O texto aborda a crise ambiental-climática a partir da perspectiva do debate internacional sobre o meio ambiente e os desafios atuais para a política ambiental brasileira, com especial atenção à Amazônia e às perdas recentes na sua política de conservação. Além disso, o texto também discute os desafios às formas locais e internacionais de governança climática, em um contexto político global que favorece o multilateralismo.
Uma perspectiva do debate internacional
Pode parecer que a humanidade sempre tenha vivido em um estado permanente de transição e que isto é desejável e positivo. Já passamos por grandes transformações tecnológicas, guerras, revoluções culturais e educacionais, profundas reorganizações geopolíticas e pandemias. Sem dúvida todas essas mudanças nos afetaram direta ou indiretamente. Entretanto, é a primeira vez que vivemos uma "transição" induzida por desafios de uma crise planetária, imposta pela nossa desbalanceada relação com a natureza. Uma transição em que o transgressor e a vítima são a própria humanidade.
A pandemia da Covid-19 é ilustrativa dos desafios impostos por uma crise planetária, não somente global. A vivência da crise climática (com eventos extremos cada vez mais frequentes e espraiados pelo mundo) e o potencial colapso de processos ecológicos que sustentam nossas sociedades (como a perda de biodiversidade ou o surgimento de novas doenças fatais) evidenciam situações de incerteza e vulnerabilidade criadas pelo ser humano e que colocam em risco existencial a própria humanidade ou, no mínimo, que trazem sofrimento absurdo, incabível moralmente, de milhares e milhares de pessoas.
A crise ambiental planetária, materializada pelas mudanças climáticas, evidencia também de forma concreta nossas incapacidades, desatenção e até arrogância na relação do ser humano com a natureza. Já sabemos que não há como controlar o clima ou tão pouco retroceder no tempo e ter de volta as condições existentes anteriormente no planeta. O já consolidado aumento da temperatura em 1,1 °C da superfície do planeta determina que os esforços possíveis e urgentes são de mitigação das emissões de carbono, com vistas a algum grau de segurança climática no futuro e de adaptação às novas e inevitáveis realidades ambientais.
Essas novas realidades ambientais convivem com mudanças no campo político, modeladas por transformações sociais e econômicas, pelo medo e a insegurança e pelo impacto das inovações tecnológicas. A humanidade e o planeta estão expostos a uma mutação de múltiplas dimensões, com processos disruptivos e impactantes nos modelos de percepção e de análise do mundo contemporâneo. Uma metamorfose do mundo mais do que se insinua, se anuncia.
Na perspectiva de um mundo em transição, é fundamental deter um olhar mais atento sobre a inserção da temática ambiental-climática na compreensão das dinâmicas políticas e econômicas contemporâneas internacionais[1] e na expressão do balanceamento global de poder. A vida social organizada que se conhece está exposta a possíveis colapsos pelas incertezas e vulnerabilidades impostas pela tripla crise ambiental global: as mudanças do clima, o colapso da biodiversidade e a poluição ambiental. As trajetórias de desenvolvimento consolidadas até hoje não afiançam um futuro seguro e sustentável e, ainda, determinam imensas incertezas no presente. Um aspecto-chave balizador dos desafios impostos pela crise ambiental-climática deveria ser a rejeição de “balas de prata” para lidar com a complexidade do desafio e a procura por soluções duradouras e verdadeiramente inclusivas e globais.
Se o século passado consolidou o reconhecimento dos problemas ambientais globais (e não mais a perspectiva dos impactos ambientais locais ou transfronteiriços) e a defesa de uma ordem multilateral, as primeiras duas décadas do século XXI terminam moldadas pela necessidade de agir, orientando-se por soluções de produção, consumo e de investimentos que possibilitem uma urgente descarbonização da economia mundial, ao mesmo tempo em que assegurem resiliência de longo prazo.
Observa-se que o diálogo internacional contemporâneo já visa a essas soluções duradouras, mais permanentes, adaptáveis e inclusivas de desenvolvimento (sustentável). Tais soluções devem traduzir ações afirmativas em relação aos medos e às vulnerabilidades resultantes da perda de referências que a crise com a natureza já determina à humanidade.
Sociedades desestabilizadas e acuadas buscam incessantemente pelo novo, por caminhos alternativos e roteiros distintos, por outras lideranças e pela vontade de voltar a acreditar. Porém, a arquitetura político-econômica de busca dessas soluções no curto prazo revela-se complexa e com reduzidas possibilidades de abrangência/resposta global. Infelizmente, na disputa por poder, este é também um ambiente fértil para negacionistas, populistas nacionalistas, vendedores de “balas de prata” e free riders.
Os desafios impostos à humanidade pela crise ambiental-climática demandam, entretanto, numa velocidade sem precedentes, roteiros de cooperação internacional ainda mais profundos. Tais processos envolvem movimentos políticos abrangentes, moldados agora por novos atores e valores balizados pela inclusão e a justiça social e que estejam alinhados com as ambições políticas das novas gerações (futuro). Esses aspectos associados à busca por uma nova relação do homem com a natureza, na qual os processos de desenvolvimento são pensados com e em harmonia com a natureza e não contra ela ou saqueando-a, delineiam a demanda por uma revolução verde no mundo.
Novas dinâmicas de cooperação internacional começam a emergir, transcendendo os modos tradicionais de cooperação entre países e explicitando os interesses/comprometimentos dos setores privado e financeiro e da filantropia internacional. O sistema político internacional no seu modo analógico não tem como acompanhar ou até mesmo lidar com essas emergentes transformações políticas de produção e de repactuação social no mundo. Neste sentido, a transição verde não é só tecnológica, é muito mais transição e transformação políticas.
Nunca fomos colocados a teste, mas parece que o mundo não está preparado para lidar com as crises provocadas por processos tão disruptivos da natureza, e tão pouco com crises que transcendem os aspectos globais ou internacionais. O spoiler que a pandemia da Covid-19 nos oferece evidencia as insuficiências das instituições internacionais e nacionais, além de explicitar a necessidade de construção de novas premissas políticas para a mobilização, o engajamento e o comprometimento de sociedades e de governos.
O documento Our Common Agenda[2], do secretário-geral das Nações Unidas, lançado em 2021, evidencia o ponto de inflexão na história da humanidade que experimentamos nos tempos atuais. Além de expressar o momento crítico e a complexidade que se impõem às (urgentes) escolhas do mundo no presente, indica que a necessária mudança de rumos determina não apenas a reconstrução do mundo em que vivemos, mas também a retomada da solidariedade e da confiança entre pessoas, sociedades e países.
