicar potenciais custos de oportunidade para restauração florestal. Ao apresentar resultados inéditos, complementamos e ampliamos trabalhos anteriores (Soares-Filho et al. 2014, Rajão et al. 2020, Guidotti et al. 2020, Stabile et al. 2020, Charivari et al. 2021; Igari et al. 2021, CSR 2022). Nosso objetivo é contribuir para políticas públicas realistas que possam restaurar a floresta e cumprir os compromissos da NDC brasileira.
DADOS
Para produzir uma avaliação atualizada e detalhada da ocupação da terra na Amazônia, utilizamos bases de dados apresentadas na Tabela 1.
Tabela 1: Bases de dados de uso e ocupação da terra. Elaboração dos autores com base nas informações fornecidas porFunai, ICMBio, Incra, CAR/SFB, Embrapa, Inpe.
Desde 1988, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) usa imagens de satélite para mapear o corte de floresta nativa no bioma Amazônia, através do sistema Prodes. O Inpe e a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) são responsáveis pelo sistema TerraClass, que identifica o uso e a cobertura da terra nas áreas desmatadas (Almeida et al. 2016). A Embrapa desenvolveu ainda o Sistema Interativo de Análise Geoespacial da Amazônia Legal (Siageo), com dados do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) da região.
De acordo com a Fundação Nacional do Índio (Funai), existem 115,9 Mha de terras indígenas na Amazônia. A base de dados da Funai inclui dois casos: (a) áreas cujos limites foram demarcados, mas ainda não certificados; e (b) áreas já reconhecidas legalmente. Consideramos ambos os casos como terras indígenas legitimadas. O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) fornece dados de unidades de conservação que incluem áreas de proteção integral (45,8 Mha) e áreas de uso sustentável (81,8 Mha).
Dados sobre terras quilombolas e assentamentos são fornecidos pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Existem 156 áreas quilombolas na Amazônia, com um total de 1,9 Mha. O bioma Amazônia tem 76% dos assentamentos no Brasil, divididos em dois grupos. As áreas de ocupação tradicional, na maior parte criadas até o início da década de 2000, abrigam migrantes de outras regiões e seus descendentes. Áreas de uso sustentável são destinadas a povos e comunidades tradicionais, incluindo comunidades ribeirinhas e extrativistas. Essas últimas incluem: (a) projetos agroextrativistas (PAE); (b) projetos de desenvolvimento sustentável (PDS); e (c) reservas extrativistas (Resex) e de desenvolvimento sustentável (RDS). No caso dos PDS e PAE, usamos uma reserva legal de 80%. Já as Resex e RDS são áreas de proteção integral.
O Incra tem três bases de dados sobre posse da terra privada na Amazônia. O Sistema de Gestão Fundiária (Sigef) cobre 159.800 propriedades com 77,4 Mha. O Sistema Nacional de Certificação Fundiária (SNCI) detém dados sobre 15.260 propriedades, com 32,2 Mha. O SNCI e o Sigef não têm sobreposição de dados. O Cadastro Legal de Terras (Terra Legal) foi criado em 2009 para certificar terras para pequenos agricultores que tinham ocupado terras públicas. Existem 165.580 propriedades no Terra Legal, cobrindo 11,7 Mha na Amazônia.
A quarta fonte de dados sobre posse da terra é o Cadastro Ambiental Rural (CAR), gerenciado pelo Serviço Florestal Brasileiro. A versão do CAR utilizada neste trabalho contém 985.225 propriedades na Amazônia Legal. Como o CAR é autodeclarado, existem inconsistências e sobreposições com SNCI, Sigef e Terra Legal. Até o final de 2022, a maior parte dos registros do CAR estavam pendentes de validação (Charivari et al. 2021). Existem muitos problemas com os dados do CAR, incluindo entradas duplicadas, inconsistências geométricas (como sobreposições e lacunas), incompatibilidades legais e informação em falta ou conflituosa. Na falta de dados validados, definimos e aplicamos regras de ajuste para produzir mapas consistentes a partir dos dados do CAR. Retirando propriedades duplicadas ou consideradas irregulares, obtivemos 677.630 propriedades únicas no bioma Amazônia. Para fins de análise de reserva legal, agrupamos as propriedades de cada assentamento em uma só unidade, dado que os assentamentos têm reserva legal comum. Tal arranjo gera 502.953 terras privadas e 2.476 assentamentos. As terras privadas em áreas de floresta natural, em pé ou cortadas, somam 107,61 Mha, e os assentamentos têm 30,80 Mha, totalizando 138,41 Mha.
