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Policy Papers

Democratizar as Relações Internacionais

Ordem internacional, multilateralismo e princípios democráticos

Resumo

O ex-secretário-geral das Nações Unidas (SGNU) Boutros-Ghali merece ser recordado por haver defendido a aplicação de princípios democráticos ao ordenamento internacional em sua Agenda para a Paz de 1992. Democratizar as relações internacionais significa, sobretudo, velar pela aplicação não seletiva do direito internacional e aprimorar o multilateralismo. A Cúpula sobre o Futuro, convocada pelo atual SGNU, António Guterres, para 2023, representa uma oportunidade para consolidar o que funciona, reformar o que se revelou inoperante e estender o multilateralismo a novas áreas. A multipolaridade do mundo contemporâneo pode contribuir para evitar a erosão do sistema multilateral e promover seu aprimoramento.

Palavras-chave:

multilateralismo; multipolaridade; democracia; hegemonia.
Imagem: Canva.

O sistema multilateral é democrático? Esta questão voltou a adquirir atualidade em face da invasão da Ucrânia. O veto russo no Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) impediu que o órgão responsável pela manutenção da paz e segurança internacionais se posicionasse, ilustrando sua dificuldade em lidar com situações em que um dos cinco membros permanentes viola o direito internacional. Não se trata da primeira ocasião em que isto ocorre. Para nos atermos ao século XXI, outras intervenções militares unilaterais incompatíveis com a Carta da ONU tiveram lugar, como ocorreu no Iraque em 2003. Desta vez, a organização foi desafiada, pelo presidente da Ucrânia, a exigir o cumprimento do Direito Internacional por todos ou confrontar o risco de sua própria dissolução. Uma reação começou a ser esboçada com a adoção por consenso na Assembleia Geral de resolução que passa a exigir explicações do autor do veto perante os membros da organização. A Cúpula do Futuro, convocada pelo secretário-geral António Guterres para setembro de 2023, deve ser aproveitada para orientar o multilateralismo na direção da democratização. No ano do centenário de Boutros-Ghali, cabe lembrar que o tema foi introduzido por ele, pela primeira vez, na agenda da ONU. 

A primeira sessão do Conselho de Segurança reunindo chefes de Estado teve lugar em Nova York, em janeiro de 1992, quando o diplomata egípcio Boutros Boutros-Ghali acabava de assumir o comando das Nações Unidas. Celebrava-se o fim da Guerra Fria, em meio à expectativa de que o sistema multilateral garantiria uma promissora era de cooperação internacional. A cúpula do CSNU encomendou um relatório ao recém-empossado secretário-geral, atribuindo-lhe a tarefa de elaborar recomendações sobre o futuro papel da ONU na promoção de um mundo mais pacífico. O relatório apresentado por Boutros-Ghali em maio de 1992, conhecido como Agenda para a Paz (Boutros-Ghali 1992), constitui documento marco nas reflexões sobre paz e segurança e foi objeto, há poucos meses[1], de seminário realizado no Cairo em comemoração dos trinta anos de sua divulgação. 

Em seu livro autobiográfico intitulado Unvanquished (Invicto), Boutros-Ghali (1999) recorda duas propostas inovadoras daquele texto: o desdobramento preventivo de operações de paz, como forma de evitar que um acúmulo de tensões degenere em conflito aberto; e a criação de unidades permanentes de reação rápida, com mandato para usar força se necessário, no que se convencionou denominar peace enforcement (imposição da paz pela força). A primeira ideia chegou a ser implementada na ex-Iugoslávia, onde contribuiu para evitar que a guerra na Bósnia se alastrasse pelo Sul dos Bálcãs. A segunda sugestão gerou maior controvérsia. A criação de mecanismo militar permanente, autorizado a intervir em situações de conflito, chegou a ser apoiada por artigos publicados na imprensa ocidental e do mundo árabe. Não faltaram, contudo, vozes críticas denunciando suposta tentativa do secretário-geral de criar um exército internacional sob seu comando.

Essa segunda proposta acabou sendo arquivada. Por outro lado, dois parágrafos da Agenda para a Paz, que terão passado quase despercebidos aos olhos dos leitores da época, merecem ser recordados no conturbado cenário internacional de 2022. Trata-se dos parágrafos em que Boutros-Ghali defende a aplicação de princípios democráticos, tanto no plano doméstico como no âmbito da comunidade das nações, associando a construção da paz à promoção da democracia nas searas interna e internacional. Ao referir-se a princípios democráticos dessa forma, Boutros-Ghali incorporou à esfera multilateral um conceito que não chegara a ser mencionado na Carta de São Francisco. Embora fundada sob o princípio da igualdade soberana de todos os estados-membros, a ONU incorporara a seus processos decisórios uma dose de desigualdade institucionalizada, ao prever a atribuição do poder de veto a cinco membros permanentes do Conselho de Segurança. Ao longo dos anos, os cinco permanentes (P5) ampliariam essa desigualdade de origem, em função de certas práticas não consignadas na Carta, que lhes facultariam outros privilégios, como a participação garantida na Corte Internacional de Justiça (CIJ).  Os demais membros da organização permitiram que isso ocorresse sem opor maior resistência ao longo da Guerra Fria e nas décadas subsequentes, durante o chamado momento unipolar.     

