Neste trabalho, discutimos os principais focos da retórica diplomática e da política externa brasileira recente para a América do Sul, tais como comércio, projetos de integração da infraestrutura e articulação política. Mostramos, também, como as relações com vizinhos e a atuação brasileira na região são percebidas pelo público e pelas lideranças, utilizando dados de pesquisa de opinião do projeto Brasil, as Américas e o mundo (Cebrap 2017). Finalmente, indicamos algumas áreas nas quais um protagonismo renovado pode ser importante para marcar a presença regional do país.
O Brasil está notavelmente ausente da política regional. Embora seu desaparecimento já estivesse ocorrendo desde meados dos anos 2010, ele se tornou política de governo na presidência de Jair Bolsonaro. Quem quer que haja participado de reuniões de âmbito regional há de ter notado a falta de protagonismo brasileiro – quando não a ausência completa – e o mal-estar por ela provocado.
O Brasil está notavelmente ausente da política regional. Embora seu desaparecimento já estivesse ocorrendo desde meados dos anos 2010, ele se tornou política de governo na presidência de Jair Bolsonaro.
Neste trabalho, baseados na literatura especializada existente, apresentamos o que nos parece foram os principais focos da retórica diplomática e da política externa brasileira recente para a América do Sul e nos valemos de alguns dados para iluminar aspectos importantes das relações do país com a região, tais como comércio, investimentos e articulação política. Mostramos, também, como essas relações são percebidas pelo público e pelas lideranças, utilizando dados de pesquisa de opinião do projeto Brasil, as Américas e o mundo (Cebrap 2017). Finalmente, indicamos algumas áreas nas quais um protagonismo renovado pode ser importante para marcar a presença regional do país[1].
Consideramos que a retomada da política exterior em âmbito regional não pode ser uma simples volta a linhas de atuação interrompidas pela guinada radical imposta pelo governo atual. As circunstâncias internacionais são hoje bem diferentes daquelas presentes no começo do século, assim como os desafios que colocam para a região. Além do mais, parte dos propósitos e iniciativas que organizaram a política do país para a região envelheceu mal e não constitui alicerce firme para a retomada do protagonismo brasileiro. Por essa razão, a política externa não pode ser pura reconstrução do que foi enfraquecido – ou desgastado –, mas impõe uma agenda regional inovadora e consciente dos desafios postos pelo novo cenário internacional.
O Brasil na sua região
Do ponto de vista da retórica e das iniciativas efetivas de política externa, o ponto de partida é a constatação de que a região nunca foi um dado natural: seus contornos físicos e geopolíticos mudaram ao longo do tempo, assim como mudou sua importância no discurso e na ação externa do país. Em alguns momentos, ela foi espaço pan-americano, incluindo a grande potência do Norte; em outros, serviu à tentativa de afirmação de uma América Latina distinta e em certa tensão com os Estados Unidos; e, finalmente, na redemocratização e com mais nitidez a partir dos anos 1990, definiu-se como América do Sul (Bethell 2010). A diplomacia brasileira “sulamericanizou-se”, como observou Ricupero (2017). Essa é a região que constituiu um dos alvos prioritários da ação externa do Brasil nas duas décadas e meia de governos reformadores liderados pelo PSDB e pelo Partido dos Trabalhadores.
É consensual entre os especialistas que a ambição brasileira nunca se satisfez com possíveis logros regionais e, desde muito cedo, imaginou para o país papel mais importante na grande cena internacional dominada pelas nações poderosas. Idealmente, a região em que o Brasil exerceria naturalmente grande influência, quando não liderança, constituiria uma espécie de plataforma firme para uma ação externa de vocação mundial, possibilitada pela participação ativa nos arranjos multilaterais criados no segundo pós-guerra. Mais imaginado do que real, esse parece ter sido o pressuposto da política regional que começa no governo Sarney, mas ganha feição mais definida na presidência de Fernando Henrique Cardoso e se mantém ao longo dos governos petistas. De alguma forma, sob rótulos e retóricas diferentes, houve significativa continuidade nas políticas desenvolvidas para a América do Sul pelos governos do PSDB e do PT. Com a perspectiva do tempo, as diferenças, magnificadas no debate político doméstico, parecem menores e referidas antes a maneiras de conduzir a diplomacia do que aos objetivos a que se propunha.