Figura 1: Propriedades rurais e assentamentos no bioma Amazônia. Elaboração dos autores com dados Incra e CAR/SFB.
A Figura 1 retrata as propriedades privadas e os assentamentos no bioma Amazônia por classe de tamanho. As maiores concentrações de imóveis de pequeno porte (menores que 200 ha) ficam em Rondônia, no braço paraense da rodovia Transamazônica, na zona Bragantina (PA) e na parte maranhense do bioma. Em sua maioria, são áreas ocupadas até a década de 2000. No entorno do parque do Xingu, no Norte de Mato Grosso, no Sul do Pará, Sudeste do Amazonas e ao longo da BR-163, predominam propriedades de médio (200 a 1000 ha) e grande porte (mais de 1000 ha). De forma geral, essas são áreas de ocupação recente.
EVOLUÇÃO DO DESMATAMENTO LEGAL E ILEGAL
A partir dos dados acima descritos, medimos o desmatamento legal e ilegal de 2008 a 2021, usando quatro regras: (a) cortes de floresta em áreas de proteção integral são ilegais; (b) cortes em terras privadas fora da reserva legal são legais; (c) cortes em terras privadas dentro dos limites de reserva legal são considerados ilegais; e (d) assentamentos são considerados como uma única propriedade, para fins de cálculo de reserva legal. Para medir o desmatamento ilegal, comparamos os dados de propriedades com os mapas de desmatamento. Para cada propriedade, calculamos a proporção de floresta primária com base nos dados do Prodes/Inpe. Assim, é possível determinar a extensão do desmatamento legal e ilegal por propriedade.
Figura 2: Desmatamento legal e ilegal nas propriedades do bioma Amazônia. Elaboração dos autores com dados Incra, CAR/SFB, Funai, ICMBio, Inpe.
O total de desmatamento legal e ilegal entre 2008 e 2021 é mostrado na Figura 2. Exceto para 2008, a proporção de corte ilegal varia entre 81% e 87%. Os dados de 2008 refletem a anistia concedida pelo Código Florestal para áreas desmatadas antes dessa data. A proporção de desmatamento legal segue três tendências. De 2009 a 2014, com a forte ação governamental para combater o desmatamento, a proporção de desmatamento legal diminui. Isto indica que os agricultores reagiram às ações de comando e controle. A proporção de desmatamento legal cresce em 2015 e permanece relativamente estável até 2018. De 2019 a 2021, tanto o desmatamento ilegal como os cortes legais aumentam, o que está relacionado com a quase completa falta de fiscalização no governo Bolsonaro. Assim, os dados sugerem que tanto o desmatamento legal como o ilegal respondem às ações de controle do governo.
Figura 3: Desmatamento total por tipo de posse de terra. Elaboração dos autores com dados Incra, CAR/SFB, Funai, ICMBio, Inpe.
Figura 4: Desmatamento relativo por tipo de direito de posse de terra. Elaboração dos autores com dados Incra, CAR/SFB, Funai, ICMBio, Inpe.
Também calculamos a extensão do desmatamento por tipo de destinação da terra, considerando terras privadas, assentamentos, unidades de conservação, terras indígenas e terras públicas não destinadas, no período de 2008 a 2021. A Figura 3 mostra o desmatamento total por tipo de destinação da terra, e a Figura 4, a variação relativa. Os dados mostram que cerca de 50% do corte de floresta ocorrem em terras privadas, enquanto a percentagem de cortes nos assentamentos decresce de 30% nos anos 2008-2012 para 25% nos anos mais recentes. O desmatamento em terras públicas não destinadas aumentou de 12% em 2008 para 20% em 2021. Esse último aumento é um sinal crítico de expansão da fronteira terrestre para novas áreas fora do tradicional “arco do desmatamento” (Azevedo-Ramos et al. 2020).
