O artigo discute a COP30 em Belém como uma oportunidade histórica de unir democracia e clima, colocando a Amazônia no centro das negociações globais. Destaca o papel fundamental dos contrapúblicos – povos indígenas, quilombolas, comunidades negras, juventudes e coletivos urbanos – na construção de justiça climática, ressaltando que sua inclusão efetiva é indispensável para enfrentar desigualdades históricas, legitimar decisões multilaterais e fortalecer a governança global. Defende, assim, que diversidade e participação sejam pilares de uma nova democracia climática.
											Nas últimas décadas, o debate internacional sobre mudanças climáticas consolidou-se como uma das principais arenas de disputa política do século XXI. A intensificação de eventos climáticos extremos, observada em praticamente todas as regiões do planeta, demonstrou que o aquecimento global não é uma previsão futura, mas um processo em curso, cujas consequências já moldam economias, sociedades e ecossistemas. O Acordo de Paris, firmado em 2015, simbolizou a tentativa mais ambiciosa de articular uma resposta multilateral à altura da crise, ao estabelecer metas de contenção do aumento da temperatura média global em, no máximo, 1,5 °C. Considerado um dos acordos internacionais mais importantes da história, logo em seu preâmbulo ele também marcou a menção ao conceito de justiça climática de forma inédita. No entanto, o primeiro Balanço Global, divulgado em 2023, confirmou o que muitos analistas já antecipavam: os compromissos nacionais ainda estão aquém do necessário, e a janela de oportunidade para evitar cenários de colapso climático se estreita rapidamente. Mais do que números e relatórios, o balanço revelou um dilema político fundamental: a governança climática internacional não pode ser apenas técnica ou diplomática, mas deve ser inclusiva, capaz de ampliar a representatividade de múltiplos atores, especialmente àqueles historicamente marginalizados – como povos indígenas, populações negras, afrodescendentes, quilombolas e comunidades tradicionais.
A realização da COP30 no Brasil, em 2025, insere-se nesse contexto de urgência e insuficiência. Não se trata apenas de mais uma conferência, mas de um marco que pode redefinir tanto a posição do país no cenário global quanto a relação entre democracia e política climática no plano interno. Ao sediar a conferência em Belém do Pará, no coração da Amazônia, o Brasil assume o desafio de articular narrativas globais e locais, interesses econômicos e demandas de justiça social, saberes científicos e conhecimentos tradicionais. Mais do que elaborar compromissos diplomáticos, a COP30 será um teste de legitimidade: conseguirá o Brasil mostrar ao mundo que é possível construir uma governança climática enraizada na diversidade social e ambiental em todas as suas múltiplas dimensões e interseccionalidades, ou reproduzirá os mesmos mecanismos excludentes que têm limitado a eficácia das conferências anteriores? A resposta dependerá, em grande medida, da capacidade de fortalecer os espaços de atuação dos contrapúblicos climáticos.
ESFERA PÚBLICA E OS CONTRAPÚBLICOS DE NANCY FRASER
A teoria da esfera pública proposta por Jürgen Habermas fornece um ponto de partida importante para compreender a dimensão política da questão. Habermas descreveu a esfera pública como um espaço de deliberação racional, no qual cidadãos discutem questões de interesse comum e formam opiniões coletivas capazes de influenciar decisões políticas. Essa concepção idealizada, embora tenha iluminado aspectos centrais da democracia moderna, recebeu críticas por pressupor uma igualdade de condições que, na prática, raramente existe. Nancy Fraser, em diálogo crítico com Habermas, destacou que sociedades estruturadas por desigualdades de gênero, classe e raça não produzem uma esfera pública homogênea, mas múltiplas arenas, nas quais grupos marginalizados constroem seus próprios espaços discursivos. Esses contrapúblicos subalternos, ao contrário de serem meros fragmentos, desempenham papel essencial: permitem que vozes silenciadas se expressem, formulem agendas próprias e tensionem a esfera pública dominante. Ao fazê-lo, ampliam o horizonte da democracia e introduzem novos parâmetros de justiça.
Quando aplicamos esse arcabouço à política climática, o contraste se torna evidente. As conferências das partes da Convenção do Clima (COPs) são concebidas como arenas multilaterais, nas quais Estados-nação negociam compromissos globais. Porém, na prática, funcionam também como espaços de exclusão, em que o protagonismo estatal e empresarial ofusca a participação de povos indígenas, comunidades tradicionais, movimentos de juventude e coletivos urbanos periféricos. O que Fraser chamaria de contrapúblicos climáticos surge justamente nesse vazio: organizações que produzem narrativas alternativas, denunciam injustiças socioambientais e propõem modelos de desenvolvimento distintos da lógica extrativista dominante. A presença desses contrapúblicos não é acessória; é condição para que a governança climática seja não apenas eficaz, mas também legítima.