O reconhecimento de que os desafios da humanidade neste século estão cada vez mais interconectados e que transcendem fronteiras, governos e sociedades pauta essa visão política, além de orientar as discussões da renovação e da busca de novos espaços para o multilateralismo. A decisão de mudança se dá no presente, é urgente e não permite adiamentos. Não teremos outra chance de escolha e não temos como “comprar” o tempo de que necessitaríamos.
Uma nova visão política terá que se orientar por seis pilares que definiram os necessários (novos) espaços de ampliação do multilateralismo e da cooperação internacional: (a) o enfrentamento à tripla crise ambiental como central, (b) a renovação do contrato social entre governos nacionais e sociedades na atuação em espaços de governança internacional; (c) o fim da infodemic e o balizamento de acordos internacionais orientados por fatos, ciência e conhecimento; (d) a necessária mudança na radicalização da transparência em torno da mensuração da implementação dos compromissos, e seus impactos no progresso e na prosperidade econômica e social como balizadores dos investimentos de longo prazo; (e) a superação do curtoprazismo e a valorização das entregas de longo prazo e da perspectiva intergeracional; e (f) um novo sistema multilateral inclusivo e networked e centrado numa ONU mais efetiva e mais ágil.
A inexorável nova relação do homem com a natureza (imposta pela crise ambiental-climática) exigirá também mudanças deliberadas e conscientes nos valores sociais: um redirecionamento de toda a economia transformando a produção, a distribuição e o consumo em qualquer um dos setores (Mazzucato 2020). As trajetórias possíveis são diversas e distintas em função das realidades democrática, ambiental, social e econômica de cada país e da vontade política de mudança. Mas todas orientadas por serem convergentes com as perspectivas de longo prazo e o futuro do planeta e da humanidade, como começamos a ver nos Green Deals europeu e americano, na proposta chinesa de Civilização Ecológica, ou nas propostas verdes de retomada de crescimento econômico mundial pós-pandemia da Covid-19.
Esses pontos de partida estão referenciados pelos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), o Acordo de Paris e pela arquitetura Pós-2020 da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD). Com os ODS, definidos em 2015 e monitorados anualmente, as regras do jogo climático finalmente acordadas no Pacote de Glasgow, na Conferência das Partes, a COP 26, e a esperada conclusão das novas metas de Biodiversidade que virá na COP 15 da CBD oferecem um arcabouço pactuado e sólido para o alinhamento de visões, dos roteiros econômicos e de financiamento.
As responsabilidades são compartilhadas, com papéis e regras definidos para todos. A perspectiva temporal determina, com metas para 2030 e com o comprometimento de neutralização de emissões até 2050, a recomposição de uma relação positiva do homem com a natureza. Onde então residem os impedimentos para os avanços tão urgentes e necessários?
Infelizmente, o “como agir” no enfrentamento da crise ambiental-climática é refém de pelo menos cinco aspectos relevantes:
a) as incertezas determinadas pela pressão e a predominância de interesses poderosos e arcaicos consolidados, e de suas visões de curto prazo dirigidas pela disputa de espaços para soluções do passado que não mais cabem no futuro;
b) as ambiguidades de natureza política e econômica decorrentes de ambição de mitigação vis-à-vis os desafios impostos por trajetórias de descarbonização e soluções resilientes e duradouras, e as limitações impostas pela sobreposição dos interesses de curto prazo;
c) as ambiguidades decorrentes de ambição de mitigação derivadas da meta-limite de aumento de até 1,5 °C da temperatura da superfície do planeta até 2050 em face da viabilidade de lidar/superar os interesses de curto prazo e ensejar na transição climática a adoção coerente de soluções resilientes e duradouras;
d) a não consideração do já constatado aumento de 1,1 °C da temperatura do planeta como ponto de referência para a transição climática e para as alternativas de curto prazo;
e) as ainda incipientes discussões sobre as mudanças culturais, políticas e sociais, e a disputa entre modelos de governança política mais ou menos democráticos e eficientes para lidar com os novos desafios sociais.
A não abordagem objetiva e transparente destes aspectos favorece que constituencies políticas e econômicas “com prazos de validade vencidos” busquem “comprar tempo” na transição ambiental-climática. Estratégias para o phasing out de processos econômicos causadores do problema ambiental-climático se contrapõem aos interesses expressos nas propostas de phasing down, caracterizando tensões políticas que encerram ou atrasam os processos de decisão.
Com a adoção do Acordo de Paris, em 2015, o driver climático na agenda política internacional consolidou-se como um dos mais importantes temas contemporâneos. O reconhecimento político do problema foi afirmado globalmente na Conferência Rio 92, com a adoção da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) e o estabelecimento do regime climático global. Em 2015, o reconhecimento político envolveu a corresponsabilidade de países e de sociedades na construção de soluções permanentes de enfrentamento e de adaptação às mudanças do clima, num alinhamento com as dinâmicas econômicas e tecnológicas de emissões de gases de efeito estufa no século XXI.
O fracasso das soluções preconizadas pelo Protocolo de Quioto quanto às responsabilidades históricas dos países desenvolvidos e o agravamento da crise climática por conta do aumento de emissões evidenciadas na primeira década do atual século levaram ao quadro político de construção e de negociação do Acordo de Paris.
Em 2021 a Conferência das Partes em Glasgow, a COP 26, definiu as regras necessárias para “implementar Paris” e revelou a dimensão e a envergadura política e econômica que a agenda climática ganhou nos últimos seis anos. Os processos políticos evidenciados por Glasgow foram bem além das salas e dos textos de negociação. As vozes das sociedades do mundo lá estiveram e não somente nas ruas. Tomaram as arenas da Conferência e influenciaram diretamente as negociações oficiais por intermédio das declarações voluntárias assinadas, que mobilizaram países/governos, sociedades, a academia e o mundo dos negócios e das finanças.
As decisões que compõem o Pacote de Glasgow foram adotadas pelo sistema multilateral do regime climático, como Paris preconiza. No entanto, cabe observar que os enfáticos e assustadores alertas dos cientistas e as “demandas políticas das ruas” pressionaram e influenciaram os processos de tomada de decisão. Expuseram as fragilidades do jogo político do sistema de governança climática, bem como as inconsistências/incoerências dos players importantes num contexto multipolar internacional.