Figura 5: Desmatamento acumulado pela ordem das propriedades em que ocorrem os maiores cortes. Elaborado pelos autores com dados Incra, CAR/SFB, Inpe.
A distribuição cumulativa do desmatamento em propriedades e assentamentos é mostrada na Figura 5. Para fazer este gráfico, esses imóveis são ordenados do maior para o menor desmatamento anual por propriedade. O gráfico exclui cortes em terras públicas não destinadas, unidades de conservação e terras indígenas que correspondem a valores entre 20% e 25% do total de desmatamento anual. Observa-se um caso extremo da Lei de Pareto, em que poucos elementos são responsáveis pela maior parte dos efeitos. Em geral, apenas cerca de 5% das propriedades e assentamentos são responsáveis por 100% dos cortes da floresta a cada ano dentro das áreas registradas no CAR.
De 2008 a 2012, quando houve uma forte ação do governo, cerca de 1% das propriedades realizou 75% dos cortes florestais. No período 2018-2021, quando as ações de aplicação da lei foram muito reduzidas, cerca de 0,5% das propriedades foram responsáveis por 75% dos cortes. Ou seja, nos anos recentes, apenas 2.500 propriedades e assentamentos de um total de 500 mil concentram a maior parte dos cortes. Assim, temos uma forte concentração de atores relacionados com grandes ações de desmatamento. Isto sugere que ações de controle orientadas podem ter um forte efeito na prevenção do desmatamento ilegal.
Dado que a responsabilidade pela maior parte do desmatamento é de uma pequena fração das propriedades e assentamentos, é interessante visualizar sua distribuição espacial. A Figura 6 mostra a localização de todas as propriedades e assentamentos declarados no CAR, com destaque para 1% das terras tituladas na Amazônia, que respondem por 83% do desmatamento nessas propriedades em 2021.
Figura 6: Localização espacial das propriedades rurais na Amazônia, com destaque para 5.054 propriedades (1% do total) responsáveis por 83% do desmatamento nas áreas registradas no CAR em 2021. Elaboração dos autores com dados Incra, CAR/SFB, Funai, ICMBio, Inpe.
DÉFICITS E EXCEDENTES DE RESERVA LEGAL
Para calcular os déficits e excedentes de reserva legal no bioma Amazônia, deve-se considerar as exceções no Código Florestal que permitem reduzir a reserva legal para 50% da propriedade exclusivamente para fins de recomposição. Tais situações incluem: (a) quando o município tem mais de 50% da área ocupada por unidades de conservação e por terras indígenas (artigo 12, §4.o); e (b) quando indicado pelo Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) do estado (artigo 13, inciso I). Nesses casos, as propriedades devem restaurar sua reserva legal para os percentuais existentes em 2008, na proporção mínima de 50%. Por exemplo, uma propriedade com 40% de reserva legal em 2008 deve recompor 10% de sua área para floresta nativa. Até o final de 2022, apenas três estados (Acre, Rondônia e Pará) homologaram a redução de parte do seu território para 50% de reserva legal. Neste trabalho, além desses estados, foram usados os ZEEs dos estados do Maranhão e Tocantins, também disponíveis no Siageo Amazônia (Embrapa 2022).
Um terceiro tipo de redução de reserva legal de 80% para 50% é previsto no artigo 12, §5.o, quando um estado tem mais de 65% do seu território ocupado por unidades de conservação e por terras indígenas.
Tabela 2: Área total de floresta e desmatamento por tamanho e tipo de propriedade, e déficits e excedentes de reserva legal. Elaboração dos autores com dados Incra, CAR/SFB, ICMBio, Inpe, Embrapa.
