Temos discutido à exaustão, ao longo dos últimos meses, sobre as variadas implicações da Guerra da Ucrânia para as relações internacionais. Reflexões de toda ordem: sobre a globalização e seus efeitos, sobre como o conflito impulsiona o processo de transição hegemônica entre Estados Unidos e China, sobre as características do combate em meio às novas tecnologias e, claro, sobre o futuro das estruturas de governança existentes até então.
Para além da dimensão geopolítica mais óbvia, no entanto, a crise no Leste europeu trouxe à baila, com grande ênfase, preocupações também relacionadas a outros temas, como é o caso da segurança energética.
Para além da dimensão geopolítica mais óbvia, no entanto, a crise no Leste europeu trouxe à baila, com grande ênfase, preocupações também relacionadas a outros temas, como é o caso da segurança energética. Isso porque países dependentes de insumos externos, como o gás ou petróleo russos, por exemplo, viram-se encurralados quanto à sua própria capacidade de abastecimento. Sem surpresa, o debate sobre transição e diversificação de fontes ganhou momentum com o investimento nuclear, especialmente impulsionado na Europa e nos Estados Unidos. Isso demarcou uma inclinação que contraria a tendência anterior nesses países, cujas lideranças vinham sendo resistentes à ampliação de esforços nessa direção ao longo das últimas décadas. É considerado emblemático o recente movimento da União Europeia em permitir a inclusão da energia nuclear como “fonte energética verde” na chamada Taxonomia da UE para atividades. Também é digno de nota o volume de novos investimentos, nos Estados Unidos, em tecnologia nuclear (European Parliament 2022, Department of Energy 2022).
No Brasil, embora por razões diferentes, o tema também tem estado em voga. Várias iniciativas foram adotadas pelo governo federal para expandir a energia nuclear nos últimos anos. As medidas incluem a retomada das obras de Angra 3, a volta da mineração de urânio, o anúncio de uma nova usina até 2031, a criação da Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional (ENBPar) e da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear (ANSN) (Paladino 2022, EPE 2022).
Seja para fins pacíficos ou militares, o fato é que a energia nuclear tem sido vista como elemento-chave para o desenvolvimento dos países ao longo da História. Ela impacta a capacidade industrial dos países e afeta, muitas vezes, sua própria narrativa e estratégia de sobrevivência dentro do sistema internacional.
Seja para fins pacíficos ou militares, o fato é que a energia nuclear tem sido vista como elemento-chave para o desenvolvimento dos países ao longo da História. Ela impacta a capacidade industrial dos países e afeta, muitas vezes, sua própria narrativa e estratégia de sobrevivência dentro do sistema internacional.
No caso do Brasil, especificamente, o país tem enorme potencial em minerais atômicos e capacidade tecnológica especializada: congrega a sexta maior reserva de urânio do planeta, possui duas usinas ativas e uma em construção, além da perspectiva de inauguração do primeiro submarino de propulsão nuclear desenvolvido nacionalmente (Patti 2014).
Nesse contexto, portanto, a leitura de Brazil in the Global Nuclear Order, 1945–2018, de Carlo Patti, não poderia ser mais oportuna. Publicado em 2021 pela Johns Hopkins University Press, o livro destrincha, em pouco mais de 300 páginas – incluindo nove capítulos, uma introdução e uma conclusão – a história do programa nuclear do Brasil e, mais do que isso, trata da experiência brasileira como um estudo de caso útil para compreender o comportamento do Sul Global em relação às normas internacionais.
Patti, que é italiano, mas mora e trabalha no Brasil, é doutor em História das Relações Internacionais pela Universidade de Florença e professor da Universidade Federal de Goiás, onde atualmente coordena o programa de pós-graduação em Ciência Política. O autor se dedica ao estudo do tema há anos e, para além de Brazil in the Global Nuclear Order, 1945-2018, também já publicou O programa nuclear brasileiro: uma história oral pelo CPDOC-FGV, em 2014, obra na qual reúne mais de 100 horas de entrevistas com alguns dos protagonistas da história da energia nuclear do país.