A estratégia regional baseou-se em três pilares: integração comercial, integração física e concertação política, ou seja, Mercosul, IIRSA e Casa/Unasul. No primeiro caso, tratava-se de dar musculatura à integração comercial iniciada com o Mercosul, possibilitando sua extensão progressiva para todos os países abaixo da América Central. No segundo, propôs-se a caminhar na direção da integração física das estruturas de transporte e energia, por meio da Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) materializada com apoio de agências financiadoras internacionais e, em um segundo momento, com investimentos de grandes construtoras brasileiras em obras de infraestrutura em países vizinhos, com financiamento do BNDES. Finalmente, buscou-se a assegurar que a região fosse um espaço de paz, concertação política e democracia.
Do ponto de vista brasileiro, as iniciativas nunca deixaram de ser também uma forma de acumular recursos de poder que permitissem ao país fortalecer sua autonomia e posição negociadora frente aos Estados Unidos, seja em tópicos das agendas bilaterais ou regionais, seja nas instâncias multilaterais.
Não foram poucos os autores que, estudando a ação externa do Brasil na América Latina, buscaram decifrá-la em termos de liderança regional, alguns como mais otimismo (Burges 2017), outros com mais cautela (Malamud 2011, Hurrell 2008, Hirst 2009, Lima & Hirst 2006). Na verdade, é impossível discordar de Fonseca (1998) quando lembra que o nosso é um “país médio” com capacidade de atuação internacional limitada por problemas estruturais e escassos recursos econômicos, militares e políticos mobilizáveis, características que o afastam das políticas de poder e favorecem a ação pela diplomacia do direito. Uma nação com “forte presença regional na América do Sul” e capacidade para “influenciar na definição da agenda”, mas certamente não para forçá-la na direção de seus interesses, especialmente porque carente de apoio doméstico para tanto (Guimarães et al 2020).
Os limites da influência regional do Brasil ficam claros pelos resultados minguados das estratégias regionais acima mencionadas. As dificuldades econômicas, a instabilidade política interna de muitos países vizinhos, bem como as expectativas de cada um em relação aos Estados Unidos erodiram os projetos mais ambiciosos de integração comercial e da infraestrutura. Muito da retórica que animou a política externa para a região não se concretizou em mudanças efetivas: não produziu aumento significativo do intercâmbio comercial, mais integração física, ou uma comunidade de países que compartilhasse uma visão comum sobre seu lugar no mundo. Caminhos políticos crescentemente divergentes tornaram difíceis a concertação e mesmo a defesa dos sistemas democráticos em toda a área. Esses limites já eram visíveis antes que a crise política, que engolfou o país a partir de 2013 e culminou no desastre eleitoral de 2018, tornasse o país um pária em sua própria casa.
Vejamos cada um dos braços da política sul-americana desenhada há um quarto de século.
As relações comerciais: Mercosul e o comércio inter-regional
O Brasil ocupa uma posição modesta no comércio internacional, porém, na sua escala, é, há muito, um global trader, com significativo número de parceiros em diferentes continentes. O Gráfico 1 mostra a evolução dos principais fluxos de comércio do país e o lugar das trocas regionais neste conjunto.
Fig. 1 – Gráfico 1. Principais parceiros comerciais do Brasil 1960 – 2020. Fonte: The Growth Lab at Harvard University. The Atlas of Economic Complexity. http://www.atlas.cid.harvard.edu.
O comércio com os países do Cone Sul que estiveram abaixo do 10% do intercâmbio brasileiro experimentou significativa elevação nos primeiros anos do Mercosul, chegando a 17.1% em 1998, às vésperas da desvalorização do real. Entretanto, começa a cair nos anos iniciais deste século, mantém-se relativamente estável, em torno de 10% das trocas internacionais do Brasil, e mostra leve tendência a queda nos últimos anos. Ele é, contudo, fatia expressiva do comércio do país com a região e parece definir a forma de sua curva. União Europeia e Estados Unidos são parceiros bem mais significativos durante quase todo o período. A curva do comércio regional chega a encostar e, momentaneamente, superar a das trocas com os Estados Unidos, no auge do Mercosul. No novo século, a queda pronunciada da importância relativa dos fluxos comerciais com aquele país e, em menor medida, com a União Europeia não se explica pela robustez dos vínculos do país com a região, mas pelo crescimento vigoroso do comércio com a China. De fato, o aumento da participação relativa da China parece associado à diminuição da importância relativa de todos os outros parceiros, em especial do Mercosul e do restante da América do Sul.