A polarização geopolítica entre as duas superpotências globais, os Estados Unidos e a China, não teve o palco esperado em Glasgow. A Declaração Conjunta Estados Unidos-China sobre clima, lá assinada, deu um sinal promissor de que, a despeito das ameaças e das fricções, a porta para a cooperação Washington-Beijing permanece aberta. O representante americano, John Kerry, chegou a comparar esta declaração com o Acordo de 1986, entre Reagan e Gorbachev, sobre armas nucleares (Amaral 2021).
A COP 26 expôs outras dinâmicas políticas traduzidas nos interesses da União Europeia, Índia, África do Sul, Japão, Indonésia, Colômbia, Chile e Austrália, países produtores de combustíveis fósseis, além do próprio anfitrião, o Reino Unido. Os fios desencapados foram expostos e vão demandar esforços adicionais para a reconstrução da confiança nas relações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Ou, ainda, para lidar com outras rotas de interesse internacional que envolvem a cooperação Leste-Oeste, além das tradicionais rotas da cooperação Norte-Sul.
As contradições e as ambiguidades estão expostas, comprometem a credibilidade e a confiança no sistema multilateral de governança ambiental-climático e denunciam a complexidade da implementação do Acordo de Paris. A perspectiva de resultados transformadores efetivos no contexto da década de transição climática (2020-2030) revela-se frágil, no mínimo. Pela ciência, o desafio imposto é de corte de 45% das emissões globais até 2030. Os efeitos das mudanças climáticas já são sentidos pela humanidade e expressos pelo aumento da frequência de eventos extremos climáticos e por vulnerabilidades aos sistemas econômicos, financeiros e sociais, ou seja, não é preciso esperar pelo futuro (do ambíguo 1,5 °C de aumento de temperatura), pois os efeitos do aumento de 1,1 °C já são sentidos no presente.
O papel (ainda) preponderante de dependência de combustíveis fósseis ou de interesses geopolíticos de países produtores de petróleo e gás determina passos mais lentos para a transição energética e climática. E os retrocessos observados na agenda de uso da terra em países em desenvolvimento, notadamente com o aumento do desmatamento e da vulnerabilidade dos territórios protegidos – indígenas, de populações tradicionais e de conservação – revelam as contradições da ação política global para o enfrentamento das mudanças do clima.
As promessas políticas anunciadas estão aquém do que é importante e necessário. O Acordo de Paris tem o seu coração no artigo 4, que trata da progressividade da ambição climática e da consecução dos caminhos convergentes para um mundo de baixo carbono. A tese predominante do momento deveria estar pautada por dois importantes pontos:
a) a busca de compromissos adicionais de aumento de ambição de mitigação, por parte de governos, orientados pela meta de até 1,5 °C de aumento de temperatura;
b) a visão estratégica de neutralização de emissões de gases de efeito estufa em 2050.
Entretanto, as promessas políticas de ambição se acumulam sem uma avaliação estratégica de viabilidade, sem considerar o real engajamento das sociedades nacionais e da adoção de mecanismos que proporcionem a inclusão de todos os países signatários do Acordo de Paris. Se, por um lado as dinâmicas políticas de mobilização e de engajamento são fragmentadas, parciais e não inclusivas, por outro, não levam em consideração a ambiguidade política do presente: a predominância do olhar para o futuro (1,5 °C) e o não destaque para as possíveis transformações, já em curso, resultantes do aumento de 1,1 °C que a superfície da Terra já experimenta em função do aquecimento global.
Revela-se relevante, assim, uma melhor compreensão do papel da crise ambiental-climática nos novos arranjos geopolíticos globais e a manutenção do equilíbrio de poder entre países. Na Era do Antropoceno, a dependência da humanidade de recursos naturais é evidente, assim como a dependência da natureza (para que se mantenha o seu processo evolutivo natural) em relação ao homem também o é para manter suas dinâmicas evolutivas. A interconectividade homem-natureza que o antropocentrismo anuncia determina à humanidade a responsabilidade de assegurar o equilíbrio entre os sistemas de demanda e de oferta de ativos ambientais e a integridade de processos ecológicos (Klabin 2019).
No conjunto dos desafios de realinhamento da humanidade com a contemporaneidade, um outro debate importante e emergente reside no lugar da espécie humana no mundo e para onde iremos. Imaginar futuros possíveis, planejar e escolher sobre eles estão na base das nossas visões conflitantes sobre o futuro da relação do homem com o resto da natureza. A perspectiva de ausência de limites que se insinua com os avanços da ciência e da tecnologia configura possibilidades de redesenhar a biologia e a natureza humana como desejamos, numa seleção volitiva e não mais natural (Wilson 2018).
Biólogos conservacionistas concordam que inúmeras espécies serão extintas sem serem sequer reveladas. E o impacto da espécie humana sobre a diversidade biológica se mostrará cada vez mais devastador. Segundo Edward Wilson, em poucas palavras, o impacto humano sobre a biodiversidade é um ataque a nós mesmos. Assim, um possível colapso da biodiversidade está também sob o guarda-chuva da crise ambiental-climática e revela um paradoxo: quanto mais espécies a humanidade extermina, mais novas espécies são descobertas pela ciência (Wilson 2018). A velocidade desse extermínio nos tempos atuais é sem precedentes. O debate político que se segue é no sentido de conter esse processo de aniquilação da diversidade biológica e de fazer predominar uma relação positiva do homem com a natureza. Portanto, o enfrentamento da crise ambiental-climática demanda soluções baseadas na natureza, com impactos positivos e orientadas pela resiliência e a conservação dos ativos ambientais.
O tema da governança ambiental-climática internacional é, desta forma, um tema de sobrevivência humana e, por isso, implica novos olhares e ousadias. Não somente porque as estruturas institucionais internacionais existentes estão desenhadas para operar em dinâmicas analógicas, enquanto as sociedades já operam e reivindicam dinâmicas digitais-tecnológicas, mas também porque, para lidar com os desafios e a urgência da transição ambiental-climática, há que se rever a motivação que leva os países para a mesa de negociação multilateral.
A esse respeito vale observar que a negociação climática internacional explicitou ainda mais as assimetrias de realidades e de possibilidades de escolhas pelas sociedades de países desenvolvidos e em desenvolvimento. Aprofundou também o baixo índice de confiança e de credibilidade política no que concerne aos governos de países desenvolvidos, particularmente na alocação de recursos financeiros e tecnológicos para o mundo em desenvolvimento, e seu genuíno interesse em viabilizar soluções verdadeiramente de âmbito global e resilientes.