A Tabela 2 mostra os déficits e excedentes acumulados por tamanho de propriedade e para os assentamentos. Existem 22,36 Mha de déficits de reserva legal no bioma Amazônia. Em contraste, há 9,25 Mha de excedentes disponíveis para oferecer no mercado de cotas de reserva ambiental. Em termos gerais, o cumprimento pleno do Código Florestal implicaria uma restauração de 13,11 Mha de floresta tropical. Em tese, as regras da Lei permitem ao Brasil atender aos compromissos de restauração estabelecidos em sua NDC. Na prática, há um conjunto de obstáculos consideráveis para que o Código Florestal venha a ser cumprido. Para entender melhor tais desafios, é preciso considerar o custo de oportunidade associado ao uso da terra em áreas desmatadas, que examinaremos a seguir.
Na prática, há um conjunto de obstáculos consideráveis para que o Código Florestal venha a ser cumprido. Para entender melhor tais desafios, é preciso considerar o custo de oportunidade associado ao uso da terra em áreas desmatadas…
Tabela 3: Tipos de uso da terra em áreas desmatadas no bioma Amazônia no ano 2020, com áreas associadas e déficits de reserva legal correspondentes. Elaboração dos autores com dados Incra, CAR/SFB, ICMBio, Inpe, Embrapa.
Para calcular os déficits de reserva legal associados a cada tipo de uso da terra, utilizamos os dados de 2020 do mapa de uso da terra das áreas desmatadas (TerraClass) produzido pelo Inpe e pela Embrapa (Almeida et al. 2016). As classes de uso da terra identificadas no TerraClass incluem: (a) silvicultura; (b) agricultura temporária de um e dois ciclos, relacionada principalmente à soja de um ciclo ou em consórcio com milho ou algodão; (c) culturas permanentes como café e cacau; (d) cana-de-açúcar; (e) pastagem herbácea (cultivada com gramíneas); (f) pastagem arbustiva (pastagem com presença de vegetação lenhosa além de gramíneas); e (g) vegetação secundária (área de floresta cortada em processo de regeneração).
As áreas por tipo de uso e déficits relacionados são apresentadas na Tabela 3. Para fins de cálculo de déficit, consideramos uma hierarquia de custos de oportunidade de restauração, na ordem inversa das classes identificadas no TerraClass (ver acima). Nossa hipótese é que proprietários com déficits de reserva legal procurariam compensar suas obrigações usando inicialmente eventuais áreas de vegetação secundária. A seguir, a restauração florestal priorizaria pastagens arbustivas, caso existam. Depois de considerar essas classes de menor custo de oportunidade, seguem-se pastagens herbáceas e, finalmente, as classes de agricultura.
Um dos benefícios do mapeamento do TerraClass é sua capacidade de separar pastagens herbáceas de arbustivas. O primeiro caso corresponde a áreas em que houve investimento na formação e manutenção de gramíneas exógenas que permitem uma maior lotação e produtividade do rebanho. Já as pastagens arbustivas estão associadas a rebanhos menores e menos produtivos.
Os resultados mostram que as áreas que mais facilmente poderiam ser utilizadas para restauração são as de vegetação secundária. No seu total, temos 11,16 Mha nesta categoria, valor próximo ao compromisso brasileiro em sua NDC. No entanto, apenas 3,62 Mha dessas áreas correspondem a déficits de reserva legal com obrigação de restauração. Isso mostra que a maior parte da vegetação secundária poderia ser cortada legalmente. Para usar tais áreas como base para restauração, será necessário um conjunto balanceado de incentivos e acordos com os donos dessas áreas. Caso seja viável restaurá-las, esta seria a alternativa de menor custo de oportunidade para atingir a meta da NDC brasileira.