Boutros-Ghali acrescentaria em sua Agenda para o Desenvolvimento, de maio de 1994, a noção de que os princípios democráticos devem ser observados nos próprios trabalhos da ONU, postulando que o diálogo, o debate e a busca de acordos constituem a essência da democracia “within nations and within the family of nations” (Boutros-Ghali 1995). Poucos dias antes de deixar o cargo de secretário-geral, em 20 de dezembro de 1996, Boutros-Ghali divulgaria sua Agenda para a Democratização, verdadeiro testamento em favor de um multilateralismo aberto e equitativo, capaz de se distanciar da preponderância de um ou poucos países. A origem dessa visão é atribuída pelo jurista cingalês M. C. W. Pinto ao Movimento Não Alinhado (MNA), do qual o Egito foi membro fundador sob Gamal Abdel Nasser. Em artigo intitulado A democratização das relações internacionais e suas implicações para o desenvolvimento e aplicação do direito internacional, Pinto (1995) recorda que essa noção se manifestou em sucessivas declarações do Movimento desde o início da década de 1970, antes de ser endossada, em 1992 e 1994, pelas Agendas para a Paz e para o Desenvolvimento. Sem diminuir o papel pioneiro atribuído ao secretário-geral egípcio, o acadêmico do Sri Lanka não minimiza a dificuldade em se transpor um conceito historicamente aplicável ao ordenamento político nacional para a ordem internacional.

O que devemos entender por princípios democráticos? Como se sabe, o termo democracia deriva de duas palavras gregas: demos, povo, e kratos, que pode ser traduzido por poder ou governo. O conceito de democracia passou por considerável evolução histórica, desde seu surgimento na Grécia antiga há dois milênios e meio, bastando lembrar que o sufrágio universal só se tornou realidade a partir do século XX. Desnecessário frisar que hoje não seria concebível chamar de democrática uma sociedade que não outorga o direito de voto a todos os seus integrantes adultos, como critério mínimo. Além de representantes governamentais eleitos pelo povo, uma lista não exaustiva de elementos essenciais de uma democracia incluiria: respeito à lei (rule of law), liberdades civis, pluralismo, judiciário independente e proteção de minorias. As constituições democráticas estabelecem parâmetros para a atuação de governos eleitos por maioria de votos, cujos órgãos legislativos deliberam sobre matéria não regulamentada constitucionalmente, podendo recorrer inclusive a procedimentos preestabelecidos para alterar a Constituição ou substituir governantes. 

Admitida a dificuldade em se estabelecer paralelismo perfeito entre sociedades nacionais e a coletividade internacional, M. C. W. Pinto (1995) sugere quatro referências históricas principais, a partir das quais se torna possível conceber um projeto de democratização da ordem internacional. Começa pelo conceito de soberania, que remonta aos acordos de Vestfália de 1648 e atribuiu aos Estados uma liberdade inexistente até então na definição de suas prioridades nacionais; a igualdade soberana entre Estados, consignada pela Conferência da Haia de 1907, terá representado um passo a mais em direção a uma visão antropomórfica das unidades que constituem o tecido internacional, permitindo que seus direitos e obrigações fossem, até certo ponto, equiparados aos de indivíduos em uma sociedade; o Tratado de Versalhes de 1919 fez da autodeterminação dos povos o preceito basilar de uma nova ordem, que se traduziria – após incorporação à Carta da ONU em 1945 – no processo de descolonização que deu o atual perfil à comunidade internacional composta por 193 Estados independentes; finalmente, as reivindicações por uma justiça redistributiva, inerentes a pautas como a do tratamento preferencial a países em desenvolvimento, representariam uma forma de correção de desigualdades ou compensação por injustiças, que emula práticas democráticas internas. 

Em livro publicado pelas universidades de Princeton e Oxford sob o título Good-bye Hegemony, os cientistas políticos Richard Ned Lebow e Simon Reich (2014) formulam um axioma adicional, ao postular que é difícil reconciliar a defesa da democracia, no ambiente interno, com a busca da hegemonia, no internacional. A partir dessa premissa, os dois autores se posicionam claramente a favor da aplicação também às relações internacionais do compromisso com a democracia. Vão além, ao considerarem indefensável a postura de estudiosos das relações internacionais que sustentam agendas hegemônicas, sem admitir sua incompatibilidade intrínseca com a defesa de valores democráticos. O prefácio do livro deixa claro que a obra não é fruto de uma visão utópica, mas se filia ao pensamento do realista Hans Morgenthau, que estimulava os teóricos das relações internacionais a desafiar o pensamento convencional de suas sociedades em um sentido potencialmente transformador. O subtítulo do livro Poder e influência no sistema global explicita a tradição teórica à qual se filiam os dois autores.          