Num ambiente político conturbado e com convicções políticas envelhecidas, o debate sobre este tema se movimenta através de interlocuções predominantemente reativas, muitas vezes improvisadas, não planejadas. Não se trata da descrença do multilateralismo. Mas, para que o multilateralismo se torne essencial na solução da crise ambiental-climática, ele precisa de reforços extraordinários, muito além dos já consolidados ritos diplomáticos, que acabam transferindo ao processo multilateral os problemas individuais dos Estados-nação ou interesses vinculados a relações bilaterais ou regionais estabelecidas. A presente coreografia do processo multilateral na resolução da crise planetária ambiental-climática não pode ser sequestrada por uma dinâmica fortemente liderada por democracias iliberais, regimes autoritários, paraísos fiscais, ou ditaduras populistas vulgares e outros Estados-nação semelhantes.
O atual sistema de criação de consensos globais não tem conseguido emanar a confiança que as sociedades demandam e que a ciência urge. Apesar do importante e relevante legado estabelecido até o século passado, a governança global construída através de processos multilaterais analógicos e progressistas é limitada para lidar com o presente, para não falar do futuro que se aproxima.
É preciso dar atenção ao futuro agora, para ajudar na reconfiguração do presente. O velho modo de agir multilateralmente está morto e um novo ainda não é visível no horizonte. O mundo se encontra entre um passado que desaparece e um futuro nebuloso (Gaetani & Teixeira 2020). É hora de experimentações mais ousadas. É hora de radicalizar na escolha de processos ainda mais transparentes, colaborativos, diversos e flexíveis que respeitem a inclusão de todos, mas que também respeitem a necessidade de uma transição rápida e transformadora. O lidar com a crise ambiental-climática determina isso. É a urgência do presente.
Tempos extremos exigem medidas extremas, e isto não significa que estas medidas precisem ser autoritárias ou excludentes. Este não é o momento para uma linguagem acordada, mas para iniciativas transnacionais, comportamentos insurgentes e inovações ousadas. A situação atual é mais grave. Não superaremos a crise ambiental-climática sem o engajamento pleno, sério e inovador de todos os que se preocupam com o futuro.
É hora de se concentrar no “como” tanto quanto no “o quê” e no “quem”. É de nós que estamos tratando e daqueles que virão no futuro. É tempo de cuidar do legado combinado das gerações atuais e que têm a natureza como uma aliada e não como inimiga, que precisa ser dominada ou controlada. É preciso colocar em prática a leitura simples daquilo que as novas gerações já adotam para si: “em relação à crise ambiental-climática, se você não é parte da solução, você é parte do problema”.
Brasil: a singularidade do presente e as escolhas ainda possíveis
Crises globais usualmente impõem custos para todas as nações e suas sociedades. A pandemia tem sido um teste duro, difícil para todos, mas não de forma homogênea. O avanço descontrolado da doença impôs medos e incertezas para todos. Mas o sofrimento mais agudo foi sentido por países com governantes minoritários, despreparados, incapazes de equilibrar o processo político e agir prontamente em crises (Abranches 2020). Líderes que desprezaram os alertas da ciência em nome dos seus planos políticos. O Brasil, infelizmente, foi um desses países e experimenta consequências e efeitos dessas escolhas que não devem ficar circunscritas a um tempo menor.
Tal situação não se limita à crise global da saúde. Em um movimento político claramente patrocinado pelo governo federal e apoiado por sua base parlamentar, o Brasil promove retrocessos que avançam em outras áreas, notadamente nos segmentos das políticas sociais, ambiental-climática, na ciência, na diplomacia, nos direitos humanos, na inclusão política, na cidadania e no campo democrático. O Brasil do presente é um país ultrapassado, distante da contemporaneidade, menor em relação ao seu passado e que vem progressivamente abrindo mão do seu lugar no mundo.
Declaradas como uma das áreas-alvo de desconstrução pelo governo federal – copiada a partir de um template trumpista que veio até a retirar os Estados Unidos do Acordo de Paris – as políticas ambientais e climáticas, bem como o sistema federal de gestão ambiental pública foram submetidos a um intenso e contínuo processo de fragilização, desmonte e aniquilamento. Os retrocessos promovidos orientaram-se por linhas de ação descritas a seguir:
a) Esvaziamento da estrutura organizacional do Sistema Federal de Meio Ambiente, fragilização das capacidades institucionais dos órgãos federais ambientais e afrouxamento das normas ambientais e climáticas;
b) Eliminação dos espaços político-institucionais de formulação de políticas públicas de participação da sociedade civil;
c) Desmonte dos domínios da diplomacia e da ciência dedicada às políticas ambientais-climáticas;
d) Amazônia exposta ao crime ambiental, ao desmatamento sem controle e à fragilização dos territórios protegidos, notadamente as terras indígenas, territórios quilombolas e áreas de conservação;
e) Revisão/afrouxamento da legislação ambiental com o apoio da sua base parlamentar;
f) Negacionismo climático como diretriz política de governo;
g) Ruptura e desmonte da agenda brasileira de cooperação e da interlocução internacional multilateral e bilateral.
Isto ocorre no momento-chave da emergência da temática ambiental-climática para a centralidade da agenda internacional contemporânea, deslocando o Brasil de um lugar ambicionado, no qual o país até recentemente tinha protagonismo e liderança. Os argumentos políticos adotados pelo governo são débeis, equivocados, estreitos e revelam a magnitude da ignorância de seus defensores. O país está exposto ao que há de mais retrógrado, deslocado do tempo, e o alcance do dano ainda é pouco conhecido por sua sociedade.
O processo de recuperação não será trivial e não pode ser orientado pelo passado, pelo que tivemos ou já fomos. Assim como na agenda de governança global e multilateral, a reconstrução da governança ambiental-climática nacional demandará ousadia, criatividade e, por que não, também será disruptiva.
Uma premissa importante é assegurar que a temática ambiental-climática permeie a sociedade brasileira como um dos alicerces da ambição de qualidade de vida, equidade, bem-estar e do seu crescimento econômico. Um dos desafios-chave é estar no dia a dia das pessoas e das empresas como uma agenda tangível, modelada por valores que promovam a convergência de perspectivas e inclusão política, econômica e social num país extremamente desigual.