No livro de 2021, ao contemplar fatores domésticos, internacionais e a forma como afetaram a diplomacia nuclear brasileira nas últimas décadas, Patti se propõe a elucidar as razões que levaram o Brasil da oposição ao regime de não proliferação nuclear à sua adesão. De mesmo modo, promove uma análise sobre o porquê de o Brasil nunca ter desenvolvido armas nucleares, assim como discute o papel atual do país diante dos regimes internacionais sobre o tema.
A reconstrução histórica proposta pelo livro começa no cenário do mundo pós-Segunda Guerra Mundial. No capítulo 1, Patti descreve o período de 1946 a 1955 como sendo aquele em que se origina a ambição nuclear do Brasil. Trata-se do momento em que o país inicia o seu programa atômico e busca cooperar com outros Estados detentores de conhecimento e tecnologias nucleares que estivessem interessados nas jazidas de minerais brasileiras. Na sequência, o interregno entre 1955 e 1964 é descrito no capítulo 2 como um momento particularmente intenso de nossa história nuclear, uma vez que, tendo a Guerra Fria como pano de fundo, o tema ganhou espaço e prioridade para o governo brasileiro. Nesse período, inclusive, é que o então presidente Juscelino Kubitschek inaugurou oficialmente o IEA-R1, o primeiro reator de pesquisa do Brasil e um dos primeiros da América Latina.
Entre 1964 e 1974, já sob o regime militar, Patti mostra, no capítulo 3, que o país reforçou sua posição soberanista e empreendeu críticas à minuta do Tratado de Não Proliferação Nuclear (TNP) apresentada pelas potências estabelecidas em 1965. Paralelamente, no entanto, o Brasil se aproximou dos Estados Unidos, com quem passou a estabelecer uma relação de dependência no campo nuclear. Apesar disso, entre 1974 e 1979, o livro descreve, no capítulo 4, que a oposição brasileira ao regime de não proliferação levou a diferenças de entendimento em relação ao governo norte-americano e abriu espaço, naquele momento, para um grande e controverso acordo com a Alemanha Ocidental. Patti sugere, nos capítulo 5 e 6, que esse contexto também permitiu que, de 1979 a 1985, o Brasil se aproximasse de outros oponentes importantes ao TNP, especialmente Argentina e China.
O período subsequente, coberto pelo livro no capítulo 7, de 1989 a 1994, é definido como aquele em que o Brasil desiste de suas ambições nucleares. Segundo Patti, a redemocratização e o fim da Guerra Fria afetaram profundamente a relação do país com as normas internacionais de não proliferação e culminaram na adesão do Brasil ao TNP. De 1995 a 2003, portanto, período coberto pelo capítulo 8, o Brasil abriu mão de dispositivos nucleares e admitiu as salvaguardas internacionais, embora tenha defendido o direito de conservar um programa industrial avançado e o estado de latência nuclear. Ao longo desse período, a obra de Patti relembra que o Brasil chegou a criticar países que realizaram testes nucleares, como Índia e Paquistão, por exemplo, mas, ao mesmo tempo, recusou dispositivos adicionais ao regime de não proliferação por considerá-los demasiado intrusivos. Vale lembrar que, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, o Brasil concluiu a construção de Angra 2 e passou a investir no estabelecimento de uma usina de enriquecimento de urânio em escala comercial.
Na última parte do livro, já no contexto do século XXI, Patti descreve, no capítulo 9, o intervalo entre 2003 e 2018 como o momento em que o Brasil tentou assumir definitivo protagonismo no que tange à ordem nuclear global, reforçando a ideia de que não deve ser visto como um ator marginal nessas discussões. Durante o governo Lula, tanto a Estratégia Nacional de Defesa quanto um novo plano energético, ambos anunciados em 2008, passaram a incluir a energia nuclear como prioridade para o desenvolvimento nacional. A partir de então, o governo brasileiro retomou a construção de um submarino de propulsão nuclear e decidiu aumentar o número de usinas existentes. Também tornou a encampar o discurso de que o Brasil seria candidato a um assento permanente no Conselho de Segurança da ONU sem deter uma bomba nuclear. Nessa esteira, portanto, nos anos subsequentes, o Brasil tentou mediar crises internacionais de grande projeção, como a que envolveu Estados Unidos e Irã, em 2010. Também se tornou um dos principais defensores do estabelecimento de um tratado de proibição de armas nucleares.