Feitas tais considerações, não deixa de ser surpreendente que um representante do Egito se erigisse em 1992 como porta-voz da aplicação de valores democráticos às relações internacionais. O Egito era governado à época por Hosni Mubarak, dirigente alçado à presidência de seu país após o assassinato de Anwar Sadat, que se perpetuaria no poder por trinta anos, sendo apenas destituído em fevereiro de 2011 por uma insurreição popular. Como representante da maior comunidade cristã do mundo árabe, contudo, Boutros-Ghali era particularmente sensível à importância de uma característica acima mencionada dos regimes verdadeiramente democráticos, a saber, a proteção das minorias. Em decorrência de sua origem copta, ele nunca chegara a ser designado ministro de Relações Exteriores, embora, na prática, responsabilidades equivalentes às de chanceler lhe houvessem sido atribuídas sob o título de secretário de Estado. Sua postura decorria menos da experiência direta da democracia no governo que integrara, do que da adesão pessoal a um ideário que se explicitaria, de forma crescentemente afirmativa, ao longo de sua carreira internacional.  

A liderança inovadora de Boutros-Ghali foi saudada pelo discurso de abertura da 48ª Assembleia Geral da ONU (1993) pelo chanceler do governo Itamar Franco, embaixador Celso Amorim. Ao recordar o célebre discurso dos “três Ds” do diplomata brasileiro João Augusto de Araújo Castro, exatos trinta anos antes, Amorim propunha que a agenda internacional passasse a se estruturar em torno de Democracia, Desenvolvimento e Desarmamento, com a devida atenção dada a suas ramificações nos campos dos direitos humanos e do meio ambiente (Brasil 1993). A introdução do primeiro “D”, de democracia, era feita em substituição ao “D” de descolonização, que perdera atualidade em 1993. Uma década mais tarde, reflexões análogas seriam retomadas pelo Brasil na abertura da 58ª Assembleia Geral (2003), pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em discurso que equiparava o aperfeiçoamento do sistema multilateral ao do convívio democrático no interior dos Estados. Tal entendimento se expressava na afirmação de que “toda nação comprometida com a democracia no plano interno deve zelar para que, também no plano externo, os processos decisórios sejam transparentes, legítimos e representativos” (Brasil 2003).  

Em contraste com o clima de renovada esperança inaugurado pela cúpula do Conselho de Segurança de 1992, o debate na Assembleia Geral, em setembro de 2003, ocorria em cenário de divisões e recriminações decorrentes da intervenção militar liderada pelos EUA contra o regime de Saddam Hussein no Iraque. Sem autorização do CSNU e sob pretextos que se revelariam falsos, aquela manifestação de unilateralismo era indissociável, por um lado, do trauma provocado na sociedade norte-americana pelos ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e, por outro, do momento unipolar de inconteste preeminência militar e econômica estadunidense. Desinclinados a admitir limitações ao uso da força impostas pelo Direito Internacional, os EUA, sob George W. Bush, punham fim à disposição multilateralista de seu pai George H. W. Bush. O Brasil declararia na mesma ocasião que “não podemos confiar mais na ação militar do que nas instituições que criamos com a visão da História e a luz da razão” (Brasil 2003).  

A projeção de valores democráticos e humanistas sobre o funcionamento do sistema multilateral retomava, de certa forma, o debate lançado por Boutros-Ghali sobre a relação entre multilateralismo, democracia e promoção da paz. Hoje, a invasão da Ucrânia pela Federação da Rússia confronta o ordenamento multilateral com novo episódio de violação de preceitos centrais da Carta da ONU por um membro permanente. Ao condenar a invasão da Ucrânia pela Rússia, a Assembleia Geral expressou um repúdio particularmente enfático ao recurso não autorizado à força militar e à violação da integridade territorial de um estado-membro (AGNU 2022). A Assembleia o fez assumindo os poderes que lhe atribui a resolução Unidos para a Paz, invocada não mais de onze vezes desde sua adoção na década de 1950, como forma de contornar a obstrução do Conselho de Segurança por um veto.   

Recorde-se que, dias antes, a Rússia vetara resolução sobre sua intervenção militar na Ucrânia, impedindo que o CSNU se manifestasse sobre uma crise de indiscutível gravidade. Isso ocorreu apesar de o Artigo 27 (3) da Carta da ONU (Nações Unidas 1945) estipular que um estado-parte em disputa, sob consideração do Conselho, deve abster-se de votar. A frustração resultante com a paralisia do Conselho está na origem da adoção por consenso da resolução 76/262, em 26 de abril de 2022, concedendo ao presidente da Assembleia Geral autoridade para convocar sessão formal com vistas ao exame público de justificativas (ou ausência delas) para o recurso ao veto (AGNU 2022). Sendo o poder de veto o menos democrático dos direitos admitidos pela ONU, essa resolução pode ser vista como sintoma de uma mobilização robusta em favor de procedimentos mais legítimos e transparentes. Capitaneada por um pequeno país de 40.000 habitantes, o Liechtenstein, a iniciativa constitui interessante ilustração da elasticidade do espaço diplomático em âmbito multilateral. Vale registrar que nenhum dos P5 ousou opor-se.             