O processo político não deve ser balizado pela reação às perdas e aos retrocessos, e sim por viabilizar alternativas, soluções e acesso aos problemas sociais e econômicos estruturais que enfrentamos como nação. A pactuação do que seremos como sociedade em 2050, ou seja, na segunda metade deste século, deve encerrar a complexidade das nossas realidades e ter clareza sobre o que fazer. O Brasil precisa saber mais da importância do Brasil no mundo, e a agenda ambiental-climática pode conferir algum protagonismo.
Nesse processo é fundamental o Brasil valorizar e proteger sua biodiversidade, seus biomas, suas populações tradicionais como as estruturas fundantes de nossa identidade nacional, fortalecendo assim o Brasil como uma nação soberana "Verde".
No curto prazo precisaremos agir em duas direções:
a) conter os retrocessos e reparar os danos associados (no que couber); e
b) estar realinhados com a contemporaneidade com base em interesses nacionais.
Para isso, é preciso que o Brasil defina o que quer, os seus interesses e repactue a agenda ambiental-climática nessa visão, segundo as suas perspectivas estratégicas e os valores orientadores de sua democracia. O desafio demanda mais que ousadia; requer vontade política de mudar. O que deve ser preservado tem que se contrapor ao que precisa ser deixado para trás. É importante entender as novas realidades globais e as locais, que estão em processo de metamorfose, e ser sábio na alocação de energia para o dia seguinte. E, obviamente, entender os erros do passado e (re)pactuar com a sociedade os novos rumos, lidando com os seus passivos que vêm de longe. Não pode haver mais espaços para a miopia política que promove aventureiros ou para o achismo ambiental que esvazia o peso político da agenda.
Como sinalizado anteriormente, até 2030 o processo político da agenda ambiental-climática reúne fatores que insinuam uma profunda e rápida transformação civilizatória. Nas eras do Antropoceno e da inovação tecnológica, é importante compreender a velocidade das transformações em curso orientadas pela neutralização e a descarbonização da economia global.
A adoção do Acordo de Paris estabeleceu globalmente a mudança de rumos e expectativas sobre a descarbonização e a emergência de uma nova sociedade contemporânea. O Brasil foi um dos protagonistas dessa formulação, não somente pelo engajamento político de seus governos e sociedade e pela competência da sua diplomacia ambiental, mas também por apresentar o seu compromisso de ambição de mitigação em 2015, quando foi afirmativo, consistente e transparente em relação a três fundamentos importantes:
Nos últimos três anos o que o governo federal protagonizou, no âmbito do sistema ambiental-climático internacional, foi o reverso do que constituía o protagonismo, a liderança, a credibilidade e a expressão de softpower em política externa brasileira. Apequenou-se por incompetências, fake news, comportamentos equivocados, mesquinhos em relação ao mundo e ao sistema multilateral e por posturas políticas que provocaram desconfiança e distanciamento de parceiros. O Brasil perdeu progressivamente relevância e espaços, além de ocasionar um dano à sua imagem internacional sem precedentes.
Três processos, ilustrativos desses descaminhos, tiveram grande impacto internacional – a retomada do desmatamento na Amazônia e no Cerrado e o descontrole no seu combate, a infundada interrupção do Fundo Amazônia e o trágico processo de revisão da Contribuição Nacionalmente Determinada (NDC) do Brasil, no âmbito do movimento internacional de ampliação de ambição de mitigação de emissões pelos países signatários de Paris. Essas “flagships” do governo Bolsonaro esgotaram a paciência do mundo com o Brasil, além de acirrar desconfianças. As três posições põem em xeque-mate a segurança climática do Brasil e do planeta, e desdizem quaisquer promessas de alinhamento do país com a comunidade ambiental-climática.
Esse desalinhamento não se circunscreve aos governos internacionais, mas envolve também a sociedade civil global, os non-state actors definidos no Acordo de Paris. O movimento é de crescente pressão contra o país, afetando outros interesses guardados por políticas econômicas e comerciais. E, perdido por conta das suas opções equivocadas e da sua baixa capacidade de compreender o mundo, o governo federal se posiciona orientado por velhas teses, não dando conta da magnitude de suas fragilidades e da exposição do país.
A reação que se observa envolve diferentes frentes: do ativismo resistente e resiliente, do posicionamento de novas constituencies com diferentes perfis políticos, do posicionamento de atores até agora silenciosos sobre esta agenda – como os governos subnacionais e os membros do Congresso – até a mobilização e a visibilidade de outros atores na busca de construção de respostas que expressem, de fato, as posições e as contradições da sociedade brasileira sobre essa agenda, como o setor privado e o setor financeiro. Embora ainda carentes de efetividade política mais estruturada e de ações mais concretas na implementação de ações, essas importantes reações, os novos atores e as novas iniciativas revelam a capacidade de mobilização social, a consistência técnico-científica das críticas e da busca por alternativas concretas e mais estruturais, além da qualificação para interlocuções diversas e em diferentes contextos, sejam eles nacionais ou internacionais. A sociedade brasileira se mostra, ainda, mais preparada do que antes para o diálogo contemporâneo com o mundo, numa expressão clara do amadurecimento das instituições e da nossa democracia.
Depois de três anos de desconstrução de seus ativos e legados no campo ambiental-climático, a tentativa de retomada do Brasil teve como palco a COP 26. A realidade política nacional se impôs e o mundo percebeu, com clareza, a existência de dois Brasis: o do passado e o do presente pedindo futuro, liderado por sua sociedade.
As posições do governo brasileiro guiaram-se por três drivers e não por uma nova visão da agenda: os interesses do setor privado (notadamente pela regulação do mercado global de emissões), o controle de dano à imagem do país e os interesses de assegurar espaços políticos que possibilitem a interlocução diplomática e econômica no futuro próximo. Orientado por estas perspectivas, o Brasil apresentou uma revisão de sua NDC (uma correção aritmética de metas para rever o desastroso processo de 2020, que explicitou as posições fake green do país), sem qualquer ambição adicional, sem planos concretos e números sem lastro, com a adesão ao grupo de neutralidade das emissões em 2050 e a meta de fim do desmatamento ilegal, até 2028, também sem planos.
A fragilidade desse novo posicionamento se evidencia pela realidade que se impõe. O negacionismo climático ainda tem domínios de poder quer no governo, quer na sua base política no Congresso Nacional. A interlocução com a sociedade se mantém esvaziada, enviesada no setor privado retrógrado e rentista e menor quanto à recuperação dos retrocessos. A fragilidade do conteúdo técnico-científico da intenção de fim do desmatamento ilegal é denunciada pelos recorrentes resultados de aumento descontrolado do desmatamento na Amazônia e pela constatação de perda de 50% do Cerrado.