EMERGÊNCIA E ATUAÇÃO DOS CONTRAPÚBLICOS CLIMÁTICOS NO BRASIL
O caso brasileiro ilustra de forma vívida essa dinâmica. Ao longo de sua história recente, o país oscilou entre ser protagonista climático – sobretudo quando se apresentou como líder em energias renováveis e defensor da Amazônia – e atravessar períodos de negação científica e desmonte institucional. Essa oscilação atingiu seu ápice durante o governo anterior, marcado por características de um regime híbrido: um Estado formalmente democrático, mas que operava com práticas autoritárias, restringindo liberdades civis e reduzindo drasticamente o espaço de participação social. A fragilização de órgãos ambientais, a criminalização de organizações não governamentais e o aumento da violência contra defensores da floresta são apenas alguns exemplos do processo de fechamento cívico vivido no período. Nesse contexto, a política climática não poderia ser dissociada da qualidade da democracia.
Além disso, há de se reconhecer que, sem enfrentamento ao racismo, não haverá democracia. Este é o lema da Coalizão Negra por Direitos, que coloca em xeque um dos principais desafios históricos, desde a colonização. Nesse sentido, reforçamos as premissas de que os contrapúblicos não são monolíticos e que a crise climática também é uma crise racial.
Foi justamente diante da retração do espaço cívico que a sociedade civil brasileira consolidou e avançou na participação social de seus contrapúblicos. Plataformas como Observatório do Clima, Engajamundo, Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coalizão Brasil Clima, Florestas e Agricultura, Coalizão Negra por Direitos, além de coletivos de juventude, quilombolas e organizações de base comunitária, criaram arenas próprias para formular diagnósticos, produzir dados independentes e manter a agenda climática visível no cenário internacional. No interior desse processo, os povos indígenas do Brasil assumiram papel central na conformação de contrapúblicos climáticos. A partir da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) e Caucus Indígenas, que estão ocupando espaços multilaterais, esses sujeitos ampliaram a política do debate climático. Sua contribuição não se restringe à denúncia das violações como a escalada da violência em territórios e a devastação ambiental impulsionada pelo garimpo e pela expansão agropecuária, mas se expressa na luta para reconhecer a ciência indígena, seus modos de vida, suas tecnologias ancestrais, a que demarcação dos territórios seja reconhecida como uma política climática efetiva.
Essas organizações não apenas resistiram às políticas regressivas, mas também inovaram: construíram redes transnacionais, denunciaram retrocessos em fóruns multilaterais, apresentaram alternativas de bioeconomia e articularam estratégias de justiça climática e de combate ao racismo ambiental. A atuação desses contrapúblicos permitiu que o Brasil mantivesse certa relevância no debate global, mesmo quando o governo central se posicionava como negacionista.
O poder de mobilização dos contrapúblicos, em contextos nacionais e globais, ancora-se em três dimensões: participação, representatividade e reparação histórica. Uma vez que, diante de invisibilidades e opressões, muitas invisibilidades de pautas interseccionais de gênero, raça, classe e território se impõem, é imperativo que encontremos caminhos e medidas de inclusão na contramão do aprofundamento das desigualdades.
Esse percurso revela um ponto fundamental: a política climática brasileira é indissociável da vitalidade democrática. Quando instituições estatais se retraem, são os contrapúblicos que asseguram a continuidade da deliberação e a visibilidade de pautas essenciais. Ao mesmo tempo, a experiência mostra que a centralidade desses atores não pode depender apenas da conjuntura política, sob pena de sobrecarga e vulnerabilidade. É necessário institucionalizar mecanismos de participação que garantam espaço permanente para esses grupos, independentemente da alternância de governos.
COP30 COMO EXERCÍCIO DEMOCRÁTICO
A COP30, nesse sentido, pode ser compreendida como um exercício democrático. Ao ser realizada em Belém, no coração da Amazônia, a conferência carrega enorme carga simbólica: conecta o Brasil à Amazônia e a Amazônia ao Brasil, colocando a floresta, quilombos, periferias e seus povos no centro das decisões sobre o futuro do país e do planeta. Mas esse simbolismo só terá sentido se se traduzir em práticas concretas de inclusão. Não basta garantir espaços físicos para a sociedade civil; é preciso assegurar que esses contrapúblicos tenham condições de intervir substantivamente nas negociações e influenciar a formulação de posições oficiais. Isso exige desenho institucional, ferramentas de inclusão, recursos financeiros e vontade política.