As manifestações da Assembleia Geral contra a invasão russa e o questionamento da legitimidade de vetos abusivos encobrem uma realidade de paradoxos e incoerências.

Seria um equívoco, porém, imaginar que estamos diante de um novo consenso internacional em favor de um multilateralismo mais democrático. As manifestações da Assembleia Geral contra a invasão russa e o questionamento da legitimidade de vetos abusivos encobrem uma realidade de paradoxos e incoerências. Conquanto os Estados Unidos tenham convocado há poucos meses uma cúpula em torno de valores e ideais democráticos (The Summit for Democracy), a iniciativa não chegou a abordar o tema da transposição da democracia para o âmbito multilateral. Em contrapartida, regimes não convidados para a cúpula norte-americana emitem comunicados em que se comprometem com a “promoção de relações internacionais mais democráticas”. Essa citação é extraída da declaração conjunta divulgada por Rússia e China em 4 de fevereiro último sobre “nova era nas relações internacionais e desenvolvimento sustentável global” (Kremlin 2022).  

Como membro dos BRICS, o Brasil tem subscrito sucessivas declarações conjuntas em apoio a instituições de governança global mais representativas e democráticas. Tais declarações não impedem, contudo, que seja impossível obter no seio dos BRICS uma manifestação clara em apoio a uma reforma do CSNU com expansão em ambas categorias de membros, permanentes e não permanentes, como preconizam África do Sul, Brasil e Índia. A aspiração a um CSNU ampliado nas duas categorias conta com significativo apoio de países de todas as regiões, persuadidos de que se trata de medida necessária para tornar o órgão mais representativo e legítimo. Não obstante, integrantes dos BRICS – que pregam a democratização das relações internacionais – acabam por contribuir para o imobilismo nos debates sobre reforma do Conselho, perpetuando um status quo de inequidade representativa. Defender a democracia como um princípio organizador do sistema internacional não é objetivo que conte com uma coalizão óbvia de membros. É difícil, na verdade, traçar uma linha de coerência entre a defesa de valores mais ou menos democráticos nos planos interno e externo por parte de alguns dos atores mais influentes do panorama internacional.      

Tal situação convida aqueles que se posicionam em favor de um multilateralismo plural e democrático a explicitar suas posições. A tese da relação mutuamente benéfica entre a boa governança doméstica e a cooperação internacional aprimorada sob o signo da democracia não pareceria, em princípio, sujeita a questionamentos. Sua defesa não se apresenta como simples, contudo, diante das ameaças à democracia – perceptíveis até mesmo nos territórios em que criara raízes aparentemente sólidas – e do descrédito em que se encontram as instituições multilaterais – ineficazes no enfrentamento da guerra na Ucrânia e da Covid-19, além de ameaçadas por unilateralismos que comprometem a implementação de acordos e a aplicação do Direito Internacional. A progressiva deterioração no relacionamento entre China e Estados Unidos torna um contexto já problemático ainda mais desafiador. Ao mesmo tempo, parece propagar-se o sentimento de que é justamente a dimensão da crise atual que torna necessário um esforço ambicioso, capaz de preservar conquistas históricas e introduzir as reformas necessárias, para impedir a erosão progressiva do sistema. Esse sentimento se expressa de diferentes formas, mais pontuais ou abrangentes. Ele é perceptível, contudo, não somente na aprovação da acima citada resolução A/76/262 sobre o veto, mas também na convocação de uma Cúpula sobre o Futuro, para setembro de 2023, pelo secretário-geral António Guterres. 

A progressiva deterioração no relacionamento entre China e Estados Unidos torna um contexto já problemático ainda mais desafiador. Ao mesmo tempo, parece propagar-se o sentimento de que é justamente a dimensão da crise atual que torna necessário um esforço ambicioso, capaz de preservar conquistas históricas e introduzir as reformas necessárias, para impedir a erosão progressiva do sistema.          

A proposta inédita de uma cúpula dedicada ao futuro, faz parte do relatório Nossa Agenda Comum (Guterres 2021), circulado por Guterres no ano passado, em cumprimento à solicitação contida na Declaração comemorativa dos 75 anos das Nações Unidas (2020). Em referência indireta ao relatório de seu antecessor egípcio, Guterres incluiu no documento uma seção intitulada uma Nova Agenda para a Paz, na qual admite que a organização não tem sido capaz de cumprir satisfatoriamente seu papel nesse campo. Pelo contrário, considera que os desafios se multiplicaram, a instabilidade aumentou e os sistemas disponíveis revelaram-se insatisfatórios. Suas seis recomendações incluem seções sobre a redução de risco estratégico e em favor de um mundo livre de armas nucleares; a previsão mais eficaz de riscos securitários; a redução da violência, inclusive contra as mulheres; a plena utilização das possibilidades oferecidas pela Comissão da Construção da Paz e seu fundo correspondente; e o apoio a organismos regionais e à agenda “mulheres, paz e segurança".                