A adesão às Declarações de Floresta e de redução de metano são percebidas como intenções marqueteiras, uma vez que nada dialogam com as atuais políticas públicas. O desmatamento nos três anos do atual governo federal (2019-2021) aumentou em 79% quando comparado ao período de 2016-2018, sendo que o aumento do desmatamento em territórios indígenas foi de 138% (Oviedo et al 2021).
As circunstâncias conjunturais do “Brasil oficial” sugerem que essa agenda só será tratada, como conteúdo estratégico de projetos nacionais, no futuro e por outros governos. Assim, a esperança de muitos de ter o país de volta aos trilhos da cooperação global na questão ambiental-climática se dilui. As incapacidades da instância federal do poder público, a visão de que tudo se resolve no curto prazo e pela regulação de mercados, o desmonte das políticas públicas e a inexistente credibilidade internacional dos atuais interlocutores definem um quadro sensível e único. Os esforços de conter o retrocesso, que nomeia o atual governo, se contrapõem à realidade política da Esplanada, que consolida os avanços no desmatamento e no garimpo ilegal na Amazônia, que promove a reserva de mercado do carvão mineral na matriz energética brasileira e que acelera a fragilização dos direitos de povos tradicionais e indígenas.
No lado B dessa prosa, emergem os movimentos da sociedade civil organizada – a Concertação pela Amazônia, o Plano Amazônia 2030, o movimento dos empresários pelo clima, o Consórcio de Governadores do Clima, o Consórcio de Governadores da Amazônia, a Iniciativa Clima e Desenvolvimento: Visões para o Brasil 2030, o Brazil Climate Action Hub, os movimentos de justiça ambiental e climática e os movimentos associados às novas lideranças indígenas, quilombolas e outras populações tradicionais, dentre outros – que revelam realidades, disputas e soluções concretas, que permitem dotar de credibilidade a ambição de ter o país de volta ao cenário da diplomacia ambiental-climática.
A sociedade brasileira diversa e plural juntou-se “às ruas e às vozes do planeta” para afirmar não somente o compromisso de enfrentamento à crise ambiental-climática, mas também a consciência da corresponsabilidade de todos para lidar com ela. O desmatamento da Amazônia ameaça a estabilidade do clima do planeta. Torna vulnerável as condições que favorecem o desenvolvimento do Brasil. A fragilização imposta ao país por conta do descontrole do desmatamento da Amazônia e do Cerrado impacta a segurança alimentar, hídrica e social, a biodiversidade, além de favorecer o surgimento de novas pandemias e acelerar as desigualdades. Numa outra perspectiva, permite a explosão da violência no campo e nas cidades em função do acirramento dos conflitos decorrentes da grilagem, da extração ilegal de ouro, diamantes e madeira e do tráfico de drogas. Na ótica internacional, além do impacto no cenário global, impõe custos políticos para a nação no exercício do importante papel de liderança regional na América do Sul, na Pan-Amazônia e na Cooperação Sul-Sul.
O desmatamento da Amazônia denuncia uma condição única que coloca o Brasil sob uma nuvem no quadro geopolítico e econômico da crise ambiental climática. O desmatamento não é motivado por interesses econômicos. A sua prática é criminosa, ilegal e lesa os interesses do Estado e de sua sociedade nos termos de sua Constituição Federal e de sua democracia. Ao queimar e ao desmatar a floresta, o país queima dinheiro, poder político e ameaça a sua soberania (ao não proteger o meio ambiente, o Brasil de hoje não zela pelo bem público e pelos direitos constitucionais do povo brasileiro e não exerce a sua soberania em relação aos seus próprios interesses). Deixa para trás o seu ativo na geopolítica do clima: floresta de pé, Brasil de pé. E, ainda, deixa escapar (mais uma vez) a oportunidade de promover, de fato, uma agenda para o desenvolvimento sustentável da Amazônia, que ocupa quase 60% do território nacional e detém uma população de cerca de 27 milhões de habitantes.
Uma das condições estratégicas que a ciência assinala para o enfrentamento da crise ambiental-climática é a proteção/restauração dos ecossistemas florestais. O Brasil queima florestas e emite carbono acolhendo o crime ambiental e comprometendo o seu desenvolvimento, além da estabilidade climática da Terra. Não é solidário com o planeta e agrava as incertezas associadas às emissões de carbono. O desmatamento ilegal da Amazônia responde por cerca de 50% das emissões brasileiras de gases de efeito estufa (em 2015, eram 15% das emissões totais) e coloca o Brasil entre os maiores emissores do mundo. O argumento de que emitimos historicamente 3% das emissões globais explica a trajetória do passado. A realidade é que como signatários do Acordo de Paris estamos sujeitos às atuais regras internacionais de mitigação e de adaptação climática. O país pratica hoje o jogo dos (muitos) erros e da ilusão de “comprar tempo” com base nos ativos ambientais resultantes das políticas adotadas por governos anteriores.
Ironicamente, parece não se dar conta de que a crise ambiental-climática já movimenta interesses em outras constituencies políticas e econômicas. O debate internacional, que tradicionalmente foi conduzido pela agenda de energia e a vilania dos combustíveis fósseis como principais causas do aquecimento global, ganhou novos contornos em Glasgow. A agenda de uso da terra entrou no elenco das prioridades de enfrentamento da crise ambiental-climática. E não ficou restrita ao combate ao desmatamento, avançando para os segmentos da agropecuária e florestal. Importante saber lidar com os interesses da agricultura tropical brasileira no horizonte de 2050 e os seus compromissos reais de produzir alimentos com baixas emissões e alinhado com a proteção da natureza. Não se trata somente do que ainda está protegido no Brasil, mas o que teremos protegido em 2050 e o papel da segurança alimentar nesses resultados. Embora novamente o país tenha o domínio das soluções, falta a ambição política de mudar e de agir de forma proativa. O Brasil insiste em ser menor em relação ao seu futuro.