A observação da importância relativa dos principais parceiros, naturalmente, conta apenas uma parte da história. As trocas no Mercosul constituem parcela considerável do comércio do Brasil com a região. Além do mais, esses fluxos comerciais têm características que os distinguem daqueles estabelecidos com outros parceiros para os quais somos principalmente provedores de commodities. No Mercosul e na América do Sul estão os principais clientes estrangeiros da indústria manufatureira do Brasil.
A assinatura do acordo entre Mercosul e União Europeia, em 2019, deu novo alento ao arranjo comercial regional em crise. Entretanto, a complexidade da sua aprovação frente às reticências de algumas nações do velho continente requer iniciativas internas na área ambiental – particularmente no Brasil – e forte ação diplomática coordenada entre os membros do grupo, em especial entre Argentina e Brasil, de difícil realização no momento presente.
Em resumo, os impasses, crises e a reiterada contestação da União Aduaneira, fartamente analisados pelos especialistas (Carranza 2003), mostram os limites de projetos de integração mais ambiciosos que busquem lastro no comércio. Eles, de resto, nunca resistiram bem à força centrífuga exercida por potências comerciais externas à região, exacerbada quando os Estados Unidos se lançaram com mais ímpeto na busca de acordos bilaterais (Ricupero 2017) e com a entrada vigorosa da China na região.
A presença chinesa, que de resto não se reduz ao comércio, mas tem crescido também por meio de investimentos diretos, tem impacto muito além da economia. Prenuncia a volta das disputas entre potências por hegemonia no palco sul-americano, com consequências para esforços regionais de concertação e para a política exterior brasileira. É de se esperar fragmentação ainda maior do espaço geopolítico que, no passado, pensadores e condutores da política externa brasileira imaginaram como alicerce regional do protagonismo mundial do país.
A Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana
Criada em 2000 durante a Cúpula Sul-Americana em Brasília, a IIRSA foi uma tentativa de estabelecer mecanismo regional próprio para superar os gargalos da infraestrutura dos países da região e aproximar suas matrizes econômicas, até hoje mais voltadas para o intercâmbio com os países fora da região do que para o comércio sul-americano. O objetivo era criar sinergias que fortalecessem as economias nacionais por meio do fomento de grandes projetos regionais de integração física e energética. O diagnóstico afirmava que a inserção do subcontinente na economia internacional poderia ser potencializada com uma estratégia regional visando ao ordenamento territorial sul-americano (Wegner 2018). A construção da IIRSA durante os governos de Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva foi a expressão prática do esforço de criação de uma trama econômica suficientemente densa capaz de potencializar a participação da região no competitivo mercado global.
Na primeira fase (2000-2009), o planejamento dos investimentos em infraestrutura no subcontinente baseou-se em “Eixos de Integração e Desenvolvimento” (EID), que orientaram planos de médio e longo prazo de estímulo à integração energética e de transporte. Na primeira década da IIRSA, criou-se uma carteira de mais de 500 projetos em infraestrutura de transporte, energia e telecomunicações. Na segunda fase, a IIRSA foi incorporada ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento (Cosiplan) da Unasul, conferindo tonalidade política a uma empreitada que até então havia sido essencialmente técnica.
A ausência de mecanismos de financiamento sólidos sempre foi o principal gargalo da Iniciativa. Na primeira etapa, a Iniciativa contou com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, do Banco de Desenvolvimento da América Latina e do Fundo Financeiro para Desenvolvimento da Bacia do Prata, enquanto, na segunda, o BNDES tornou-se fonte importante de financiamento, propiciando a expansão das grandes empreiteiras brasileiras no espaço regional. Com a crise econômica que se abateu sobre o Brasil e a região, na segunda década do século, o Banco Chinês de Desenvolvimento torna-se cada vez mais uma fonte importante de recursos.
O caráter nacional da maioria dos projetos foi outro obstáculo ao êxito da iniciativa. Dos 563 projetos listados pela Cosiplan em 2017, mais de 83% (469) são nacionais, 16% (89) são binacionais e apenas 1% (5), plurinacionais. Dessa forma, a dimensão regional da IIRSA ficou, em boa medida, limitada à definição da carteira de projetos. Financiamento e execução dos projetos de âmbito nacional foram tratados como problemas domésticos e, nessa medida, dependentes dos limites de endividamento de cada um dos Estados. Segundo Wegner (2018), 61% dos recursos da IIRSA vinham dos Tesouros Nacionais em 2016. Os projetos binacionais ou transnacionais encontraram mais dificuldades em sair do papel.