No decorrer de toda a narrativa histórica que se realiza ao longo do livro, é interessante ressaltar que o autor enfatiza três pontos focais para a compreensão de boa parte das decisões brasileiras no que se refere ao desenvolvimento de seu programa nuclear ao longo dos anos: 1) o papel dos Estados Unidos, visto como força externa fundamental para moldar as preferências do Brasil; 2) a relação Brasil-Argentina, que evoluiu da rivalidade para a cooperação, fundamental para estabelecer uma Nuclear-Weapon-Free Zone (NWFZ) na América Latina; e 3) o protagonismo da diplomacia profissional especializada como ator fundamental no processo de negociação de acordos internacionais de desarmamento nuclear e mediação de crises globais.
Patti traz à tona a preocupação dos diplomatas brasileiros, ao longo de toda a história, em buscar a autonomia do Brasil dentro da ordem nuclear.
Além disso, Patti traz à tona a preocupação dos diplomatas brasileiros, ao longo de toda a história, em buscar a autonomia do Brasil dentro da ordem nuclear. Nesse sentido, o livro é certeiro em apresentar os debates envolvendo o enquadramento dado ao regime de não proliferação pela ótica do Brasil em vários momentos: de que é injusto e discriminatório em relação aos Estados emergentes e que só poderia ser aceito pelo Brasil se “as regras do jogo” fossem condicionadas às realidades e necessidades do país.
Em 2023, a implementação do programa atômico brasileiro completará 70 anos. Nesse contexto, é muito importante conhecer um livro como esse, cujo processo de pesquisa e elaboração se baseia em uma sofisticada análise histórica, a partir de arquivos e documentos primários e entrevistas com pessoas-chave.
Diante das profundas reflexões estruturais que se colocam diante de nós, bem como da necessidade de problematizarmos sobre quem é o Brasil e o que o país deseja do ponto de vista de sua inserção internacional para os próximos anos, a leitura de Patti não apenas é recomendável, mas também necessária.
Referências Bibliográficas
Department of Energy. 2022. “U.S. Department of Energy Awards $61 Million in Nuclear Energy Projects at U.S. Universities, Industry, and National Laboratories”. Office of Nuclear Energy, 17 de junho de 2022. https://www.energy.gov/ne/articles/us-department-energy-awards-61-million-nuclear-energy-projects-us-universities-industry.
EPE. 2022. 2031: plano decenal de expansão de energia. Ministério de Minas e Energia. Ministério de Minas e Energia. Empresa de Pesquisa Energética. Brasília: MME/EPE. https://www.epe.gov.br/sites-pt/publicacoes-dados-abertos/publicacoes/Documents/PDE%202031_RevisaoPosCP_rvFinal.pdf.
European Parliament. 2022. “Taxonomy: MEPs do not Object to Inclusion of Gas and Nuclear Activities”. European Parliament, 6 de julho de 2022. https://www.europarl.europa.eu/news/en/press-room/20220701IPR34365/taxonomy-meps-do-not-object-to-inclusion-of-gas-and-nuclear-activities.
Paladino, Guilherme. 2022. “Discretamente, governo federal mira na expansão da produção de energia nuclear no Brasil”. Jornal da UNESP, 20 de janeiro de 2022. https://jornal.unesp.br/2022/01/20/discretamente-governo-federal-mira-na-expansao-da-producao-de-energia-nuclear-no-brasil/.
Patti, Carlo. 2014. O programa nuclear brasileiro: uma história oral. Rio de Janeiro: CPDOC-FGV.
Patti, Carlo. 2021. Brazil in the Global Nuclear Order, 1945-2018. Baltimore: Johns Hopkins University Press.
Recebido: 30 de julho de 2022
Aceito para publicação: 5 de agosto de 2022
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