A vegetação secundária refere-se a áreas de regeneração florestal resultantes do abandono de terras ou pastagens degradadas. A literatura mostra que as áreas de vegetação secundária são temporárias (Picoli et al. 2020, Tyukavina et al. 2017, Richards 2015, Miranda et al. 2019). Nas zonas fronteiriças, o desmatamento é feito a cabo por grileiros (Schielein & Borner 2018, Azevedo-Ramos et al. 2020). Esses especuladores obtêm títulos de terra temporários, em alguns casos emitidos de forma irregular. Mais tarde, vendem a terra aos agricultores quando os preços lhes permitem ter lucro (Azevedo-Ramos et al. 2020). Se tais áreas desmatadas não forem ocupadas por usos agrícolas por mais de três anos, podem se transformar em regeneração florestal. Depois de a terra ser vendida, a vegetação secundária é novamente cortada. Outra situação ocorre quando as áreas são deixadas em pousio; essas áreas evoluem para vegetação secundária e são susceptíveis de serem novamente cortadas para uso agrícola (Picoli et al. 2020). Esses fatos indicam que é essencial completar com urgência a certificação dos registros do CAR para estabelecer a regularidade dos imóveis com áreas de vegetação secundária.
Com relação à pecuária, as áreas de pastagem herbáceas (90% ou mais de gramíneas) totalizam 32,83 Mha, na maior parte associadas a rebanhos em terras de médio e grande porte. Cerca de 26% dessas áreas (8,47 Mha) têm déficits de reserva legal e precisariam ser restauradas. Temos aqui um desafio substancial. Por um lado, se deixar de aplicar a Lei no caso de déficit de reserva legal de tamanha magnitude, o governo poderia passar a mensagem de coadunar com a impunidade. No entanto, esses proprietários têm forte presença política na região e no Congresso; certamente irão pressionar para que sejam concedidos incentivos e pagamentos por serviços ambientais decorrentes da restauração. A implicação prática do cumprimento integral da Lei seria aumentar em 35% a taxa de lotação do rebanho bovino na Amazônia. Não se pode subestimar a magnitude dessa transformação produtiva, difícil de ser alcançada sem políticas de crédito rural associadas ao cumprimento do Código Florestal.
As pastagens arbustivas ocupam área total bem menor que as pastagens herbáceas (10,63 Mha); quase a metade das áreas de pastagem arbustiva (5,03 Mha) deveria ser reflorestada para cumprir a Lei. Para pequenos produtores e assentamentos, temos uma área total de pastagem arbustiva de 6,15 Mha, sendo que 2,55 Mha (41,5%) correspondem a déficits de reserva legal. Deve-se considerar que os proprietários dessas terras são os mais descapitalizados da região, com rendimentos menores que os grandes fazendeiros de gado. É recomendável considerar um regime diferenciado, adequado à situação desses proprietários.
No caso de agricultura de um e dois ciclos, a maior parte da área (4,63 Mha) é de propriedades de médio e grande porte, com um déficit associado de 1,93 Mha (41,7%). Como se trata de produtores capitalizados e áreas de alto valor econômico (Spera et al. 2014, Picoli et al. 2020), esses fazendeiros têm potencial para comprar cotas de reserva ambiental no bioma. Considerando que o percentual de não conformidade com o Código Florestal é significativo, a política pública para esses proprietários terá de ser cuidadosamente pensada. Assim como no caso das pastagens herbáceas, caso os donos de terras usadas para produzir grãos não recomponham suas reservas legais nem comprem cotas de reserva ambiental, será difícil para o governo impor o cumprimento da Lei para os demais donos de terra.
CONCLUSÕES
Este trabalho utiliza as informações mais recentes disponíveis sobre desmatamento, posse e uso da terra no bioma Amazônia para quantificar as perspectivas e os desafios de implementação do Código Florestal. No lado positivo, dada a forte concentração de novos desmatamentos em pequeno número de propriedades, verifica-se que um esforço concentrado e eficiente de monitoramento e fiscalização poderá cumprir a meta de desmatamento ilegal zero estabelecida na NDC brasileira.
Este trabalho utiliza as informações mais recentes disponíveis sobre desmatamento, posse e uso da terra no bioma Amazônia para quantificar as perspectivas e os desafios de implementação do Código Florestal. (...) Os resultados apresentados indicam que há grandes desafios para promover a restauração florestal na Amazônia e o consequente cumprimento do item correspondente da NDC.