Tais recomendações, feitas antes da guerra na Ucrânia, não chegam a oferecer uma visão nova nem sobre a substância das atividades do CSNU, nem sobre seu modus operandi. Na realidade, a disfuncionalidade operacional do Conselho não chega a ocupar o centro do abrangente cardápio de ideias e propostas oferecido por Guterres em Nossa Agenda Comum. Em capítulo dedicado à adaptação das Nações Unidas a uma nova era, o secretário-geral limita-se a afirmar que cabe aos estados-membros decidir sobre o funcionamento dos órgãos principais do sistema ONU. Sem deixar de reconhecer que o Conselho de Segurança poderia ser mais representativo, mediante “arranjos sistemáticos para que mais vozes se sentem ao redor da mesa” (Guterres 2021, 77), não vai além de uma reiteração pouco detalhada de sugestões como a intensificação de consultas a organismos regionais ou o exercício de autolimitação (restraint) no recurso ao veto. Esse grau de cautela devolve, efetivamente, aos estados-membros a responsabilidade de demonstrar imaginação e ousadia para os resultados esperados de uma cúpula que pretende revitalizar o multilateralismo em direção a um futuro melhor. A oportunidade não deve ser desperdiçada.   

O veio da democratização das relações internacionais é a resposta possível à disjuntiva apresentada por Guterres entre colapso e transcendência (breakdown or breakthrough). A preservação da centralidade de certas noções contidas na Carta da ONU, que podem ser consideradas um verdadeiro marco civilizatório para a promoção da paz, deve ser vista como um primeiro passo nessa direção. Refiro-me, em particular, ao Capítulo VII e às limitações à ação coercitiva unilateral nele explicitadas: uso da força apenas em autodefesa ou autorizado pelo Conselho de Segurança e sanções militares ou econômicas, desde que autorizadas multilateralmente. De forma mais ampla, trata-se de defender a aplicação erga omnes do Direito Internacional. Assim como a ordem democrática doméstica pressupõe a aplicação indistinta da lei a todos cidadãos, independentemente de seu status econômico ou político, é natural pressupor que, na ordem internacional, o direito não seja observado seletivamente. Trata-se de um postulado que, embora unanimemente aceito, é também frequentemente desrespeitado. 

Importante notar, contudo, que esse pressuposto continua a ser reafirmado em declarações consensuais recentes. De especial significado terá sido a inclusão do parágrafo 10 na declaração comemorativa dos três quartos de século da ONU, cuja frase inicial afirma que “respeitaremos o Direito Internacional e garantiremos a justiça”.  O parágrafo merece ser citado mais amplamente por declarar também que o Direito Internacional, além de possuir caráter “atemporal e universal”, constitui o fundamento indispensável para um mundo mais pacífico, próspero e justo[2]. Os estados-membros se comprometem, no mesmo fôlego, a cumprir os acordos de que fazem parte e a promover respeito por democracia, além de fortalecer a governança democrática e o império da lei. Sem chegar a explicitar se essa profissão de fé se aplica também ao ordenamento internacional, palavras desse teor não poderiam ser lidas como incompatíveis com propósitos democratizantes em sentido abrangente. Pelo contrário, podem representar um incentivo para se prosseguir nesse sentido.    

Nossa Agenda Comum afirma que os regimes jurídicos internacionais são essenciais para a proteção dos bens públicos globais, entre os quais o secretário-geral Guterres inclui, entre outros, a saúde pública, o meio ambiente e a própria paz.

Nossa Agenda Comum afirma que os regimes jurídicos internacionais são essenciais para a proteção dos bens públicos globais, entre os quais o secretário-geral Guterres inclui, entre outros, a saúde pública, o meio ambiente e a própria paz. Com o propósito de traduzir o compromisso da declaração dos 75 anos da ONU em uma iniciativa concreta, Guterres (2021, 64) propõe um “mapa global para o desenvolvimento e implementação efetiva do Direito Internacional”. A proposta merece ser levada adiante, inclusive em função de preocupações que talvez não estivessem entre aquelas que lhe deram origem, conforme valeria esclarecer. Artigo publicado no New York Times, em junho de 2021, pelo acadêmico e jornalista Peter Beinart (2021), apresenta análise perspicaz da expressão rules based international order (ordem internacional baseada em regras), que vem sendo empregada pela administração Biden e passou a figurar com assiduidade nos comunicados do G7 e da OTAN. A expressão virou um verdadeiro slogan.  Como aponta Beinart, a defesa do Direito Internacional tem um sentido claro e não se presta a ambiguidades. Rules based, segundo o mesmo autor, permanece uma expressão “nebulosa”, podendo referir-se a instrumentos ou regras sem aplicação universal. Não nos esqueçamos de que a expressão consagrada é rule of law e não rule of rules (império da lei e não das regras).                                                   