Em 2020, as emissões brasileiras de gases de efeito estufa cresceram 9,5%, enquanto no mundo inteiro elas despencaram em quase 7% devido à pandemia (IEMA 2021). Os setores que respondem por esse aumento são os da agropecuária, resíduos e as mudanças de uso da terra, com o protagonismo do desmatamento na Amazônia e no Cerrado (que somados perfazem 90% das emissões do setor). Mais uma vez, a mudança de uso da terra desponta como a principal fonte de emissões do Brasil, com cerca de metade do total de emissões do país. O descontrole sobre o desmatamento faz com que a curva de emissões ainda seja dominada por uma atividade que é majoritariamente ilegal e que não contribui para o PIB ou para a geração de empregos (IEMA 2021).
Tal cenário confere ao Brasil uma situação única no mundo: o seu desafio de mitigação climática não está somente associado à mudança de processos econômicos e sociais e de desenvolvimento. Quase a metade do desafio reside no combate ao crime ambiental e ao crime organizado. O desmatamento na Amazônia e no Cerrado tem de voltar a ser controlado e eliminado, não somente pelo papel de segurança climática e hídrica, das novas economias verdes e de serviços ambientais que a maior floresta tropical do mundo assegura, mas também pelo compromisso do Brasil de viabilizar e promover o desenvolvimento sustentável da Amazônia.
Nesse contexto, os temas ambientais-climáticos sempre estiveram ausentes das eleições majoritárias brasileiras. Em 2022, isto certamente mudará, pois este tema, que inclui a proteção da Amazônia, transbordou para a agenda política partidária. A destruição das estruturas ambientais-climáticas e suas terríveis consequências não só mobilizaram a mídia nacional e internacional nos últimos três anos, como também já mobilizam os eleitores e, consequentemente, os candidatos presidenciais, assim como governadores, deputados e senadores. As declarações públicas dos pré-candidatos presidenciais e a massiva presença de governadores, deputados e senadores, na sua maioria de oposição, na COP 26 de Glasgow já são um indício da politização do tema na disputa política de 2022.
O governo federal elegeu o tema ambiental-climático como "inimigo" de sua gestão e como uma das áreas-alvo de desconstrução pelo governo federal, tentando reproduzir a política de Donald Trump de transformar este tema num instrumento de polarização ideológica. O resultado das eleições municipais de 2020 e todas as pesquisas de opinião feitas no último ano sobre a visão dos eleitores acerca da performance do governo neste âmbito comprovam que, independente do perfil político-partidário, a sociedade brasileira demanda colocar a temática ambiental-climática como um pilar central no projeto de desenvolvimento do país e no Brasil do futuro.
Considerações finais
Em tempos de mudanças e na busca de uma outra relação da humanidade com a natureza, evidencia-se o imperativo de avançar em novas dinâmicas de cooperação internacional. O escopo de mudanças é mais amplo do que se admite ou se pratica nos tempos atuais. A carbonização do planeta é uma consequência sistêmica da complexa não harmonização na relação humana com a natureza. Por isto, os desafios políticos impostos pela crise ambiental-climática determinam não só a necessidade de agirmos rapidamente e de acordo com os presentes fóruns de decisão multilateral, como o Acordo de Paris, mas - acima de tudo - a complexidade da crise nos impõe pensar em novos arranjos de governança global e certamente em como incluir os outros “adultos na sala”.
Mesmo já experimentando uma metamorfose planetária, que já insinua consequências terríveis e incontroláveis, as presentes “lideranças” políticas do mundo expressam interesses e praticam contradições que retardam os avanços necessários e urgentes para a humanidade lidar, de forma menos assimétrica e talvez mais eficiente, com os desafios da segurança climática e suas derivações. Problemas planetários com o potencial de mexer com os limites da natureza deveriam provocar que tipo de reação política e em que tempo?
Os atrasos associados ao arranjo político internacional existente para lidar com a crise ambiental-climática revelam a necessidade de uma tarefa prioritária: a proposição de um sistema de governança internacional mais dedicado às soluções demandadas para ocupar-se com o futuro e com soluções duradouras. Não se trata de ignorar as circunstâncias políticas vigentes, mas talvez não ser tão refém de relações políticas já estabelecidas que levaram aos passivos atuais (que vêm de longe). O quadro é de enfrentamento de desafios diversos e de enorme alcance e de ir além do enfrentamento do retrocesso e experimentar ousadias nos aparatos político-institucionais de resposta.
Apesar de essencial, o desafio da governança global não é somente fortalecer a sua estrutura, cujo mandato se restringe a “fixing the carbon problem”. Tem que assegurar que toda esta estrutura priorize as diversas dimensões da crise ambiental-climática e que considere os desafios da reconciliação da relação humanidade e natureza; e atuar além dos fóruns vistos como “ambientais”, como a UNFCCC, a Convenção da Biodiversidade ou os ODS. O desafio urgente é não só assegurar que outros fóruns como OMC, Conselho de Segurança ou G20 possam contribuir nesta urgente questão, mas como assegurar uma participação real das verdadeiras “lideranças” planetárias nestes fóruns, valorizando as diversas estruturas de representatividade política já existentes nas nossas sociedades.
Esta parece ser uma condição importante para que a humanidade esteja mais preparada para lidar com as crises globais que se insinuam. Ou, ainda, um requisito estratégico à necessária repactuação do homem com a natureza e com o futuro, que não emergirá como uma projeção linear do passado. A crise ambiental-climática é um fator limitante do passado e, se não tivermos atenção, também do futuro.
A cooperação entre nações e sociedades demanda outros caminhos mais ágeis e mais ajustados às dinâmicas de inovação, transparência, coerência, comunicação e das novas economias verdes. É importante construir premissas que possibilitem superar a polarização entre o antropocentrismo e o nacional desenvolvimentismo. Ou, ainda, saber melhor lidar com as assimetrias entre países desenvolvidos e em desenvolvimento. Para isso, é essencial operar cada vez mais com base no conhecimento e na ciência e ter clareza das condições necessárias para superar o curtoprazismo. Na era climática, a conta do carbono será paga de um jeito ou de outro. Não há como “esconder a fatura” ou empurrá-la para o futuro. As decisões de hoje já estão submetidas à rastreabilidade e à contabilidade do carbono. A natureza, assim como a diplomacia, “toma nota”, ou seja, tem memória.