Dados da IIRSA-Cosiplan de 2017 indicam que 60% dos projetos de âmbito nacional foram concluídos ou estão em execução, contra 44% dos projetos binacionais e apenas 1 projeto plurinacional terminado ou ainda em curso. A tabela 1, resume essa informação e mostra a dimensão modesta dos recursos alocados para projetos de interesse de mais de um país.
Divergências políticas entre países, a instabilidade de seus sistemas democráticos e os escândalos de corrupção envolvendo grandes construtoras brasileiras responsáveis por alguns dos empreendimentos abalaram a Iniciativa[2]. Contudo, o obstáculo principal parece ter sido mesmo o financiamento na escala requerida, em razão da capacidade restrita de inversões públicas e de acesso ao financiamento internacional de países sempre às voltas com sérias limitações fiscais e, por último, mas não menos importante, a ausência de liderança capaz de impulsionar esquemas de financiamento inovadores (Castro & Cimini 2020).
As vicissitudes da IIRSA revelam, por outro ângulo, as limitações dos esforços de coordenação regional na ausência de financiamento regular e abundante e da reduzida capacidade de o Brasil – maior economia da região e o único a contar com um banco de desenvolvimento público – atuar como propulsor e financiador de formas mais ambiciosas de integração.
A articulação política regional
A terceira onda democrática atingiu toda a América do Sul. Em meados dos anos 1990, os países da região elegiam suas lideranças em pleitos competitivos. Livre das tensões da Guerra Fria, pareciam avançar, enfim, rumo à consolidação plena de instituições democráticas. O Brasil que, desde muito tempo, entretinha relações pacíficas com seus vizinhos – e, ao fazê-lo, contribuía para a paz na região – extinguiu os últimos focos de tensão com a Argentina ao eliminar o fantasma do desenvolvimento de armas nucleares e ao buscar cooperação mais estreita por meio do Mercosul. Outras iniciativas caminharam na mesma direção. A intervenção concertada com outros países sul-americanos possibilitou a solução da crise política no Paraguai e logrou pôr fim ao conflito cinquentenário entre Peru e Equador na região de Cenepa, encerrado com o Acordo Global e Definitivo de Paz, assinado pelos beligerantes em Brasília. O Protocolo de Ushuaia introduziu a cláusula democrática no Mercosul. Já no final da administração FHC, ocorreu a reunião de líderes da região que redundou na criação da Comunidade das Nações Sul-Americanas (Casa), que, sob o governo Lula, se transformaria na Unasul (Saraiva 2010).
A preservação da paz e de relações diplomáticas regulares na América do Sul não é logro de pequena monta, e a contribuição da postura externa do Brasil para esse resultado não deve ser subestimada.
A preservação da paz e de relações diplomáticas regulares na América do Sul não é logro de pequena monta, e a contribuição da postura externa do Brasil para esse resultado não deve ser subestimada. Basta comparar a América do Sul com o que ocorre no entorno de nações de dimensões semelhantes como Rússia, Índia ou China. Mas, a partir dessa constatação, não há que exagerar a capacidade de o país influir sobre o destino comum da região.
Se a integração comercial no Cone Sul rapidamente mostrou seus limites, a articulação política regional nunca avançou muito na direção de mecanismos mais fortes de concertação. A diplomacia funcionou bem em alguns momentos – Guerra de Cenepa (Guimarães & Almeida 2017), crise política no Paraguai, tentativa de golpe contra Chávez – e em outros, menos – como, por exemplo, no conflito das “papeleras” entre Argentina e Uruguai, dois parceiros do Mercosul. Em especial, falhou em articular uma solução regional para a maior crise política e humanitária dos últimos tempos que vem dilacerando a Venezuela, com consequências para a região, obrigada a lidar com o súbito aumento da imigração vinda daquele país e com a ameaça de interferência de Estados Unidos, Rússia e China.
Da mesma forma, foi limitada a capacidade de o Brasil promover ação concertada nos foros multilaterais para avançar agendas comuns, para votar em momentos de decisão importantes, ou na disputa de cargos relevantes na OMC, no FMI ou no Conselho de Segurança da ONU. Em mais de uma vez, sul-americanos concorreram entre si por postos internacionais, e a pretensão brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança nunca encontrou entusiasmo entre os vizinhos.