O desafio é grande. Historicamente, as áreas destinadas à sociedade civil nas COPs ocupam posição periférica, tanto geográfica quanto decisória. A oportunidade do Brasil está em romper com esse padrão, oferecendo ao mundo um modelo inovador de conferência, em que os contrapúblicos não apenas testemunham, mas participam. A incorporação de saberes indígenas, quilombolas e comunitários pode enriquecer soluções ao trazer visões integradas de territorialidades múltiplas e natureza. Movimentos de juventude, ao enfatizar urgência e inovação, podem desafiar narrativas inerciais. Coletivos urbanos periféricos, ao denunciar desigualdades ambientais, podem reposicionar a justiça climática como eixo central. Movimentos negros e indígenas, ao denunciar o racismo institucional e estrutural, abrem caminhos para que outras realidades silenciadas por séculos consigam reivindicar pautas do bem viver. A diversidade de vozes não deve ser vista como obstáculo, mas como fonte de legitimidade e criatividade que apontam para um futuro ancestral.
Ao mesmo tempo, é preciso reconhecer os riscos. A simples presença de contrapúblicos não garante transformação. Muitas vezes, sua participação é instrumentalizada como forma de legitimar decisões já tomadas. Além disso, a multiplicidade de vozes pode levar à fragmentação, tornando difícil construir consensos e agendas comuns. O desafio é articular pluralidade e convergência. Experiências recentes no Brasil, como a Concertação pela Amazônia, mostram que é possível reunir setores diversos – sociedade civil, setor privado, academia e comunidades locais – em torno de compromissos mínimos, sem apagar divergências. Essa capacidade de tecer coalizões será decisiva para que a COP30 transcenda a encenação e se converta em processo transformador.
Não se pode esquecer, ainda, da dimensão geopolítica. O Brasil sediará a conferência em um momento de reconfiguração da ordem internacional, marcado por tensões entre grandes potências, guerras e disputas por recursos estratégicos. De um lado, espera-se do país liderança na defesa da Amazônia e promoção da bioeconomia. De outro, persistem pressões internas e externas por expansão agrícola e exploração de combustíveis fósseis. Os contrapúblicos terão papel central em tensionar essas contradições, garantindo que a busca por protagonismo internacional não se traduza em concessões que comprometam a integridade socioambiental. Como nos ensina Ailton Krenak, a crise que vivemos não é apenas ambiental, mas civilizatória, na qual “adiar o fim do mundo” perpassa em reconhecer a Terra como organismo vivo e retomar a sensibilidade para outros modos de existir.
A conexão entre clima e democracia torna-se, assim, inescapável. As decisões sobre política climática definem modelos de desenvolvimento, distribuem custos e benefícios e reorganizam territórios. Em sociedades desiguais, como a brasileira, essas decisões podem reproduzir injustiças ou contribuir para corrigi-las. A inclusão dos contrapúblicos amplia a chance de que prevaleça a segunda opção. Ao criar mecanismos de visibilizar quem sofre de forma desproporcional os impactos da crise climática a quem possui soluções inovadoras, a democracia climática fortalece tanto a legitimidade quanto a eficácia das políticas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A COP30 será, portanto, um teste histórico. O Brasil terá a chance de mostrar que é possível construir uma governança climática enraizada na diversidade social e ambiental, baseada não apenas em compromissos diplomáticos, mas em práticas participativas concretas. Se bem-sucedida, a conferência poderá inspirar novos modelos de democracia climática, em que esfera pública e contrapúblicos não se opõem, mas se complementam. Se fracassar, corre-se o risco de reforçar o ceticismo em relação ao multilateralismo climático e de perder uma oportunidade única de reconectar Amazônia, Brasil e mundo em torno de um projeto comum.
Em última instância, o que está em jogo é mais do que o futuro do clima. É o próprio futuro da democracia. A experiência brasileira recente mostrou que regimes híbridos podem corroer instituições sem rompê-las formalmente e que espaços cívicos podem ser restringidos mesmo sob aparência democrática. A atuação dos contrapúblicos, ao resistirem e inovarem em momentos adversos, revelou-se fundamental para preservar não apenas a agenda climática, mas também a vitalidade democrática. A COP30 representa a chance de reconhecer e institucionalizar essa contribuição, transformando práticas de resistência em pilares de uma nova governança.
O século XXI exigirá respostas inéditas para crises globais interconectadas. O Brasil, com sua diversidade social e riqueza ambiental, tem potencial para oferecer ao mundo um modelo de democracia climática em que a pluralidade não é ameaça, mas condição de legitimidade e eficácia. O êxito da COP30 dependerá de nossa capacidade de aprender com os contrapúblicos e de permitir que suas vozes não sejam apenas ouvidas, mas incorporadas às decisões. Ao final, será essa integração que dirá se o país está preparado para liderar não apenas no campo ambiental, mas também no campo democrático. Portanto, não haverá justiça climática sem o enfrentamento sistemático e comprometido ao racismo, às desigualdades e a todos os eixos de opressão que atravessam a agenda climática.
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Recebido: 3 de outubro de 2025
Aceito para publicação: 7 de outubro de 2025
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