É desejável que essas mudanças ocorram o quanto antes, ainda na década de transição climática, em particular na sua primeira metade. Não há muito tempo disponível à venda. Portanto, é mais do que relevante que as maiores economias do mundo se movimentem, não somente para dar conta de suas promessas (ambições) e compromissos já acordados, mas para fazer andar internacionalmente a agenda de mitigação e resiliência climática com a ambição e urgência necessárias. As sociedades mais engajadas estão atentas à coerência (ou à falta) de líderes mundiais e esta perspectiva tende a ganhar força com os jovens e com seus pais. Afinal, como são eles que vão lidar com o planeta no futuro, querem assim fazer com as soluções e não com os velhos problemas.
No contexto do regime climático estabelecido em 1992, o enfrentamento da crise ambiental-climática nos tempos atuais seguirá as perspectivas políticas que levaram ao Acordo de Paris. A despeito das responsabilidades históricas de países desenvolvidos, todos os países signatários de Paris têm de mitigar suas emissões, bem como adotar as políticas necessárias à resiliência e à adaptação. Os tempos de agir estão definidos, e também as responsabilidades. Os desafios mais urgentes recaem sobre as economias desenvolvidas e as emergentes.
A reinserção do Brasil no cenário internacional e o seu realinhamento com a contemporaneidade passam pelo equacionamento do desenvolvimento da Amazônia e o fim da sua destruição. Um novo patamar de cooperação com as Américas e a Europa deve ser balizador para a retomada de diálogo e de negociações de interesses comuns. Um aprofundamento e uma ampliação das relações com a África e a Ásia nos temas ambiental-climático serão fundamentais para assegurar um realinhamento sobre as trajetórias de desenvolvimento sustentável junto aos países emergentes e em desenvolvimento.
O equacionamento do desmatamento também deve propiciar novos desafios e favorecer a liderança na cooperação regional com a Pan-Amazônia e na Cooperação Sul-Sul. A nuvem que o desmatamento na Amazônia promove não se limita ao acirramento dos conflitos e da violência na região, mas também abarca a exclusão dos amazônidas e dos demais brasileiros do mundo contemporâneo. Nesse contexto, é essencial que o Brasil retome o Fundo Amazônia, um novo patamar de diálogo e de compromissos com os países doadores, e volte ao seu papel de protagonismo no Grupo BASIC – Brasil, África do Sul, Índia e China, como parte da sua interlocução diplomática e científica e da sua visão estratégica de ação no âmbito do Acordo de Paris.
As novas economias verdes demandam o uso eficiente dos recursos naturais. E não somente pela racionalidade de seus pressupostos, mas também pelo esgotamento da oferta de recursos naturais no mundo para dar conta de um planeta com cerca de 10 bilhões de habitantes em 2050.[3] A procura crescente por recursos naturais e o desperdício associado estão relacionados a cerca de 56% das emissões globais de gases de efeito estufa e a 90% do estresse hídrico e da perda da biodiversidade. Esta é uma agenda particularmente vocacionada para o Brasil seguir em frente (abundante em recursos naturais e em seu desperdício), combinando resiliência e descarbonização, além de conservação da biodiversidade. Há também em pauta inovação, grande interesse de investimentos, competitividade e geração de empregos e novos modelos de negócios. É a receita para uma revolução da indústria brasileira.
É importante observar ainda que as soluções duradouras para a crise ambiental-climática têm potencialmente nos mercados e no setor privado importantes aliados. Mas as trajetórias de descarbonização, assim como a conservação da natureza e a emergência das novas economias verdes, como a bioeconomia, requerem políticas, regulação, gestão pública e sistemas de governança ambientais-climáticos eficientes, com transparência, accountability e orientados pelo conhecimento e pela ciência.
A busca por novos espaços no sistema multilateral e no sistema internacional de financiamento do desenvolvimento econômico e social compreende mais do que áreas de interesse, e sim visão estratégica do papel que podemos exercer no equacionamento da segurança climática global. Não seremos uma potência ambiental-climática sem muito trabalho e sem alianças duradouras em todas as instâncias, em todos os cantos do mundo e com pactos robustos com a sociedade brasileira. Ela é a fiadora de um futuro mais justo, inclusivo, transparente e descarbonizado.
A crise ambiental-climática é uma certeza e será responsável por parte das novas realidades no atual século. As suas soluções precisam fazer parte do dia a dia das pessoas, dos debates democráticos, do engajamento inclusivo e diverso do Brasil e do mundo. Para voltar a ter protagonismo nessa agenda, o Brasil precisa deixar para trás o retrocesso, reconhecendo os erros, entendendo o peso da sua trajetória nessa agenda, além de definir com clareza os seus interesses e ambições. O fim do desmatamento no Brasil e uma nova relação positiva com a natureza permitirão seguirmos em frente, democraticamente, lidando com as nossas ambiguidades, responsabilidades e com os nossos desafios. Sem ufanismo, sem apequenamento. O Brasil precisa ter os pés no presente, consciência do seu lugar em um mundo marcado pelas eras climática e tecnológica e com um olhar bem adiante para definir o que seremos em 2050.
Notas
[1] Cabe observar que as novas dinâmicas políticas contemporâneas internacionais envolvem a aceitação da ideia de uma ordem internacional multipolar (Patriota 2018) e de que o século XXI é orientado também pelos novos tempos políticos da Era do Antropoceno, isto é, o entendimento da interconexão das atividades humanas e o ambiente natural e de que o Antropoceno encerra um mundo “depois da natureza”, ou seja, em que tudo está interconectado sem qualquer distinção entre o homem (a sua ação e impacto) e o mundo natural. Embora seja visto por muitos especialistas como um “conceito aberto, em construção”, a ideia de uma Era do Antropoceno promove os campos geopolítico, atmosférico e da ciência planetária (Kelly 2019).
[2] A Agenda (Nações Unidas 2021) tem as propostas-chave estruturadas em 12 compromissos alinhados com a consecução dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), além de propor movimentos políticos alinhados com a perspectiva de mobilização de multistakeholders e de reconhecer a necessidade de reformas nos sistemas internacionais vigentes para lidar com o futuro. Três momentos-chave do processo de reconstrução são definidos pela Cúpula Transformando a Educação (2022), a Cúpula do Futuro (2023) e a Cúpula Social Global (2025).
[3] A taxa mundial de extração anual de materiais (combustíveis fósseis, minerais, metais e biomassa): em 1900, a demanda por recursos foi da ordem de 7 bilhões de toneladas; em 2005, foi de 60 bilhões de toneladas e a projeção estimada para 2050 é de 140 bilhões de toneladas (IRP/UNEP 2019).
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Recebido: 7 de janeiro de 2022
Aceito para publicação: 26 de janeiro de 2022
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