À medida que a polarização política foi se instalando na região, transformando disputas eleitorais em confrontos irreconciliáveis, os sistemas democráticos ficaram mais instáveis, e seu funcionamento, mais problemático. Entre 1990 e 2020, crises do presidencialismo foram frequentes, e 17 chefes de governo sul-americanos não terminaram seus mandatos, em virtude de renúncia, impeachment ou golpe parlamentar.
A Comunidade Sul-Americana de Nações (Unasul), criada em 2004 em substituição à Casa, já surgiu quando aumentavam a polarização no interior dos países e a divergência de orientações político-ideológicas entre eles. A opção dos governos brasileiros, depois de 2002, por tomar partido em algumas disputas domésticas de vizinhos e fomentar a articulação de governos progressistas selou a sorte da Unasul.
Com a mudança radical da política externa trazida pela vitória de Jair Bolsonaro, a principal iniciativa brasileira de política externa para a região naufragou sem deixar legado institucional relevante para a estabilidade da democracia na América Latina ou para a coordenação da ação internacional dos países que a compunham em um mundo que parece caminhar para a bipolaridade. Tampouco produziu reflexão importante sobre grandes desafios regionais: migrações internas, crises humanitárias, ilícitos internacionais ou estratégias para lidar com a presença crescente da China.
A integração regional continua presente nas discussões sobre o futuro da região. Ela parece habitar, porém, o território dos sonhos coletivos distantes da terra firme dos interesses e projetos políticos concretos, pois falta liderança capaz de formulá-la de maneira realista e arcar com os custos políticos e materiais de promovê-la. Não parece razoável supor que o Brasil possa, em futuro próximo, ser uma força propulsora dessa empreitada. Faltam-lhe disposição firme para tanto, recursos econômicos e financeiros e apoio inequívoco entre a população e as lideranças do país. É o que mostramos a seguir, utilizando dados do projeto Brasil, as Américas e o mundo [3].
A região vista pelos brasileiros
Os brasileiros e suas lideranças revelaram escassa identificação com a região, seja ela a América Latina ou a América do Sul, embora parcela algo maior dos líderes se considerasse latino-americano nos dois momentos em que o levantamento foi realizado. Os membros dos dois grupos se imaginam antes como cidadãos do mundo do que como parte do espaço que compartilham com seus vizinhos. A tabela 2 fala por si. Mercosul e América do Sul são espaços de identidade praticamente inexistentes para o grande público e para os líderes.
Da mesma forma, a opinião do público com relação aos vizinhos é bastante ambígua. A tabela 3 mostra as médias da avaliação dos brasileiros sobre alguns de seus vizinhos, em pontos diferentes do tempo. Elas são sistematicamente inferiores a 50, indicando percepções mais negativas do que positivas e são sempre inferiores à opinião manifesta sobre os Estados Unidos. Algumas se mantêm bastante constantes, outras têm variação significativa positiva, como no caso dos Estados Unidos, e negativa em relação à Venezuela. Elas se distanciam muito das opiniões dos líderes, embora estes também revelem preferência pelos Estados Unidos e menor apreço pela Venezuela.
Chama a atenção o fato de que não são apenas as nações da alternativa bolivariana (Cuba, Venezuela e Bolívia) os objetos da desconfiança do público brasileiro. Colômbia e Peru são também mal vistos, e apenas México, Argentina e Chile recebem aprovação acima de 40 pontos.
A maioria dos líderes brasileiros, escutados em três momentos, preferem que o Brasil não busque posição de liderança, mas colabore com os vizinhos na solução de problemas regionais, embora não sejam poucos os que veriam com bons olhos o país exercendo papel de direção. A diferença na distribuição das preferências entre as duas posições cresceu, com o tempo, a favor daqueles que preferem a cooperação entre iguais.
As posições do público são mais ambíguas e instáveis, pois, em dois momentos – 2010 e 2019 – prevaleceu a aspiração a uma liderança brasileira inconteste. Opiniões isolacionistas são também significativamente mais presentes entre os brasileiros comuns, crescendo de maneira significativa em 2019. É o que indicam os dados da Tabela 4.