Difícil esquecer que, até pouco tempo, alguns dos mais engajados defensores da resolução sobre a Agressão contra a Ucrânia de 18 de março de 2022 subscreviam, ou abstinham-se de condenar, doutrinas prevendo o uso da força de forma preventiva e não se constrangiam ante a ausência de autorização multilateral para levar adiante ações coercitivas. Como recorda Guga Chacra em artigo publicado no Globo em janeiro de 2022, quando observamos os Estados Unidos questionando a Rússia na Ucrânia, não podemos esquecer de seu histórico. Conforme a citada resolução da Sessão Especial de Emergência da Assembleia Geral das Nações Unidas (AGNU 2022), a invasão da Ucrânia constitui violação do Artigo 2 (4) da Carta da ONU, segundo o qual os estados-membros se comprometem a não recorrer ao uso da força contra a integridade territorial de qualquer outro Estado. 

A ausência de margem interpretativa capaz de justificar, à luz do Direito Internacional, invasões militares como as da Ucrânia ou de outros países no Oriente Médio e no Norte da África é abordada pela professora Ngaire Woods da Universidade de Oxford, em artigo publicado na edição de julho/agosto da revista Foreign Affairs (2022). Segundo Woods, a ordem jurídica internacional pressupõe, na realidade, que as responsabilidades especiais atribuídas aos mais poderosos se manifestem em seu especial compromisso com a defesa desses dispositivos. Se os mais poderosos violam as regras que eles próprios criaram, acabam por ameaçar a ordem da qual são supostos garantes.    

Ngaire Woods atribui a Maquiavel a tradição política segundo a qual o interesse nacional permite desconsiderar o Direito Internacional. Ela deixa claro, contudo, que, hoje, o desrespeito a dispositivos centrais da Carta da ONU introduz um grau de imprevisibilidade nas relações internacionais prejudicial a todos. A história recente das intervenções militares levadas a cabo à margem do Direito Internacional não deixa dúvidas a esse respeito. Dessa perspectiva, os países que respeitam os dispositivos legais sobre o uso da força possuiriam razões crescentes para desconfiar das intenções dos mais poderosos militarmente. Woods conclui, não obstante, que, embora a cooperação internacional se esteja tornando difícil, ela passou a ser mais necessária do que nunca. Torna-se difícil porque as divisões decorrentes da invasão da Ucrânia e a crescente hostilidade entre Washington e Pequim estão envenenando o ambiente internacional. É mais necessária, não só para evitar a guerra, mas para lidar com a mudança do clima e promover o desenvolvimento sustentável. 

Nesse contexto, a conclusão de Woods é que os benefícios potenciais de uma diplomacia bem informada não devem ser subestimados, na medida em que proporcionam perspectiva e contrapeso a comportamentos impulsivos ou irresponsáveis de lideranças incensadas por preocupações com o poder. A frase final do artigo preconiza que “a clareza do Direito Internacional ajudará até mesmo os mais poderosos a enxergar com maior nitidez”. Não poderia haver declaração mais taxativa, em contraponto à nebulosidade da noção de ordem internacional baseada em “regras”. Ainda que indiretamente, a crise na Ucrânia pode estar contribuindo para reposicionar a Carta da ONU no centro das preocupações sobre ordem internacional.  Os dois terços de estados-membros que aderiram aos termos incisivos da resolução da AGNU em 18 de março sublinharam os benefícios decorrentes da observação, com boa-fé, das obrigações assumidas na adesão à Carta. Ao mesmo tempo, os que se abstiveram, ou votaram contra, não o fizeram em nome de um compêndio alternativo de obrigações e direitos. Na verdade, trata-se de países que costumam aderir com especial afinco a preceitos como soberania, integridade territorial e solução pacífica de controvérsias.  

O Alto Representante da União Europeia para Relações Exteriores e Política de Segurança, Josep Borrell (2021), ao refletir sobre multilateralismo na era da multipolaridade, demonstrou capacidade de síntese ao resumir em três pontos sua proposta de agenda para a reformatação do sistema multilateral: consolidar o que funciona, reformar o que se revelou inoperante e estender o âmbito do multilateralismo a novas áreas. Consignada a relevância da aplicação não seletiva do Direito Internacional como exemplo do que merece ser consolidado, caberia considerarmos brevemente as novas áreas e o que deixou de funcionar. No que diz respeito às novas áreas, a Nossa Agenda Comum é prolífica em identificar desafios no âmbito dos bens públicos globais que requerem uma abordagem multilateral delimitadora de direitos e obrigações. Saúde pública, o vasto espectro ambiental e o aquecimento global em particular, o espaço exterior, a inteligência artificial, a regulamentação digital são exemplos de temas em que a cooperação pode ser aprimorada mediante novos entendimentos destinados a cobrir lacunas e produzir molduras.   