Os resultados apresentados indicam que há grandes desafios para promover a restauração florestal na Amazônia e o consequente cumprimento do item correspondente da NDC. Os maiores desafios estão relacionados à área ocupada por pastagem herbácea associada a grandes e médios produtores. Os resultados obtidos pelos autores diferem de estimativas anteriores que indicavam grande quantidade de pastagem degradada na Amazônia. Tais estudos sugeriram um custo de oportunidade relativamente baixo para implementar o Código Florestal. Em contraste, o presente trabalho mostra que existem 8,5 Mha de déficit de reserva legal associados a pastagens com gramíneas. Como se trata de produtores capitalizados de médio e grande porte, prevê-se uma difícil negociação com tais proprietários para cumprir a Lei.
A segunda dificuldade diz respeito aos médios e grandes produtores de grãos, associados à agricultura de um e dois ciclos. Esses proprietários ocupam as áreas de melhor qualidade e fazem investimentos significativos. Em termos de não aderência ao Código, tais áreas têm 43,9% de déficit. Caso o governo não encontre uma solução viável para regularização nesses casos, possivelmente terá dificuldade de fazer os demais proprietários cumprirem a Lei.
Nas áreas ocupadas por vegetação secundária e pastagem arbustiva em assentamentos, pequenas e médias propriedades somam 15,13 Mha, dos quais 7,11 Mha (47%) estão associados a déficits de reserva legal. Considerando as dificuldades de implementar a restauração florestal impositiva nos casos acima descritos, é possível pensar numa alternativa na qual o governo faça uma política ativa de pagamentos de serviços ambientais para pequenos e médios produtores, com a contrapartida de restauração integral das áreas de vegetação secundária e de pastagem arbustiva. O desafio aqui é ajustar os pagamentos de forma a cobrir os custos de oportunidade associados e manter uma fiscalização estrita dessas áreas para evitar ilegalidades.
Em resumo, o governo brasileiro tem um grande desafio na implementação do Código Florestal e da restauração prevista pela NDC no bioma Amazônia. Há grandes e médios proprietários cujos custos de oportunidade para restaurar a floresta são significativos. Esses donos de terra têm força política e irão certamente reagir a ações unilaterais que os forcem a cumprir o Código Florestal sem contrapartida financeira ou políticas diferenciadas de crédito rural.
Deve-se ressaltar que o governo brasileiro tem atualmente ao seu dispor capacidade substancial de coletar e analisar informações relativas ao Código Florestal. Os sistemas de monitoramento ambiental por satélite têm alto nível de sofisticação e capacidade. É possível, com um esforço concentrado de inteligência que envolva especialistas e bons algoritmos, realizar a limpeza dos dados do CAR para produzir uma base fundiária confiável. O Brasil tem a capacidade de combinar a grande quantidade de dados existentes e produzir estudos qualificados de suporte a políticas públicas. Isso indica que parte importante dos elementos técnicos necessários para implementar o Código Florestal e a NDC estão disponíveis. O grande desafio é definir a política pública adequada para atingir os compromissos brasileiros do Acordo de Paris.
Agradecimentos
Este trabalho foi parcialmente financiado pelo International Climate Initiative (IKI) do Ministério do Meio Ambiente, Conservação da Natureza e Segurança Nuclear da Alemanha, através do grant 17-III-084- Global-A-RESTORE+. Também foi apoiado pelo Fundo Amazônia, através do acordo BNDES/Funcate 17.2.0536.1 (projeto “Monitoramento dos Biomas Brasileiros”). Recursos adicionais foram aportados pela Microsoft, pelo Group on Earth Observations e pelo Instituto Clima e Sociedade. A Comissão Europeia também contribuiu através do programa Horizon Europe, com financiamento do projeto “Open Earth Monitor” (grant no. 101059548). O projeto TerraClass (Inpe/Embrapa) tem apoio do Banco Mundial e do Centro Gestor e Operacional do Sistema de Proteção da Amazônia (Censipam). O sistema Prodes é financiado pelo Ministério da Ciência e Tecnologia do governo do Brasil, por meio da ação 20V9 (Monitoramento do Orçamento dos Biomas Brasileiros), com apoio adicional do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq), através do processo 444418/2018-0.