O público está longe de ter opiniões firmes e consensuais sobre o papel do país na região. Estudos futuros poderão indicar se o rechaço do público ao protagonismo regional do Brasil é uma resposta conjuntural à crise dos anos 2010, ou uma postura isolacionista mais arraigada e duradoura. Por seu turno, a preferência dos líderes parece indicar reconhecimento das limitações que o país enfrentaria caso procurasse conduzir os vizinhos. E seu apoio à participação brasileira ativa poderá sustentar uma política externa engajada e fundada da cooperação horizontal no âmbito sul-americano.
Entre o passado e o futuro
À frente do Ministério de Relações Exteriores, Ernesto Araújo hostilizou vizinhos, criou conflitos inúteis, expôs o país ao ridículo e o tirou da cena regional. Sob nova gestão, as relações diplomáticas com a América do Sul parecem buscar a normalidade, mas não há por que imaginar que o Brasil venha a desempenhar qualquer papel positivo enquanto for governado por Jair Bolsonaro.
Convém assim explorar alguns temas incontornáveis em uma agenda futura, a partir da experiência do passado recente e diante de novas realidades emergentes. Enunciaremos alguns, sem querer esgotá-los ou abarcar todos. Tratamos também de explicitar alternativas de ação. Elas são apresentadas abaixo sem preocupação em hierarquizá-las conforme sua importância:
A presença da China
Realidade econômica incontornável, como parceiro comercial e como investidor, a China tenderá a colocar desafios à política externa brasileira e à convergência regional. Na medida em que o cenário internacional assume crescentemente formato bipolar, a China não poderá mais ser encarada apenas como um importante parceiro comercial, mas como protagonista de uma disputa maior, que passa a ter expressão também no espaço sul-americano, na forma de ameaças e oportunidades. A China poderá desviar comércio, ameaçando as exportações de manufaturas brasileiras para a região, mas poderá também significar uma fonte alternativa de financiamento para a criação de infraestrutura regionalmente integrada. Aqui o desafio para o Brasil será duplo: decidir como aproveitar a competição que já se esboça entre Estados Unidos e China em benefício dos objetivos do país; e decidir se vai fazê-lo isoladamente, ou se vale a pena buscar uma reação mais coordenada com os vizinhos da região, o que implica identificar os temas, âmbitos e momentos mais propícios.
A questão ambiental amazônica
O mundo vem cobrando do Brasil atitude positiva e eficaz na defesa do patrimônio de biodiversidade da floresta amazônica. Não haverá espaço para o protagonismo internacional do país sem que políticas domésticas de preservação e exploração sustentável da floresta sejam abraçadas com decisão e criatividade. Essa é de resto uma das poucas áreas nas quais o país tem trunfos consideráveis no cenário internacional. Uma parte importante do desafio é combater uma multiplicidade de atividades ilícitas, que incluem exploração ilegal de madeira e minérios, tráfico de drogas e pessoas, ocupação ilegal de territórios públicos ou reservados a populações originárias. Aqui a defesa do patrimônio socioambiental se imbrica com questões de defesa e segurança não tratadas neste texto. A Amazônia não está contida toda em território brasileiro. Dividimos esse patrimônio com oito vizinhos. Aqui também há duas possibilidades: atuar nos limites do território nacional, ou buscar formas de cooperação com os países amazônicos, o que apesar de extremamente difícil pode ser o caminho mais profícuo. Se for esse o caminho escolhido, o país terá que decidir se e como dar vida e substância ao Tratado de Cooperação Amazônica – até hoje um fracasso retumbante – e que outras iniciativas e instrumentos podem ser criados para compartilhar recursos e responsabilidades.
A questão ambiental energética
O caminho para a economia de baixo carbono requer a utilização de fontes de energia limpa. O Brasil parte de uma posição confortável por contar com matriz energética de fontes diversas – hidrelétrica, eólica, solar, de biocombustíveis – e em sua maioria não dependente de combustíveis fósseis, embora, na contramão das boas práticas, a contribuição das termoelétricas tenha crescido nos últimos tempos. Seria importante estudar as possibilidades técnicas e econômicas de cooperação internacional no âmbito das energias limpas, nos marcos da IIRSA, aprendendo com a experiência anterior.