Em relação àquilo que deixou de funcionar, sobressaem os desafios relacionados à promoção da paz e segurança internacionais. Nesse particular, as inadequações no funcionamento do Conselho de Segurança e a paralisia da Conferência do Desarmamento clamam por atenção. A esse respeito valeria distinguir entre mudanças que podem ser introduzidas mediante práticas inovadoras que não envolvem emenda à Carta da ONU e reformas mais profundas, que exigiriam emendas à Carta ou até mesmo a convocação de uma Conferência de Revisão de seus dispositivos. Inúmeras melhorias podem ser introduzidas mediante iniciativas apresentadas à AGNU, ou até mesmo pela mera mudança de práticas pouco transparentes e democráticas. O recurso mais frequente à resolução Unidos pela Paz dos anos 1950 e o novo procedimento que possibilita o questionamento público do veto são exemplos do papel que a AGNU é capaz de desempenhar em face de um CSNU inoperante. Curioso notar, ao mesmo tempo, que certas práticas – antes seguidas como se gozassem de alguma base jurídica – podem ser alteradas por uma simples mudança de atitude de Estados dispostos a corrigir distorções. Refiro-me ao fato de que, em 2017, pela primeira vez, um juiz britânico não foi eleito para a CIJ, pondo fim a um entendimento sem lastro em qualquer tratado, segundo o qual os P5 estariam sempre presentes na Corte. 

Não seria impossível imaginar outras mudanças de atitude que teriam efeito regenerador na abordagem de questões importantes para a paz mundial e para o sistema multilateral. Uma manifestação da CIJ, em resposta a pedido de um grupo de países, poderia, por exemplo, exigir a plena vigência do citado Artigo 27 (3), segundo o qual uma parte envolvida em um diferendo trazido à atenção do CSNU deveria se abster de votar em tal instância. No campo do desarmamento, vale recordar a campanha da coalizão internacional International Campaign for the Abolition of Nuclear Weapons (ICAN), que mobilizou governos e logrou levar à AGNU a negociação de um projeto de tratado sobre a proibição das armas nucleares. Considerada inviável, quando inicialmente promovida, a iniciativa se materializou em um acordo que obteve, em 2021, o número suficiente de ratificações para entrar em vigor. Interessante notar que o processo negociador sofreu forte oposição de potências nucleares e países-membros da aliança de defesa que prevê o recurso a artefatos nucleares (OTAN). Não obstante, transformou-se em realidade, chegando a merecer o Prêmio Nobel da Paz. As nações pertencentes a zonas desnuclearizadas, como as da América Latina e do Caribe, são candidatas naturais a aderir ao tratado, contribuindo para a justa deslegitimação internacional dos arsenais atômicos.       

Cabe reconhecer, contudo, que reformas estruturais, como a da composição do CSNU, exigirão um grau de mobilização política que os processos negociadores, em curso, não parecem em medida de atender. Chegamos assim à consideração da oportunidade de invocação do Artigo 109 para a convocação de uma Conferência de Revisão da Carta. O grupo Leaders pour la Paix (LPP), coordenado pelo ex-primeiro-ministro da França Jean Pierre Raffarin, acaba de apresentar ao secretário-geral da ONU seu relatório anual relativo a 2022.  O texto se posiciona em favor de um novo multilateralismo lastreado em um novo humanismo (Leaders Pour La Paix 2021). Com base em apreciação da geopolítica contemporânea, que identifica a existência de suficiente latitude para a formação de coalizões diplomáticas, e, a partir de seu foco na juventude, o grupo considera essencial associar a questão da sobrevivência da civilização humana sobre a Terra à mobilização de apoio em favor do multilateralismo e da paz. Como afirma Raffarin, o futuro do planeta só se transformou em tema político há relativamente pouco tempo, mas hoje se situa no centro do interesse das novas gerações por cooperação internacional. Sem o apoio dessa juventude, um movimento em favor de um multilateralismo mais democrático terá limitadas condições de avançar. A Carta da ONU foi redigida antes do despertar da consciência ambiental, que se transforma em um dos aspectos definidores de nosso tempo. Entre outros objetivos, uma conferência de revisão não poderia deixar de propor a incorporação à Carta da ONU de um apelo à responsabilidade coletiva nesse âmbito.  

Também no Brasil surgem vozes favoráveis a um exercício de revisão da Carta, conforme demonstra artigo publicado na Folha de São Paulo em 17 de março pelo empresário Oded Grajew (2022). O texto define o CSNU como o órgão mais poderoso das Nações Unidas, recordando tratar-se do único que adota resoluções mandatórias. Segundo Grajew, o excesso de poder em mãos dos cinco membros permanentes é a principal causa da paralisia da ONU e de sua decrescente relevância no cenário internacional. Apenas um renovado pacto multilateral em torno de uma Carta modernizada evitará uma degenerescência irreparável, segundo o autor. Essa percepção se expressa com uma convicção que não deixa de refletir uma apreensão amplamente disseminada ante o perigo inerente a um prolongamento do status quo.  