Almeida, C., A. Coutinho, J. Esquerdo, M. Adami, A. Venturieri, C. Diniz, N. Dessay, L. Durieux, & A. Gomes. 2016. “High Spatial Resolution Land Use and Land Cover Mapping of the Brazilian Legal Amazon in 2008 Using Landsat-5/TM and MODIS Data”. Acta Amazonica 46 (3): 291–302. https://doi.org/10.1590/1809-4392201505504.
Azevedo-Ramos, C., P. Moutinho, V. L. d. S. Arruda, M. C. C. Stabile, A. Alencar, Castro, & J. P. Ribeiro. 2020. “Lawless Land in No Man’s Land: The Undesignated Public Forests in the Brazilian Amazon”. Land Use Policy 99, 104863. https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2020.104863.
Charivari, J., C. L. Lopes & J. N. de Araujo. 2021. Onde estamos na implementação do Código Florestal? Radiografia do CAR e do PRA nos estados brasileiros. Edição 2021. Relatório técnico. Rio de Janeiro: Climate Policy Initiative/PUC-Rio. https://www.inputbrasil.org/wp-content/uploads/2021/12/REL-WEB-Onde-Estamos-2021.pdf.
CSR. 2022. Panorama do Código Florestal Brasileiro. Relatório técnico. Centro de Sensoriamento Remoto, UFMG. https://csr.ufmg.br/radiografia_do_cf/wp-content/uploads/2022/11/policy_brief_pt_final.pdf.
Dias-Filho, M. & C. Andrade. 2019. Recuperação de Pastagens Degradadas na Amazônia. Brasília: Embrapa. http://dx.doi.org/10.13140/RG.2.1.1854.5761.
Embrapa. 2022. Siageo Amazônia (Sistema Interativo de Análise Geoespacial da Amazônia Legal). Base de dados. https://www.amazonia.cnptia.embrapa.br/.
Guidotti, V., S. Ferraz, L. Pinto, G. Sparovek, R. Taniwaki, L. Garcia, & P. Brancalion. 2020. “Changes in Brazil’s Forest Code Can Erode the Potential of Riparian Buffers to Supply Watershed Services”. Land Use Policy 94: 104511. https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2020.104511.
INPE. 2022. Projeto de Monitoramento do Desmatamento da Amazônia (Prodes). Base de dados. Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, Brasil. http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/.
Igari, A., A. Brites, A. P. Valdiones, B. Junior, B. Salgado, et al. 2021. O Avanço da implementação do Código Florestal no Brasil. Relatório Técnico. Observatório do Código Florestal. https://ipam.org.br/wp-content/uploads/2021/12/O-avanco-da-implementacao-do-Codigo-Florestal-no-Brasil-IPAM_V11-1-1.pdf.
Miranda, J., J. Borner, M. Kalkuhl, & B. Soares-Filho. 2019. “Land Speculation and Conservation Policy Leakage in Brazil”. Environmental Research Letters 14: 045006https://www.doi.org/10.1088/1748-9326/ab003a.
Picoli, M., A. Rorato, P. Leitão, G. Câmara, A. Maciel, P. Hostert, & I. Sanches. 2020. “Impacts of Public and Private Sector Policies on Soybean and Pasture Expansion in Mato Grosso—Brazil from 2001 to 2017”. Land 9 (1): 20. https://doi.org/10.3390/land9010020.
Rajão, R., B. Soares-Filho, F. Nunes, J. Börner, L. Machado, D. Assis, A. Oliveira, L. Pinto, V. Ribeiro, L. Rausch, H. Gibbs, & D. Figueira. 2020. “The Rotten Apples of Brazil’s Agribusiness”. Science 369 (6501): 246–248. https://doi.org/10.1126/science.aba6646.