A cooperação em saúde
A Covid-19 teve consequências devastadoras na região, mas pode inspirar agenda inovadora de política externa. O Brasil foi capaz de rapidamente produzir vacinas por meio de acordos com empresas ou consórcios estrangeiros, que se traduziram em transferência de tecnologia. Com base na experiência acumulada, é possível fortalecer linhas de cooperação técnica que aumentem a resiliência da região a futuras e previsíveis catástrofes sanitárias. Apesar da desastrosa condução das ações contra a pandemia pelo governo federal, o sistema de saúde brasileiro desenvolveu capacidades técnicas e resiliência muito significativas. Assim, a cooperação em saúde pode ser um grande ativo da política externa brasileira para a região.Mercosul
A presença chinesa no comércio da maioria dos países da região aumenta os desafios ao acordo comercial do Cone Sul. Talvez esteja chegando o tempo de revisar os seus termos conforme impõem a experiência e o realismo, de forma a torná-lo instrumento efetivo de estímulo ao comércio regional. De toda forma, a ratificação do acordo com a União Europeia é do interesse do Brasil, indicando a necessidade de esforço diplomático concertado entre os parceiros da região para aplainar os obstáculos à sua ratificação pelas nações europeias.
Fórum político regional
A instabilidade e a fragmentação política da América do Sul parecem ser tendências inelutáveis, posto que assentadas em traços profundos e duradouros das sociedades e dos sistemas políticos locais. Por toda parte, a democracia está sob o fogo da polarização política e, depois da transformação autoritária da Venezuela, já não é mais the only game in town. A situação impõe desafios importantes para a criação de espaços regionais de interlocução, ao tempo em que os tornam mais necessários. O Brasil não tem vocação nem recursos para sozinho liderar esforços nessa direção,mas pode desempenhar um papel positivo de fomentador da criação de um lugar institucionalizado de diálogo. Para tanto, é importante entender o fracasso da Unasul e evitar que preferências políticas e afinidades ideológicas dificultem o debate de temas regionais de interesse comum. O antigo preceito realista da não interferência nos assuntos internos de cada país parece ser o mais recomendável. Ele, naturalmente, desafia o compromisso igualmente relevante de defesa da democracia na região. Esta estará mais bem servida se for realizada pelos instrumentos institucionalizados à disposição: a cláusula democrática do Mercosul e seu equivalente na OEA.
Considerações Finais
Neste texto, oferecemos mais indagações do que respostas. Nosso objetivo foi indicar temas que merecem ser considerados no debate sobre os passos futuros da política externa brasileira. O país fez uma escolha acertada quando dirigiu o foco para a América do Sul; contudo, as realizações efetivas deixaram a desejar. O discurso distanciou-se muito dos fatos. Mesmo nos momentos de maior afinamento político-ideológico, avançou-se pouco na construção de alicerces institucionais sobre os quais organizar colaboração regional mais efetiva. A história da região e as histórias particulares de cada país, assim como os desastres da última década, agravados pela pandemia, não são de molde a criar condições favoráveis a projetos compartilhados. As desigualdades renitentes cindem as sociedades e alimentam a polarização política. Cada uma por si, as economias nacionais não encontram o rumo do crescimento. Como as famílias de Tolstoi, na América do Sul cada país é infeliz à sua maneira. Talvez uma ambição mais reduzida em relação aos objetivos a alcançar e a persistência em persegui-los possa levar a avanços mais duradouros.
Notas
[1] Registramos aqui a omissão das questões de segurança regional, cuja importância não deve ser subestimada.
[2] No Peru, as repercussões da Operação Lava Jato provocaram o suicídio de um ex-presidente e o indiciamento de outro.
[3] Brasil, as América e o mundo (CEBRAP 2017) é um projeto colaborativo regional, com sede no Cide (México). Consiste em pesquisa de opinião de tipo painel com o público e com lideranças políticas e sociais. No Brasil, foram realizadas três ondas, em 2010-2011, 2014-2015 e 2018-2019, com amostras aleatórias do público e intencionais de líderes da sociedade, do governo e do sistema político de alguma maneira relacionados com assuntos internacionais. A coordenação do projeto está sediada no Cebrap e a equipe conta com pesquisadores do Cebrap, UFABC e IRI/USP. O projeto recebe financiamento da Fapesp Proc_2018/00646-1. Mais informações e bancos de dados podem ser encontrados em https://github.com/las-americas/cebrap.
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Recebido: 11 de novembro de 2021
Aceito para publicação: 13 de dezembro de 2021
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