Em 22 de junho passado, fiz parte da delegação que entregou ao secretário-geral Guterres o relatório anual dos LPP. A conversa fluiu com espontaneidade e foi ao âmago dos problemas mundiais. Preocupa-se Guterres, em particular, com um cenário de gradual desaparecimento da multipolaridade, que seria prejudicial ao multilateralismo. Suas palavras ecoaram, em certa medida, as dificuldades antecipadas por Henry Kissinger no livro Ordem Mundial, de 2014. O acadêmico e diplomata norte-americano afirma em seu capítulo final que a reconstrução do sistema internacional é a mais desafiadora das tarefas a serem enfrentadas pelas lideranças contemporâneas. Segundo sua ótica, a incapacidade de articular respostas adequadas não se traduzirá necessariamente em uma grande guerra interestatal (embora não exclua essa hipótese), mas, sobretudo, no progressivo estabelecimento de esferas de influência identificadas com formas de governo e estruturas domésticas específicas. O escritor franco-libanês Amin Maalouf, em sua recente obra O Naufrágio das Civilizações (2020), introduz notas bem mais sombrias, ao citar George Orwell e falar dos desvios de irracionalidade que comprometem o futuro da democracia, do Estado de Direito e do conjunto de valores que dão sentido à aventura humana.  

O encolhimento dos espaços de autonomia que a multipolaridade oferece será inexorável, caso o multilateralismo sucumba à paralisia e venha a ser substituído por um sistema internacional formado por zonas de influência de potências incapazes de enfrentar, construtivamente, desafios comuns. Ao mesmo tempo, a pressão por reformas democratizantes do sistema multilateral oferece uma saída para a superação de seu imobilismo. É o caminho possível para o breakthrough a que se refere a Nossa Agenda Comum. Certas reformas que se apresentam como incontornáveis, tal como a da composição do CSNU, requererão uma revisão da Carta da ONU. Assim como o G20 substituiu o G7, não deveria haver obstáculo intransponível à incorporação de uma maior dose de multipolaridade à governança do órgão encarregado da segurança coletiva. Neste caso, como no caso dos entendimentos necessários para fazermos face ao aquecimento global, à perda da biodiversidade e à degradação ambiental, será necessário mobilizar governos, sociedade civil, setor privado, acadêmicos, mídia, juventude. 

Em outras palavras, se a multipolaridade favorece o fortalecimento do multilateralismo, será importante ter presentes os perigos representados por agendas hegemônicas e unir esforços em torno de pautas democratizantes. 

Em outras palavras, se a multipolaridade favorece o fortalecimento do multilateralismo, será importante ter presentes os perigos representados por agendas hegemônicas e unir esforços em torno de pautas democratizantes. A preservação do planeta e da civilização humana sobre a Terra são poderosos temas unificadores, nesse sentido, que podem se transformar em contraponto a embates ideológicos ou corridas armamentistas indutoras de fragmentação ou até mesmo do colapso da cooperação internacional. A grande maioria das nações não sente nostalgia da Guerra Fria e terá interesse em evitar a repetição de uma bipolaridade que, desta feita, poderá ter consequências mais perversas do que aquela cujo fim foi celebrado na cúpula do Conselho de Segurança de janeiro de 1992.  Em conclusão, democratizar as relações internacionais é tarefa que permanece incompleta, adquire urgência e requer uma ampla mobilização política em torno da revalorização do multilateralismo.  

Boutros-Ghali não foi reeleito para um segundo mandato em função de um veto, determinado mais por razões de política interna de um membro permanente do que por preocupações com a saúde do sistema multilateral. Não obstante, sua independência intelectual e seu compromisso com a democratização das relações internacionais continuam a inspirar todos aqueles que veem nas Nações Unidas um vetor de civilização e paz. A Agenda para a Democratização, circulada ao apagar das luzes de seu único mandato, afirma que a democratização se deve expressar em todos os níveis da sociedade humana – local, nacional, regional e global – e consigna sua crença na capacidade da democracia favorecer o florescimento do ser humano, objetivo que o motivou até o fim. Como representante de um país que acumula uma experiência histórica de mais de cinco milênios, Boutros-Ghali (1999) afirma com desprendimento no posfácio à sua autobiografia que “a hegemonia é um fenômeno transitório”.  Suas últimas palavras apontam para o fato de que o sonho dos países fundadores das Nações Unidas incluiu a expectativa de que a organização será capaz de se regenerar para lidar, de forma eficaz, com um mundo destinado a evoluir em direções imprevisíveis. Este sonho não acabou.    

Notas

[1] Entre 21 e 22 de junho de 2022, sob o título 30 Years of the ‘Agenda for Peace’ (1992-2022): From the ‘Agenda for Peace’ to the ‘New Agenda for Peace’.

[2] O trecho no original é: “international law remains timeless, universal and an indispensable foundation for a more peaceful, prosperous and just world”  (Nações Unidas 2020, 3).                                                       

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Recebido: 13 de julho de 2022

Aceito para publicação: 6 de agosto de 2022

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