Richards, P. 2015. “What Drives Indirect Land Use Change? How Brazil’s Agriculture Sector Influences Frontier Deforestation”. Annals of the Association of American Geographers 105 (5): 1026–1040. https://doi.org/10.1080%2F00045608.2015.1060924.
Schielein, J. & J. Borner. 2018. “Recent Transformations of Land-use and Land-cover Dynamics across Different Deforestation Frontiers in the Brazilian Amazon”. Land Use Policy 76: 81–94. https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2018.04.052.
Soares-Filho, B., R. Rajao, M. Macedo, A. Carneiro, W. Costa, M. Coe, H. Rodrigues, & A. Alencar. 2014. “Cracking Brazil’s Forest Code”. Science 344 (6182), 363–364. https://doi.org/10.1126/science.1246663.
Soterroni, A. C., A. Mosnier, A. Carvalho, G. Câmara, M. Obersteiner, P. R. Andrade, R. Souza, R. Brock, J. Pirker, F. Kraxner, P. Havlik, V. Kapos, E. Ermgassen, H. Valin, & F. M. Ramos. 2018. “Future Environmental and Agricultural Impacts of Brazil’s Forest Code”. Environmental Research Letters 13 (7), 074021. https://doi.org/10.1088/1748-9326/aaccbb.
Souza, C., J. Shimbo, M. Rosa, L. Parente, A. Alencar, B. Rudorff, H. Hasenack, M. Matsuoto, L. Ferreira, P. W. Souza-Filho, S. de Oliveira, W. Rocha, A. Fonseca, C. Marques, C. Diniz, D. Costa, D. Monteiro, E. Rosa, E. Vélez-Martin, E. Weber, F. Lenti, F. Paternost, F. Pareyn, J. V. Siqueira, J. L. Viera, L. C. Neto, M. Saraiva, M. H. Sales, M. Salgado, R. Vasconcelos, S. Galano, V. Mesquita, & T. Azevedo. 2020. “Reconstructing Three Decades of Land Use and Land Cover Changes in Brazilian Biomes with Landsat Archive and Earth Engine”. Remote Sensing 12 (17): 2735. http://dx.doi.org/10.3390/rs12172735.
Spera, S, A. Cohn, L. VanWey, J. Mustard, B. Rudorff, J. Risso, & M. Adami. 2014. “Recent Cropping Frequency, Expansion, and Abandonment in Mato Grosso, Brazil, had Selective Land Characteristics”. Environmental Research Letters 9 (6): 064010. https://doi.org/10.1088/1748-9326/9/6/064010.
Stabile, M., A. Guimarães, D. Silva, V. Ribeiro, M. Macedo, M. Coe, E. Pinto, P. Moutinho, & A. Alencar. 2020. “Solving Brazil’s Land Use Puzzle: Increasing Production and Slowing Amazon Deforestation”. Land Use Policy 91: 104362. https://doi.org/10.1016/j.landusepol.2019.104362.
Townsend, C., N. Costa & R. Pereira. 2009. Aspectos econômicos da recuperação de pastagens na Amazônia Brasileira. Relatório técnico. Porto Velho, RO: Embrapa Rondônia. https://ainfo.cnptia.embrapa.br/digital/bitstream/CPAF-RO-2010/14552/1/131-pastagem.pdf.
Tyukavina, A., M. C. Hansen, P. V. Potapov, S. V. Stehman, K. Smith-Rodriguez, C. Okpa, & R. Aguilar. 2017. “Types and Rates of Forest Disturbance in Brazilian Legal Amazon, 2000–2013”. Science Advances 3 (4): e1601047. https://doi.org/10.1126/sciadv.1601047.
Recebido: 27 de novembro de 2022
Aceito para publicação: 28 de novembro de 2022
Copyright © 2022 CEBRI-Revista. Este é um artigo em acesso aberto distribuído nos termos da Licença de Atribuição Creative Commons, que permite o uso irrestrito, a distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o artigo original seja devidamente citado.